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“O que 6, exatamente, o inconsciente? Ele se parece com um iceberg. [..] Imagine por um instante esse belo objeto inerte, com uma parte mergulhada na profundeza do oceano, enquanto a outra fica acima da superficie da agua. As duas partes sao diferentes: aquela invisivel é mais importante do que a visivel, e tam- bém mais perigosa, porque permanece encoberta. Todos os navegadores sabem disso, Eles temem muito mais 0 que esté escondido do que o que esta visfvel.” Star Wars, Titanic, 0 imagindrio de contos e lendas, 0 sonho, o comportamento dos animais: é mergulhando no universo mental dos adolescentes de hoje que a mais conhecida especialista francesa en hist6ria da psicandlise confere substincla a um elemento que, embora invisivel, & determinante para nossa vida Anistoriadora e psicanalisia francesa Hlisabeth Ri éreleréncia muni na drea de his Alive, autora de muiltas ob do, como Histoire dela payclianalyse en Fraee Jacques Lacon, Dictionnaire de ta payclianalyye {com Michel Plon) o Sigiuatd Freiul en sor Jemps et dans le notre (Prix Décombre, 201), Qi OLAN DIW OV OGVOITdXI ILNAIOSNOONIO i 2 € OINCONSCIENTE EXPLICADO AO MEU NETO ELISABETH ROUDINESCO O inconsciente explicado ao meu neto FUNDACAO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Mitio Sérgio Vasconcelos Diretor-Presidente Jézio Hernani Bomfim Gutierre ‘Superintendente Administrative e Financeiro William de Souza Agostinho Consetho Editorial Académico Danilo Rothberg, Joiio Luts Cardoso Tépias Ceccantini Livia Fernando Ayerbe Marcelo Takeshi Yamashita Maria Cristina Pereira Lima Milton Terumicsu Sogabe Newton La Scala finior Pedto Angelo Pagn Renata Junqueira de Souza Rosa Maria Feieiro Cavalari Blitores-Adjuntos ‘Anderson Nobara Leandro Rodrigues Elisabeth Roudinesco O inconsciente explicado ao meu neto ‘Traducéo Fernando Santos g unesp © Editions du Seuil, ousubro de 2015, © 2019 Edivora Unesp nal Hinconscient expligué amon peti fils Direicos de publicagio reservados a Fundagio Editara da Unesp (FEU) Praga da Sé, 108 1001-900 ~ io Paulo ~ SP Tel: Oxxt1) 3242-7171 Fax: x11) 3242-7172 Wwww.editoraunesp.com.br Www livrariaunesp.com.br aten imento.editora@ unesp.br Daclos Internacionais de Catalogacio na Publicagao (CIP) de acorelo com SBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva ~ CRB-8/9410 R584) Rouclinesco lisbeth © Inconsciente explicado ao meu neto / Blisabeth Rous ‘nesco; traduzido por Femando Santos. ~ S80 Paulo: Eaitora Unesp, 2018. ‘Tradugio de: Lixconientexpliga mon pei fils Anctui bibliograa ISBN: 978-85.393-08002 1. Psicandlise, 2. Inconsciente. 1 Santos, Fernando. 1. Tivulo. 2019-1115 ‘cop 150.195 DU 159.9642 Biitora afitiada exec lBeu Para Gabor e Pernette Agradecoa Lucie (11 anos), Z0é (12anos), Ninon (8 anos), Karine (9 anos), Emile (11 anos), Vitya (11 anos) e Gabriel (13 anos), que responderam &s minhas perguntas e re- velaram sua concepcio do inconsciente, do sonho, do cérebro e da sexualidade. . Compreender sem pressa aquilo que nfo enxergamos 11 . Onde se esconde o inconsciente? 23 . © inconsciente de outrora eodehoje 33 Viagem ao centro do sonho 51 . Um médicoem Viena 65 . Existe uma vida no inconsciente? 81 . Os animais tém_ inconsciente? 