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LUIZ ANTONIO MARCUSCHI DA FALA PARA A ESCRITA Dados Internacionais de Catalogagao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mareuschi, Luiz Anténio Da fala para a escrita : atividades de retextualizagao / Luiz Antonio Marcuschi - 10. ed. ~ Sao Paulo : Cortez, 2010. ISBN 978-85-249-0771-5 1. Bscrita 2. Fala 3. Linguistica 1. Titulo, 01-0319 CDD-410 indices para catalogo sistematico: 1. Escrita ¢ fala; Linguistica 410 2. Fala e escrita : Linguistica 410 Sai 15 CAPITULO | ORALIDADE E LETRAMENTO'* 1. Oralidade e letramento como praticas sociais Hoje, é imposstvel investigar oralidade e letramento* sem uma referéncia direta ao papel dessas duas préticas na civilizagio contempordnea. De igual modo, j4 nao se podem observar satisfatoriamente as semelhangas e diferencas entre fala e escrita (0 contraponto formal das duas praticas acima nomeadas) sem considerar a distribuigao de seus usos na vida cotidiana. Assim, fica dificil, se nao impossivel, o tratamento das relagées entre estas tiltimas, centrando-se exclusivamente no c6digo. Mais do que uma simples mudanga de perspectiva, isto representa a construgao de um novo objeto de andlise e uma nova concep- co de lingua e de texto, agora vistos como um conjunto de praticas sociais. 1. Originalmente, o texto deste primeiro capitulo foi apresentado como conferéneia de abertura no IT Encontro Franco-Brasileiro de Ensino de Lingua, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, em outubro de 1995, sob o titulo de Oralidade e Escrita. Posteriormente, em versio ligeiramente modifica- da, apareceu na revista Signdtica 8 (1997) do Curso de P6s-Graduagao em Letras ¢ Lingufstica da Universi- dade Federal de Goids. Aqui, ele surge em versfo revista e ampliada em varios pontos centrais. 2. Brian V. Street (1995: 2) sugere que se use essa expressio no plural, jé que o que temos sio diferentes praticas de letramentos @ nao 0 letramento no singular. O proprio titulo do livro de Street, Letramentos Sociais (Social Literacies), € uma tentativa do autor de frisar a “natureza social do letramento” e “o cardter miltiplo das préticas de letramento”, De fato, Street defende a posigio de que nao se pode confundir as diversas manifestagées sociais do letramento com a escrita como tal, pois esta ndio passaria de uma das formas de letramento, ou seja, 0 letramento pedagégico. Quanto aos letramentos, eles se manifestam como eventos em que a escrita, a compreensio e a interagdo se acham integralmente imbricadas. lustrativo para estas questdes € 0 proveitoso trabalho de Angela Kleiman (1995a) com uma abordagem das definigoes e perspectivas de andlise da nogdo de letramento. 16 DA FALA PARA A ESCRITA Esta mudanga de visio operou-se a partir dos anos 80, em reagdo aos estu- dos das trés décadas anteriores em que se examinavam a oralidade e a escrita como opostas, predominando a nog&o da supremacia cognitiva da escrita dentro do que Street (1984) chamou de “paradigma da autonomia”.’ Considerava-se a relagdo oralidade e letramento como dicotémica, atribuindo-se a escrita valores cognitivos intrinsecos no uso da Ifngua, no se vendo nelas duas praticas so- ciais. Hoje, como se verd adiante, predomina a posigiio de que se pode conceber oralidade e letramento como atividades interativas e complementares no con- texto das praticas sociais e culturais. Uma vez adotada a posigaio de que lidamos com praticas de letramentos € oralidade, ser4 fundamental considerar que as Iinguas se fundam em usos ¢ no o contrério. Assim, nao sero primeiramente as regras da lingua nem a morfologia os merecedores de nossa atencdo, mas os usos da lingua, pois 0 que determina a variagao linguistica em todas as suas manifestacGes so os usos que fazemos da Iingua. Sao as formas que se adequam aos usos e no o inverso. Pouco importa que a faculdade da linguagem seja um fenémeno inato, universal e igual para todos, 4 moda de um 6rgéo como 0 coragio, o figado e as amigdalas, o que importa € 0 que nds fazemos com esta capacidade. E isto que nés fazemos sera 0 objeto central de nossa investigagio neste momento. Trata-se de uma andlise de usos e praticas sociais e ndo de formas abstratas. Estas, as formas, estarao sendo analisadas a servigo daqueles, 0s usos, e nao 0 contrério. O letramento (literacy),* enquanto pritica social formalmente ligada ao uso da escrita, tem uma hist6ria rica e multifacetada (nao linear e cheia de con- tradig6es), ainda por ser esclarecida, como lembra Graff (1995).(Numa socieda- de como a nossa, a escrita, enquanto manifestaciio formal dos diversos tipos de letramento, € mais do que uma tecnologia. Ela se tornou um bem social indis- pensavel para enfrentar o dia a dia, seja nos centros urbanos ou na zona rural. Neste sentido, pode ser vista como essencial a propria sobrevivéncia no mundo moderno. Nao por virtudes que Ihe so imanentes, mas pela forma como se impés e a violéncia com que penetrou nas sociedades modernas e impregnou as 3. O outro paradigma identificado por Street (1984) € o “ideol6gico”, que busca identificar as relagdes de poder e assimetrias sociais baseadas no dominio/predominio da cultura escrita. Este paradigma no supera a dicotoria, mas analisa-a dentro de uma perspectiva mais complexa, dando a ideologia um papel importante. Sobre a questo, veja-se a exposicao de A. Kleiman (1995a). 4. Neste caso poderfamos usar com propriedade a expresso “alfabetizagdo”, mas ao mesmo tempo em que seria mais correto, seria redutor pelo fato de aqui estarmos considerando mais aspectos do que apenas a alfabetizagao formal e pedagogicamente realizada, Para uma excelente exposigio sobre as mais, variadas questdes envolvidas no estudo e na caracterizacao dos fendmenos do letramento e da sua relacao com a alfabetizagao, aconsetho a leitura do livro de Magda B. Soares (1998), Letramento. Um Tema em Trés Géneros. Igualmente interessantes, neste caso, so 0s trabalhos editados por Kleiman (1995) na obra Os Significados do Letramento: Uma Nova Perspectiva sobre a Prética Social da Escrita ORALIDADE E LETRAMENTO 7 culturas de um modo geral. Por isso, friso que ela se tornou indispensdvel, ou seja, sua prdtica e avaliagio social a elevaram a um status mais alto, chegando a simbolizar educagdo, desenvolvimento e poder. Nao obstante isso, sob 0 ponto de vista mais central da realidade humana, seria possivel definir o homem como um ser que fala e ndo como um ser que escreve. Entretanto, isto nao significa que a oralidade seja superior & escrita, nem traduz a convicgdo, hoje tio generalizada quanto equivocada, de que a escrita € derivada e a fala é primdria. A escrita nao pode ser tida como uma representagéo da fala, como se verd adiante. Em parte, porque a escrita nao consegue reproduzir muitos dos fenémenos da oralidade, tais como a prosédia, a gestualidade, os movimentos do corpo e dos olhos, entre outros. Em contrapartida, a escrita apresenta elementos significativos préprios, ausentes na fala, tais como o tamanho e tipo de letras, cores ¢ formatos, elementos pict6ri- Cos, que operam como gestos, mimica e prosddia graficamente representados. Oralidade e escrita sio préticas e usos da lingua com caracteristicas préprias, mas nao suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas linguisticos nem uma dicotomia, Ambas permitem a construgdo de textos coesos e coeren- tes, ambas permitem a elaboragao de raciocinios abstratos e exposigdes formais ¢ informais, variagGes estilisticas, sociais, dialetais e assim por diante. As limi- tages e os alcances de cada uma esto dados pelo potencial do meio basico de sua realizagfo: som de um lado e grafia de outro, embora elas nfo se limitem a som e grafia, como acabamos de ver. Em suma, eficdcia comunicativa e poten- cial cognitivo nao sao vetores relevantes para distinguir oralidade e escrita, de modo que a tese da grande virada’ cognitiva que a escrita, de modo especial a escrita alfabética, representaria com seu surgimento na humanidade, nfio passa de um mito j4 superado. Se € bem verdade que todos os povos, indistintamente, tém ou tiveram uma tradicao oral, mas relativamente poucos tiveram ou tém uma tradigao es- crita, isto nfo torna a oralidade mais importante ou prestigiosa que a escrita. Trata-se apenas de perceber que a oralidade tem uma “primazia cronolégica” indiscutivel sobre a escrita (cf. Stubbs, 1980). Os usos da escrita, no entanto, quando arraigados numa dada sociedade, impdem-se com uma violéncia inusitada adquirem um valor social até superior a oralidade. 