Você está na página 1de 6

Corpos expropriados: mulheres artistas

e a questáo do nu no modernismo

ANe Peure CaverceNrr Slt ttoNt


USP, Bnesr

f, m "Modernity and Spaces of Femininity" Griselda Pollock se pergunta que


J-rrelagóes existiriam entre sexualidade, modernidade e modernismol.' A
questáo é suscitada pelas narrativas dominantes na história da arte moderna
-respaldada e cristalizada pelos museus- nas quais, náo por acaso, telas como
Les Demoiselles d'Avígnon, de Picasso , Bonheur de Vivre de Henri Matisse
(i9o5-6), ou mesmo antes, com Olympia de Manet, sáo apontadas como obras
inaugurais do modernismo. Apesar das diferenEas estilísticas há dentre elas
uma semelhanqa temática: sáo nus femininos.
As centenas de pinturas de nus, em especial femininos, realizadas por
artistas ditos cubistas, fauvistas, etc. sáo constitutivas da própria ideologia da
vanguarda que se oficializou. Essa baseia-se na defesa da liberdade individual,
no poder de contestaEáo das instituiEóes, de auto-afirmaEáo de um sujeito
singular que se materializa por meio de imagens que se pretendem manifestos
críticos ás convenEóes sociais e éticas burguesas. Tais obras se apresentam
como atestados de liberdade, no entanto, é preciso perguntar: liberdade de
queml Como afirma Carol Duncan:

(...) the art produced by many of its early heros hardly preaches
freedom, at least not the universal humam freedon it has come to
symbolize. Nor are the values projected there necessarly 'ours', let
alone our highest. The paintings I shall look at speak not ofuniversal
aspiraüons but of the fantasies and fears of middle-class men living
in a changing world (...).'

Tal liberdade constitutiva da mitologia modernista, é, portanto uma liberdade


generificada.
Como apontam as autoras, essas telas foram concebidas por artistas do sexo
masculino que supunham espectadores que espelhassem suas identidades e
desejos. Porém entre finais do XIX e inícios do século XX diversas mulheres
artistas, francesas ou estrangeiras, passaram a ter acesso ao estudo do modelo
vivo em academias particulares na FranEa (como a célebre Académie |ulian, a

