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4. UMA NACAO EM BUSCA DE CONCEITO 0 O Brasil ainda nao é propriamente uma nacao. Pode ser um Estado nacional, no sentido de um aparelho es- tatal organizado, abrangente e forte. que acomoda, con- trola ou dinamiza tanto estados c regides como grupos raciais ¢ classes sociais.. Mas.as desigualdades entre as unidades administrativas e os segmentos sociais, que compoem.a sociedade, sao de tal monta que seria dificil dizer que o todo ¢ uma:expressao razodvel das partes — se admitimos que o todo pode ser uma-expressao na qual as partes também se realizam e desenvolvem. Os estados e as ragides, por um lado, e os grupos @ a5 Classes, por outro, vistos em conjunto € em suas re- lagdes miituas reais, apresentam-se como um. conglome- rado heteragéneo, contraditério, disparatado..O.que tem side-um dilema brasileiro fimdamental, ao longo de Im- perio e da Republica, continua a ser um dilema do pre- sente: o Brasil se revela uma vasta desarticulacao. O to- do parece uma expressao diversa, estranha, alheia as par- tes. E estas permanccem fragmentadas, dissociadas; reiterando-se aqui ou ld, ontem ou hoje, como que ex- traviadas, em busca de seu lugar. E verdade que o Brasil esta simbolizado na lingua, hino, bandeira, mveda, mercado, Constituigao, histéria, ae OCTAMIO IANNI santos, herdis, monumentos, rainas. HA momentos em que opais parece umanacao compreendida comoumtodoem movimento € transfurmagao. Mas sao freqientes as'con- junturas em que se revelam as disparidades inerentes as diversidades dos estados e regides, dos grupos raciais € classes sociais. Acontece que as forgas da dispersao fre- qlientemente se impGem aquelas que atuam no sentido da integracao. As mesmas forcas que predominam no ambi- todo Estado, conferindo-lhe a capacidade de controlat modar e dinamizar, reiteram continuamente as di dadese os desencontros que: ‘promovemia des Os doa se iGarem reciprocamente, formando um to- do superior,no. qual também-se tornam-superiores. Ac contrario, as relaches entre eles, diretamente ou pela me- diacao do aparelho estatal, revelam desigualdades per- manentes, muitas vezes crescentes. E verdade que ha po- liticas adotadas pelo governo central com objetivos ae nais, destinadas a estabilizar ou reduzir as desigualda- des sociais, econdmicas, politicas e culturais. A Inspeta- tia de Obras contra as Secas, o DNOCS e a SUDENE, para o nordeste, assim como a SPVEA € a SUDAM, pa- ra a Amazinia, expressam muito bem 0 intuito de esta- bilizar ou reduzir algumas desigualdades. Mas 0 que ocur- re é outra coisa. Essas ¢ outras organizacties criadas pelo poder central consolidam ou mesmo acentuam as desi- gualdades. A despeito de parecerem débeis ow inefica- zes, O que se constata @ que essas organizacdes sao em- polgadas por forcas mais poderosas, que as esvaziam ou instrumentalizam. Algo semelhante ocorre com a SPI, ini- cialmente, e a FUNAI, depois. Sao neutralizados pelas forcas interessadas nas terras indigenas, como reserva de: mercado ou bases de atividades extrativas, mineradoras, pecudrias ou agricolas. Forcas que também se interessam pela forca de trabalho indigena, mesmo quando falam na “emancipacao"™ do in Tsto é, os pracessos ecandmi- cos, politics € culturais que expressam _o jogo das for- as sociais predaminanies no Ambito de saciedade, ¢ in- lacao. Sstados ¢ as rn mo- (IMA NACAO EM BUSCA DE CONCEITO 379: fluentes no aparelho estatal, levam na sua onda as orga nizagoes € as suas int ee Os grupos raciais € as. Culados de modo a se beneficiarem rec} m 1m todo superior, no qual também se tornam su- periores.. Ao contrario, as suas relacdes rectprocas, dire- “tas ou intermediadas pelo aparelho estatal, reiteram, re- criam ou mesmo aprofundam as desigualdades. E dbvio que ha freqiientes-rearranjas, no jogo dos