91 . O lado sombrio do inconsciente 105 1 Compreender sem pressa aquilo que nao enxergamos — O que é, exatamente, o inconsciente? Ele se parece com um iceberg. Sabe, aquela montanha de gelo que vemos acima do mar, perto do Polo Norte: um bloco con- gelado a deriva, pontudo, encorpado, face- tado ou corroido. Imagine por um instante esse belo objeto inerte, com uma parte mer- gulhada na profundeza do oceano, enquanto a outra fica acima da superficie da égua. As duas partes sfo diferentes: aquela invisfvel mais importante do quea visivel, e também mais perigosa, porque permanece encoberta. Todos os navegadores sabem disso. Eles te- ‘mem muito mais o que est escondido do que Elisabeth Roudinesco oque est visivel. E isto o inconsciente: a par- te submersa da montanha branca, composta de varios niveis, com trincheiras, passarelas elabirintos. Podemos comparé-la a uma casa flutuante cujos contornos nfo conseguimos definir, mas cuja presenga sentimos. ~ Mas como é possivel que essa casa seja ao mes- mo tempo presente e ausente, flutuante e estavel? — Ela semelhante a um barco sem leme, sem vela, sem motor. Nao conhecemos nem sua forma nem o lugar em que ele poderia se ancorar. Nesse sentido, o inconsciente ~ comparavel a essa casa ~ é algo de que nao se tem consciéncia, uma atividade que escapa & razio. Quando alguém esté inconsciente, di- zemos que esta louco ou que perdeu os sen- tidos. Zoé, a filha de 4 anos de minha amiga Julie, me disse que, para ela, quando estamos conscientes sabemos 0 que estamos fazendo, nos controlamos e contemos um pouco as emogdes, ao passo que quando estamos in- conscientes nao sabemos 0 que océrebro faz, € igual a quando estamos dormindo. =O insensato é louco? —Sime nao. Tudo depende do modo como © encaramos. Outrora, na Idade Média, os n © inconsciente explicado ao meu neto insensatos ~ isto é, os inconscientes ~ eram. vistos como bébados, excedendo-se nos pra- zeres, amando o carnaval, as fantasias ¢ a vagabundagem, Um grande pintor, Hierony- mus Bosch, representou essa inconsciéncia num quadro célebre, A nau dos insensatos, que pode ser visto no Museu do Louvre. Ele reu- niu numa embarcagao a deriva uma dezena de personagens privados de consciéncia: ho- mens ¢ mulheres sentados & mesa para co- mer, coma boca escancarada. Bles nao sabem. © que morder e nao conseguer: nem comer nem cantar. Um ganso assado est suspen- so no mastro, inatingfvel. No lugar da vela, que deveria guid-los, Bosch pintou um crepe €, no lugar do remo, pos uma enorme con- cha de cozinha nas maos de um navegador cego. Mergulhados na inconsciéncia, esses ho- mens e mulheres vivem num mundo inverti- do: eles nao vio a lugar nenhum, sua cabeca no controla o corpo. Eles moram numa ca- sa sem alicerces, que ndo consegue se fixar em nenhum lugar. Tém com que se alimen- tar, mas nao conseguem comer. E isso o in- consciente, no sentido da inconsciéncia: uma viagem para fora da consciéncia. B Elisabeth Roudinesco ~ Mas voce sé fala coisas negativas a respeito do inconsciente! ~Tem azo. Mas oinconscienteétambém © pais das maravilhas. Podemos Ihe atribuir belas cores. Se isso Ihe agrada, o inconscien- te pode ser dourado como nas histérias de princesas despertadas por um principe en- cantado depois de uma viagem numa abé- bora; ele pode ser um buraco negro cheio de tristeza, pode ser vermelho como acélera, ou azul como um céu de primavera no campo. Sua amiga Lucie, minha afilhada, que tem cinco anos a menos que vocé, disse um dia que o inconsciente se parecia com uma ome- lete sendo feita dentro de sua cabeca. Ela queria dizer que 0 inconsciente é uma bela bagunca que podemos comer. — Existe, entdo, uma diferenga entre ser incons- ciente e ter um inconsciente? — Sim, ser inconsciente é cometer atos in- sensatos. Ter um inconsciente € ter dentro de siessa casa, esse lugar que se esconde da nos- sa consciéncia, cheio de imaginagio, de intui- ‘Ges e de emogées. O inconsciente é quando vocé nfo decide, como diz muito bem Lucie. E Vitya também: “E quando eu digo uma coi- sa que nao queria dizer”. 