5. Tese postulada especialmente por Walter Ong [1982], cuja obra se acha agora em portugues sob o titulo Oralidade e Cultura Eserita. A Tecnologizacdo da Palavra (1998), ¢ também Jack Goody [1977] traduzido para o portugués sob 0 titulo Domesticagéio do Pensamento Selvagem (1988), ambos tidos como tipicos representantes da tese da “grande virada” cognitiva representada pela introduco da escrita. Para esses autores, nosso grau de desenvolvimento tecnol6gico e nossa capacidade de racioeinio formal seriam impenséveis sem a escrita. Evidentemente, essas teses no sio mais sustentaveis hoje. Os prOprios autores deixaram-nas de lado, 18 DA FALA PARA A ESCRITA Contudo, mais urgente (e relevante) do que identificar primazias ou supre- macias entre oralidade e Ictramentos, e até mesmo mais importante do que ob- servar oralidade e letramentos como simples modos de uso da lingua, é a tarefa de esclarecer a natureza das praticas sociais que envolvem 0 uso da lingua (es- critae falada) de um modo geral. Essas praticas determinam o lugar, 0 papel e 0 grau de relevancia da oralidade e das praticas do letramento numa sociedade e justificam que a questo da relagao entre ambos seja posta no eixo de um conti- nuo sécio-histérico de praticas. Este continuo poderia ser traduzido em outras imagens, por exemplo, na forma de uma gradagdo ou de uma mesclagem.* Tudo dependera do ponto de vista observado e das realidades comparadas. Veja-se hoje a questio tao discutida das comunicagGes escritas ditas “sincronas”, ou seja, em tempo real pela Internet, produzidas nos famosos bate- -papos.7 Temos aqui um modo de comunicagao com caracteristicas tipicas da oralidade e da escrita, constituindo-se, esse gnero comunicativo, como um tex- to misto situado no entrecruzamento de fala e escrita. Assim, algumas das pro- priedades até hé pouco atribuidas com exclusividade & fala, tal como a simulta- neidade temporal, j4 sfio tecnologicamente possiveis na pratica da escrita a dis- tancia, com o uso do computador. Este “escrever” tem até uma designaciio pr6- pria: “teclar”; tal € a consciéncia da “novidade”. No meu entender, a mudanca mais notavel aqui nao diz respeito as formas textuais em si, mas sim A nossa relac&o com a escrita, Escrever pelo computador no contexto da produgao discursiva dos bate-papos sincronos (on-line) € uma nova forma de nos relacio- narmos com a escrita, mas nao propriamente uma nova forma de escrita. A fala (enquanto manifestacio da pratica oral) € adquirida naturalmente em contextos informais do dia a dia e nas relagGes sociais e dialdgicas que se instauram desde 0 momento em que a mie dé seu primeiro sorriso ao bebé. Mais do que a decorréncia de uma disposicéio biogenética, o aprendizado e o uso de uma lingua natural € uma forma de insergao cultural e de socializagao. Por outro lado, a escrita (enquanto manifestagio formal do letramento), em sua faceta institucional, é adquirida em contextos formais: na escola. Daf também seu cardter mais prestigioso como bem cultural desejavel, Dai também o fato de uma certa identificacao entre alfabetizaciio e escolarizagaio, 0 que nao passa de 6. Heath (1983) mostrou, no estudo sobre eventos de letramento, que havia situagdes em que se mesclavam agdes orais com atividades escritas, como nas leituras ¢ respostas coletivas de cartas pessoais em familia, As artas eram lidas em voz alta, discutidas em grupo e respondidas coletivamente. A escrita tornava- “se aqui um evento mesclado pela oralidade e produzido em autoria coletiva, Esta visto etnogrifica das préticas de letramento mostra a inviabilidade de imaginar a eserita como um fendmeno monolftico em suas formas de manifestagao. 7. Sobre o tema, lembraria aqui o recente trabalho de José trucdo do texto ‘falado’ por escrito: a conversagdo na internet aston Hilgert (2000), intitulado “A cons- ORALIDADE E LETRAMENTO 19 um equivoco (cf. Graff, 1995 e Frago, 1993), pois houve situagées histéricas, tal como 0 caso da Suécia, em que a alfabetizagao se deu desvinculada da escolarizagio. 2. Presenga da oralidade e da escrita na sociedade Quanto a presenga da escrita, pode-se dizer que, mesmo criada pelo enge- nho humano tardiamente em relag&o ao surgimento da oralidade, ela permeia hoje quase todas as priticas sociais dos povos em que penetrou. Até mesmo os analfabetos, em sociedades com escrita, estéo sob a influéncia do que contemporaneamente se convencionou chamar de prdticas de letramento, isto €, um tipo de processo histérico e social que nao se confunde com a realidade representada pela alfabetizagio regular ¢ institucional lembrada ha pouco. Fri- sando mais uma vez o que dizia Street (1995), deve-se ter imenso cuidado dian- te da tendéncia A escolarizagdo do letramento, que sofre de um mal cronico ao supor que s6 existe um letramento. O letramento nao é 0 equivalente aquisicio da escrita. Existem “letramentos sociais” que surgem e se desenvolvem a mar- gem da escola, nao precisando por isso serem depreciados. A escrita € usada em contextos sociais basicos da vida cotidiana, em para- lelo direto com a oralidade. Estes contextos sao, entre outros: * o trabalho * aescola * odiaadia * a familia * a vida burocratica * a atividade intelectual Em cada um desses contextos, as énfases e os objetivos do uso da escrita sao variados e diversos. Inevitveis relages entre escrita e contexto devem existir, fazendo surgir géneros textuais ¢ formas comunicativas, bem como terminolo- gias e expressées tipicas. Seria interessante que a escola soubesse algo mais sobre essa questo para enfrentar sua tarefa com maior preparo e maleabilidade, servindo até mesmo de orientago na selegdo de textos ¢ definicao de niveis de linguagem a trabalhar. 8. Quanto a isso, remeto ao meu trabalho (veja Marcuschi, 2000) a sair sob o titulo Géneros textuais. © que Sao e como se Constituem, em que so analisados os mais diversos aspectos relativos & consttuigao € a0 uso dos géneros textuais em todos os dominios discursivos. 20 DA FALA PARA A ESCRITA Hé, portanto, uma distingio bastante nitida entre a apropriagao/distri- buigiio da escrita & leitura (padrdes de alfabetizagdo) do ponto de vista formal ¢ institucional e os usos/papéis da escrita & leitura (processos de letramento) enquanto préticas sociais mais amplas. Sabemos muito sobre métodos de alfa- betizagdo, mas sabemos pouco sobre processos de letramento, ou seja, sabemos pouco sobre a influéncia e penetragao da escrita na sociedade. Mesmo pessoas ditas “iletradas”, ou seja, analfabetas, ndo deixam de estar sob a influéncia de estratégias da escrita em seu desempenho lingufstico, o que torna 0 uso do ter- mo “iletrado” muito problemdtico em sociedades com escrita (veja mais sobre 0 assunto em Tfouni, 1988; e Soares, 1998). Além disso, ainda no sabemos com preciso que géneros de textos (orais c escritos) sfio os mais correntes em cada um dos contextos e dominios discursivos acima apontados e quem € que faz uso mais intenso da escrita dentro deles.” Tome-se 0 caso do contexto do trabalho. Ali, nem todos fazem uso da escrita na mesma intensidade ou em condigées idénticas. Nao € apenas uma questio de distribuicao de tarefas, E também uma questio de delegaco de tarefas, um fato muito comum na pratica da escrita em contextos de trabalho. Em quase todos os ambientes de trabalho ha alguém (uma determinada pessoa, a “secretéria”) que sabe escrever, alguém que tem um desempenho escrito considerado “ideal” para aquele contexto."” Se partimos para o ambiente familiar, podemos indagar: que uso da leitura e da escrita & feito em casa? Para que se usa a escrita e a leitura em casa? Nao resta diivida de que leitura & escrita € uma pratica comunicativa interessante € 6, Pesquisa financiada pelo CNPq num projeto integrado sob o titulo geral de “Fala e Escrita: Usos e Caracteristicas” acha-se em andamento no Programa de P6s-Graduagio em Linguistica da Universidade Federal de Pernambuco, desde margo de 1995 (CNPq, proc. n° 523612/96-6). Do projeto, participam Luiz ‘Antnio Marcuschi (coordenador), Judith Hofinagel, Doris Carneiro da Cunha ¢ Kazue Saito Monteiro de Barros, Bolsistas de Iniciagao Cientifica colaboram na investigagio. Em junho de 1995, foram feitos le- vantamentos de pouco mais de 500 informantes sobre 0s usos da fala e da escrita nos diversos contextos da vida didria, Um dos resultados mais surpreendentes foi a constatagdo de que poems € cartas sHo os textos mais frequentes, na escrita, sobretudo por parte das mulheres, mas também dos homens. © tempo dirio empregado com a escrita nao passa de 5% do total do tempo em vigilia, quando atinge 0 maximo, sendo ‘que com a leitura, usa-se um pouco mais. A grande parte do tempo é utilizada com a comunicagao oral. © que caracteriza nossa sociedade, indistintamente da classe social, idade, formagio e profissio, como pro- funda e essencialmente oralista. A escrita € quase sempre um recurso com caracteristicas de especializa~ fo, pois, em cada setor, hé f6rmulas mais ou menos consagradas ¢ individuos responsdveis pela redagao de textos. Mesmo universitérios usam pouco a escrita e se ndo tivessem que fazer deveres escolares, quase nada escreveriam. 