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4, HISTORIAS DO BRASIL MODERNO E possivel verificar que uma parte ampla da produ- ao intelectual brasileira do seculo XX esta empenhada em compreender as condicdes de modernizagao do pats. | Desde as décadas finais do século XIX tornou-se cada vez evidente.a preocupacao com as implicacdes sociais, econdmicas, politicas’e culturais da extincdo do regime de trabalho escravo e do término de regime monarqui- co, Tanto os.que lutavam contra como 0s que eram a fa- vor dos movimentos abolicionista ¢ republicano pensa- vam Ou pressentiam, queriam ou temiam as possiveis transformagoes.! A idéia de Brasil Moderno esta presente, ou umplici- ta, em escritos.de Silvio Romero, José Verissimo, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto Torres, Euclides da Cunha, Machado de Assis. Raul Pompéia, Lima Barreto.e mui- tos outros. Compreende também movimentos sociais e partidos politicos, além de correntes de opiniao puiblica, Ts quais Se inscrevem catolicos, liberais, democratas, so- cialistas, anarquistas.¢ outros. Depois, nas décadas de 20 e 30, torna-se muito mais explicita, com Oliveira Viana; ‘Vicente Licinio Cardoso, Jackson de Figueiredo, Manoel Bomfim, Paulo Prado, Azevedo Amaral, Francisco Cam- HISTORIAS DO BRASIL MODERNO s 5, Gilberto Freyre, Sergio Bi jue de Holanda, Roberto EP Simonsen; Caio Prado finier, Astroildo Pereira e ou- tros. Nao ha duvida, essa problematica esta no horizon- te de Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Gracilia- no Ramos, Portinari, Villa-Lobos e assim por diante. Em seguida, sempre, continua a desafiar o pensamento bra- sileiro nos escritos de José Hondério Rodrigues, Romulo de Almeida, Celso Furtado, Guerreiro Ramos, Nélson Werneck Sodré, Hélio Jaguaribe, Raymundo Faoro, An- tonio Candido, Florestan Fernandes e muitos outros. Nao se trata de imaginar que todos pretendem o futuro, ou © presente aperfeicoado. Sao muiltiplas e contraditérias. as_interpretacSes e diretrizes de uns e outros. Trata-se eeu um amplo leque, no qualse encontra aha ee preferem corrigir 0 presente pelos parametros passados, B recnceaciia 5 wmelarniaceore uc Ao mesmo tempo, a marcha da sociedade continua actiar e recriar novas realidades. A sociedade e a econo- mia, a politica e a cultura, o campo ea cidade continuam a transformar-se. Em fins do ss lo XIX e comecos do XX a AmazGnia transforma-se no milagre da borracha. Simultaneamente, a economia cafeeira expande-se em di- versas dreas do centro-oeste. E a economia ecu erees espalha-se por outras regides, além do nordeste; seem Sao Paulo. Gaetan seis oar tindenie tor econémicos, acompanhados de mudangas sociais, urba- 11. Para 0 Balango critico da histiria e das tendéncias do pensamento ‘rasileiro, consular: joke Cruz Costa, Coniribuigio a Wistéria das ladies no Bra: ail (O Desenvolvimento da Filosofia no Brasil e-a Evolucdo Histérica Nacia- nal), cit; Dante Moreira Leite, O Caniter Nacional Brasiiei7o, 2* ed,, Pionetra Editora, Sio Paulo, 1969; Carlos Guitherme Mota, idevtogix de Cuttune Brasttei- m, 34 ed., Editora Atica, Sao Paulo, 1977; Joao Camila de Oliveira Torres, in- serpretactin da Renlidade Brasiteira, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janei- ro, 1966; Nélson Wemeck Sodré, A Ideplagis do Coloniatssme, 2° ed., Editora ‘Civilizacdo Brasileira, Rio de Janeiro, 1965; Guerreiro Ramos, A Crise do Poder no Brasti, Zahar Editores, Kio de janeiro, 1961; Florestan Fernandes; A Sociola- gia no Brasil, Editora Vozes, Petrépolis, 1977; Leandro Konder, A Derrota da Dislétics (A RecepoSo das Idéias de Marx no Brasil, até 0 Cameo dos Anos ‘Teirita), Editora Campus, Rio-de fanciro, 1988; Reginalda Moraes, Ricardo An- tunes ¢ Vera B. Ferrante (orgs.), Inteligencia Brasileira, Editora Brasiliense, So Pauio, 1996; Antonio Paim, Histéna das Idéias Filesdficas no Brasil, Editora da Universidade de 530 Paulo, S30 Panla, 1974. 