187
Académie Colarossi, a Grand Chaumiére, entre outras), ou mesmo na École de Ela que foi a mais bem sucedida dentre as artistas de sua geraEáo, criou um
Beaux Arts, a partir de 1897. Isso coloca algumas perguntas: como as mulheres vocabulário próprio que passou a ser visto como o protótipo da "feminilidade
artistas se posicionavam diante de todas as cluestóes de ordem ética suscitadas essencial": mulheres frágeis, delicadas, simbolizando a "femme enfant".6
pela visualizaEáo dos corposl Como elas, que tradicionalmente eram vistas Uma terceira posiEáo seria representada por Emilie Charmy $878t974);
apenas como objeto do despertar do desejo masculino, como musas despidas uma arlista hoje pouco conhecida, mas bastante reputada nos primeiros anos
de desejos próprios, experimentavam uma situaEáo táo diversa, de se tornarem do século. charmy náo fora reconhecida como fauve, muito embora estivesse
autoras, sujeitos de tais representagóesl presente nas exposigóes no Saláo dos Independentes no mesmo momento
Nessa apresentagáo pretendo analisar o modo com que algumas arListas que Matisse, Derain, Van Dogen expunham conjuntamente, com pinturas de
brasileiras apontadas como pioneiras das vanguardas nacionais, Anita Malfatti e cromatismo intenso, vibrante e livre. Mas para a1ém da originalidade estilísüca,
Tarsila do Amaral, enfrentaram o problema da representagáo do nu feminino. As o que é ressaltado por Perry é o modo com que ela confere uma interpretaEáo
obras A mulher do Paró e A negra, ambas realizadas em Paris durante a década de original a uma temática clássica: seus nus femininos dotam seus modelos de
r9zo, sáo tomadas como espasos de inscrigáo singulares do modo com que ambas uma sexualidade bastante ativa. Em La Loge, ao retratar uma cena de bordel,
as artistas articularam as dimensóes do género, da sexualidade, da absorEáo de desafia os limites temáticos e representacionais dos "espaEos da modernidade",
léxicos modemistas acessados na FranEa, a partir de suas posigóes (de classe) segundo a definiEáo de Griselda Pollock.7 Os bordéis, assim como os cafés,
particulares. Para que se compreenda a especificidade dessas obras, do ponto de faziam parte daquele "outro" mundo, inacessível ás mulheres de elite, mas
üsta de uma análise da produEáo e dos desafios com que se deparavam as mulheres freqüentado e louvado pelos fláneurs. Essa figura lendária da modernidade,
artistas modernistas, faz-se necessário cotejáJas com outras produEóes que thes o fláneur que circula pelos diversos ambientes da metrópole, dos palacetes
eram próximas ou contemporáneas. Assim, as obras das artistas brasileiras seráo aos prostíbulos, caminha pelas ruas sem ser percebido, mas a tudo vendo
comparadas com de algumas francesas, alemás e mexicanas clue enfrentaram com seu olhar perspicaz, láo bem construída por Baudelaire, era prerrogativa
problemas comuns, mas com resultados distintos.l Procurarei defender a exclusivamente masculina.8 Mulheres náo circulavam impunemente pelas ruas,
hipótese de que, a despeito da inventividade plástica reconhecida nas obras Anita e a cidade que conheciam era muito mais restrita, seus ambientes geralmente
especialmente Tarsila, do ponto de vista de um discurso de género elas sinalizam fechados, seus passos vigiados, e, se freqüentavam os bordéis, certamente era
certos limites, que sáo também os dos lastros sociais do modernismo brasileiro. numa posiEáo muito distinta da dos homens que as retrataram.g A pintura
de Charmy é transgressora desse ambiente e desse papel: apropria-se de um
tema e de um ato de olhar até entáo vistos como essencialmente masculinos,
desafia categorias estabilizadas, transcende os territórios generificados da
Nos primeiros decénios do século XX, diversas mulheres artistas modernidade. Em Sleepíngnud.e Charmy, apresenta uma nova imagem atípica:
francesas, ou estrangeiras aportadas em Paris, dedicaram-se á representaEáo trata-se de um nu feminino particular, a mulher representada náo parece posar
dos nus. Segundo Gill Perry, é possível identificar 3 tipos, ou modos de se para um espectador externo, náo anseia por provocar prazer para um "outro,,
relacionarem com tal temática, o que significa atentar tanto para a fatura, para ausente do quadro. Ao contrário, e1a emerge plenamente ativa e autónoma em
a plástica, quanto para a dimensáo erótica, política etc que lhes é imanente.4 relaEáo ao próprio corpo, sujeito de seu próprio prazer.lo Curioso que uma obra
De um lado Suzanne Valadon, cujas obras eram bem recebidas, vistas como táo poderosa como a de charmy hoje seja praticamente desconhecida, ausente
"vigorosas" em seu contexto, materializando uma maneira masculina de dos museus públicos, pouco citada e comentada, em funEáo dos critérios de
pintar nus femininos, aprendida com seus mestres (Toulouse Lautrec, Degas legitimidade em vigora na historiografia da arte tradicional.
etc), de cluem anteriormente e1a havia sido modelo. Ela simbolizauma norma Pode-se ainda acrescentar um quarto caminho, no qual há uma recusa
masculina apropriada e internalizada.5 De outro lado, Marie Laurencin (r886- acentuada em representar o corpo feminino como espetáculo de prazer visual.
r956), cujas obras configuravam aquilo que passará a ser compreendido como Trata-se de imagens que resistem a qualquer idealizagáo. pensamos aqui em
uma maneira "feminina" de pintar mulheres, com amplo éxito em sua época. novas formas expressivas, de orientaEáo modernista, que refutam o realismo da