10, Esta foi uma outra descoberta surpreendente feita nas investigagbes do projeto citado na nota 9. Em todas as areas de trabalho hé alguém que se especializa nas atividades de produco textual specifica. 'Até mesmo 0s chefes e diretores de empresa recorrem a essa pessoa. Nao é por nada que as secretarias (com tedacio propria) sio muito valorizadas e prezadas, ganhando saldtios superiores as colegas de outras tare- fas, Bste é um fato interessante que atinge todas as esferas e areas do trabalho. ORALIDADE E LETRAMENTO. 21 proveitosa em muitos sentidos. Ha o jornal e a revista para serem lidos. H4 cartées e cartas pessoais para serem escritos. Hi cheques para assinar, contas a fazer, recados a transmitir ¢ listas de compras a organizar, radio e mtisicas a escutar.'' Ha as ocorréncias a registrar (os famosos livros de registro de todos os condominios). Ha historinhas a contar antes de dormir. As fofocas do dia a por em ordem ete. etc, Nao sabemos, no entanto, como tudo isso interage com outros meios co- municativos, por exemplo, o telefone, o radio, a TV e assim por diante, Em suma, pouco sabemos a respeito das relagdes entre os diversos tipos de ativida- des comunicativas. Continua aberta a indagagao: que tipo de valorizagio se dé escrita ¢ a oralidade na vida diéria? Seja qual for a resposta, ela deve partir de dois pressupostos: primeiro, fala e escrita sao atividades comunicativas e prati- cas sociais situadas; segundo, em ambos os casos temos um uso real da lingua. Retornemos, por um momento, a algumas questées relativas a alfabetiza-” cao, pois seré importante constatar que a escrita, aps se tornar um fenémeno de massa € desejdvel a todos os seres humanos, passou a receber um status bastan- te singular no contexto das atividades cognitivas de um modo geral. Para mui- tos, 0 seu dominio se tornou um passaporte para a civilizagdo e para o conheci- mento.'? Trata-se de uma tendéncia a reconhecer valores imanentes A propria tecnologia como tal. Este é um dos mitos a ser combatido aqui. As confuses nesse campo sio imensas. Primeiro, devemos distinguir en- tre letramento, alfabetizagdo e escolarizagéo, O letramento é um proceso de aprendizagem social ¢ hist6rica da leitura e da escrita em contextos informais e * para usos utilitarios, por isso € um conjunto de praticas, ou seja, letramentos, como bem disse Street (1995). Distribui-se em graus de dominio que vao de um patamar minimo a um maximo. A alfabetizagiio pode dar-se, como de fato se” deu historicamente, & margem da instituicio escolar, mas é sempre um aprendi- zado mediante ensino, e compreende 0 dominio ativo ¢ sistematico das habili- IL. Outro fato curioso observado na investigagdo citada na nota 9 é que um dos usos mais sisteméticos € intensos da escrita em desempenhos que niio exigem estruturas textuais é a confecgio de Listas. As listas ‘sao de todo tipo ¢ para todo momento. E s6 entrar num supermercado ¢ quase toda mae ou todo Pai de familia esté com uma lista de compras na mao. Isto inclusive em camadas sociais populares, 12. Nao sero feitas aqui muitas alusdes a autores, mas dois deles podem scr citados como os que em certa época se empenharam na defesa da tese da supremacia cognitiva da escrita. Sao eles David Olson e Jack Goody. Nao se pode ignorar também Walter Ong, Sylvia Scribner, Michael Cole, entre outros. Algu- mas observagdes sobre estes autores aparecem mais adiante. Nao obstante sta posicdo as vezes radical, D. Olson faz afirmagdes que pdem a fala e a esctita no contexto da linguagem como faculdade humana, “A faculdade da linguagem situa-se no centro de nossa concepgdo de género humano; a fala nos torna humanos € a escrita nos torna civilicados. Assim, é interessante e importante considerar 0 que é distintivo acerca da lingua escrita e considerar as consequéncias do letramento para os preconceitos que isso iniporta tanto ara nossa cultura como para os processos psicoldgicos” (1977: 257) 22 DA FALA PARA A ESCRITA dades de ler e escrever. A Suécia alfabetizou 100% de sua populagao jé no final do século XVII no ambiente familiar e para objetivos que nada tinham a ver com o desenvolvimento, e sim com praticas religiosas e atitudes de cidadania. A escolarizagdo, por sua vez, € uma pratica formal e institucional de ensino que visa a uma formacio integral do individuo, sendo que a alfabetizacao é apenas uma das atribuigdes/atividades da escola. A escola tem projetos educacionais amplos, ao passo que a alfabetizagdo & uma habilidade restrita. Retomando o tema geral, podemos indagar o seguinte: em que contextos € condigées so usadas a oralidade e a escrita, isto é, quais sdo os usos da oralidade e da escrita em nossa sociedade? Por exemplo, quais so as demandas bisicas da escrita em nossa socieda- de, relativamente ao trabalho? Em que condigées e para que fins a escrita € usada? Em que condiges e para que fins a oralidade é usada? Qual a interface entre a escola e a vida didria no que respeita & alfabetizag0? Como se compor- tam os nossos manuais escolares neste particular? Que habilidades so ensina- das na escola e com que tipo de visao se passa a escrita? O que é que 0 individuo aprende quando aprende a ler e escrever? Que tipo de conhecimento € 0 conhe- cimento da escrita? Seguramente, estas questdes devem ser tratadas em varias diregdes. Pare- ce que homens e mulheres nao fazem uso da escrita do mesmo modo. Parece que a escrita tem uma perspectiva na escola e outra fora dela. Também hé o problema do acesso escrita, que é diferenciado. Além do mais, nao € necessé- rio ir muito longe (veja Street, 1984) para perceber o quanto a escrita foi tratada como algo superior, auténomo, com valores intrinsecos etc., tornando-se fonte de preconceitos. Na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita sao imprescindt- veis. Trata-se, pois, de ndo confundir seus papéis e seus contextos de uso, e de ndo discriminar seus usudrios. Por exemplo, hd quem equipare a alfabetizagao (dominio ativo da escrita e da leitura) com desenvolvimento. Outros sugerem que a entrada da escrita representa a entrada do raciocinio légico e abstrato. Ambas as teses esto cheias de equfvocos e nao passam de mitos. Mas é eviden- te que a alfabetizagao continua fundamental. Eric Havelock" (citado por Graff, 1995: 38) comenta a tardia entrada da escrita na humanidade e sua repentina supervalorizacéo com estas palavras: 0 fato biol6gico-histérico é que 0 homo sapiens é uma espécie que usa o discurso oral, manufaturado pela boca, para se comunicar. Esta € sua definicao. Ele nao é, 13, Bric Havelock. Origins of Western Literacy. Toronto, Ontario Institute for Studies in Education, 1976, p. 12. Citado a partir de Graff, 1995, ORALIDADE E LETRAMENTO 23 por definicio, um escritor ou um leitor. Seu uso da fala, repito, foi adquirido por processos de selecio natural operando ao longo de um milhdo de anos. O hébito de usar os simbolos escritos para representar essa fala é apenas um dispositivo Uitil que tem existido ha pouco tempo para poder ter sido inscrito em nossos genes, Possa isso ocorrer ou nao meio milhdo de anos a frente. Segue-se que qualquer Iingua pode ser transposta para qualquer sistema de simbolos escritos que o usué- rio da lingua possa escolher sem que isso afete a estrutura bésica da lingua. Em suma, 0 homem que Ié, em contraste com o homem que fala, nao € biologicamente determinado. Ele traz a aparéncia de um acidente hist6rico recente... Refletindo sobre essas observagées, Graff (1995) lembra que a “cronolo- gia € devastadoramente simples”: enquanto espécie, 0 homo sapiens data de cerca de um milhio de anos. A escrita surgiu pouco mais de 3.000 anos antes de Cristo, ou seja, hé 5.000 anos. No Ocidente, ela entrou por volta de 600 A.C., chegando a pouco mais de 2.500 anos hoje. E a imprensa surgiu em 1450, tendo pouco mais de 500 anos. Para a maioria dos estudiosos, a alfabetizacdio, como fenémeno cultural de massa, pode ser quase ignorada nos primeiros 2.000 anos de sua hist6ria ocidental, pois ficou restrita a uns poucos focos. Contudo, observa Graff (1995: 39) que essa histéria nfo é tao linear assim € oferece muitos truncamentos. A histéria do uso da escrita e da alfabetizagio no Ocidente é uma histéria descontinua. Para 0 autor, a hist6ria da alfabetizacao no Ocidente ¢ “uma hist6ria de contradigées e que um reconhecimento explicito disso € um pré-requisito para uma compreensio plena daquela histéria” (p. 43). E muito interessante a breve anélise de Graff (p. 43-52) sobre as relagdes entre a alfabetizagao e os processos de industrializagdio. Ele mostra que essa relagdo no foi constante, nem sequer se