36 OCTAMO TANNI nizacaa, surtos de industrializacao, desenvolvimento de classes sociais, desafios ¢ propostas politicas, criagdes cul- turais. Aas poucos, diversifica-se o leque do debate cien- tifico, filoséfico ¢ artistico. Multiplicam-se centros de es- tudos universitarios e independentes da academia, pri- vados e ptiblicos. Além do Rio de Janeiro, também Sao Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Belém e outras cidades desenvolvem novas atividades cul- turais. Multiplicam-se nucleos intelectuais ¢ politicos preo- cupados com a tradicao e'a modernidade, procurando ex- phcar o presente, exorcizar o passado e imaginar o futuro, Tanto no nivel do pensamento como no das prdticas de governantes e grupos sociais mais poderosos, observa- se impaciéncia, pressa, sofreguidao. Algumas réalizagdes famosas dao uma idéia desse clima. A construcao da ci- dade de Brasilia pretende simbolizar o Brasil Moderna, representa o coroamento de uma larga histéria-de inten- tos de tornaro Brasil contemporéneo do seu tempo. Uma capital nova, feita sob medida, lancada em tracos auda- ciosos, nas praporgdes do-século XXI — e povoada pela mesma humanidade que se pretendia esquecer ou exor- cizar. Algo semelhante havia ocorrido na época do apo- geu da borracha amazénica. A ferrovia Madeira-Mamoré, construida em plena floresta em fins do século XIX e co- mecos do XX, simboliza muito bem a facanha da auda- cia. No mesmo ano em que se inaugura, depois de um altissimo custo humano e material, o ciclo da borracha entra em colapso. Sobra a sensacao de absurdo atraves- sando a biografia e a historia. “O que eu vim fazer aqui!... Qual a razao de tados esses mortos internacionais que renascem na bulha da locomo- tiva ¢ vém_com seus olhinhos de chinas, de portugueses, bolivianos, barbadianns, itaHianos, arabes, gregos, vindos a troco de libra? Tudo quanto era nariz e pele diferente andou por aqui deitando com uma febrinha na boca-da- noite pra amanhecer no nunca mais." 12. Marcio Souza, Mad Maria, romance, 3? ed., Editora Marco Zero, Porto ‘Alegre, 1985, pp. 346-347. Consultar também Francisco Foo! Hardman, Trem Faniasmr (A Modernidade na Selva). Companhia das Letras, S30 Paula, 1988, especialmente caps. 5 © 6 HISTORIAS DO BRASH. MODERN ¥ Em todos os lugares, combina-se o moderno maierial com: o antoritario do mando ¢ desmando. Como na Madeira- Mamoré, em Canudos, Contestado, Revolta da Vacina, ocupacées de terras, greves operdrias, protestos contra desmandos. Uma historia na qual a modernidade esta mesclada no caleidoscépio dos pretéritos, dos “ciclos’” desencontrades de tempos e lugares, como se 0 presen- te fosse um depésito arqueolégico de épocas e regides. Todos, a despeito das diversidades de perspectivas @ propostas, pensam o Brasil Moderno, o capitalismo na- ional, 0 capitalismo associado, a industrializacao, o pla- fejamento governamental, a reforma do sistema de ensi- no, a reforma agraria, a institucionalizacao de garantias. democrdlicas, a superacao da preguica pelo trabalho e da luxiria pelo ascetismo, a mudanca das instituicdes e ati- tudes, a reversdo das expectativas, a revolucao politica, a revolugao social. Em distintas gradages, as perspecti- vas de uns e outros abrem-se em um leque bastante. am- plo, compreendendo propostas de cunho liberal, libe- ral-democratico, corporativo, fascista, socialista