r88
r89
matéria, ao mesmo tempo em que negam as vifiudes morais que essa carrega Subversdes contido,s
consigo. Artistas como Schiele, Klimt, Picasso, Van Dongen, Matisse, Kirschner, O Brasil é caso interessante na história da arte mundial, em especial no que
etc. faráo dos corpos despidos elementos de verdadeiro "desnudamento" da tratamos aqui: as relagóes entre arte e género. Possivelmente é um dos poucos
fialureza humana. Mas deve-se notar que ao incidirem especialmente sobre os países em que as mulheres participaram ativa e intensamente das vanguardas,
corpos femininos, mantém uma distáncia tradicional entre sujeito (masculino) sendo reconhecidas já em vida por seus próprios pares masculinos. Além
x objeto (feminino). É o corpo do outro, ou melhor, da. outra, que é dilacerado, do México, Inglaterra e Rússia, quais outras situaEóes deflagraram tamanho
explorado, escancarado; tornado carne, pura natureza.rr espaso para mulheres artistas? No Brasil, diferindo de praticamente todas as
Em 19o6, Paula Mondershon-Becker quebra essa equaEáo. De origem alemá, experiéncias internacionais, as mulheres foram náo alunas, mas sim chefes de
após passar 6 intensos meses em Paris estudando os nus na história da arte, escola''3 Apesar do todo o debate, há quase um consenso em torno da importáncia
exercitando-se na captagáo do modelo vivo nas academias privadas, ela realiza de Anita Malfatti para a introduEáo do expressionismo no Brasil, mesmo com a
duas obras inovadoras; Mñ.e e CríanQa nuas deítqdas e Auto-retrato corn 30 ano* passagem anterior de Lasar Segall (r9r3), foi com ela que o movimento obteve
Como analisa Rydick," a primeira tela é fruto de uma busca consciente da artista impacto no meio artístico, gerando debate púb1ico e, portanto, configurando
por romper com a dicotomia imaginária entre a mulher como máe, sagrada, e a uma recepEáo ampliada do moderno em termos locais. De outro lado, Tarsila
mulher nua, profana; nessa tela Becker elabora a imagem da "A máe nua", algo do Amaral é sem sombra de dúvidas o maior nome nas artes visuais do país
profundamente novo, capaz de transcender as polaridades pré-existentes. durante a década de r9zo, nossa mais notável representante de um estilo
No mesmo ano, a artista pinta uma outra tela extremamente original, seu internacional-nacional brasileiro.'4
Awto-retrato corn 30 qnos, proyayelmente o primeiro auto-retrato nu já realizado Tamanha centralidade das mulheres na vanguarda brasileira teria sido capaz
por uma artista mulher. Nela expóe com clareza sua gravidez. O corpo feminino de suscitar impactos significativos para um adensamento particular das relaEóes
em embaraEo era algo ambíguo. Se, por um lado, evocava as qualidades entre os géneros no modernismo brasileirol Penso naquilo que Raymond
sagradas da maternidade, apregoadas pelos costumes e pela religiáo; por outro Williams salienta em seu importante estudo sobre o grupo Bloomsbury, na
era também a materializaEáo do encontro sexual, da fecundaEáo, a üsualizagáo Inglaterra, em que a proeminéncia das irmás Vanessa Bell e Virginia Woolf
dacluilo que náo se fala, do interdito, do que náo se expóe. Exibir um corpo teriam para a conformaEáo do próprio grupo, por meio de uma vivéncia e uma
feminino nesse estado era já uma inovagáo, mas considerando-se que era o reflexáo particulares sobre a contradiEáo da presenga de mulheres altamente
corpo da própria artistq, tratava-se deliberadamente de uma transgressáo, algo educadas e, concomitantemente, excluídas das instituigóes de ensino superior
até entáo náo realizado na história da pintura ocidental. na Inglaterra em inícios do século XX.I5 Ou ainda, haveria alguma contribuigáo
Segundo Radyck, essa tela inaugura uma tradiEáo de imagens femininas, de alguma ordem propriamente artística advinda da presenga feminina nesses
de auto-retratos modernos, pela fatura, pela quebra de convengóes, pela círculosi.I6 De que modo suas obras aportaram elementos significativos para
recusa ao idealismo, pela infraEáo aos mitos socialmente difundidos sobre que se possa responder a tais questóesl
feminilidade, que se estenderá ao longo do século XX. Podemos pensar Comecemos com Anita Malfatti. Entre finais dos anos rgro e inícios dos
naqueles elaborados por Frida Kahlo, Tamara Lempicka, nos quais as artistas anos r9zo, ela realizou suas pinturas e desenhos mais valorizados, dentre os
tomam o próprio corpo como espaqo de discussáo e questionamento acerca quais vários exercícios de nus. Alguns bem conhecidos, como os desenhos
dos discursos sociais sobre arte, feminilidade, beleza, sexualidade, erotismo, a carváo produzidos nos EUA, em sua maioria dedicados á captaEáo de
mentalidade burguesa, crítica aos valores ocidentais, etc. Tal tradiEáo corpos masculinos, revelando um vigor, uma forEa expressiva que a afastam
encontrará ecos renovados nas obras feministas dos anos r96o e em muitas completamente de clualquer atribuiEáo de uma "arte feminina". É consenso na
artistas contemporáneas, como Orlan, Cindy Sherman, só para citar algumas historiografia que a contundéncia de tais obras esmorece em seu estágio em
bem conhecidas. E as artistas brasileiras: participaram elas desse processo Paris, durante os anos r9zo, quando teria se "academicizado", realizado um
de apropriaEáo dos nus femininos como um campo visual, discursivo novo, "retorno á ordem pessoal". Muito mais do que uma consequéncia de disturbios
aberto ás mulheresl De que modo) em sua vida pessoal,'7 essa transformaEáo seria advinda das condigóes com que