deu numa ordem de concomitancia. Tanto assim que a primeira revolugao industrial da Inglaterra mostrou indices regres- sivos de alfabetizagdo. Também nao se dé que os povos ou grupos mais alfabe- tizados tenham sido sempre os mais présperos. Veja-se 0 sempre lembrado caso antolégico da Suécia, plenamente alfabetizada jé no século XVIII e economica- mente marginalizada. Os préprios planos desenvolvimentistas sugeridos pela UNESCO ba- seiam-se na crenga de que “a alfabetizacao é uma coisa boa” e que “a pobreza, a doenga ¢ 0 atraso geral esto vinculados com o analfabetismo”, sendo que, por sua vez, “o progresso, a satide e o bem-estar econémico estio igualmente de forma autoevidente vinculados com a alfabetizagdio”. Parece que 0 progresso esti de tal modo ligado a alfabetizagao, que esta teria um valor intrinseco dese- Javel ao individuo. Contudo, a histéria da alfabetizagio nao comprova as expec- tativas da UNESCO. Por outro lado, é forgoso conceder que vivemos hoje tem- pos diversos que os da Idade Média ou dos primérdios da industrializacio. Mas no deixa de ser falacioso usar isto como argumento a favor da supremacia da 24 DA FALA PARA A ESCRITA esctita. A escrita é um fato hist6rico e deve ser tratado como tal e nao como um bem natural. F forcoso admitir que a escrita tem hoje um papel muito diferente do que aquele que ela tinha em outros tempos e culturas. Portanto, a hist6ria do papel da escrita na sociedade e da prépria relevancia da alfabetizagao no é linear. Nem sempre ela teve os mesmos objetivos ¢ efeitos. A este respeito, chega a ser surpreendente a posigdo de Graff (1995: 47) quando conclui que: no mfnimo, os dados do passado sugerem fortemente que modelos de alfabetiza- cio simplistas, lineares, do tipo “teoria da modernizagio”, como um pré-requisito para o desenvolvimento como um estimulante de niveis crescentes de escolarizagdio, no sdio modelos apropriados. A alfabetizagiio tem alguns aspectos contraditérios. Pode ser Gtil ou preocupante aos governantes. Por isso, os que detém o poder pensam que ela deveria dar-se de preferéncia sob 0 controle do Estado e nas escolas formalmen- te instituidas. Neste caso, o controle e a supervisio do Estado orientariam 0 ensino para seus objetivos. Isto sugere que a apropriagio da escrita € um fen6- meno “ideologizavel”. Nao obstante a imensa penetraciio da escrita ¢ as profecias de absoluto predomfnio da escrita, a fala continua na ordem do dia. Nas palavras de Graff (1995: 37), podertamos dizer que: A despeito das décadas nas quais os estudiosos vém proclamando uma queda na difusiio da cultura oral “tradicional”, a partir do advento da imprensa tipogréfica mével, continua igualmente possivel e significativo situar 0 poder persistente de modos orais de comunicacao. O certo é que a oralidade continua na moda. Parece que hoje redescobrimos que somos seres eminentemente orais, mesmo em culturas tidas como ampla- mente alfabetizadas. E, no entanto, bastante interessante refletir melhor sobre 0 lugar da oralidade hoje, seja nos contextos de uso da vida diéria ou nos contex- tos de formagao escolar formal. O tema no € novo e tem longa tradigio.'* 14, Imagino que seria interessante pensar aqui na distingao lembrada por Ginsburg (O Queijo ¢ os Vermes, 1987: 17-20) quando ele diz que a dita cultura popular € transmitida essencialmente pela via da oralidade e que isto oferece aos historiadores um enorme problema, jd que eles esto relegados a anélise de documentos escritos. Para Ginsburg existe uma “cultura produzida pelas classes populares” ¢ uma “cultura imposta as classes populares”. A primeira seria aquela que Rabelais representou em suas obras que tanto incomodaram os donos do poder em sua época, e a segunda seria a representada pelos almanaques ¢ até ‘mesmo por muitos manuais escolares. 14 outra coisa bem diversa é a “cultura de massa” que se earacteriza como produto de uma “inddstria cultural” massificada. ORALIDADE E LETRAMENTO 25 3. Oralidade versus letramento ou fala versus escrita? Com base nas andlises feitas anteriormente, parece que se impde uma observacao preliminar de cardter tedrico. Falei, até aqui, das relacdes entre oralidade e escrita, Pergunto-me, agora, sobre a necessidade ou oportunidade de distinguir entre duas dimensées de relacées no tratamento da lingua falada e lingua escrita: (a) de um lado, oralidade e letramento e (b) de outro lado, fala e escrita. Quanto a (a), tratar-se-ia de uma distingao entre prdticas sociais tal como vistas anteriormente, e, quanto a (b), seria uma distincfio entre modalidades de uso da lingua. A oralidade seria uma prética social interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas formas ou géneros textuais fundados na realidade sonora; ela vai desde uma realizado mais informal 4 mais formal nos mais variados contextos de uso. Uma sociedade pode ser totalmente oral ou de oralidade secundaria, como se expressou Ong [1982], ao caracterizar a distin- ao entre povos com e sem escrita. Considerando-se essa posicio, nés brasilei- ros, por exemplo, serfamos hoje um povo de oralidade secundaria, tendo em vista 0 intenso uso da escrita neste pafs. O Ietramento, por sua vez, envolve as mais diversas praticas da escrita (nas suas variadas formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriaczo mini- ma da escrita, tal como 0 individuo que é analfabeto, mas letrado na medida em que identifica 0 valor do dinheiro, identifica o énibus que deve tomar, consegue fazer cAlculos complexos, sabe distinguir as mercadorias pelas marcas etc., mas no escreve cartas nem 1é jornal regularmente, até uma apropriacdo profunda, como no caso do individuo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemética ou escreve romances. Letrado € 0 individuo que participa de forma significativa de eventos de letramento ¢ néo apenas aquele que faz um uso formal da escrita. A fala seria uma forma de producio textual-discursiva para fins comuni- cativos na modalidade oral (situa-se no plano da oralidade, portanto), sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponivel pelo proprio ser hu- mano. Caracteriza-se pelo uso da lingua na sua forma de sons sistematicamente articulados e significativos, bem como os aspectos prosédicos, envolvendo, ainda, uma série de recursos expressivos de outra ordem, tal como a gestualidade, os movimentos do corpo e a mimica.'5 15, No ha diivida de que a linguagem dos sinais constitui um tipo de fala, embora nio se verifique ali ‘© componente sonoro como decisive, Contudo, temos uma lingua articulada e completamente eticiente no proceso comunicativo. Som, grafia e gesto, quando tomados como a matéria basica dos elementos da Tepresentagio, constituem apenas trés modos diversos de representar a Iingua e niio trés I{nguas como tal. 26 DA FALA PARA A ESCRITA Aescrita seria um modo de produgio textual-discursiva para fins comuni- cativos com certas especificidades materiais ¢ se caracterizaria por sua consti- tuigdo gréfica, embora envolva também recursos de ordem pictérica e outros (situa-se no plano dos letramentos). Pode manifestar-se, do ponto de vista de sua tecnologia, por unidades alfabéticas (escrita alfabética), ideogramas (es- crita ideogrdfica) ou unidades iconograficas, sendo que no geral néio temos uma dessas escritas puras.'® Trata-se de uma modalidade de uso da lingua comple- mentar a fala. Em certo sentido, a distingdo entre fala e escrita aqui sugerida contempla, de modo particular, aspectos formais, estruturais e semiolégicos, ou seja, os modos de representarmos a lingua em sua condig&o de cédigo. Sao os aspectos sonoro e grdfico que contam de modo essencial neste caso. Note-se, no entanto, que 0 aspecto grafico nao est aqui sendo equiparado a uma de suas formas de realizacio, isto é, a forma alfabética, pois a escrita abrange todos os tipos de escrita, sejam eles alfabéticos ou ideogréficos, entre outros Logo mais vamos ampliar esta primeira visio para englobar na fala todas as manifestagGes textuais-discursivas da modalidade oral, bem como englobar na escrita todas as manifestagées textuais-discursivas da modalidade escrita, 0 que nos permite estender a reflexdo para aspectos discursivos e comunicativos que exorbitam o plano do meramente oral ou grafematico. Neste sentido, os termos fala e eserita passam a ser usados para designar formas e atividades comunicativas, nao se restringindo ao plano do cédigo. Trata-se muito mais de processos € eventos do que de produtos. Hoje, sao variadas as tendéncias dos estudos que se ocupam das relagdes entre fala ¢ escrita, sem se colocar de forma explicita a questo que proponho aqui. E relevante indagar-se, com Stubbs (1986), se as relacbes entre fala escrita sao uniformes, constantes ¢ universais, ou se elas sao diversificadas na