e outras. Mas vale a pena observar que esse vasto movimento intelectual — polarizado pela idéia de madernizacao-con- servadora, autoritaria, demacratica ou socialista — foi acompanhado de um deslocamento do centro da vida na- cional. Entre fins do século XIX ¢ a primeira metade do XX, o centro da vida nacional deslocou-se do nordeste, simbolicamente Recife, para o centro-sul, simbolicamente Sao Paulo. A chamada Escola do Recife expressa bastan- te bem uma epoca de apogeu € crise do predominio do nordeste na fisionomia do Estado nacional. Em certa me= dida, a realizacao da Semana de Arte Moderna em Sao Paulo, em 1922, simboliza a emergéncia de outras inquie- tacdes e propostas, que passarao a predominar. Maso deslocamento nao é nem rapido nem drdstico. Alguns es- critos revelam duvidas, ambigiidades, vacilacoes, falta de clareza. Foi complicado esse processo de deslocamento do centro da vida nacional, desde o nordeste até o.centro- sul, simbolizado por Recife e Sav_Paulo. 38 OCTAMIO IANNT Em A Estética da Vida, publicado em 1920, Graga Ara- nha esta procurando equacionar os novos tempos. Um membro da Escola do Recife que se defronta com as po- larizagoes emergentes na sociedade nacional, procuran- do descortinar o presente e exorcizar © passado, ““Depois de ter sido uma nacao paradoxalmente Classica, @ No extremo da oposicao 4 cultura intelec- . Ha um pragmatismo que procura suplantar todo'a intelectualismo. Ha uma filosofia de acao pratica, que di- rige a onergia brasileira paraos trabalhos fisicos da posse da terra e para a acumulacdo da riqueza. Nesse sentido 0 Brasil se americaniza e se desintegra do cosmos latino... Eis 0 paradoxo do governo brasileiro: homens nao pre- parados paraa funcao de governar uma nacao de destino industrial governam essa nacdo... Sio Paulo, felizmente, € dirigido por uma elite de fazendeiros, agricultores e in- dustriais. Os homens antigos.n4o sao estranhos 4 indus- tria, ¢ essa perfeita conformidade entre a capacidade,'a competincia dos governantes e o-destino social do Esta- do € que mantém 0 progresso. des 5. Paulo, o menos para- doxal dos Estados brasileires.”"5 Em Retrato do Brasil, publicado em 1928, Paulo Pra- do-est4 procurando equacionar os novos tempos. Um in- telectual paulista, membro de uma familia tradicional de negécios e polttica, defrontando-se com as polarizacoes emergentes na sociedade nacional. Esta ansioso por cons- truir.o futuro. Para isso, dedica-se aum vasto exorcismo do passado “'Trés séculos tinham trazido o pais a essa situagao lamen- tdvel. A Colénia, ao iniciar-se o século de sua indepen- déncia, era um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mmantendo-se apenas pelos lacos ténues da lingua e do cul- to... Populacao sem nome... Pais pobre sem o auxilio hu- mano, ou arruinado pela exploracac apressada, tumultud- 13, Graga Aranha, A Estttian fa | Vida, Livraria Gamier, Rio de Janeiro, 1920, pp. 178-179 e 188 IISTORIAS DO BRASIL MODERNG ay riae incompetente de suas riquezas minerais; cultura agri- cola ¢ pastoril limitada e atrasada, nado. suspeitando das formidaveis possibilidades das suas aguas, das suas ma- tas, dos seus campos ¢ praias; povoadores mesticados, samindo-se o indio diante do europeu edo negro, para a-tirania nos centros litornees do mulato eda mulata; dima amolecedor de energias, préprio para.a ‘vida de ba- lanco': hipertrofia do patriotismo indolente que se con- tentava em admirar as belezes naturais, ‘as mais extraor- dinarias do mundo’, como se fossem obras do homem. 