4 © Inconsciente explicado ao meu neco ~ Mas existem outros nomes para designar 0 inconscionte? — Na verdade, existe, de um lado, © que ‘vocé inventa quando quer desigrar o incons- ciente e, de outro, a maneira como ele é de- nominado pelos estudiosos que, hé muito tempo, criaram varios nomes para defini-lo. Ja que € uma casa flutuante e escondida, ela também 6 um duplo da consciéncia, Dize- mos, ento, que é uma subconsciéncia ou uma supraconsciéncia, um estado no qual o que vocé diz est dissociado do que voce faz. — Como o que eu penso pode estar dissociado do que fago? = Vocé pensa, por exemplo, que tem de por as botas de borracha para andar na chu- va. Vocé as calca cuidadosamente, caminha um pouco e, de repente, percebe que o pé es- querdo est4 na bota direita e o pé direito, na botaesquerda. © que aconteceu? Nesse caso, vocé foi vitima de um automatismo mental, como se um robé tivesse agido em seu lugar sem que vocé percebesse. — Como interromper esse automatismo? ~Vocé poderia lutar contraele, comprando uma bota vermelha e outra azul, para nao se 18 Elisabeth Roudinesco confundir; porém, correria o risco de ser vis- to como uma pessoa inconsciente, que nao sabe diferenciar a esquerda da direita. Todo mundo tem automatismos e, portanto, to- dos tm um subconsciente diferente da sua consciéncia, Todo mundo também tem refle- x05, isto é movimentos automaticos que nao se pode controlar: so as reac6es involunté- rias dos érgios do corpo. Faz muito tempo que filésofos, médicos, escritores e poetas se sentiram atrafdos pela ideia de que o nos- so pensamento est dividido em dois: de um ado, serfamos uma méquina, do outro, uma consciéncia. ~ Diga-me o nome de quem corto meu pensa- mento em dois... ~ Foi o fildsofo francés René Descartes que, no século XVII, hé quase quatrocentos anos, inventou um conceito para dizer isso. Ele disse que havia uma oposicao entre a ra- zo e aquilo que escapa a ela. Ele denominou “cogito” o que eu penso, 0 que cada pessoa pensa, e dividiu-o em duas partes: uma par- te racional, que compete a consciéncia, isto 6, Aquilo que eu penso conscientemente; € uma parte irracional, que é relegada a esfe- ra da loucura, Essa parte pode, de repente, sait da toca quando, em vez de ser razodvel, 16 © inconsciente explicado ao meu neto eu fico enraivecido e nao consigo me contro- lar. Digo, ent&o, que estou “forade mim’, is to é, fora da minha consciéncia. ~E depois de Descartes? —Depois, outros pensadores, chamados psicdlogos ou psiquiatras, duzentos anos mais tarde designaram essa “casa incons- ciente” - essa nau de loucos ¢ esses deli- rios ~ como um automatismo mental: 0 subconsciente. = Mas qual é realmente a diferenga entre a in- consciéncia e a subconsciéncia? ~A inconsciéncia é quando alguém é in- consciente. A subconsciéncia é 0 que se encontra abaixo da consciéncia, A palavra subconsciente designa certamente a parte oculta do iceberg, mas nao algo insensato que escapa & razio. Se o subcensciente lhe dé ordens, o domina, tem um controle sobre voc’ ¢ o faz agir de maneira automética, isso quer dizer que vocé é alienado, nao insensa- to. A diferenga é importante. Uma pessoa alienada nao perdeu a razao ou aconsciéncia, cla simplesmente transportou ou transferiu uma parte de si mesma ~suaalma, seu espiri- to, seu estado mental - para um objeto, uma ” Elisabeth Roudineseo ideia, uma instituicdo, um médico, um sacer- dote, um grande lider, um feiticeiro, um deus ou deuses, e ela os encarrega de conduzir sua vida. Ela nfo pensa mais por si mesma, nao & mais livre, ela aliena sua liberdade, e é ou- tracoisa que pensa em seu lugar. Mas ela tem um pensamento. ~Mas qual é, entio, a diferenga entre um feiti ceiro, um sacerdote, um psiquiatra e um psicélogo? Todos eles se ocupam da mesma coisa? ~ Um feiticeiro é um personagem de con- tos e lendas a quem se atribuem poderes mégicos curativos ¢ proféticos. Ele usa ge- ralmente um chapéu pontudo e uma espécie de tiinica, e se desloca pelo ar montado nu- ma vassoura. Mas ele também pode se pare- cer com um her6i contemporineo do qual vocé gosta muito: Harry Potter, esse jovem 6rffo inglés que, pouco a pouco, a partir dos 11 anos, ingressa num mundo paralelo 20 de seus amigos normais. O feiticeiro é o rei da inconsciéncia, o eleito de uma seita que acre- dita decifrar enigmas no mundo inteiro. Eo sacerdote? ~ O sacerdote é o representante de uma religio, isto é, de um sistema de crencas 8 O inconsciente explicado ao meu neto que responde a perguntas. Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Quem me guia sem que eu me dé conta? O sacerdote também se ocupa dos insensatos, mas ele da um significado & inconsciéncia deles ao diri- gi-los para uma fé ou uma espiritualidade, para algo mais elevado que eles e que nao se pode conhecer por meio do simples conhe- cimento racional, isto é, para uma alienagio superior. Ele 6 0 rei dos seres hamanos que creem num Deus todo-poderoso que seria 0 rei do universo e do destino. — O que diferencia o psiquiatra do sacerdote? —O psiquiatra é um médico que cuida dos alienados nos hospitais ou na vida didria — durante a consulta. Ele considera a alienagio uma doenga. Ele nfo reina sobre os insensa- tos, pois, para ele, é impossivel nao ser alie- nado, O psiquiatra é 0 rei do subconsciente, cujo fancionamento ele explica por meio de classificagées, sem precisar acreditar numa fora superior ao homem. Ele c4 remédios, conselhos, prescreve tratamentos fisicos ou mentais para viver melhor;comer melhor € controlar melhor a vida. Ele é o médico da alma e do corpo. Elisabeth Roudinesco =O que sao as classificagées? —Bem, por exemplo, em vez de dizer que alguém perdeu a alma ou que est possuido ou alienado, o psiquiatra diré que ele é bipo- lar, depressivo, hiperativo, maniaco, border- line, narcisico perverso, parafilico, que softe de burn out, & disférico, ansioso, compulsi- vo, esquizoide, paranoico, psicético. Sio re- feréncias que vocé encontra diariamente na imprensa. E a linguagem dos psiquiatras. - Eo psicélogo? ~ 0 psicdlogo nao é médico, mas ele cui- da dos disttirbios da alma, das paixdes e dos diferentes sofrimentos, Ao contrario dos fei- ticeiros ¢ dos sacerdotes, os psiquiatras e os psic6logos sao os reis da razao: eles querem que o subconsciente seja controlado pela ra- zo e pela consciéncia. Eles procuram curar e cuidar: nés os chamamos de psicoterapeu- tas, Sdo servos da razio que aprenderam um conhecimento nos livros e que foram iniciados numa clinica por um professor da universidade, 0 que é clinica? ~ E aarte de interpretar os sinais de uma doenga. 20 © inconscience explicado ao meu neto — O que todas essas pessoas tém em comum? ~ Os sacerdotes, os feiticeiros, os psiquia- tras e os psicélogos tém algo em comum: eles se ocupam das doengas da alma, uns por meio da confissao, dos medicamentos ou das trocas relacionais; os outros, por meio de ce- riménias rituais ou de incubag6es que con- sistem em ingerir pocSes mégicas. —O que realmente os diferencia? ~ Os sacerdotes ¢ 0s feiticeiros acreditam numa verdade estabelecida e sagrada que no pode ser criticada e qual todos devem se submeter: rituais relacionados a roupa e alimentacio, rezas, obediéncia a uma autori- dade que nfo pode ser contestatit. Esses sao religiosos. Os psiquiatras eos psicélogos sao, a0 contrario, os portadores de um saber en- sinado que nao tem uma verdade definitiva e do qual se pode duvidar. 2 2 Onde se esconde o inconsciente? —Compreendi que ha palavras diferentes para designay o inconsciente, Mas onde ele fica? Dentro dla cabega? ~ Boa pergunta. O inconsciente fica no cé- rebro, essa massa quimica encerrada dentro da cabega e que se compée de tubos a que chamamos células ou neurénios, parecidos com trilhas de montanha com tiineis encai- xados uns nos outros. ~Como sabemos o que acontece na cérebro? —Comegamos a saber quando os cientis- tas levaram em conta a importancia dessa massa, hd cerca de 150 anos (em meados do Elisabeth Roudinesco século XIX). Na