histéria, no espaco e nas Iinguas. A seguir, darei, resumidamente, algumas pistas para fundamentar 0 ponto de vista que viabiliza a distinciio sugerida acima. Veremos varias tendéncias de tratamento da questio, para identificar pro- blemas e sugerir uma linha de tratamento que pode ser mais frutifera, menos comprometida com 0 preconceito e a desvalorizagio da oralidade de uma ma- 16. Este aspecto jé vem merecendo a ateno dos pesquisadores, pois a nossa escrita alfabética esta se tomnando cada vez mais permeada por ideogramas e elementos visuais, tal como demonstra Mare Arabyan (2000) em sua recentfssima obra Lire L'Image — Emission, Réception, Interprétation des Messages Visuels. (© autor, que passou um semestre na Universidade Federal de Pernambuco em 1999, analisa inclusive textos de publicidade e politica brasileiros mostrando os elementos grificos como expressivos na escrita, O autor analisa 0s efeitos da imagem nos textos e mostra como nao ficamos imunes a elas. ORALIDADE E LETRAMENTO 27 neira geral. Seré feita uma tentativa de evitar cair na armadilha preparada para todos os que tentam entrar na andlise das relagdes entre oralidade e escrita, Segundo Street (1995), € dificil nao sucumbir a algum dos mitos presentes nessa armadilha, mesmo quando se postula, como nés, a teoria de que a relacio se funda num continuum e nfo numa dicotomia polarizada. 4. A perspectiva das dicotomias A primeira das tendéncias, a de maior tradi¢do entre os linguistas, é a que se dedica & andlise das relagdes entre as duas modalidades de uso da lingua (fala versus escrita) e percebe sobretudo as diferencas na perspectiva da dicotomia, A rigor, esta perspectiva tem matizes bem diferenciados. De um lado, temos autores linguistas como Bernstein (1971), Labov (1972), Halliday (1985, numa primeira fase), Ochs (1979), representantes das dicotomias mais polarizadas e so restrita. De outro lado, temos autores como Chafe (1982, 1984, 1985), Tannen (1982, 1985), Gumperz (1982), Biber (1986, 1995), Blanche-Benveniste (1990), Halliday/Hasan (1989), que percebem as relagdes entre fala e escrita dentro de um continuo, seja tipolégico ou da realidade cognitiva e social. No caso das dicotomias estritas, trata-se, no geral, de uma andlise que se volta para 0 cOdigo e permanece na imanéncia do fato lingu{stico. Esta perspec tiva, na sua forma mais rigorosa e restritiva, tal como vista pelos gramiticos, deu origem ao prescritivismo de uma tinica norma linguistica tida como padraio e que est representada na denominada norma culta. E dela que conhecemos as dicotomias que dividem a lingua falada e a lingua escrita em dois blocos distin- tos, atribuindo-Ihes propriedades tipicas, tais como as que se podem ver no Quadro 1: Quadro 1. Dicotomias estritas. fala versus: escrita contextualizada descontextualizada dependente autonoma implicita explicita redundante condensada no planejada planejada imprecisa precisa no normatizada normatizada fragmentéria completa 28 DA FALA PARA A ESCRITA Estas dicotomias sao sobretudo fruto de uma observagao fundada na natu- reza das condigées empfricas de uso da Ifngua (envolvendo planejamento e verbalizagdo), e nao de caracteristicas dos textos produzidos. Nao ha preocupa- do alguma com os usos discursivos nem com a producao textual. Disto surgem Vises distorcidas do prdprio fendmeno textual. A visdo chega a ser caricatural na forma como exposta no Quadro 1. Excegdo a este tipo de visio encontramos nos trabalhos de Tannen (1982,1985), Gumperz (1982) e em boa parte dos estu- dos de Chafe (1982, 1984, 1985), bem como de Biber (1986, 1988 e 1995). A perspectiva da dicotomia estrita oferece um modelo muito difundido nos manuais escolares, que pode ser caracterizado como a visdo imanentista que deu origem maioria das graméticas pedagégicas que se acham hoje em uso. Sugere dicotomias estanques com separagao entre forma e contetido, separacio entre lingua e uso e toma a lingua como sistema de regras, 0 que conduz © ensino de lingua ao ensino de regras gramaticais. Esta visio, de cardter estritamente formal, embora dé bons resultados na descrigdo estritamente empfrica, manifesta enorme insensibilidade para os fe- némenos dialdgicos e discursivos. Sua tendéncia € restritiva e a propria nogdo de regra por ela proposta ¢ demasiado rigida. Uma de suas conclusdes mais conhecidas ¢ a que postula para a fala uma menor complexidade e uma maior complexidade para a escrita. De resto, trata-se de uma alternativa que conduz a selegées aparentemente fundadas em algum valor intrinseco aos signos lingufsticos, mas, na realidade, as decisdes fundam-se em critérios e mecanis- mos socioculturais nao explicitos. A perspectiva da dicotomia estrita tem 0 inconveniente de considerar a fala como o lugar do erro e do caos gramatical, tomando a escrita como o lugar da norma e do bom uso da lingua. Seguramente, trata-se de uma visio a ser rejeitada. 5. A tendéncia fenomenolégica de carater culturalista Uma segunda tendéncia é a que observa muito mais a natureza das praticas da oralidade versus escrita e faz andlises sobretudo de cunho cognitivo, antro- poldgico ou social e desenvolve uma fenomenologia da escrita e seus efeitos na forma de organizagio e produgao do conhecimento. Nela situam-se algumas das observagées feitas na primeira parte deste ensaio. Denomino este paradigma como visdo culturalista, na sua formulagao for- te. Este tipo de visio é pouco adequado para a observagdo dos fatos da lingua. Na verdade, trata-se de uma perspectiva epistemolégica desenvolvida sobretu- do por antropélogos, psicdlogos e socidlogos, tais como Walter Ong [1982], ORALIDADE E LETRAMENTO 29 Jack Goody [1977]. Sylvia Scribner (1997), e os primeiros trabalhos de David Olson (1977), interessados em identificar as mudangas operadas nas sociedades em que se introduziu o sistema da escrita. As caracteristicas centrais desta visio poderiam ser resumidas nas oposigdes sugeridas no Quadro 2. Quadro 2. Visio culturalista. cultura oral versus cultura letrada pensamento conereto pensamento abstrato raciocinio pritico raciocinio I6gico atividade artesanal atividade tecnolégica cultivo da tradigao inovagao constante ritualismo analiticidade Esta visio nao serve para tratar relagdes lingufsticas, j4 que vé a questo em sua estrutura macro (visio global) e com tendéncia a uma andlise da forma- gio da mentalidade dentro das atividades psico-socioeconémico-culturais de um modo amplo. Para os representantes desta perspectiva, como Olson (1977), Scribner & Cole (1981), Ong (1986, [1982]) e Goody ([1977], 1987), a escrita representa um avango na capacidade cognitiva dos individuos e, como tal, uma evolugao nos processos noéticos (relativos ao pensamento em geral), que me- deiam entre a fala e a escrita. Esses autores tm uma grande sensibilidade para 0s fatos hist6ricos ¢ nao deixam de ter razo em boa parte de suas abordagens, mas isto no significa que estejam dizendo algo de substantivo sobre as relagdes textuais nas duas modalidades de uso da lingua. E provavel que as relagdes de causa e efeito por eles vistas entre a cultura e 0 uso da escrita nao estejam bem situadas, Biber (1988), que vé criticamente esta tendéncia, inicia sua obra sobre as relacdes entre a fala e a escrita frisando, com justeza, que a introdugao da escrita no mundo foi um feito notavel e correspondeu a transig&o do “mito” para a “hist6ria” se nos apoiamos na realidade dos documentos. Foi a escrita que per- mitiu tornar a lingua um objeto de estudo sistemético. Com a escrita criaram-se novas formas de expressio e deu-se o surgimento das formas literdrias. Com a escrita surgiu a institucionalizagao rigorosa do ensino formal da lingua como objetivo basico de toda formagao individual para enfrentar as demandas das sociedades ditas letradas. Nao h4, pois, como negar que a escrita trouxe imensas vantagens e consi- derdveis avancos para as sociedades que a adotaram, mas € forcoso admitir que ela nao possui algum valor intrinseco absoluto. Trata-se, sobretudo, do lugar 30 DA FALA PARA A ESCRITA especial que as sociedades ditas letradas reservaram a essa forma de expresso que a tornou tao relevante e quase imprescindivel na vida contempordnea. Numa extensa andlise critica 4 perspectiva culturalista de engrandecimen- to da escrita, Gnerre (1985) detecta nos autores ligados a essas correntes de pensamento alguns problemas que podem ser resumidos basicamente em trés pontos: * etnocentrismo,; * supervalorizagao da escrita; * tratamento globalizante. O etnocentrismo diz respeito a uma forma de ver as culturas alienigenas a partir da propria cultura e valorizar aspectos dentro de uma perspectiva em que se situa o autor. Tal teria sido 0 caso de Olson (1977)"” que, além de ter procedi- do a “uma esquematizago extrema da