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ROUCH COMPARTILHADO: PREMONICOES E PROVOCACOES PARA. UMA ANTROPOLOGIA CONTEMPORANEA Rose Satiko Gitirana Hikiji! Jean Rouch, hibrido de cineasta e antropélogo, é figura “boa para pensar” ambos os fazeres. Aqui, me proponho a refletir sobre a relaglo entre Rouch e uma Antropologia contemporiinea. Escrevo a partir de um lugar que deve ser explicitado: sou ‘uma antropéloga que decide fazer filmes e encontra no cinema antropol6gico de Rouch fonte de grande inspiragao e provocagio’. Apresento no ensaio algumas premonigdes de Jean Rouch - questdes elaboradas pelo autor que antecedem em décadas _problematizagbes _antropolégicas contemporaneas; alguns pontos de contato entre seu. cinema antropolé: antropologia do sensivel; e a historia de uma sacola que implica um caso particular de apropriagio das ideias rouchianas. Premonigdes cardter pioneiro — e até premonitério — da obra de Jean Rouch em relagao a0 pensamento antropolégico & tematizado por vérios autores. Anna Grimshaw (2001) utiliza-se do termo “seer” para definir Rouch. A palavra é polissémica, e nos permite imaginar algumas facetas do antropélogo-cineasta: “seer” pode ser traduzido como “visiondrio”, e Rouch pode ser pensado como um homem de visio - 0 futuro da antropologia & de fato uma preocupagdo sua. “Seer” & um observador que percebe visualmente. “Seer” & 0 vidente, 0 profeta, pessoa que adivinha 0 futuro, como o ordeulo da raposa Dogon. Mare-Henri Piault identifica 0 pioneirismo de Rouch em sua preocupagao em levar em consideragio a historicidade, a mudanga ea contemporaneidade: “nestes dominios 0 cinema etnogeifico é pioneiro e os filmes de Jean Rouch, precedendo o trabalho de Georges Balandier, abrirdo terrenos que [outros antropélogos] se recusavam a considerar.” (Piault, 2000: 48, trad. minha) " Universidade de S20 Paulo, Brasil * As ideias aqui apresentadas foram desenvolvidas para o Col6quio Internacional Jean Rouch em 2009, no ‘qual pude apresentar uma comunicagao. Agradego aos organizadores do Coléquio, Mateus Araijo Silva e ‘Andrea Paganini, pelo convite e pela oportunidade de discutir Jean Rouch com virios especialistas e amigos do antropélogo-cineasta ras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, janjun. 2013 Rose Satiko Gitirana Hikiji ‘Lembremos que Rouch, engenheiro de formagao, conhece a Africa em 1941. Em 1947, inicia seu doutorado sob orientagdo de Marcel Griaule, pesquisando feitigaria, sacrificio e possessdo entre os Songhay. A Africa que Rouch vé difere bastante da descrita nos tratados de etnologia. E£ um continente que enfrenta os efeitos da urbanizagao e das lutas pela independéncia. E seri este contexto 0 cendrio dos filmes mais conhecidos de Rouch, realizados nos anos 1950 na Costa do Ouro, atual Gana (Os mestres loucos, 1954-5), em Gana e Niger (Jaguar, 1954-67) e na Costa do Marfim (Eu, um negro, 1957-8; A pirdmide humana, 1959). Contexto marcado pelo conflito, habitado por personagens que vivem ¢ refletem os processos de mudanga pelos quais passam as nagdes afticanas. Contexto narrado e pensado por estes personagens, outra caracteristica pioneira do cinema de Rouch. Paul Stoller (1994), em um ensaio que aproxima Artaud ¢ Rouch, também destaca 0 cariter visionirio de Rouch e dos artistas em geral, que teriam antecipado questdes que 86 viriam a ser pensadas nos anos 1980, pelo que ficou conhecido como a critica pés-modema & etnografia clissica. “Uma geragdo antes do ‘momento experimental’ em antropologia, cineastas, artistas, poetas evocaram varios dos temas que definem a condigao pos-moderna: a fragmentagao social, 0 impacto da expansio das economias globais, a construgao cultural do racismo, a permeabilidade das fronteiras entre categorias (Fato/ficgao// objetividade/subjetividade)”. (Stoller, 1994: 96; trad. minha) Para Stoller, se até recentemente pouco se considerou 0 trabalho pioneiro de Rouch, tanto na critica contempordnea européia ¢ norte-americana, isto se daria porque -adémicos estio ainda ligados razio, a palavras. Eles buscam o di cursivo & evitam o figurative. Imagens, nos trabalhos académicos, sao transformadas em instigdes que formam um discurso coerente. Poesia ¢ o que Merleau-Ponty chamou de ‘a inguagem indireta” estdo além das fronteiras académicas (Stoller, idem, ibidem). Eo que faz Rouch? Para Stoller, Rouch faz um cinema da crueldade, cujo objetivo nao é recontar, ‘mas apresentar um conjunto de imagens desconcertantes, provocadoras que objetivam transformar a audiéncia psicologicamente ¢ politicamente. Rouch queria transformar seus espectadores, mudar suas certezas culturais, Anna Grimshaw destaca dentre as qualidades que Rouch traz para a antropologia sua imaginacdo, seu espirito aventureiro e subversivo, que contrasta com o ceticismo do iscurso intelectual contemporineo. Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 14 ROUCH COMPARTILHADO. Renato Sztutman aponta um contraste entre a critica antropoligica de Rouch aquela efetuada pela vertente pos-moderna norte-americana, mencionada por Stoller. Enquanto autores como Marcus ¢ Fischer estimularam um debate que nos coloca “diante de uma impoténcia te6rica que se converte em paralisia pratica” (Sztutman, 2004: 61), a critica antropolégica de Rouch nao abdica do fazer antropolégico, recorre a0 dominio da agio, € uma praxis antropologica que enfrenta os dilemas contemporineos por meio do cinema. Um destes dilemas é a inoperdncia dos grandes divisores - Nés-Eles, Ocidente- Oriente, Natureza-Cultura — para a descri¢do dos mundos hibridos que habitamos, Interessante notar que 0 projeto visionério de Rouch antecipa em décadas a discussio que ganha espaco na antropologia do fim do século XX, inicio do XXI. Rouch, em sua obra, recusa a estabilidade das categorias convencionais, como branco/negro, inracional/racional, campo'cidade, verdade/ficgao, Africa/Europa (Grimshaw, 2001). Em uma de suas frases mais citadas, Rouch defende a subversdo de fronteiras’ entre arte ¢ cigncia, documentitio ¢ ficedo, real e imaginario: “Para mim, como etnégrafo ¢ cineasta, ndo hé quase nenhuma fronteira entre filmes documentitios e fiecion: © cinema, arte do duplo, é jé a passagem do mundo do real ao mundo do imagindrio, e a etnografia, ciéncia dos sistemas de pensamento dos outros, € uma travessia permanente de um universo conceitual a um outro, ginistica onde perder 0 pé ¢ 0 menor dos riseos” (apud Stoller, op.cit.: 96/7; trad. minha). utra premonigaio de Rouch, com relagdo a pritica antropoldgica, é 0 lugar que atribui ao pensamento do Outro em sua cine-etnogratia. Como nos diz Piault, Rouch Jevou a sério os Songhay ¢ seus cultos, suas crengas e valores (Piault, 2000: 210). Esta atitude & a base de uma antropologia contemporinea que defende o fim da assimetria “eles crdem, nds fazemos teori Um episédio & constantemente lembrado para exemplificar a construgdo da pritica rouchiana que ficou conhecida como Antropologia Compartilhada. Ao exibir cenas sonorizadas de uma caga ao hipétamo, gravadas para o filme Batalha no grande rio [Bataille sur le grand flewve} (Jean Rouch, 1951), Rouch & questionado por seus interlocutores: ndo seria adequado ter misica durante a caga, sob o riseo dos animais ® Titwlo, aliés, de um filme realizado por pesquisadores do Laboratorio de Imagem © Som em Antropologia (LISA-USP), que & um exercicio reflexive sobre a obra do autor: Jean Rou, Subvertendo Fromteiras (Ana Lieia Ferraz, Edgar T. da Cunha, Paula Morgado e Renato Sztutman, 2000). Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 1s Rose Satiko Gitirana Hikiji fugirem. Rouch, aprendendo a ligo de etnografia (para citar Piault), desiste da trilha sonora. Mas a troca de idéias a partir da exibigdo do filme - pritica que leva Rouch a citar Flaherty* como uma referéncia fundamental para seu cinema — no € 0 tnico fundamento da Antropologia Compartilhada. Como nota Piault, os filmes vo se tornando progressivamente uma produg2o coletiva da qual participam ativamente os atores-sujeitos, alguns dos quais se tornario co-autores: Aqueles que se exprimem (nos filmes) filam em seus nomes ¢ nile sio atores ssubmissos a um roteito pré-concebido, eles coniribuem em sua elaboragao, participam assim da construgio de um lugar antropoligico de interogagio. Neste spare a priori abstrato da pesquisa antropolégica se eriaré uma situag2o conereta, ‘uma historia vai se desenvolver, aquela do encontro de pessoas que nio pertencem ‘uma mesma cultura ¢ questionam abertamente entre