mesma época, outro cien- tista muito famoso, Charles Darwin, mos- trou que os seres humanos néo tinham sido criados por Deus de uma tinica vez, mas que eles pertenciam, em certa medida, ao mundo animal e estavam sujeitos a uma lei da na- tureza que escapa a todo controle: a evolu- do. Hoje, admitimos que os seres humanos descendem de seus ancestrais, os macacos, e que seu cérebro evoluiu durante milhoes de anos, tornando-se mais complexo e mais eficiente com o passar do tempo. O cérebro humano, mais desenvolvido que o doanimal, 6 portanto, portador da consciéncia, da inte- ligéncia, da alma, das emogoes, do espirito e também do inconsciente. ~ Quem estuda o cérebro? ~ Os neurologistas, os bidlogos, todos os cientistas, médicos ou nao, especializados em neurociéncias: eles se ocupam do funcio- namento do sistema nervoso. — Mas o inconsciente se esconde nos corredores do cérebro? ~ O cérebro permite que o ser humano exista e pense. E por isso, alids, que écomum. dizermos que alguém muito inteligente é 0 4 (© inconsciente explicado ao meu neto “cérebro” de determinada organizacao. Mas 0 cérebro nfo passa de um suporie mate- rial do pensamento: uma maquina biolégi- ca e quimica que governa nosso organismo. Hoje em dia, gracas aos progressos técnicos, 0 cérebro pode ser observado em seus mi- nimos movimentos. Podemos vi-lo se me- xer ou ficar enraivecido, Podemos observar suas falhas, Quando vocé experimenta uma forte emog&o, seu cérebro reage. Mas nao podemos observar © pensamento com um. microscépio, nem mesmo comastécnicas ex- ploratorias atuais — tomografia, computador, escuta de ressonancias magnéticas. Também. no podemos vera mente, aalma,aconscién- cia, a razo, 0 subconsciente. O inconscien- te nao se esconde no cérebro, mas ele existe gracas ao cérebro. ~ Mas como podemos dizer que eleexiste gragas «ao cérebro, se ndo podemos vé-lo? ~ Porque o inconsciente ¢ uma abstracao, isto 6, uma representagao da mente: n6s 0 pensamos, o sentimos e o construimos, mas iio podemos tocé-lo, vé-lo ou capturé-lo. E é por isso que ele nao pode ser siraplesmente cerebral. Na verdade, embora ele no se en- contre em lugar nenhum, ele se manifesta e 25 Elisabeth Roudinesco seexprime, Ele est encoberto pela conscién- cia, que nds também nao vemos. ~E quando uma pessoa ndo tem mais cérebro, la ainda assim tem um inconsciente? — Claro que nao, porque o cérebro é a mé- quina que controla todos os érgaos do cor- po, inclusive os neurdnios, que possibilitam © pensar. Quando uma pessoa nao tem mais cérebro ou seu cérebro nao funciona mais, ela est4 morta, mesmo quando é mantida vivaar- tificialmente por meio de tubos e aparelhos. Dizemos entao que ela se encontraem estado de morte cerebral. ~ Quanto ao cérebro, nés 0 vertos. Mas ele tem uma atividade? ~ Sim, mas ele nao é capaz nem de escre- ver um livro sozinho, nem de compor uma misica, nem de construir cidades, nem de inventar religides. $6 um sujeito que pensa pode fazer essas coisas. E sé um sujeito que pensa tem um inconsciente escondido em sua consciéncia. —Mas, enti@o, como saber se o inconsciente exis- te realmente? ~ O inconsciente existe como uma for- ¢@, como uma energia que se manifesta por 26 ° ‘consciente explicado ao meu neto meio do que sentimos, por meio das emo- c6es. Quando vocé esté feliz sem saber por qué, quando tem a impress4o de que pode voar pelos ares para pegar os passaros ou, no lugar das botas de borracha, vocé tem botas de sete léguas que lhe permitem correr mais rapido que as gazelas e as zebras. Se, por um ado, o inconsciente nao tem cor nem cheiro, por outro, ele pode ser extremamente belo, porque € misterioso e incomoda o cérebro, como disse © poeta inglés William Words- worth, maravilhado coma fonte escondidade onde emergiam seus préprios peasamentos: Eu mantinha uma comunhao inconsciente com a beleza Ll Cavernas, sim, dentro da minha mente e Nas quais o sol nunca conseguia penetrar* ~ Mas essa energia saida de uma caverna conse- ‘gue atravessar 0 corpo? O inconsciente se manifesta também por meio da linguagem, quando fala em seu entretenais une communion ineansciene avec la beaut [1 Des eavernes, oui, &Vinterieur de mon esprit et/ Dans, lesquelles le soleil jamais ne powvait pénétrer.” In: The Prelude (1805), livro I, v.562; liveo Ill, v.245-6. Traduzido, pata o franeés por Henri Deluy. 