1 Brasil, de fato, ndo progride; vive e cresce, como cres- ce ¢ vive uma ¢rianca doente no lento desenvolvimento de um corpo mal organizado... Para tao grandes males parecem esgotadas as medicacSes da terapia corrente: & necessdrio cecorrer 4 cirurgia... A revolugao vird de mais longe e de mais fundo. Sera a afirmacdo inexoravel de que quando tudo esté errado, o melhor corretivo é 6 apaga- menia de tudo que foi maifeito.““* Note-se que todo esse panorama do passado ¢ 0 do “ou- tro” Brasil, daquele que se havia formado com matriz ne nordeste. A cmergente burguesia paulista estava impa- ciente, s6frega. Queria dar andamento aos seus interes- _ses, ampliar os seus espacos de mando, conferir outra lire¢ao aos assuntos nacionais, apresentando tuds isso como se fora uma urgéncia da salvacdo nacional. Algumas das ctividas e ambignidades desses e de ou- tros pensadores foram superadas, ou mesmo renovadas em outros termos, nos escritos de Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Roberto C. Simon- sen e€ Caio Prado Junior, entre outros. Elaboraram mais e melhor as questdes, os dilemas. Conseguiram reinter- pretar’a historia do pais, explicar o presente e descorti- nar algumas tendéncias futuras. Sao autores que inau- gram interpretacdes, codificam o conhecimento agumu- lado até entao, reinterpretam momentos cruciais.da his- 14. Paule Prado, Retmrto de Brasil (Ensaio sobre a Tristeza. Brasileira), Duprat-Mayenca, Sao Paulo, 1925, pp. 148-149, 200, 211 e 213, ao DCTAVIO IANNT téria, conférem aura cientifica as suas explicacdes, esta- belecem estilos de pensamento. Vale a pena atentar para os paralelismos nos escri- tos desses pensadores. Dedicam-se a interpretagdes da histéria, abarcando Colénia, Império'e Reptiblica. Pro- cuam continuidades e descontinuidades, de modo a com- preender as raizes prénimas e remotas do presente. E no- tavel.o interesse que todos revelam pelo Brasil Coldnia. La longe; estariam procurando os segredes. dos impas- ses ¢ das potencialidades com os quais se defrontaa na- Gao no século XX. Uma sintesé das interpretacSes desen- valvidas por esses autores se encontra nas seguintes li- vres: Ewolupao do Povo Brasileiro, de Oliveira Viana; Inter- pretapio do Brasil, de Gilberto Freyre;A Evolugao Industrial do Brasil, de Roberto C. Simonsen; Evolucio Politica do Bra- sil, de Caio Prado Juinior; e Raizes do Brasil, de Sergio Buar- que de Holanda. A despeito da énfase social, econdmi- ca, politica ow cultural, evidente em cada um, ¢mpenha- yam-se em apresentar explicagaes abrangentes, globali- zantes. E sugerem, ou mesmo apresentam explicitamente, as perspectivas presentes e provaveis da sociedade. Ca- da um a seu modo, todos se empenham em explicar as condigées ¢ as possibilidades do Brasil Moderno. Suas interpretacaes do Brasil tornam-se paradigma- ticas. Passam a ser referéncia constante no ensino € pes- quisa universitarios, nas atividades de partidos:e movi- mentos, nas direttizes de governantes, nas controvérsias da opiniao publica. A despeito das criticas possiveis, ou das lacunas reais, consolidam-se, institucionalizam-se. ‘Codificam muito do que uns e outros, grupos e classes, movimentos sociais e partidos politicos; adotam como va- lido, consideram fundamental. Depois de todo umvam- plo debate que atravessau décadas, quando se multipli- caram duvidas e ambigiidades, muitos tém a sensagao de que o pais encontrou a sua articulagao histérica, 0 seu perfil, o seu caminho. Conservadores, autoritarios, libe- fais, democratas ¢ socialistas jd tm av seu dispor um ts- HISTORIAS DO BRASIL MODERNO a quema basico, uma referéncia coerente. um paradigma para pensar e agir. Assim Oliveira Viana, Sergio Buar- que de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto C. Simonsen e Caid Prado Junior ad a aura de classicos. A interpretacao de Viana vem diretamente do aren SS ey a é brasileiro. Privi- legia a organizacdo e a atividade do Estado, conférindo- The um papel preeminente, "civilizador’™. Baseia-se no suposto de que a sociedade civil € débil, incapaz; que o povo nao esta cultural ¢ politicamente preparado para exercer um papel ativo nos negocios publicos. Precisa ser tutelado, auministrada por um poder estatal cada vez mais corporative, dinamico, modernizador. Essa inter- _ Pretacao no pensamento brasileiro-.em “setores empresariais, politicos, militares, jornali i: versitarios. A interpretagao de Gilberto Freyre vem do pensamen- to moderno europeu e norte-americano, onde se desta- eam Simmel.e Boas, entre outros. Privilegia as formas de sociabilidade e supera os equivocos que associam taca e cultura. Concentra-se na andlise de instituicdes e formas socials, tais como a familia patriarcal, as etiquetas sociais, 0s tipos sociais. Lida com os intersticios ou poros da so ciedade civil, tomande-os como expressdes suficientes desta. Focaliza a familia patriarcal coma se fosse a mi- niatura da sociedade, de tal modo que o patriarca apare- ce como se fosse uma metafora do governo, ¢ o patriar- calismo, do poder estatal. As relacées ¢ os movimentos de grupos, castas ou classes diluem-se nas relagdes en- tre 0s Componentes da familia patriarcal. Esse 0 contex- to em que surge a idéia de ““democracia racial’’, na qual nao aparece o escravo do cito nem 0 operdrio livre. Uma interpretacao muito influente. Ganha énfase nos mesmos lugares em que Oliveira Viana | prevalece. Uma explica.o Estado e a outra a sociedade * A interpretacao de Sergio Buarque de Holanda tem raizes no pensamento alemao moderno, principalmente 1}, Esta sintese se inspira no trabalho de Eide Rugai Bastes, “Gilberto Freyre e a Formacao da Sociedade Brasileira”, cit. 2 GerAvIO LANNE Dilthey, Rickert e Weber. Desenvolve-se em um conjun- to. de tipos ideais, configurando épocas, estilos de socia- bilidade. Percebe de modo aberto a sociedade civil ¢ 0 Estado, no passado ¢ no presente. O ‘‘homem cordial’” sintetiza uma parte expressiva da forma pela qual apa- nha momentos da hist6ria, em moldes supra-histéricos. Uma interpretacao bastante presente em meios univer- sitdrios © artisticos. A interpretagao de Roberto C. Simonsen tem raizes na economia politica. Lé a histdéria como um processo de desenvolyimento econémico, no qual estao em causa o empresario, 4 tecnologia, o planejamento governamen- tal, a industrializacao apoiada pelo pader publico, a ra- cionalizagao da empresa, o aumento da produtividade, o adestramento profissional do trabalhador, a legislacaa trabalhista destinada a formalizar 6 mercado de mao-de- obra. Ea interpretacao de Caio Prado Junior tem raizes no pefisamento manasta. Analisa a formacao social brasileira em termos de forcas produtivas e relagoes de producao, expropriagao do escrayo e trabalhador livre, desigualda- des sociais e contradicdes de classes. Apanha a histéria come um caleidoscépie de “‘ciclos"’ e épocas; diversida- des e desigualdades sociais, econdmicas, politicas.e cul- turais, complicadas peles diversidades ¢ desigualdades Faciais e regionais. Desvenda as lutas, reformas e ruptu- tas que dematcam épocas e perspectivas da historia so- cial brasileira. Valea pena observar que essas interpretagdes classi- cas do Brasil estao marcadas pela mudanca do eixo da histéria. Elas talvez tenham muito a ver‘com 6 desloca mento do eixo de organizacao e desenvolvimento da s ciedade. Gilberto Freyre nao esconde que vé