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A Bíblia - Introdução

Que é a Bíblia? Um simples olhar lançado sobre o índice basta para ver que ela é uma
"biblioteca", uma coleção de livros muito diversos. Quando se consultam as introduções a esses livros, a
primeira impressão se confirma: distribuindo-se por mais de dez séculos, os livros provêm de dezenas de
autores diferentes; uns estão escritos em hebraico (com certas passagens em aramaico), outros em
grego; apresentam gêneros literários tão diversos quanto a narrativa histórica, o código de leis, a
pregação, a oração, a poesia, a carta, o romance.
O nome desta coleção, "os livros" (em grego, ta biblia), tornou-se um singular, "a Bíblia" (em
grego, he biblia). "Os livros" chegaram a ser considerados como um único livro e até mesmo o Livro por
excelência. Por quê?
De quem provém a Bíblia? Todos estes livros provêm de homens com uma convicção
comum: Deus os destinou a formar um povo que toma lugar na história com legislação própria e normas
de vida pessoal e coletiva. Foram todos testemunhas daquilo que Deus fez por esse povo e com ele.
Relatam os apelos de Deus e a reação dos homens (indagações, queixas, louvor, ações de graça).
Este povo posto a caminho por Deus foi primeiramente Israel, que apareceu na história por
volta de 1200 a.C., envolvido - como todos os povos vizinhos - nos movimentos que agitaram o Oriente
Próximo até os inícios da nossa era. No entanto, sua religião o tornava um povo à parte. Israel conhecia
um único Deus, invisível e transcendente: o SENHOR 1. Exprimia a relação que o unia ao seu Deus com
um termo jurídico: a Aliança. Submetia toda a existência à Aliança e à Lei que dela decorria, e seu modo
de vida se tornava cada vez mais contrastante com o das outras nações. Toda a parte hebraica da Bíblia
se refere à Aliança, tal como foi vivida e pensada por Israel até o século II a.C..
O antigo povo judaico, cuja dispersão se acelerou com a destruição de seu centro religioso,
Jerusalém, em 70 e 135 d.C., prolonga-se na comunidade judaica, cuja história movimentada e
freqüentemente trágica se desenvolve na maior parte do tempo em terra de exílio. As diversas tendências
que o animam, todas têm por fundamento a Escritura e notadamente a Lei, venerada como a própria
palavra do Senhor. Os judeus a lêem e sobre ela fundamentam sua prática no quadro de tradições que,
lançando raízes na vida do antigo Israel, foram redigidas após a ruína da nação e inseridas na literatura
rabínica.
Ao mesmo tempo que viu a desaparição da nação judaica, o século I assistiu ao nascimento
da comunidade cristã, que se afastou progressivamente do judaísmo. Para os cristãos, a história do povo
de Deus tinha encontrado cumprimento em Jesus de Nazaré; foi por ele que Deus reuniu as pessoas de
todas as origens para formar um povo regido por uma nova Aliança, um novo Testamento 2. Era uma
aliança definitiva; em contrapartida, fazia da Aliança que regia Israel uma etapa que, embora
indispensável, estava destinada a ser superada. Os cristãos denominaram-na de antiga Aliança e deram
ao conjunto dos livros bíblicos recebidos de Israel o nome de Antigo Testamento (cf. 2Cor 3, 14),
enquanto os livros que falavam da pessoa e da mensagem de Jesus formavam o Novo Testamento.
Os discípulos de Jesus e seus sucessores imediatamente que redigiram o Novo Testamento
viam em Jesus aquele que concretizaria a esperança de Israel e responderia à expectativa universal tal
qual expressa no seio desse próprio povo. Com toda naturalidade, utilizaram a linguagem dos livros
santos de Israel com toda a sua densidade histórica e experiência religiosa acumulada no decorrer dos
séculos. Consequentemente, a comunidade cristã reconheceu no Antigo testamento a palavra de Deus.
As Escrituras judaicas vieram a ser, então, a primeira Bíblia dos cristãos. Mas, iluminado pela fé em
Jesus Cristo, o Antigo Testamento tomou um sentido novo para eles, tornou-se como que um novo livro 3.
Assim, judeus e cristãos se vinculam à Bíblia, mas não a lêem com os mesmos olhos. Não
obstante ela continua a convidar os homens e mulheres de todos os países e de todos os tempos a
ingressar no povo dos que buscam a Deus no seguimento dos patriarcas, dos profetas, de Jesus e de
seus discípulos. Livro do povo de Deus, a Bíblia é o livro de um povo ainda a caminho.
Ler a Bíblia. Os livros da Bíblia são a obra de autores ou redatores reconhecidos como
portadores da palavra de Deus no meio de seu povo. Muitos dentre eles quedaram no anonimato. De
qualquer modo, não estavam isolados: eram conduzidos pelo povo cujas vidas, preocupações,
esperanças partilhavam, mesmo quando se erguiam contra ele. Boa parte de sua obra se inspira nas
tradições da comunidade. Antes de receber forma definitiva, estes livros circularam durante muito tempo
entre o público e apresentam os vestígios das reações suscitadas em seus leitores, sob a forma de
retoques, anotações e até de reformulações mais ou menos importantes 4. Os livros mais recentes são por
vezes reinterpretação e atualização de livros mais antigos (como, por exemplo, as Crônicas, com relação
a Samuel e Reis).
A Bíblia está profundamente marcada pela cultura de Israel, povo que teve, como todos os
outros, um modo próprio de compreender a existência, o mundo que o circundava, a condição humana.