elas seus perteneimentos, seus desejos, seus prazeres e suas obrigagBes. (Pauls, 2000: 217; tad, minha) Para Piault, Eu, um negro (Jean Rouch, 1957/8) & um filme exemplar desta situagdo de encontro para o filme. Os atores falam em seu. préprio nome, contam suas vidas e seus sonhos. A abertura do filme, na qual Rouch passa a palavra a Oumarou Ganda [o criador de Edward G. Robinson], detonaria “a montanha sagrada do alto da qual observador se arroga o direito de enunciar a verdade do mundo” (Piault, 2000: 213; trad. minha). ‘Marco Antonio Goncalves contrapde duas visdes de antropologia — a de Marcel Griaule ¢ a de seu teimoso orientando, Conhecimento, para Rouch, no pode ser mais um segredo roubado [como o era para Griaule] para ser mais tarde consumido nos templos ocidentais de conhecimento. “E 0 resultado de uma busca intermindvel onde ‘etnégrafos e etnografados se encontram num caminho que alguns de nés jd chamam de antropologia compartilhada”, diria Rouch (apud Gongalves, 2008: 157). Gongalves percebe nesta relag&o entre sujeitos produtores de conhecimento a esséncia do fazer etnografia e fazer cinema de Rouch. “O outro é simplesmente outro, nflo é objeto de estudo, é sujeito, e, antes de tudo, um amigo em potencial” (Gongalves, idem: 21) * Robert Flaherty ¢ autor de obra paradigmatica para se pensar a relagao entre antropologia e imagem e é citado por Rouch como uona de suas principas releréncias, ao lado de Vertov. Flaherty langa ems 1922 Nanook of the North, Rove destaca'no tabaho de Flaherty seu esforgo em apresentar aos Inuit as ‘imagens que gravava com cles. Faherty desereve sua primeira exibigdo para os Inuit uma fimagem da «aga ao leo marino) como © momento em que o grupo (homens, mulheres eerinas) pass a respeiti To: “a parti dai, ninguém ria e ridieularizava 0 homem branco que queria imagens deles. Todos estavam ccomigo” (Flaherty, 1967: 69). Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 116 ROUCH COMPARTILHADO. Sto varios os exemplos da relagio de Rouch com o pensamento de seus amigos: Ouvi-los sobre suas idéias acerca de um filme em produgao, ato fundamental, é somente uma parte da atitude ética e epistemolégica de Rouch. Podemos pensar que Rouch & efetivamente afetado pelos modos de pensamento afticanos, como 0 transe © a possessio, E aprendemos com Jeanne Favret Saada (2005), que como Rouch pesquisou feiticaria, que “aceitar ser afetado supde, todavia, que se assuma o isco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer”. Rouich opta por correr 0 risco, e nesta opgiio est a forga de sua obra, O sensivel, 0 corpéreo A ideia rouchiana de cine-transe deve ser pensada nao s6 de forma metaférica, mas como resultado de uma experiéncia sensorial que resulta numa pritica cinematogritica onde 0 corpo do cineasta é afetado pelos fendmenos que observa, uma cine-antropologia corpérea, sensivel. Em seu artigo clissico, “A cémera e homem” (1995), Rouch aproxima - por analogia - 0 fenémeno da possessio e 0 “estado bizarro de transformagao do cineasta”, que, em “cine-transe” deixa de ser ele proprio para tomar-se um “olho mecénico” acompanhado por um ouvido eletrénico, Anna Grimshaw nota que a cimera de Rouch atua como um agente transformador, sem no entanto ser humanizada, Ela torna-se parte do corpo do cineasta. Mas este corpo jé nao é humano: & um corpo em transe. A autora diferencia 0 projeto de Rouch do cinema dos MacDougall’, Este partiria de um projeto iluminista, que apela a mente dos espectadores, enquanto 0 cinema de Rouch nos engajaria_por meio de um apelo & mente e a0 corpo, nos levando ao desordenamento dos sentidos e & subverstio dos modos habituais de pensar como precondigao para novas formas de conhecimento ¢ compreensio (Grimshaw, op.cit: 100). Em entrevista a Enrico Fulchignoni (Rouch & Fulchignoni, 1989), Rouch retoma a metifora corpérea: “para mim fazer um filme é escrever com os olhos de alguém, com os ouvidos de alguém, com o corpo de alguém.” (trad, minha) avid e Judith MacDougall iniciam sua produglo nos anos 1960, realizando desde entdo filmes na Atica, na Australia e na india. Realizaram importantes experimentos com o cinema de observaga0, mas também exploraram metodologias participativas em seus documentirios (ef Loizos, 1993, e