7 Elisabeth Roudinesco lugar ou quando pensa por vocé, como ressal- ta Zoé, que diz 0 mesmo que Jacques Lacan € 0 filésofo Averréis. Se, por exemplo, vocé quer dizer “amo o papai” e, em vez disso, diz “quero meu dromedatio”, ficaré surpre- sa € tentaré compreender por que uma fra- se tomou o lugar da outra. E ser obrigada a compreender por que, 20 pensar em seu pai, vocé pronunciou a palavra “dromedario”. Seu pai Ihe deu um dromedério de pelicia que vocé mantinha junto ao peito durante muito tempo quando ele ia trabalhar? Ou entdo porque, no momento de dizer que vo- cé ama seu pai, insinuou-se em sua mente a imagem de um animal que vocé ama acima de tudo, mais do que a seu pai? $6 0 ser hu- mano é capaz de falar, de fazer essas substi- tuigdes ou de inventar linguas e palavras para exprimir tanto 0 que ele pensa como aquilo que Ihe escapa quando ele fala. ~ Todlo mundo sabe que tem um inconsciente? ~ Essa é uma pergunta delicada. Essa cons- ciéncia que se pode ter do inconsciente foi formulada na Europa e nas sociedades ditas ocidentais, mas nao nas sociedades dos povos origindrios, indigenas, autéctones ou abori- genes (primeiros habitantes de um lugar). 28 © inconsciente explicado ao meu neto Esses povos sem escrita vivem sem Estado, sem prote¢ao. Eles formam comunidades go- vernadas por costumes e tradigGes ancestrais. transmitidos de geragao a geracao e mantém relages estreitas com a natureza e os ani- mais, Eles ainda existem em grande nimero no mundo de hoje: na Amaz6nia, nas ilhas do oceano Pacifico, na Africa, na Indonésia, no Caribe etc. Esses povos, que foram estuda- dos pelos etnélogos, nao pensam como nés. Eles no pensam que tém um inconsciente. Para eles, a natureza é uma totalidade, com suas plantas, seus seres humanos e seus ani- mais, € no existe divisao entre a conscién- cia e a inconsciéncia, entre o que é racional eo que nao 6. — Esses povos pensam alguma coisa? —Eles tém um pensamento e um incons- ciente, Mas eles nao dispdem do conheci- mento sobre si mesmos que lhes permitiria nomear © inconsciente ou a corsciéncia da mesma maneira que nés. Eles classificam os seres humanos, as plantas, as coisas e os animais um pouco como um marceneiro que produz objetos com os pedacos de madeira que retne ao redor de si. Eles so guiados por sacerdotes e feiticeiros conhecidos como » Elisabeth Roudinesco xamis, isto é curandeiros que asseguram uma mediacio entre um mundo dito invisi- vel (0s espiritos bons ou maus, os mortos, os ancestrais, metade seres humanos, metade animais) e 0 mundo visivel da comunidade. — Esses xamds combatem os seres invistveis? ~De fato, quando um membro da comuni- dade fica estranho, eles declaram guerra aos espiritos que Ihe roubaram a alma, separan- do-a do corpo. O grande antropélogo francés Claude Lévi-Strauss assumiu a defesa desses povos originarios, mostrando que sua for- ma de pensar ~ esse pensamento dito “selva- gem” -, que se tornara minoritéria, nfo era inferior 4 nossa, Seu inconsciente é esse mun- do invistvel povoado de mitos e lendas, um mundo que guia os atos dos seres humanos, Ihes rouba a alma, os deixa loucos, 0s faz vi- ver ou morrer, dirige suas escolhas. — O que faz 0 xamé quando um ser humano per- de sua alma? ~ Quando um ser humano perde sua al- ma, o curandeiro entra em éxtase, em