histéria social da escrita” (Gnerre, 1985: 62), também teria agido como se a introdugao da escrita significasse automati- camente a alfabetizacao da sociedade inteira. O certo € que “a escrita foi contro- lada essencialmente por grupos reduzidos e as ‘culturas orais’ existiram lado a lado com as tradigées escritas dos grupos de elite”. Acertadamente lembra Tfouni (1988) que as formas de raciocinio das camadas ditas analfabetas nio sio completamente diversas das camadas alfabetizadas, j4 que o letramento € um processo que penetra a sociedade independentemente da prdpria escolarizagio formal. A supervalorizagao da escrita, sobretudo a escrita alfabética, leva a uma posicdo de supremacia das culturas com escrita ou até mesmo dos grupos que dominam a escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida. Se- para as culturas civilizadas das primitivas. Este aspecto deu origem a hipste- ses muito fortes sobre a escrita, criando “uma viséo quase mitica sobre a es- crita”. A escrita seria a responsdvel pelo surgimento do raciocinio silogistico, tendo em vista o fato de ela contribuir essencialmente para a descontex- tualizagdo dos significados que criariam autonomia ao passarem da “cabeca” para 0 “texto no papel”, fazendo assim surgir a descentralizagao do pens mento que passaria do concreto para o abstrato. Daf a impressio de autonomia da escrita. Essa forma globalizante de ver a escrita ressente-se da desatengdo para 0 fato de que nao existem “sociedades letradas”, mas sim grupos de letrados, 17. Em relagio a Olson, ainda serd notado adiante que em seu iltimo livro intitulado 0 Mundo no Papel —As Implicagdes Conceituais e Cognitivas da Leitura e da Escrita, de 1997, acha-se uma surpreen- dente revisto de muitas de suas posigées, em especial aquelas que postulavam a dicotomia mais estrita e a “grande divisio” do ponto de vista cognitivo. ORALIDADE E LETRAMENTO. a1 elites que detém o poder social, j4 que as sociedades niio sfio fendmenos homo- géneos, globais, mas apresentam diferencas internas. Nao é necesséria uma and- lise muito minuciosa; basta dar uma olhada em nosso entorno para constatar que a “sociedade brasileira” no é homogénea em relagéio ao letramento. Por outro lado, vérias das postulacdes acima no passam de crengas jé desmontadas pela investigacdo contemporfnea na érea. 6. A perspectiva variacionista Uma terceira tendéncia, talvez intermediaria entre as duas anteriores, mas isenta da maioria dos problemas de ambas, é a que trata do papel da escrita e da fala sob 0 ponto de vista dos processos educacionais e faz propostas espectficas a respeito do tratamento da variagéo na relacdo entre padrio e néio padrao linguistico nos contextos de ensino formal. Aqui se situam os modelos tesricos preocupados com 0 que se vem denominando curriculo bidialetal, por exem- Plo. Sao estudos que se dedicam a detectar as variagdes de usos da Iingua sob sua forma dialetal e socioletal. E uma variante da primeira visio, mas com gran- de sensibilidade para os conhecimentos dos individuos que enfrentam o ensino Neste paradigma nao se fazem distingdes dicotémicas ou caracterizagdes estanques, verifica-se a preocupacéio com regularidades e variagdes. Aqui a lin- gua é observada com rigor metodolégico mais adequado que em ambos os casos anteriores. De certo modo, nessa tendéncia podem-se construir as distingdes vistas no Quadro 3. Quadro 3. A perspectiva variacionista, fala e eserita apresentam lingua padrio variedades nio padrio \ Iingua culta lingua coloquial norma padraio normas no padrio Notivel nessa tendéncia é 0 fato de nao se fazer uma distingao entre fala e escrita, mas sim uma observagdo de variedades linguisticas distintas. Todas as variedades submetem-se a algum tipo de norma. Mas como nem todas as normas podem ser padrao, uma ou outra delas seré tida como norma padrao. A decisio € muito menos linguistica do que ideoldgica, postulam esses te6ricos. 32 DA FALA PARA A ESCRITA No Brasil, temos seguidores desta linha, entre os quais se situam Bortoni (1992, 1995), Kleiman (1995) e, numa perspectiva um pouco diversa, mas dentro do mesmo espirito, acha-se Soares (1986). Simpatizo grandemente com esta perspectiva, mas ndo me parece que a questo esteja resolvida. Sociolinguistas como Trudgill (1975) e Labov (1972)'* jé apontavam para a impossibilidade de um desempenho bidialetal. O que se pode fazer, sem pos- tular as posigdes de Bernstein (1971), € imaginar a possibilidade de um domi- nio do dialeto padrao na atividade de escrita e continuar no dialeto nao padrao no desempenho oral. Stubbs (1986) também sugere que poderfamos ver as relagées entre fala e escrita, em contextos educacionais, como um problema de variaciio linguistica. Na verdade, trata-se de um aspecto amplamente admitido hoje, j4 que as Ifnguas nao so homogéneas nem uniformes sob o ponto de vista de seu uso (veja Milroy, 1992). E as relagées fala e escrita dizem respeito a questées de uso da lingua. O interessante nesta perspectiva é que a variagio se daria tanto na fala como na escrita, 0 que evitaria o equivoco de identificar a lingua escrita com a padroni- zagdo da lingua, ou seja, impediria identificar a escrita como equivalente & lingua padrao, como fazem os autores situados na perspectiva da dicotomia estrita. Minha posigao € a de que fala e escrita nao sio propriamente dois diale- tos, mas sim duas modalidades de uso da lingua, de maneira que o aluno, a0 dominar a escrita, se torna bimodal.” Fluente em dois modos de uso e nao simplesmente em dois dialetos, Mas esta questo € demasiado complexa para ser tratada neste espaco. 7. A perspectiva sociointeracionista Uma quarta perspectiva, que a rigor no forma um conjunto tedrico siste- mitico e coerente, mas representa uma série de postulados um tanto desconexos e difusos, seria a que trata das relag6es entre fala e escrita dentro da perspectiva dialégica. Caracterizo-a como visdo sociointeracionista e seus fundamentos centrais baseiam-se na percepcdo oferecida no Quadro 4. 18. E bom nao esquecer, numa abordagem mais téenica, que Labov é um sociolinguista variacionista que pouco tem a ver com a sociolinguistica tal como postulada por Bernstein, por exemplo. Labov nao tem interesse direto no ensino nem na questio da norma dialetal. © problema dele é identificar as raz6es © os fatores que contribuem para a variagiio e pouco Ihe interessa qual a variedade a ser adotada no ensino. 19. ObservagSes sistemiticas a este respeito fiz.em livro que deverd sair com o titulo: O Tratamento da Oralidade no Ensino de Lingua. ORALIDADE E LETRAMENTO 33 Quadro 4. Perspectiva sociointeracionist fala e escrita apresentam dialogicidade uusos estratégicos funcGes interacionais envolvimento negociacio situacionalidade coeréncia dinamicidade Este modelo tem a vantagem de perceber com maior clareza a lingua como fen6meno interativo e dinamico, voltado para as atividades dialégicas que mar- cam as caracteristicas mais salientes da fala, tais como as estratégias de formu- Jago em tempo real. Para Street (1995: 162), essa tendéncia em diregiio a and- lise (critica) do discurso unida A investigacio etnogréfica poderia ser uma das melhores safdas para a observagdo do letramento e da oralidade como préticas sociais. Contudo, pode-se dizer que esta perspectiva, mesmo que livre dos proble- mas ideol6gicos e preconceitos das anteriores, padece de um baixo potencial explicativo e descritivo dos fendmenos sintaticos e fonolégicos da lingua, bem como das estratégias de produgiio e compreensio textual. A rigor, esses fend- menos fogem aos interesses de tais teorias. Por isso, a proposta geral, se conce- bida na fuséo com a visdo variacionista e com os postulados da Andlise da Conversagao etnogréfica aliados 4 Lingufstica de Texto, poderia dar resultados mais seguros e com maior adequag3o empfrica e teérica. Talvez seja esse 0 caminho mais sensato no tratamento das correlagdes entre formas linguisticas (dimensao linguistica), contextualidade (dimenso funcional), interago (dimen- so interpessoal) e cognicao no tratamento das semelhangas e diferengas entre fala e escrita nas atividades de formulagao textual-discursiva. Nesta visio interacionista cabem anilises de grande relevancia que se de- dicam a perceber as diversidades das formas textuais produzidas em co-autori (conversagées) e formas textuais em monoautoria (mondlogos), que até certo ponto determinam as preferéncias basicas numa das perspectivas da relacao fala e escrita. Além disso, tem-se, aqui, a possibilidade de tratar os fendmenos de compreensao na interagao face a face e na interagiio entre leitor e texto escrito, de maneira a detectar especificidades na prépria atividade de construgdo dos sentidos. Como se observa, esta perspectiva orienta-se numa linha discursiva e interpretativa. 