190
I9I
viaja ao exterior, como Pensionista do Estado de Sáo Paulo, órgáo conservador; Marie Laurencin, de uma feminilidade típica, nem de Suzanne Valadon de um
ou ainda do contexto com que se depara em Paris, no qual os ímpetos das olhar masculino internalizado e nem de Emilie Charmy, que buscava afirmar
vanguardas da década anterior haviam se arrefecido no entre-guerras. um co{po feminino como sujeito dos próprios prazeres. Certamente, a tela de
É verdade que as obras pictóricas desse período sáo mais comedid.as. No Tarsila encontra-se muito mais próxima aos apelos do primitivismo, que ela
entanto, seus desenhos, sob guarda do Instituto de Estudos Brasileiros, indicam conhecia de perto por sua estadia prolongada em Paris. Em sua obra, o corpo
uma pesquisa constante acerca da representaEáo do corpo, uma dedicaEáo tenaz objetificado é propositalmente distorcido, evita qualquer tipo de evocaEáo de
em aprimorar aspectos técnicos, a exercitar-se nas variadas dimensóes da linha, um olhar contemplativo, ao invés de um corpo feminino idealizado mediante
experimentar diversos tipos de energia do traEo. Ela procura, ora uma captaEáo as convenEóes tradicionais, percebe-se a mama vigorosa que pende, os lábios
rápida ou concisa, outras vezes vagarosa e detalhada do corpo em movimento, exageradamente exacerbados, os pés e as máos ostensivamente volumosos,
assim como experimenta variadas maneiras de ocupar o desenho do corpo sob e um rosto estilizado no qual um atributo de feminilidade essencial está
o papel.'8 De meu ponto de vista, no entanto, as imagens novamente resistem ausente, os cabelos. Trata-se de uma obra que conscientemente aproxima-se
a serem reduzidas a meros exercícios escolares. A dimensáo erótica, e por isso dos procedimentos anti-idealistas evocados por certas obras de Pablo Picasso e,
insubordinada, ameaEadora, é geralmente pouco observada, silenciada ou até especialmente, Paula Monderson-Becker.
negada, no entanto ela se insinua, retorna e eclode. Como afirma Giulia Crippa, Tarsila estaria filiando-se as estratégias
A comparaEáo entre o primeiro desenho feito para A ntulher do pará com a desconstrutivas mobilizadas por algumas artistas de seu tempo, como Frida
obra final exibe com clareza que a artista fez questáo de rebaixar propositalmente Kah1o, Tamara Lempicka, entre ou[as que figuram os corpos de maneira
a carga erótica primeiramente imaginada.19 O corpo da prostituta na janela, que grotesca, afastando assim qualquer tipo de idealizaEáo que suscite contemplaEóes
inicialmente escancarava os pelos pubianos, na tela final os esconde sob uma voyerísticas em um observador presumidamente masculino.23 A Negra é :uma
vestimenta idealizada. Em Anita, a dimensáo erótica que pulsava nos primeiros obra paradigmática dos sentidos, das buscas, das desconstruEóes das vanguardas
trabalhos, agora se manifesta especialmente nos cadernos privados; em alguns de entáo, cuja importáncia é ainda maior certamente por ter sido feita por uma
casos a artista deliberadamente opta por transpó-los para suas obras finais, em artista oriunda de um país náo central, que transforma sua condigáo em matéria
telas que hoje circulam no mercado ou estáo presentes em coleEóes privadas. É plástica invenüva. Trata-se de uma conquista universal realizada por sujeitos que
importante frisar que, no entanto, as pinturas mais conhecidas desse período somam duas marcas negativas em sua origem: pelo local de nascimento e pelo
sáo justamente aquelas em que tal carga erótica encontra-se freada, como por sexo com que sáo definidos.
exemplo em seu nu Puntas, de caráter religioso, ou na já mencionada Mulher No entanto, é importante ressaltar que tanto no caso de Anita quanto no
do Pará., que de prostituta tornou-se um símbolo nacionalista socialmente caso de Tarsila, as obras mais ousadas do ponto de vista plástico, aquelas em
palatáve1.2o Mas em seus cadernos íntimos os co{pos femininos falam outras
que o corpo torna-se paco de batalhas de ordem moral, sexual, histórica, social
coisas, e estáo 1á, distantes dos olhares públicos. etc. sáo justamente aquelas que se dedicam a representar corpos dos "outros".
fá Tarsila do Amaral pintou diversos nus ao longo dos anos 20, desde os Ou seja, sáo imagens de modelos pagos (ou pagas) para serem registrados (as),
primeiros realizados na Académia fulian,zI até as obras emblemáticas, como ou de uma "mulher doPará", em que a localizaEáo geográfica torna-a um outro
A Negra, Abaporu e Antropofogla. A Negra é uma obra monumental, síntese espacial, bem como socialmente determinado, como a prostituta aprendida na
perfeita de um léxico cubista internacional, ainda que de rnatrizfrancesa, com janela. No caso de Tarsila isso é mais evidente, sua imagem mais ousada é
um tema nacional candente, como era o da heranEa da escravidáo. Seguindo os justamente aquela em que retrata uma negra que trabalhava para sua família,
debates da vanguarda que certamente acompanhava de dentro, Tarsila apropria-
um souvenir da escraüdáo.
se á sua maneira da tradigáo dos nus femininos, e, a partir do ensinamento Diferindo tompletamente da radicalidade de Paula Becker, ou das
dos mestres da vanguarda, faz do género um território de afirmagáo da mexicanas Frida Kahlo'4 e Maria Izquierdo,z5 em seus auto-retratos Tarsila
modernidade periférica, inserindo-a assim num diálogo e numa dimensáo do Amaral optou constantemente por frgurar como uma mulher elegante,
internacional.22 Sua obra náo pode ser identificada nem com a posiEáo de alinhada, vestida com a ultima moda em Paris (Paul Poiret), destacando assim