tran- se, torna-se ele mesmo louco para viajar ao mundo dos espiritos e buscar a alma perdida, como um cagador rastreia a caga. Ele toma de 30 O inconsciente explicado ao meu nete assalto os espiritos, negocia com eles, ofere- ce-thes presentes e depois reconduz a alma para casa ¢ a reintegra no corpo da pessoa doente. Mas isso que voc® esté contando nio éposstvel. —De fato, esse modo de pensar nao temna- daaver com aideia que se faz do inconscien- te no mundo europeu, no qual se considera que, para saber onde ele se esconde, é preciso saber primeiro que todo ser humano é cons- ciente de si proprio e de sua existéncia. Em nosso mundo, o sentimento da consciéncia precede, portanto, 0 acesso ao inconsciente. ‘Mas 0 que 6 consciéncia? Sou eu? ~ Sim. Quando dizemos “eu”, nés expri- mimos 0 que sentimos e 0 que queremos di- zer: algo de subjetivo. Quando d'zemos “eu mesmo”, & ainda mais forte. Levamos tudo a0 “eu”, & minha pessoa inteira, eé entao es- se eu que se considera o soberaro do mun- do inteiro. =O sujeito também é algo que existe e que nao existe? =O sujeito é a subjetividade, isto é, 0 que Ihe 6 pessoal. Ela possui diversas facetas 3 Elisabeth Roudinesco diferentes. Para dar um exemplo divertido, eu diria que ela é comparavel a uma galeria de espelhos deformantes que fazem com que vocé se pareca tanto com um aspargo como. com um barril. ~ Mas na sua histéria do curandeiro e dos povos originérios, existe um lugar para a subjetividade? = Sim, existe, mas ela nao é reconhecida como tal, ¢ nao tem por que sé-lo, pois, para esses povos, nao é 0 sujeito que se exprime quando fala, mas 0 espirito ¢ as coisas. Por exemplo, nés dizemos: sou um homem gene- roso ¢ ajudei uma mulher em dificuldade. Os povos indigenas se exprimirao de outra ma- neira; eles dirdo: a generosidade que vem do homem Ievou ajuda a dificuldade em que se encontra a mulher. Num caso, 0 inconscien- te esta no interior do “eu”; no outro, esté na qualidade atribuida pessoa. 32 3 Oinconsciente de outrora eo de hoje — Entendi que o inconsciente existe gragas ao cérebro, que ele existe sem ser algo vistvel e que lhe damos nomes diferentes de acordo com as culturas © as épocas. Vocé falow da alma; ela também é uma outra maneira de designar o inconsciente? ~Sim, certamente. O inconsciente é como uma alma, ea alma éa parte inconsciente da subjetividade. A alma é um sopro, o motor da vida e, sobretudo, algo que transcende a existéncia humana: um prineipio espiritual, imaterial. Ela ndo é visivel. As maneiras de descrever a alma so tio numerosas quanto as religiGes ou as crengas, ¢ estas sio narrati- vas destinadas a explicar aos seres humanos Elisabeth Roudinesco sua historia passada e futura. Assim como no caso do inconsciente, nao existem provas da existéncia da alma. ~Deonde vem a alma? Do além, dos outros pla- netas, de Deus? ~ Do interior de vocé mesmo, mas tam- bém da cultura e das religides. Vocé estudou no colégioas diferentes civilizagées. Sabe que os judeus foram os primeiros seres huma- nos nos tempos antigos ~ hd mais de 10 mil anos ~a crer num deus tinico (monoteismo), quando eles eram escravos no Egito. Depois veio o cristianismo, com Jesus, seguido pelo Isla, com Maomé, duas religides que conti- nuam 0 judaismo, Nessas religides, ditas mo- noteistas, a alma dos seres humanos é Deus; ele também é seu inconsciente. Que poderoso esse Deus! ~ Vocé nem sabe 0 quanto! Pois, embora essas religiSes preguem o amor, elas propa- gam oédio, porque se baseiam numa verdade revelada que nao suporta a diivida. Conse- quentemente, elas ensinama rejei¢ao das ou- tras religides e das outras culturas. Elas séo potencialmente fandticas. E sempre em no- me de Deus ~ esse deus tinico - que os seres 34 (© inconsciente explicado ao meu neto humanos guerreiam e se perseguem uns aos outros. As religides so sempre