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MARX E ENGELS kK: Marx (1818-83) foi um dos fildsofos do séc. XIX mais fortemente influenciados por Hegel, ainda que vesse a dizer que seu objetivo era virar 0 sistema de Hegel de “cabeca para baixo”. Marx nao deve ser con- siderado estritamente apenas um fil6sofo na acepcéo tradicional, mas um pensador que visava superar os limites excessivamente estreitos da filosofia, © a filosofia a ser superada era especificamente a de Hegel, com sua heranga do lluminismo e do raconalismo do séc. XVI. E este o sentido da famosa XI Tese sobre Feuerbach, segundo a qual “os fil6sofos sempre se dedicaram apenas, a interpretar a realidade de diversas formas; é preciso agora transforméla’ Marcia portanto seu projeto nao apenas come tedrico, mas sobretudo como Embora sua formagio fosse filos6fica, j& que se doutorou em filosofia, sua obra é bastante diversificada — exatamente no sentido do esfor- 0 de superar as limitagdes de um pensamento idealista, avancando através dde um conhecimento das condicdes concretas da existéncia humana e de uma andlise ctitica da base material da sociedade, isto é, de seu modo de produ- revolucionario, 580, contribuindo assim para a transformacao da sociedade e a libertacao do ser humano. Esse processo de libertacao s6 sera possivel por uma mudanca revolucionaria e ngo pelo saber, pela educacao ou pelo apelo a valores essen- ciais da natureza humana, como queriam os filésofos da tradicao de Locke € Rousseau a Kant e Hegel ‘obra de Marx inclui portanto nao s6 a filosofia, mas a historia, a cencia politica e a economia; além de manifestos politicos e artigas em jornais que formam parte de sua militancia politica Friedrich Engels (1820-95) foi o colaborador mais préximo de Marx, sen= do que, com frequéncia, em alguns textos escritos em conjunto, & dificil dis- tinguir as ideias que pertencem a cada um. 135 136 Textos bisicos de filosofia AIDEOLOGIA ALEMA A critica @ ideologia A ideotogia alems fol escrita nos anos 1845-46, logo apés o inicio da colabo- racio entre Marx e Engels, tendo sido publicada apenas postumamente. Nessa ‘obra, Marx e Engels formulam uma critica aireta ao idealismo, segundo eles, do- minante na filosofia sobretudo nos assim chamados “hegelianos de esquerda” (seguidores de Hegel que se propunham desenvalver uma flosofia libertéria e ctica da dominagao religiosa e politica). De acordo com a analise da kdeologia alems, entretanto, essa cftca fracassa pois nao vai & raiz dos problemas, jé que nao empreende uma andlise histérica e econémica da realidade social que gera a dominacdo — caracterizando-se como uma critica meramente ideoldgica. ideologia € vista, portanto, nesse texto, como uma "alsa consciéncia”, incapaz de dar conta da realidade em sua dimensao mais profunda e com isso, em cilti- ma andlise, contribuindo para as formas de dominacao. ‘Até hoje os homens tém criado para si, constantemente, concepydes falsas sobre si mesmos, sobre o que eles sio e 0 que devem ser. Organizaram as relagdes humanas de acordo com suas ideias de Deus, de homem normal etc, Os fantasmas de seus cérebros tornaram-se seus senhores. Eles, os ctia~ dores, curvaram-se diante das criaturas. Vamos liberté-los das quimeras, das ideias, dogmas, seres imaginétios, sob o jugo dos quais esto definhando. Fa- amos rebeliao contra o governo dos pensamentos, Vamos ensinar os homens a trocar tais imaginacées por pensamentos que correspondam a esséncia hu- mana, diz alguém; a assumir uma atitude critica diante das imaginagées, diz izo terceito;e...arealidade existen- uum outro; a expulsé-tas de suas cabecas, te vai desmoronar, Essas fantasias inocentes e infantis sio o germe da filosofia jovem-hegeliana, que nio s6 est4 sendo recebida pelo piiblico alemao com assombro e reveréncia, mas também é anunciada por nossos her de seus perigos de cataclisma e de sua brutalidade criminosa. O primeiro volu- me da presente publica consideram ¢ sdo considetadas lobos, mostrando como seus balidos consistem meramente numa imitagao, em forma filoséfica, das concepsdes da classe média sis lilos6ficos com a consciéncia solene 10 tem o objetivo de desmascarar