1
Exprime sua concepção do mundo, não numa filosofia sistemática, mas em costumes e instituições, em
reações espontâneas dos indivíduos e do povo, através das características originais de sua língua. A
cultura hebraica evoluiu no decorrer dos séculos, conservando, porém, determinadas constantes.
A civilização de Israel tem muitos pontos em comum com as civilizações dos outros povos
do antigo Oriente. Apesar disso, o antigo Oriente não explica tudo na Bíblia; a linguagem dos livros foi
modelada pela história própria de Israel, única em seu gênero. Muitas das palavras da Bíblia -
particularmente no Novo testamento - estão carregadas de uma experiência religiosa milenar. Para
detectar toda sua riqueza, é preciso levar em consideração o contexto de toda a Bíblia e da vida das
comunidades que prolongam a existência do antigo Israel.
Isto explica por que, muitas vezes, é difícil para o homem de hoje compreender plenamente
a Bíblia. Entre ela e ele se interpõe uma distância considerável: o afastamento no tempo, a diferença de
cultura e, mais profundamente, a distância que um texto escrito sempre introduz entre a mensagem
original e o leitor.
Para reduzir a distância, recorre-se à exegese, isto é, a uma explicação do texto. Cada
época teve seus métodos. De dois ou três séculos para cá, o Ocidente viu desenvolver-se uma exegese
histórica, à qual a civilização técnica forneceu instrumentos (especialmente a arqueologia científica). Sua
intenção é estabelecer com exatidão o texto bíblico, compreender exatamente o sentido das palavras,
situar o texto em seu ambiente original. É o resultado deste vasto trabalho que as introduções e as notas
de A Bíblia - Tradução Ecumênica resumem.
A Bíblia, Palavra de Deus. O leitor constata que a Bíblia não constitui simplesmente um
antigo tesouro literário ou uma mina de documentação sobre a história das idéias morais e religiosas de
um povo. A Bíblia não é somente um livro no qual se fala de Deus; ela se apresenta como um livro no
qual Deus fala ao homem, como atestam os autores bíblicos:
Não se trata de uma palavra sem importância para vós: é vossa vida (Dt 32,47). Estes sinais
foram escritos neste livro para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,
tenhais a vida em seu nome (Jo 20,30-31).
Nenhuma leitura poderá desconhecer essa função do texto bíblico, essa interpelação
constante, essa vontade de transmitir uma mensagem vital e de atrair a adesão do leitor. O leitor é livre
para resistir e pode apreciar a Bíblia apenas como um literato ou um apreciador da história antiga. Mas se
ele aceitar entrar em diálogo com os autores que dão testemunho da própria fé e suscitam a necessidade
de uma decisão, a questão fundamental, o sentido da vida, não deixará de ser enfrentada por ele. Pois a
Bíblia e a fé - à qual ela convida de modo tão premente -, embora estejam profundamente enraizadas
numa história particular e bastante longa, ultrapassam a história. Os autores bíblicos querem ser os
porta-vozes de uma Palavra que se dirige a todo homem, em todo tempo e lugar.
Através dos séculos, as comunidades cristãs de todas as línguas e de todas as culturas
encontraram e encontram alimento neste livro, cuja mensagem meditam e atualizam. Não é sem razão
que nos cultos ou ofícios se lêem ou se cantam os Salmos, o Antigo Testamento, as Epístolas, com o
Evangelho; sua unidade é a unidade da fé. Fundada nesse testemunho da Bíblia, a fé não deixa de
encontrar ali vida e força. O leitor (mesmo não-crente) sabe que esta fé existe hoje, que ela é - nas
comunidades e algumas vezes fora delas - um certo modo de o homem viver a relação com os outros
homens e de agir no meio deles, uma modalidade particular de existir que é fermento da história humana.
Assim, a Bíblia sempre remete o leitor à fé vivenciada, como também a vivência da fé
sempre remete à Bíblia, na qual a fé lança suas raízes.
1. É assim que nesta Bíblia será traduzido o nome próprio do Deus de Israel (cf. Ex 3,14-
15).
2. Aliança e Testamento são duas traduções da mesma palavra hebraica (cf. Hb 9,15 nota).

3. Para evitar qualquer mal-entendido, seria melhor falar do primeiro e do Segundo


Testamento, sendo um imprescindível à compreensão do outro.

4. Ver, por exemplo, as introduções a Isaías e a Ezequiel

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