t92
r93
seu caráter cosmopolita, branco, elitista, e finalmente, sua beleza. Esse mesmo Broude and Mary Ganard eds). New York, Harper & Row Publishers, ry82, p. 294.
teor encontra-se nas fotografias freqüentemente utilizadas para "provar" 3 Por uma questáo de limite de páginas e de sobrecarga de peso das imagens, nem
tais elementos, as quais, no entanto, muito mais do que registros de fatos, todas as que seráo mencionadas seráo incluídas no presente texto. Mas caso o mesmo seja
aceito, todas as imagens e artistas estaráo presentes no Power point.
devem ser vistas como elementos agenciados pela própria artista em sua auto-
representaEáo púb1ica.'6 Cabe notar que as fotografias tiradas por f. B. Duarte, 4 PERRY, Glll. Women ArtisB and The Parísian Avant-Garde. Manchester/New York:
Manchester University Press, r995.
hoje salvaguardadas pela Biblioteca Municipal Mário de Andrade, reiteram
5 BETTERNTON, Rosemary. "How do women look) The female nude in the work of
elementos presentes no auto-retrato de 1923, como o cabelo preso, em coque, Suzanne Valadon", ln: Feminíst Rwiew, nt9, ry85.
a o rosto ovalado, os lábios salientes, agora ressaltados, em imagens compostas 6 Sobre Marie Laurencin, consultar'. Mane Laurenan, ú8j-ry56. Paris, Musée
trés anos depois, em 1926.27 Marmottan Monet, zor3.
Assim, em seus auto-retratos, Tarsila jamais pode abrir máo de uma certa 7 POLLOCK, Griselda, op cit.
auto-idealizaEáo nutrida por valores bastante convencionais de seu circuito
8 BAUDETAIRE, Charles. Sobre a Modemid.ade. Rio de faneiro: Paz eTerra, 1996.
social.'S As suas obras mais ousadas do ponto de vista das representagóes
9 WOLFF, |anet. "The Inüsible Fláneuse. Women and the Literature of Modernity",
ln: Theory, Culture Q Soc'r.ety, November 1985.
do género, sáo justamente os nus femininos em que representa o corpo dos ro Vale notar que Emilie Charmy fazia parte do círculo de amigas ínümas de Colette,
"outros", ou melhor "das outras"; a outridade aqui, náo baseia-se, como no caso escritora que na época destacou-se por dotar suas heroínas fictícias de uma vida sexual
da Franga, em uma alteridade de primordialmente de género, mas sim de classe intencionalmente liwe, cujo projeto literário propunha um novo tipo de suieito feminino,
e de raga. Seguindo as propostas de Pollock, tais obras estruturam-se mediante modemo, desafiador das imagens cristalizadas e contidas na polaridade "anio do lar" x
histérica . Ver: KRISTEVA, |ulia. El Genio Femenino. Colette.Buenos Aires/Barcelona:
relaEóes clue articulam género e poder, género e classe de modo inextricável
Paidós, zoo3.
e náo hierárquico, tais termos traduzem realidades históricas simultáneas que
rr A esse respeito ler: DUNCAN, Carol. "Virility and Domination in Early Twenthieth-
se moldam mutuamente. Assim, revisitar tais imagens obriga-nos a mergulhar Century Vanguard Painting", ln Feminism and Art Hístory. Q1.+estíoningthe Litany (Nonna