essas ovelhas, que se alema. Assim, mostra-se também como as hazéfias desses comentadores de filo- sofia espelham apenas os inforttinios das reais condigées de vida na Alemanha 0 objetivo da publicagio ¢ desacreditar as contendas filosdficas com as sombras da realidade, ao gosto da sonhadora e sonolenta nagao alema, Marce Engels 137 Era uma ver um camarada bem-intencionado a quem ocorreu a ideia de que os homens s6 se afogavam na égua porque estavam possuidos pela nosio de gravidade, Se eles conseguissem expulsar tal nogao de suas cabecas — por cexemplo declarando tratarse de uma superstigao, de uma ideia religiosa estariam resguardados de todo e qualquer perigo que a agua oferece. Durante toda a sua vida, ele lutou contra a ilusio da gravidade, cujas consequéncias nocivas eam comprovadas por todas as estatisticas, com novas ¢ insmeras evidéncias, Esse camarada honesto era do mesmo tipo dos novos filésofos re- voluciondrios na Alemanha. As premissas de que pattimos nao sio arbitrérias, indo se trata de dogmas, mas de premissas reais, cuja abstracao 86 pode ser feita na imaginagdo, Trata-se dos individuos reais, sua atividade ¢ as condi- es materiais em que vivem, tanto aquelas que cles ja encontram cxistindo, quanto as produzidas em sua atividade. Portanto, tais premissas s6 podem ser verificadas de um modo puramente empitico. A primeira premissa de toda histéria humana é, evidentemente, a existéncia de individuos humanos. Por isso, o primeiro fato a se determinar € a organizasi0 corporal desses individuos, e em seguida sua relag30 com o resto da natureza. E claro que nao podemos investigar aqui nem a prépria natureza fisica do homem, nem as condiges naturais em que ele se encontra — geoldgicas, oro-hidrogri- ficas, climsticas e assim por diante. A historiografia deve sempre partir dessas bases naturais e sua modificagao, no decorrer da hist6ria, pela ago do homem. E possivel distinguir os homens dos animais pela consciéncia, pela reli- gio, ou pelo que quer que seja. Mas eles mesmos comesam a se distinguir dos animais logo que principiam a produzir seus meios de subsisténcia, um passo que € condicionado por sua organizagao corporal, Prod meios de subsisténcia, os homens esto produzindo, indirctamente, sta pro- pria vida material © modo como os homens produzem seus meios de subsisténcia depen- de, em primeiro lugar, da natureza dos meios jé existentes que eles encon- tram e tém de reproduzir. Esse modo de producio nio deve ser considerado simplesmente como a reprodusio da existéncia fisica dos individuos.Trata-se sim de uma determinada forma de atividade desses individuos, uma deter- minada forma de dar expressio a suas vidas, um determinado modo de vida deles. A maneira como os individuos expressam suas vidas é a sua maneia de set, Assim, 0 que eles sa0 coincide com sua producao, tanto com o que eles produzem, quanto com o modo como produzem. A natureza dos individuos depende, entao, das condiges materiais que determinam sua producao. A produgao de ideias, de concepgses, de consciéncia 6, a principio, di- retamente entrelacada com a atividade material ¢ o intercambio material dos homens, a linguagem da vida real, Conceber, pensar, os intercimbios mentais indo seus 138 Textos bésicos de flosofia dos homens, nesse ponto, aparece como a emanagio direta de seus compor- tamentos materiais. © mesmo se aplica a produsio mental, como se expressa na linguagem da politica, das leis, da moralidade, da religiio e da metafisica de um povo. Os homens sio os produtores de suas concepcdes, ideias etc. — os homens reais, ativos, conforme sio condicionados por um determinado de- senvolvimento de suas forcas produtivas e do intercmbio correspondente a essas, até alcancarem suas formas mais elaboradas. A consciéncia nunca pode ser nada mais do que cxisténcia consciente, ¢ a existéncia dos homens é seu proprio proceso de vida. Se os homens e suas circunsténcias aparecem de cabega para baixo, como numa cdmera obscura, em todas as ideologias, esse fendmeno surge de seu processo de vida histético, assim como a inversio dos objetos na retina surge de seu processo de vida fisico Em contraste direto com a