grupos raciais, dentre os quais encontram-se negros, Indios, brancos dé diversas procedéncias nacionais. Sem esquecer que es- ses grupos sé inserem, em distintas proporcies, nao sd em classes sociais, mas também se distribuem em dife- rentes estados e regides. Inclusive, é certo que ha freqtien- tes rearranjos no jogo das classes sociais, em suas rela- ges reciprocas ¢ em suas distribui¢Ges relativas nos es- pacos dos estados e regiées. Criaram-se institutos juridico- politicos, tais como-a Consolidacao das Leis do Trabalho (CLT), 0 Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) e todo o sistema previdencidrio, de modo a atender reivindicacdes de boa parte dos grupos e classes que compoem a maio- ria da populacao. Em outros termos, 0 SPI ea FUNAI fazem parte das politicas destinadas a acomodar setores sociais, neste caso “‘indios’’ ¢ “brancos"’. Também a Lei ‘Afonso Arinos de 1951 e 0 patagrafo 42 do artigo 5° da Constituicao de 1988, proibindo e punindo o preconcei- to racial, entram nessa problematica. No ambito da cul- tura, desde o sistema de ensino aos: meios de:comunica- 30 de massas, desde o futebol ao carnaval, os governan- tes e os funciondrios da burocracia estatal parecem em- penhados em fazer algo no sentido de controlar, acomo- dar-ou dinamizar as relacdes entre os grupos, as classes eo Estado, de mi aconformar a nacdo. Mas 6 que ocor- re é otitra coisa. /Tanto os institutos juridico-pliticos co- mo o sistema de ensino e os meios de comunicacao de massas nao reduzem as disparidades que caracterizam a situacao e as tealacSes dos grupos e classes. Ha foreas sociais mais poderosas, empo! igando boa 150 OCTAVIO IANNI parte dos meios disponiveis e fazendo com quea imagem de uma vasta desarticulacao predomine sobre a hipdétese da integracao. Isto é, os'grupos e. . pressam como pove, compreendida como-uma coletivida- de-de cidadaos. Ao co i ie. i i de uma coletividade de trabalhadores. Nao parece uma na- $40.6 pais em que a popula nda nao se tornou povo. A cidadania continua ser um elo crucial dessa eed _tia. Coloca varios aspectos da questao. Diz respeito a Go- m0 0 cidad4o aparece, ou nde aparece, na fisionomia da nagao. Em 1823, os constituintes se perguntavam como de- finir “brasileiro” e “cidadao brasileiro’, jA que a populacao s¢ compunha de negros escravose livres, trazidos da Africa € nascidos no pais, indios arredios, administrados e assi- milados, brancos pobres e brancos ricos, analfabetos e al- fabetizados, cristaos e fetichistas. Em 1891, os constituin- tes decidem que todos os estrangeiros (imigrantes euro- peus de diferentes procedéncias nacionais, africanos de distintas nacSes etc.) que nao declarassem nada em con- trdtio, no prazo de seis meses, passariam a ser considera- dos brasileiros — nao propriamente cidadaos brasileiros. Em 1934, os constituintes se perguntam sobre os imigran- tes europeus, preocupados com as suas iddias politicas (sin- dicalistas, anarquistas, socialistas, comunistas e outras), interessados em garantir a ordem social, o status quo. Em 1988, os constituintes sao obrigados a examinar aspectos importantes da cidadania doindio'é do negro. Ao fim do século XX, portanto, a sociedade brasileira mostra queain- da nao equacionow adequadamente o problema racial, se tomarmos em conta a situacdo teal do que poderiamos de- nominar nacionalidades indigenas e afro-brasileiras, Sob 0 aspecto social, racial, regional e cultural, entre outros, continua em aberto a questao nacional. Em pers- Pectiva ampla, a histéria do Brasil pode ser vista como ade uma nacdo em processo, 4 procura da sua fisiono- mia. E como se estivesse espalhada no espaco, dispersa no tempo, buscando conformar-se ao nome, encontrar- sé com a prépria imagem, transformar-se em conceito.|

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