a historia na pers- pectiva da. iz representada pelo nordeste, por sua importancia e historia ac longo da Calénia e do Império. Por isso, provavelmente, a sua interpretacdo do HISTORIAS DO BRASIL MONERNO 8 Brasil guarda as dimensoes e as sonoridades de um im- ponente réquiem. Diz respeito a uma histéria que teve pompa e circunst4ncia. O que vem depois do escravis- mo, engenho ¢ patriarcalismo perde nitidez, parece ou- tra coisa, expressa um. mundo estranhe. Nesse sentido, podem encontrar-se ressonancias reciprocas em Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre e Fogo Morto de José Lins do Rego. Desvendam _o segredo sustenido no réquiem do _patriarcalismo perdendo os_fundamentos da sua pompa, Oliveira Viana e Sergio Buarque de Holanda pensam a histéria do Brasil na perspectiva do Rio de Janeiro, da capital do pais, do Estado nacional, do todo visto a par- tir do centro politico e cultural. claro que sao diferen- tes'as'suas interpretacdes. A de Oliveira Viana é mais po- litica, privilegia o poder estatal e implica o autoritarismo organizado corporativamente. A de Sergio Buarque de Holanda ¢ mais cultural, privilegia a historia da socieda- de, implica a democracia. Mas talvez seja possivel afir- mar que ambos interpretam o Brasil desde o horizonte descortinado a partir do centro politico'e cultural do pais. Caio Prado Junior e Roberto C. Simonsen nao escon- dem que véem a histéria do Brasil na perspectiva da ma- triz que se esta criande em Sav Paulo. Beneficiam-se do horizonte aberto pela expansao capitalista no campo, com base no café, e a industrializarao, ainda que incipiente: Percebem o pais em seu presente ¢ na sua histdria, pro- vocados pelo surto industrial que se observa em varias partes, especialmente em Sao Paulo. Por isso parecem mais atentes 4 “questao social’ — além de compreen- derem os desafios e as perspectivas que se abrem com aindustrializacao, o engajamento do aparelho estatal no desenvolvimento econdmico em geral, ¢ na industriali- zacao em especial. Roberto Simonsen percebe a questdo. social na Gtica da 1. da harmonizacao entre trabalho e-o-ca- pital, da paz social. Ao passo que Caio Prado.a percebe na 6tica das desigualdades sociais, da luta de classes. ” OCTAVIOTANNL As interpretages classicas, seus desenvolvimentos pos- teridres © a propria histéria, com o seu jogo de forcas so- ciais, dirao como se desiocou 0 eixo da histéria da socieda- de brasileira. Revelarao aonde foi localizar-se a matriz do Brasil Moderno, Apenas a matriz interna da modernidade que entusiasma e intimida, deslumbra e espanta. A rigor, pode-se afirmar que Oliveira Viana, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Roberto Simon- sen e Caio Prado inauguram estilos de pensar o pais, a historia brasileira, os dilemas do presente, as perspecti- vas provaveis. Formam discipulos, continuadores, dis- sidentes. Inclusive res: contribuigdes precedentes, suscitam precursores. Toda obra fundamental, conforme escreveu também Jorge Luis Borges, nao so cria discipu- los como Eeraaneraicl 5, Parece Teairharidees oe plicagoes, textos, temas, ineuacens, cédigos. E todo um modo de ver e explicar que se articula, juntanda o que se vé e o que nao se vé. Os lincamentos da histéria pre- sente, pretérita e futura parecem clarificar-se, tornar-se explicitos. Servem de base para novas pesquisas, outras controyersias, diferentes nacdes. E claro que a histdéria do Brasil Moderno nao termi- ha aqui. Depois de 1930, virao 1945, 1964, 1985 e outras datas, simbolizando rupturas, retrocessos, aberturas. A sociedade continuou a modificar-se, em termos sociais, econémicos, politicos ¢ culturais. O que nao significa que sempre se modificou para melhor, segundo os interes- ses da maioria do povo."