filosofia alema, que desce do céu para a terra, aqui nds ascendemos da terra para o céu. Isso quer dizer que nao partimos do que o homem diz, imagina ou concebe, nem do modo como o homem é escrito em narrativas, pensado, imaginado, concebido, a fim de chegarmos a0 homem de carne e osso. Partimos dos homens reais, ativos, e assim, ba- seados em sett processo real de vida, demonstramos 0 desenvolvimento dos reflexos ¢ ecos ideol6gicos desse processo de vida. Desse modo, os fantasmas que se formam nos cérebros humanos sio, necessariamente, sublimagdes de seu processo de vida material, que é verificével empiricamente e fundado em premissas materiais. Portanto, a moralidade, a religito, a metafisica, assim como todo o resto das ideologias e suas formas correspondentes de conscién- cia, no conservam mais 0 seu semblante de independéncia. Elas nao possuem uma histétia, um desenvolvimento; sio os homens que, desenvolvendo suas produgées materiais ¢ scus intercdmbios materiais, alteram junto com tais processos sua existéncia real, seu pensamento e os produtos de seu pensa- mento. Nao é a vida que se determina pela consciéncia, mas a consciéncia que é determinada pela vida. No primeiro método de considerar as coisas, 0 ponto de partida é a consciéncia tomada como individuo vivo: no segundo, 880 0s prprios individuos vivos por si mesmos, como eles sio nas suas vidas a consciéncia é considerada unicamente como consciéncia deles, Esse método de considerasao das coisas nao ¢ desprovido de premissas Ele parte das premissas reais ¢ nio as abandona em momento algum. Suas premissas s3o os homens nao em qualquer isolamento fantistico ou definigao abstrata, mas em seu processo real de desenvolvimento, sob determinadas condicSes, perceptivel empiricamente. Logo que esse processo de vida ativo descrito, a histéria deixa de ser uma colegio de fatos mortos, como ela é para os empiristas (eles mesmos ainda abstratos), ou uma atividade imaginétia de sujeitos imaginarios, como ela é para os idealistas Marce Engels 139 Onde a especulagao termina —na vida real —, ali comeca a ciéncia real ¢ positiva: a representasio da atividade pratica, do processo pritico de desenvolvi- mento dos homens. O discurso vazio acerca da consciéncia se silencia, e 0 conhe- cimento real tem de tomar o seu lugar. Quando a realidade ¢ exposta, a filosofia perde seu meio de existéncia como um ramo independente de atividade. No me- Ihor dos casos, seu lugar pode ser ocupado por um resumo dos resultados mais gerais, as abstragdes que despontam na observagao do desenvolvimento histérico dos homens, Vistas a parte, separadas da histsria real, tais abstragdes nao tém em si mesmas valor algum. Elas podem servir apenas para {acilitar a organizasio do material historico, para indicar a sequéncia de seus estratos diferenciados. Mas clas nao fornecem de modo algaum, como faz.a filosofia, uma receita ow esquema para arrumar metodicamente as épocas da histéria, Pelo contrério, nossas difi- culdades s6 comesam quando nos dispomos & observagao e ao ordenamento—a exposigdo real — de nosso material histérico, seja de uma época passada ou do presente. A remosio de tais dificuldades ¢ governada por premissas nas qua impossivel nos determos aqui, e que s6 se tomario evidentes por meio do estudo do proprio processo de vida e da atividade dos individuos em cada época. QUESTGES E TEMAS PARA DISCUSSAO Qual a importancia da histéria para a andlise de Marx e Engels? 2. Como podemos entender, segundo 0 texto, a nosao de ideologia como "alsa consciéncia”, ou distorsao da realidade? 3. Qualo teor central da critica de Marx e Engels & tradiao flosética? Em que sentido o método proposto por Marx e Engels écritico? 5. Qual o sentido da énfase na realidade concreta defendida pelo texto? LEITURAS SUGERIDAS Marx e Engels A ideologia alema, S80 Paulo, Ciéncias Humanas, 1979, Manifesto do partido comunista, Petropolis, Vozes, 1980. ‘A miséria da flosofia, Sao Paulo, Ciéncias Humans, 1981 0 capita, Rio de Janei, Civlizagao Brasileira, 1980. Sobre Marx: A filosofia de Marx, de Etienne Balibar, Rio de Janeiro, Zahar, 1995.

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