34 DA FALA PARA A ESCRITA Muito fortemente representada no Brasil, esta linha tem entre seus segui- dores mais representativos Preti (1991, 1993), Koch (1992), Marcuschi (1986, 1992, 1995), Kleiman (1995a), Urbano (2000) e muitos outros presentes nas obras editadas por Preti (1993, 1994, 1998 e 2000). Esta perspectiva tem grande sensibilidade para as estratégias de organizacio textual-discursiva preferencial na modalidade falada e escrita.” A perspectiva interacionista preocupa-se com os processos de produgio de sentido tomando-os sempre como situados em contextos s6cio-historicamente marcados por atividades de negociagao ou por processos inferenciais. Nao toma as categorias linguisticas como dadas a priori, mas como construidas interativamente e sensiveis aos fatos culturais. Preocupa-se com a andlise dos géneros textuais e seus usos em sociedade. Tem muita sensibilidade para fen6- menos coghitivos e processos de textualizagio na oralidade e na escrita, que permitem a produgao de coeréncia como uma atividade do leitor/ouvinte sobre 0 texto recebido. Uma visio de algumas das preocupagGes desta linha de trabalho pode ser obtida do proveitoso trabalho de Koch (1992) que trata da interago realizada na fala e na escrita, bem como nos estudos de Koch (1997) sobre a construgao de sentidos na atividade textual-discursiva. Além disso, exemplo tipico desta tendéncia é 0 que se acha no meu ensaio sobre a retextualizagao na segunda parte deste livro. Em conclusio a estas observagdes, pode-se dizer que discorrer sobre as relagées entre oralidade/letramento e fala/escrita nao é referir-se a algo consensual nem mesmo como objeto de anélise. Trata-se de fendmenos de fala e escrita enquanto relacdo entre fatos linguisticos (relag&o fala-escrita) e enquanto rela- ¢G0 entre priticas sociais (oralidade versus letramento). As relagdes entre fala e escrita ndo sido obvias nem lineares, pois clas refletem um constante dinamismo fundado no continuum que se manifesta entre essas duas modalidades de uso da lingua. Também nfo se pode postular polaridades estritas e dicotomias estanques. O curioso é que, no geral, quem se dedica aos estudos da relacao entre lingua falada e lingua escrita, sempre trabalha o texto. falado e raramente analisa a lingua escrita. No entanto, suas observagées sdo muitas vezes sob a 6tica da escrita. Por outro lado, as afirmacées feitas sobre a escrita fundam-se na gramd- tica codificada e nao na lingua escrita enquanto texto e discurso. Em suma, 0 20, Trabalho sistematico na andlise da lingua falada vem sendo desenvolvido pelo grupo dedicado aos cestudos da organizagio textual-discursiva na fala (coordenado por Ingedore V. Koch), no contexto do projeto da “Gramética do Portugués Falado”, dirigido por A. de Castilho (cf. Castitho, 1990, 1993; Hlari, 1992; Castilho & Basilio, 1996; Koch, 1996; Kato, 1996; Neves, 1999). ORALIDADE E LETRAMENTO 38 que conhecemos nao sao nem as caracteristicas da fala como tal nem as caracte- risticas da escrita; o que conhecemos sao as caracteristicas de um sistema normativo da lingua. 8. Aspectos relevantes para a observagéio da relacdo fala e escrita A lingua, seja na sua modalidade falada ou escrita, reflete, em boa medida, a organizagdo da sociedade. Isso porque a propria lingua mantém complexas relagdes com as representagées e as formagées sociais. Nao se trata de um espelhamento, mas de uma funcionalidade em geral mais visfvel na fala. E por isso que podemos encontrar muitos correlatos entre variacio sociolingufstica e variagao sociocultural. Andlises interessantes sob este aspecto so as oferecidas por Duranti (1997) em sua obra sobre antropologia linguistica, ao frisar que a lingua € uma parte da cultura, mas uma parte tio decisiva que a cultura se molda na lingua. No entanto, seria equivocado ver uma homologia entre lingua e cul- tura, pois conhecer uma nao equivale a conhecer a outra. Na tradigao filoséfica ocidental, nos acostumamos a distinguir entre naru- reza e cultura, atribuindo & cultura tudo aquilo que nao se dé naturalmente. No entanto, hoje, esta distingao esta cada vez mais dificil de ser mantida, como, de resto, acontece com todas as dicotomias. O certo é que, como lembra Duranti (1997), a cultura €é um dado que torna o ser humano especial no contexto dos seres vivos. Mas, 0 que 0 torna ainda mais especial é 0 fato de ele dispor de uma linguagem simbélica articulada que € muito mais do que um sistema de classifi- cagio, pois € também uma pratica que permite que estabelecamos crengas € pontos de vista diversos ou coincidentes sobre as mesmas coisas. Daf ser a lin- gua um ponto de apoio e de emergéncia de consenso ¢ dissenso, de harmonia e luta. Néo importa se na modalidade escrita ou falada. Podemos observar que a construgao de categorias para a reflexo tedrica ou para a classificagio sao tanto um reflexo da linguagem como se refletem na linguagem e sio sempre construfdas interativamente dentro de uma sociedade. Na perspectiva aqui defendida, seria titil ter presente que, assim como a fala nao apresenta propriedades intrinsecas negativas, também a escrita nao tem propriedades intrinsecas privilegiadas, S40 modos de representagdo cognitiva e social que se revelam em praticas especificas. Postular algum tipo de suprema- cia ou superioridade de alguma das duas modalidades seria uma visio equivo- cada, pois no se pode afirmar que a fala é superior & escrita ou vice-versa. Em primeiro lugar, deve-se considerar 0 aspecto que se esté comparando e, em se- gundo, deve-se considerar que esta relagdo nao é homogénea nem constante. Do ponto de vista cronoldégico, como jd observou detidamente Stubbs (1980), a fala tem uma grande precedéncia sobre a escrita, mas do ponto de vista 36 DA FALA PARA A ESCRITA do prestigio social, a escrita é vista como mais prestigiosa que a fala, Nao se trata, porém, de algum critério intrfnseco nem de pardmetros lingufsticos e sim de postura ideolégica. Por outro lado, hé culturas em que a fala mais prestigiosa que a escrita. Mesmo considerando a enorme ¢ inegdvel importincia que a escrita tem nos povos e nas civilizagées “letradas”, continuamos, como bem observou Ong [1982], povos orais. A oralidade jamais desaparecerd e sempre serd, ao lado da escrita, o grande meio de expressio e de atividade comunicativa. A oralidade enquanto prética social € inerente ao ser humano e nao ser& substituida por nenhuma outra tecnologia. Ela seré sempre a porta de nossa iniciagio & racionalidade e fator de identidade social, regional, grupal dos individuos. Isso se d4 de modo particular porque a lingua é socialmente moldada ¢ desenvolvi- da, nao obstante seu provavel carater filogeneticamente universal, como postu- lam muitos linguistas e psicdlogos. ‘A escrita, por sua vez, pelo fato de ser pautada pelo padrdo, no € estigmatizadora e nao serve como fator de identidade individual ou grupal. Isso, a menos que se sirva, como na literatura regional, de tragos da realidade lingufs- tica regional”! ou apresente caracteristicas estilfsticas tio peculiares que permi- tem a identificag’o de autoria. Mas isto nao ocorre com todos os géneros tex- tuais. Por exemplo, nao se pode chegar a identificagdes individuais de autoria na maioria dos textos de um jornal diario, Enquanto a fala pode facilmente levar 2 estigmatizagio do individuo, com a escrita isso acontece bem menos. Parece que a fala, por atestar a variago e em geral pautar-se por algum desvio da norma, tem cardter identificador. E possivel que identidade seja um tipo de desvio da norma-padrao. Ponha-se um grupo de individuos letrados a escrever um texto sobre © mesmo tema, por exemplo, “a inflago na vida do brasileiro”, e entéio observem- “se seus textos. E provavel que suas opinides sejam objeto de discussao, mas eles nao serdo estigmatizados ou categorizados pela linguagem como tal, a menos que violem normas muito especificas. No entanto, se pedirmos aos mesmos individuos que “falem” seus textos, ou os produzam oralmente, teremos dife- rengas e até avaliagbes que ndo se deverdo ao contetido ¢ sim a uma particular forma de “falar” 0 contetido. Do ponto de vista dos usos quotidianos da lingua, constatamos que a oralidade e a escrita no sio responsdveis por dominios estanques e dicotémicos. Ha priti- 21, Valeria a pena perguntar-se porque a literatura de corde! identifica de modo tho nitido o nordesti- no, Também é interessante indagar-se em que partes de suas obras Graciliano Ramos e José Américo de ‘Almeida ou José Lins do Rego so identificados como literatura nordestina, Com certeza nio sio seus temas, mas sim os didlogos de suas personagens. ORALIDADE & LETRAMENTO. 