* A industria cresceu ¢ diversificou-se. O ¢apitalismo avancou mais ainda no campo, de modo extensivo e in- tensivo. Acelerou-se a urbanizacao. Desenvolveram-se as classes sociais. Ocorreu uma rearticulacay ampla das re- gides. Recriaram-se as diversidades e desigualdades so- ciais, culturais, raciais, regionais e outras. J4 se pode fa- lar em um complexo industrial-militar, além da crescen- te articulagao enire o aparelho estatal e as multinacionais, 16. Utha parte importante da prablemittica cullural dos tempos de po pulismo e militarisdiod cuuminoda por Renato Ortiz, A Miderna Pradiczo Bra- Sileira (Cultura Brasileira ¢ industria Cultural), Editora Brasifiense, Sia Paulo, 1988, HISTONAS DO BRASIL MODERNO 6 No ambito do pensamento, surgiram novas explica- ¢5es do Brasil, parciais ou abrangentes. Dentre os seus autores, destacam-se Florestan Fernandes, Antonio Can- dido, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Hélio Jaguaribe, Nélson Werneck Sadré, Guerreiro Ramos, Clovis Mou- a, José Hondério Rodrigues, entre outros. Refazem, ou- tra vez, toda’a histéria, em diferentes perspectivas, com instrumental tedrica as vezes bastante diverso. Sao to- mados pela opiniao publica ¢ em ambientes universitd- trios como fundadares ou continuadores. Em varios ca- sos; sao continuadores, com inovagdes importantes. Rei- teram ou desenvolvem as explicacdes de Cliveira Viana, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Roberto Si- monsen ¢ Caio Prado. As vezes passam ao largo desses e encontram-se com Silvio Romera, Joaquim Nabuco, Al- berto Torres, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Jackson de Figueiredo ¢ outros. Sim, no Brasil_as.ciéncias sociais nascem e desenvol- vém-se marcadas pelo desafio: compreender as € as possibilidaces do & Brasil Moderno. Todo o empenho esté em compreender o presente, em suas raizes proxi- mas’e-distantes. Por isso, em diferentes épocas, 0 pen- samento social debruca-se também sobre o passado, ten- tando descobrir segredos do presente. Mas sempre se revela 0 fascinio pela madernid. o idéia, forma ou ilusdo, sem_questionar de 0: vem, para onde vai. As tiltimas modas provenientes di centros culturais dominantes da Europae Estados Us dos podem ressoar em alguns centros culturais brasilei- tos, como Novas verdades que substituem outras. Ha al- guns para os quais a ultima novidade européia ou nor- te-americana pode representar 0 novo paradigma para pensar, filosofar, explicar, criar. O fildsofo brasileiro po- de imaginar que-sé na Europa, isto 6, em Paris, é que podem encont OS grandes problemas da filosofia. Algo semelhante dirao alguns sociélogos, antropdlogos, economistas, historiadores, escritores, ensaistas e ontros. a6 GCTAVIOIANNI (Nesse sentido, também, é que a idéia de Brasil Mo- derno freqientemente tem algo de caricatura. Primetro, caricatura resultante da imitacao apressada de outras tea- lidades ou configuracdes historicas, freqiientemente im- plicadas em idéias, conceitos, explicagdes, teorias. Segun- do, caricatura tornada ainda mais grotesca porque super- pGe conceitos e temas a realidades nacionais muiltiplas, antigas e recentes, nas quais se mesclam os “‘ciclos’’ e as Gpocas da historia brasileira, como em um insdlito ca- leidoscdpio de realidades ¢ imitagdes.