nesse nosso universo complexo e contraditório em que a afirmagáo de um sujeito Broude and MaryGarrard eds). New York, Harper & Row Publishers, 1982.
feminino como autor, e como autor moderno, traz consigo o reposicionamento 12 RADYCKI, Diane. "Pictures of Flesh': Modersohn-Becker and the Nude", Women's
de outros corpos femininos, de outras classes sociais e outras cores, como Art Joumal,2oo9, p. ro.
territórios de exploragáo da nossa vanguarda. O modernismo brasileiro t3 Há diversos textos dedicados a participagáo ínfima, ou pouco reconhecida, das
mulheres na vanguarda francesa. Em especial destaco: BONNET, Marie-|o. Les Femmes
demonstra aqui alguns de seus limites, os quais náo passaram desapercebidos
Artístus dans les Avant-Gardes. Paris: Odile |acob, zoo6; GONNARD, Caüerine &
por um de seus principais mentores, Mário de Andrade que ao fazer o balanEo LEBOVICI, Élisabeth. Femmes Artistus/Artistes FÜrnmes, París de ú8o d nos jours.Paris :
do movimento, em 1942, esclarecia seus condicionantes sociais: Éditions Hazan, zoo7.
14 MICELI, Sergío. Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artísúco
(...) O movimento modernista era nitidamente aristocrático. Pelo em Sdo Paulo. Sáo Paulo: Companhia das Letras, zoo3.
seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao 15 WILLIAMS, RAYMOND. "A fragáo Blomsburry", In'. Revista Plural. Revista dos alunos
de pós-grad.uagdo em Socíologia, FFLCH-USP, Sáo Paulo, vol 6, rffi semestre de 1999.
extremo, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu caráter
16 Penso na contribuiEáo das artistas russas, como Sonia Delaunay, Alexandra Exter,
embrabecido, pela sua gratuidade anüpopular, pelo seu pragmatismo
Natalia Goncharova, etc., as quais por meio de suas pesquisas em artes aplicadas ampliaram
prepotente, era uma aristocracia do espírito.29 o debate sobre as linguagens artísticas legítimas, promovendo uma revalorizaEáo de
modalidades outrora inferiorizadas como a moda, a decoragáo, o design etc. A esse respeito
consultar BoNNET, op cir; GONNARD &LEBoNoYlC, op.cit e BoWLT, fohn e CRUTT,
NOTAS Matthew (orgs). Arnazons of the Avant-Garge.Berlirr,'. Deutsche Guggenheim, ry99lzooo.
r POLLOCK, Griselda. "Modernity and Spaces of Femininity" In'. Visíon and Dffirence: t7 Nesse sentido sigo a tendéncia de Tadeu Chiarelli em evitar tomar a críüca de Lobato
Feruínity, Feminisrn and the Hístories o/Art. Londres: Routledge, r9g4,pg. 54. realizada em tgt7 como a causa das transformagóes estilísticas. Ao contrário trata-se
z DUNCAN, Carol. "Virility and Domination in Early Twenthieth-Century de colocar a artista no diálogo com a produgáo de seu tempo, como sujeito de escolhas
Vanguard Painting", 1n'. Feminism and Art Hístory. Questioning the Litany (Norma estéticas distintas daquelas que seráo valorizadas por seus companheiros de geragáo. Ver:

194
f95
CHIARELLI, Tadeu. "Tropical, de Anit¿ Malfatti: reorientando uma velha qtrcstÁo". Um
mod.emismo queveío d.epoís. Sáo Paulo, Ed Alameda, zotz.Paratxna visualizaEáo de diversas
Ia figura delafemmefotole en la pintura de fuan Manuel
obras da artista, consultar: htrp://www.fapesp.br/publicacoes/anita/apresentacao.htrnl Blanes. Carnalidad, deseo y temor
18 A esse respeito consultar: SIMIONI, Ana Paula C.; LIMA, Ana Paula F. C, ELLUF,
Lygia. Cad,emos de desenho: Anita MalfettL Campinas: Ed. UNICAMP/IMESP, zorz.
19 A esse respeito consultar também a dissertaEáo de mestrado de Roberta Paredes Valin. fosr Corrrño
Cad.emos-diá.ríos d.e Anita Malfatti: uma trajetóia desenhada em Pais. zor5. Dissertagáo
UM, Unucuev
(Mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras) - Instituto de Estudos Brasileiros, por
mim orientada.
zo Sobre a Mulher do Pará como símbolo nacionai ler: BATISTA, Marta Rossetti. Ar.i¿a "Era una mujer, y tentadora como 1o son todas las muieres (que tentarian
Malfatti no tempo e no espaQo. Sáo Paulo: Ed 7/FAPESP , zoo6, pp.l5o-r.
a Dios en el cielo, si es que existe, y al diablo en el infiemo), parecía querer
?,t A esse respeito ler: AMARAL, Araq. Thrsila do Amaral, sua obra, seutempo.Sáo Paulo
provocar a un mismo tiempo el deseo y el peligro".r
Perspectiva, ry7 $ffiEdl; PITTA, Femanda. "Tarsila do AmaraL Academia n.4, t9zz, Blog
do Instituto Moreira Sales, zorr. Link http://www.blogdoims.com.br/ims/tarsila-do- "...por más que el hombre vigile la conservación de la integridad de las
amaral- academ ia-n-4 - r 9 z z -%"8 z%"8 o%o 9 1 -por-fernanda-pitta /. personas que le pertenecen, nunca puede sofocar los secretos asomos de una
22 GIUNTA, Andrea. "Estrategias de la modernidad en América Latina". In: Escribir las carne que empieza a rebelarse".'
Irnúgenes. Buenos Aires: Siglo )O(I, zorr.
2) CRIPPA, Giulia. "O grotesco como estratégica de afirmagáo da produqáo pictórica
feminina" ln: Revístade Estudos Feminísta.s, vol r9, n.z Florianópolis. Sobre a importáncia do
grostesco como estratégia feminista num contexto global ler: WOLF, f anet. "Recuperando
a corpoalidade. Feminismo e políüca do corpo", In: MACEDO, Ana Gabriela e RAYNER, El retrato de la "flor carnívora"
Francesca (orgsl. Género, Cultura Vsual e Performance. Antolog¡a Crítica. Minho, ll Retrato de Doñq Carlota Ferreira de Regúnaga se ha transformado en un
Universidade do Minho, zorr. l-¡ auténtico ícono del arte uruguayo de todos los tiempos y es considerada
24 Sobre a utilizaEáo complexa da representagáo do próprio corpo como a construEáo de como una de las obras más importantes del arte latinoamericano de siglo XIX.