37 cas sociais mediadas preferencialmente pela escrita e outras pela tradi¢io oral. Tomemos o caso tipico da rea juridica. Ali é intenso e rigido o uso da escrita, j4 que a Lei deve ser tomada ao pé da letra. Contudo, precisamente a area juridica faz um uso intenso e extenso das praticas orais nos tribunais, o que comprova que numa mesma drea discursiva e numa mesma comunidade de praticas convivem. duas tradiges diversas, ambas fortemente marcadas. Isso sugere ser inadequado distinguir entre sociedades letradas e iletradas de forma dicotémica. Oralidade e escrita sao duas praticas sociais e néio duas propriedades de sociedades diversas. O cerne das confusdes na identificagao e avaliacaio de semelhangas e dife- rengas entre a fala e a escrita acha-se, em parte, no enfoque enviesado e até Ppreconceituoso a que a questao foi geralmente submetida e, em parte, na metodologia inadequada que resultou em visdes bastante contraditérias. A fala tem sido vista na perspectiva da escrita e num quadro de dicotomias estritas porque predominou 0 paradigma te6rico da andlise imanente ao cédigo. En- quanto a escrita foi tomada pela maioria dos estudiosos como estruturalmente elaborada, complexa, formal e abstrata, a fala era tida como concreta, contextual e estruturalmente simples (cf. Chafe, 1982; Ochs, 1979; Kroll & Vann, 1981). Contudo, hé os que julgam que a fala € mais complexa que a escrita (cf. Halliday, 1979 e Poole & Field, 1976). Biber (1986, 1988, 1997) mostrou com clareza que nada € claro e conclusivo nesse terreno. Uma primeira observacao a ser feita € a que diz respeito a propria visio comparativa da relagio entre fala e escrita. Quando se olha para a escrita tem-se a impressio de que se esté contemplando algo naturalmente claro e definido. Tudo se passa como se ao nos referirmos 2 escrita estivéssemos apontando para um fendmeno se nao homogéneo, pelo menos bastante estavel e com pouca variagio. O contrério acorre com a consciéncia esponténea que se desenvolveu a respeito da fala. Esta se apresenta como variada e, curiosamente, ndo nos vem A mente em primeira mao a fala padrao. Eo caso de dizer que fala e escrita sio intuitivamente construidas como tipos ideais concebidos com principios opos- tos e que ndo correspondem a realidade alguma, a menos que identifiquemos um fendmeno que as realize. A hipétese que defendemos supée que: as diferengas entre fala e escrita se dao dentro do continuum tipoldgico das praticas sociais de produgao textual e ndo na relagdo dicotémica de dois pélos opostos. Em consequéncia, temos a ver com correlagées em varios planos, surgindo dai um conjunto de variacées nao uma simples variagao linear. O grafico 1 dé uma nogao esquematica dessa postura.”? 22. Para algumas das observagdes a seguir e mesmo para a montagem deste grafico, baseei-me em Koch & Osterreicher (1990). 38 DA FALA PARA A ESCRITA Gréfico 1. Fala e escrita no continuo dos géneros textu: Géneros da Escrita GE1, GE2... GEn \ ESCRITA GF1, GF2... GFn Neste grafico, temos dois dominios linguisticos (fala e escrita) em que se encontram os géneros textuais (G), observando-se que tanto a fala como a escri- ta se dio em dois continuos: * na linha dos géneros textuais (GF 1, GF2... GFn e GEI, GE2... GEn); * na linha das caracteristicas especificas de cada modalidade. Assim, um determinado género da fala (GF), por exemplo, uma conversa- ao espontanea, seria 0 GF1 e representaria uma espécie de protétipo da moda- lidade, ndo sendo aconselhdvel comparé-lo com um género escrito (GE), tal como o GE1 que seria o protétipo da escrita, por exemplo, uma conferéncia académica num congresso. Na realidade, temos uma série de textos produzidos em condiges naturais e espontaneas nos mais diversos dominios discursivos das duas modalidades. Os textos se entrecruzam sob muitos aspectos e por vezes cons- tituem dominios mistos. Observe-se 0 caso dos textos de um noticiario televisivo. Trata-se de textos originalmente escritos que 0 leitor s6 recebe oralmente. A ques- tao é: o noticidrio de televisio é um evento de oralidade ou letramento? Por outro lado, temos certos eventos muito comuns, tais como uma aula expositiva, que em parte se compée de leituras que o professor faz e de comen- tdrios que Ihes acrescenta e, em parte, so exposigdes originais sem um texto escrito prévio base. No entanto, tratamos uma aula como um evento tipicamente oral. Ha géneros que se aproximam da oralidade pelo tipo de linguagem e pela natureza da relagiio entre os individuos, por exemplo, as cartas intimas ¢ pes- soais. Isso jd nao ocorre no caso das cartas comerciais ou cartas aberta: ‘Um dos aspectos centrais nesta questo € a impossibilidade de situar a oralidade e a escrita em sistemas linguisticos diversos, de modo que ambas fazem parte do mesmo sistema da lingua. Sao, portanto, realizages de uma gramatica tinica, mas que do ponto de vista semiolégico podem ter peculiaridades com diferengas acen- ORALIDADE E LETRAMENTO 39 tuadas, de tal modo que a escrita nao representa a fala. Além disso, os textos orais tém uma realizado multissistémica (palavras, gestos, mimica etc.) e os textos escri- tos também no se circunscrevem apenas ao alfabeto (envolvem fotos, ideogramas, por exemplo, os fcones do computador, e grafismos de todo tipo). Fique, pois, claro que no postulamos uma simetria de representagio e sim uma simetria sistémica no aspecto central das articulagdes estritamente lingufsticas. Nao mais do que isso. O Grdfico 2 dé uma ideia das relagSes mistas dos géneros a partir de al- guns postulados, tais como: meio e concepgdo, tendo em vista que a fala é de concepgio oral e meio sonoro, ao passo que a escrita é de concepgao escrita e meio grafico. Na apresentagio do grafico, temos que “a” é 0 dominio do tipica- mente falado (oralidade), seja quanto ao meio e quanto A concepgao. Jé a sua contraparte seria, por exemplo, 0 dom{nio “d” correspondente ao tipicamente escrito. Por outro lado, tanto “b” como “c” constituem os dominios mistos em que se dariam as mesclagens de modalidades. Considerando as duas perspectivas e suas formas de realizaciio, temos: a) meio de produgdo: sonoro versus grafico b) concepgio discursiva: oral versus escrita Com base nisto, podemos ter a seguinte distribuigéio: Graifico 2. Representacio da oralidade e escrita pelo meio de produgo e concepgio discursiva Concepgaio (oral) F >> Mei Meio (ears) F E (grafico) (| E Concep¢ao {escrita) 40 DA FALA PARA A ESCRITA Se tomarmos quatro géneros diversos, tais como: * conversagio espontanea * artigo cientifico * noticia de TV * entrevista publicada na Revista Veja e considerarmos os aspectos sugeridos no Grifico 2, veremos que eles se situam em pontos bastante diferentes, tendo em vista o que esté representado na grade do Quadro 5, pois eles no tém a mesma relagio com esses pardmetros. Quadro 5. Distribuigdo de quatro géneros textuais de acordo com o meio de produgao € @ concepcao discursiva Genero textual Meio de producao | Concepeio discursiva | Dominio Sonoro | Grafico | Oral | Eserita Conyersagao espontiinea x oe a Artigo cientifico x ie a Noticia de TV x x c | Entrevista publicada na Veja x x b Os dominios “a” ¢ “d” so prototipicos, ao passo que os dominios “b” & “¢” so mistos ¢ neles a produgdo e o meio sf de modalidades diversas. Nem por isso vamos deixar de identificar os dois tiltimos géneros. Contudo, uma rie de caracteristicas neles presentes podem ter sua origem explicada de modo diverso que nos outros dois. Isto pode ser visto no Gréfico 3, que apresenta 0 continuo dos géneros no contexto da Fala ¢ da Escrita, sublinhando o “balao” intermediario que repre- senta géneros tidos como “mistos” sob os aspectos analisados no Quadro 5. Situacdes deste tipo so muitas e 0 assunto nfo é tratado pelos manuais de Tin- gua portuguesa. Uma primeira explicitagiio da hipétese aqui postulada e que contempla a relagdo fala e escrita numa visio néo dicotémica sob o ponto de vista sociointeracional poderia ser assim formulada: a ORALIDADE E LETRAMENTO SN3DV1HOdaY a SIQSVLNASaudV SVLSIAZHLNA svolngavov aq oySv1aLsNoo $3091SOdxa JOSVSHIANOD vaurgquodso wsioAuo> « ‘eayugy>fo1 BSI2AUOD « svorjgnd sesi24uoo 1 1 1 ' 1 ' 1 ' 1 ' 1 ' 1 ' ALO 1 fou sagssnosip + soregap «| sonupnbay+ | ALorpps ou sestsanua « sfoossod SeistAanluo « oats ov stoBonzodps « j soamsap SOSINDSID « soquanb Laid ‘mayo sounasip «| a iougsayuiog | STI pions ~~ ' oymgpesr opbisodxo + | 1 NL2P ouppnou. — | ores ap ouptonons ' Se + — — — FMR OUFRN ne ee v js|S SOUT Sbsiju Topas tus woe 1 —. | Sopeogunwos i a i ~~. __ss0tfponos + =< t i 5-7 7 di ap someon « 1 sorauIig « i soqqunas ap seit + sisyaanuo « seuresdaja+ | soupynuuoy « 1 p8 upp senpoat « 1 sengs ‘osm ap sag5nus soamuap1 SouoIyar « 1 sreoyo somuotnsop « ' 2019 op SeHED « sossaooud wo sa1ooared « soaypuats sos « Soaqugpee Sorxar « wnor—-r

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