} Continua em causa o dilema das idéias exéticas, da ‘busca da congruéncia entre o pensamento ¢ 9 pensado. © que ja havia sido claramente posto por José Verissimo e Silvio Romero continuou a pér-se para os outros, ao longo das décadas. Em 1973 Paulo Emilio julgou neces- sdrio escrever: “Nao somos europeus nem americanos do norte, mas destituidos de cultura original, nada nos éestrangeiro, pois tudo o 6. A penosa construgao d de nds nos mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre 0 1a ser e o ser outro”.!7 FE em 1985 Sérgio Paulo Roua précisou escrever: “Podemads, sem exagero, falar na ascensao dé um novo irracionalismo no Brasil. Em todas.as trincheiras ¢ emi to- das as frentes, a razao esta na defensiva. ... Ele foi em parte moldado por influéncias externas. Em sua varieda- de ‘existencial’, ele talvez tenha tido sua origem na con- tracultura americana dos anos 70, que pretendia reinven- tar a vida a partir do festival de Woodstock e da experién- cia das. comunas. Em sua variedade tedrica, ¢ preciso re- conhecer que ele esta-em sintonia com algumas tendén- cias do pensamento europeu. Penso em Foucault, que pe- jo menos segundo uma certa leitura vé na razao uma sim- ples protuberincia na superficie do poder, encarregada 17. Paulo Emilio, Cinema: Trajetdnia no Subdeseucoloimenta, Editord Paz e'Terra, Riode Janeizo, 1960, p.77. Citacho de “Cinema: Trajetéria do Subde- Ssenvolvimento”’, publicado pela primeira vez em 1973, na revista Argumento, At 1, Sao Paulo, HISTORIAS DO BRASIL MODERNO a de observar, esquadrinhar, normalizar, © penso nos now eaux philasophes, que véem nas inventores de sistemas meres agentes do gulag — 05 maifres-pensetirs ... Mas as raizes internas ¢40 igualmente inegéveis. Sem nenhuma diivida, 9 irracionalismo brasileiro nao é uma “idéia fora do lugar’. Talvez a politica educacional do regime autori- tério seja o mais importante desses fatores internos_Du- ranfe vinte anos, ela extirpou metodicamente dos curri- Sob diversos aspectos, a histdria do pensamento bra- sileiro no século XX pade ser vista como um esfor¢a per- sistente ¢ reiterado de compreender ¢ impulsionar as con- dicSes da modernizacao da sociedade nacional.)Primei- to, no sentido de fazer com que a sociedade e 0 Estado, compreendendo as instituicdes sociais, econémicas, po- Ifticas:e culturais, se aproximem dos padroes estabeleci- dos pelos paises capitalisias mais desenvolvidos. Segun- do, no sentido de conhecer, valorizar ou exorcizar as pe- culiaridades da formacao social brasileira, tais como os séculos de escravisme, a diversidade racial, a mesti¢agem, 0 trépico, o lusitanismo, 0 europeismo etc. iE dbvio que esse esforco de compreensao e compromisso nao se or- ganiza Sempre na mesma direcao. Uns preconizam a mo- dernizacdo em moldes democraticos; outros em termos conservadores, ou simplesmente autoritarios. Ha aque- les que reivindicam reformas sociais amplas; outros até mesmo a revolucdo social. Um ou outro chega a ideali- var 0 escravismo, 0 regime mondrquico, 0 colonialismo lusitano, o alpendre da casa-grande. If). Sérgio Paulo Rowanct, As Rains da umfnicnnn, Compantis clas Le- ttas; Sao Paulo, 1987, pp. 124-125. Glacko do capitulo "O Novo trracivnalis: mo Brasileiro”, publicado pela primeira vex na Ratha de S$. Paulo, Sido Paulo, 17 de novembto de 1983. e OCTAVID ANNI No ematanhado dos desafios que compdem ¢ des- compdem 0 Brasil como nacdo, as producGes cientfficas, filoséficas e artisticas podem revelar muito mais o ima- gindrio do que a histéria, muito menos 2 nacdo real do que a ilusdria| Mas nao ha diivida de que a historia seria irreconhecivel sem o imaginario. Alguns segredos da so- ciedade se revelam methor precisamente na forma pela qual ela aparece na fantasia. As vezes, a fantasia pode ser um momento superior da realidade.|

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