um eu artístico feminino, nas vanguardas mexicanas ler: MAYAYO, Patricia. Frida Kahlo.
Su embrujo se ha cernido sobre varios artistas uruguayos. "Carlota Ferrería se
Contra El Mito. Madrid: Ediciones Cátedra, zoo8; LOMAS, David "Lenguajes corporales:
Kahlo y la imaginería médica", In: CORDERO, Karen & SÁENS, Inda (compiladoras). ha transformado en una especie de ícono de la pintura nacional, en una imagen
Crítica Feminista en la Tboría e Historia del Arte. Ciudad de Mexico: Universidad intertextual que ha dado lugar a toda una serie de variaciones sobre e1 tema por
Iberoamericana, zoo7. los artistas contemporáneos".3 En el catálogo de la gran exposición sobre la obra
zS Sobre o modo com que Maria Izquierdo $9oz-t95) reiterpreta de maneira original de fuan Manuel Blanes realizada en el Teatro Solís en rg4r, se comentó que
os nus ocidentais,ler: ZAVAIA, Adriana "María Izquierdo y Rufino Tamayo: a propósito
"No iría aTazaga con un retrato de Ingres".a Esta afirmación revalorizaba el
de Deudas e Influencias" In: MIRKIN, Diana (compiladoral: Codo a Codó: parejas d.e artistas
gran valor de esta efigie en el marco de la retratística universal.
en Ménco" . Mexico: Ciudad de Mexico, zor), pp. ztz-2t6.
zG Sobre o uso consciente e deliberado das fotografias como estratégias de construqáo de Pero este artefacto visual no debe verse simplemente como el retrato de
um eu, ler MAYAYO, op cit. una señora de la época dotado de una gran calidad formal. El hechizo que
27 De maneira ambígua, dado que o autor acaba por reiterar uma suposta "beleza ha ejercido en los artistas y en el público sin duda incluye sus características
natural e inata" de Tarsila do Amaral, essa questáo do uso da fotograña para uma auto- formales pero las trasciende. Comenzaremos citando in extenso un comentario
afirmaEáo propositiva da artista, já foi apontada por CALIL, Carlos Augusto. "A mais linda
que sobre esta obra realizó Carlos Herrera Mac Clean eL 1942. Allí efectuó
paulista do mundo", Rrvista d.a Biblíoteca Móio d,e Andrade, SáoPaulo, 2oo8,n.64.
z8 O caráter eiitista e cosmopolita desses auto-retratos foram anteriormente analisados interesantes observaciones clue iban más allá de los aspectos denotativos del
por DURAND, )osé Carlos. Arte, Pnvílégío e Distíngño. Sáo Paulo: Ed Perspectiva, zoog (ro cuadro siendo claves para comprender su significado.
ediEáo em i989), bem como por Sergio Micili em Nacional É.strargeiro, op. cit.
29 DE ANDRADE, Mário. "O movimento modemista", In: Aspectos da Literatura Retrato de una extraña y perturbadora beldad de aquellos días, de
Brasileira. Sáo Paulo: Martins Editora, ry78,p.46. fuego el negro mirar; erizada de rulos, llenando la frente, la capitosa

rg6 Í97

Você também pode gostar