Grimshaw, 2001), Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 17 Rose Satiko Gitirana Hikiji Curiosamente, & com o “iluminista” MacDougall (se levassemos em conta a andlise de Grimshaw) que encontro uma das melhores reflexdes sobre a relagdo entre cinema e corpo, que pode iluminar a perspectiva de Rouch: Vemos com nossos corpos, © qualquer imagem que fagamos carrega a marca de nosso corpo; (..) quando observamos com intengio, e quando pensamos, complicamos © provesso de visio enormemente. Nés 0 investimos de desejos & Tespostas elevadas. As imagens que fazemos se tomam artfatos disso. Fas so, em certo sentido, espelhos de nossos corpos,replicando o todo das atividades do corpo, ‘com seus movimentos fisicos, sua atengdo que vai mudando de foco seus impulsos cconflitantes no sentido da ordem e desordem, Uma construgie complexa como um filme ou fotografia tem uma origem animal. Imagens eorporais no so apenas imagens de nossos corpos: elas so também imagens do corpo atris da cimera e de suas telagdes com o mundo. (MacDougall, 2009: 63) A énfase no corpo implica uma defesa do sensivel como esfera privilegiada desta antropologia. E Lue de Heusch, em sua apresentaco no Coléquio Internacional Jean Rouch, defendia que os estados afetivos, como a possessao, por exemplo, seriam especialmente pertinentes a0 cinema: “o cinema tem sua missio a ser cumprida na subjetividade, tem um caminho a seguir na expresso de sentimentos”®. Talvez por isso, esse interesse renovado de uma certa antropologia em Rouch e na antropologia visual, de forma mais ampla. Temos, por um lado, um interesse renovado no visual em si. Por outro, nota MacDougall (1998: 60), vivemos a emergéncia em antropologia de novos objetos envolvendo o corpo, como o papel dos sentidos © emogdes na vida social, a construgdo cultural de identidades de género pessoais. Nestas dreas a representago visual pode oferecer uma alternativa apropriada & escrita etnogrifica Isto porque, seguindo com MacDougall, a midia visual usa principios de implicag2o, ressondncia visual, identificagao © mudangas de perspectiva que diferem radicalmente dos principios da maioria da escrita antropolégica. Elas envolvem 0 espectador em processos heuristicos ¢ de criagdo de sentidos diferentes dos verbais. Com imagens e sons, 0 conhecimento & mais da ordem da (acquantaince) que da descrigdo (MacDougall, 1999: 286: trad. minha). familiarizagao” Mergulhar nos filmes de Rouch nos permite de fato uma aproximagaio com alguns de seus amigos afticanos. Nas etnoficedes, seus sonhos, idéias ¢ questionamentos nos parecem por _vezes to familiares. Nos filmes ‘Trecho da apresentagio oral do antropélogo Lue de Heusch na sessio de abertura do Coléquio na Cinemateca Brasileira, em Sto Paul, em 30 de juno de 2008 Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 118 ROUCH COMPARTILHADO. “etnomusicologicos”’, alguns deles realizados em parceria com Gilbert Rouget, a sensag2o inicial de estranhamento - embaralhamento musical de uma poliritmia to densa para nossos ouvidos ~ vai sendo substituida por uma quase compreensio de pequenas estruturas, sobreposigdes; percebemos a miisica Dogon por meio dos olhos, ouvidos e do corpo de Rouch. Em suas abordagens da possessio, temos a “forga” da imagem que Luc de Heusch mencionou — imagens por vezes “perigosas”, como pensadas por Renato Sztutman (2009). O caso da sacola Interrompo a narrativa para contar um caso, resultado de encontros etnogriticos — com Rouch, por um lado, com jovens realizadores de filmes, moradores da periferia de Sao Paulo, por outro, HG alguns anos, jei uma pesquisa sobre 0 projeto de se ensinar cinema — € video — para jovens moradores dos bairros mais pobres afastados da cidade de Sao Paulo, Nas primeiras idas a campo ~ acompanhando aulas oferecidas por uma ONG ~ descobri que ex-alunos destas oficinas de video eram agora professores e, mais que isso, comegavam a fazer seus filmes em suas comunidades, de forma independente. Rouch inspirava a pesquisa de diversas maneiras. De certa forma, os jovens que conheci exercitavam uma premonigaio rouchiana: eram sujeitos dotados de uma cémera participante “olho-ouvido”, que abandonavam 0 lugar de objeto (de outros filmes, reportagens, teses) e passavam a olhar para si e para o mundo, construindo suas proprias imagens e sons. Por outro lado, inspirada pela subverstio rouchiana, queria eu mesma experimentar a possibilidade de compartilhar a antropologia, ¢ decidi fazé-lo por meio da realizagao de um video etnogrifico no qual estes jovens que conheci seriam os prineip: atores. Foram trés anos de pesquisa mareados por aproximagdes, questionamentos, apresentagdes de projetos de conhecimento, mais questionamentos, estranhamentos, trocas. Nestes anos, assisti a dezenas de filmes reali dos por meus interlocutores. Por trés anos, eles esperaram com mais ou menos paciéncia o filme da antropéloga, Alguns deles exibidos na Mostra Jean Rouch, exibida entre juno e agosto de 2009 em Sao Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte: Saida das novigas em Sakparta [Sortie de novices a Sakpaua] (Jean Rotch & Gilbert Rouget, 1959); Baterias Dogon [Basteries Dogon - elements pour une enude de rythmes} (Jean ouch e Gilbert Rouget, 1966); Danse des reines & Porto Novo (Jean Rouch, 1970). Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 119 Rose Satiko Gitirana Hikiji Entre produtores de imagens, pereebi que ndo fazia sentido, para eles, realizar ‘um filme em parceria comigo. Compartilhar, neste contexto, ganhava outra dimensao. O desafio seria, de alguma forma, produzir imagens que apresentassem a eles ~ ¢ a outros —meu olhar afefado pelas imagens que eles me ofereciam. Em meados de 2008, finalizamos um primeiro corte, que pude exibir a alguns dos protagonistas do filme. Sempre criticos, questionaram a propria performance, minhas escolhas, e em especial a performance de alguns dos personagens, cuja postura ética no aprovavam. Sugeriram pequenas mudancas, que pude realizar. Desde entdo, 0 filme — Cinema de Quebrada (Rose Satiko Hikiji, 2008) - foi exibido em cineclubes, em sala de aula, na universidade, Em varias sessdes, realizamos de debates com os protagonistas do filme. Nestes momentos, percebemos uma si novas reflexes por parte destes atores, reavaliagdes de suas agdes, reformulagdes de suas idéias, questionamentos. Em junho de 2009, chegou ao Laboratério de Imagem € Som em Antropologia 15 DVDs com filmes (LISA/USP) uma sacola, Costurada ¢ pintada a mao, conte: ptoduzidos “nas quebradas”, por coletivos independentes de realizagao audiovisual. Um dos filmes que compde a selecdo ¢ 0 Cinema de Quebrada. E 0 wnico que nio foi realizado por um coletivo da quebrada, Junto com os demais, vem sendo exibido num Circuito de Exibigao de Video Popular em cineclubes em varios pontos da cidade, como © CineBecos, Cine Escadio e Cine Campinho — espagos cujos nomes peculiares revelam um novo circuito exibidor, longe das salas tradicionais: becos, vielas, escaddes e campinhos, cendrios periféricos nos quais um projetor e um pano estendido fazem as veres de cinema. Escrevi para um dos organizadores do projeto que prevé a circulagao da sacola por centros de exibicdo, perguntando se o Cinema de Quebrada fazia parte do pacote ¢ cle me respondeu: “Faz sim, viu, Rose. O seu video é mais um dos que esto perambulando pelas quebradas A fora...bacana né? Uma das poucas vezes em que um trabalho académico & retornado para a comunidade, parabéns pra nés!”* Poderia responder ao e-mail do Daniel citando literalmente as palavras de Rouch, escritas ha mais de 30 anos, baseadas em sua pritica iniciada ha mais de meio século: * Daniel Fogundes, membro do Nicleo de Comunieagio Altemativa,coletivo de realizagho ¢ exibigho audiovisual da Zona Sul de Sto Paulo, por e-mail Huminuras, Porto Alegre, v.14, n.32, p.113-122, jan.jun, 2013 120 ROUCH COMPARTILHADO. © antropslogo tem a seu dispor a tinicaferramenta ~ a “edmera participante” - que pode Ihe proporcionar @ oportunidade extraordindria de comunicar-se com 0 grupo cestudado. (..) Sua cdmera, seu gravador e seu projetor o levaram ao coragao do cconhecimento ¢ pela primeira vez seu trabalho ado esti sendo julgado por uma haanca de tese mas pelo povo que ele observou, (.) Esta téenica extraordiniria do feedback (contra-didiva audiovisual) (..) Este tipo de pesquisa que emprega a total participagio me parece hoje a tinica atitude antropoldgica possivel moralmente ¢

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