intolerantes quando afirmam dominar a consciéncia por meio do amor. E por isso que é preciso dei- xar Deus longe de qualquer influéncia sobre © pensamento e o Estado. Senac substitui- remos “penso, logo existo” por “creio, logo Deus tem razao”. A melhor maneira de se proteger desse fanatismo, respeitando, a0 mesmo tempo, a liberdade de cada um de acreditar no que qui- ser, 6 governar os seres humanos segundo os princfpios do direito e da razo. Isso se cha- ma laicidade. O Estado que o governa é, por- lanto, separado da religido: ele aceita todas © permanece neutro, pois nao existe religido de Estado. Consequentemente, 0 inconscien- te também se torna laico. Ele se parece com uum Deus que teria perdido sua soberania pa- ta se tornar seu destino pessoal. O tirano ¢ voc’, ele estd em voce, mas ndo é mais Deus: (um resto de deus. Essa é a diferenga entre © inconsciente de outrora e o de hoje. O que acontece quando existem varios deuses? Quando existem varios deuses, exis- le menos verdade tinica, j4 que os deuses iio feitos A imagem dos seres kumanos e 35 Elisabeth Roudinesco competem entre si. Minha amiga Catherine Clément escreveu o Dictionnaire amoureux des diewx et des déesses [Diciondrio amoroso dos deuses e das deusas], que vocé pode ler. Ela diz que existem no mundo milhées de deu- ses e deusas que se acasalam e promovem festas alegres. Eles mudam de género e de sexo, transformam-se em animais, matam- Se UNS ads Outros € ressuscitam sem serem tiranos ou ditadores. Eles se divertem. Esses deuses s4o também o inconsciente dos seres humanos. —Eu conhego os deuses pregos... ~ Sim, eu sei que vocé estudou a Anti- guidade yreya, da qual nés somos hoje os herdeiros, como o somos do judaismo e do ctistianismo. Vocé conhece Homero, que contou a historia da guerra entre os gregos ¢ os troianos. Conhece Plato, nascido em Ate- nas quatro séculos antes de Jesus Cristo eque inventou a filosofia ao difundir as ideias de seu mestre Sécrates. Finalmente, vocé sabe que nesse mundo grego, onde existiam diver- sos deuses e deusas (politeismo), os deuses € os homens conviviam contando historias que retracavam suas origens e seus amores. 36 © inconsciente explicado ao meu neto sas narrativas dao lugar ao ineonsciente? Sim, certamente. Nesse murdo feito de mitos e narrativas, os deuses sao divinos, ¢ 0 heréis, meio divinos: as fronteiras perma- necem imprecisas. Quanto aos homens das classes superiores, eles governam os outros homens ¢ especialmente os escravos, consi- derados objetos. Certos deuses gregos so deuses-adivi- nhos ou oréculos que preveem o futuro. As pessoas vém interrogé-los para obter res- postas sobre o passado e o futuro. Nenhum homem consegue escapar da profecia do oriculo, que sempre precisa ser interpretada, jaque éextremamente vaga ou velada. Assim, © destino € 0 inconsciente do homem grego, forgado, faga 0 que fizer, a obedecer, sem 0 saber, ao que o oraculo he profetizou. Por- Lanto, sua subjetividade e sua consciéncia s6 servem para ele se conformar com seu desti- no, ¢ nao para se afastar dele. Li wma historia em quadrinhos sobre um rei ucenfrentaum monsiro feminino, resolveumenig- ha, mata o pai e se casa com a mae... Sim, trata-se do heréi mais famoso da tragédia grega, Edipo, filho de Laio e Jocas- (a, herdeiro da dinastia dos Labdécidas. Para 37 Elisabeth Roudinesco evitar que se cumpra o que previu 0 oréculo de Apolo ~ que ele seria morto pelo filho -, Laio, rei de Tebas, entrega a crianca recém- -nascida a um servo para que ele a abandone no monte Citeron depois de trespassar-Ihe os pés com um prego. Em vez de obedecer, 0 servo entrega a crianga a um pastor que, por sua vez, a leva a Polibio, rei de Corinto, cuja mulher é estéril. Eles Ihe dao o nome de Edi- po (pé inchado) e o criam como filho. Uma vez adulto, Edipo consulta 0 oraculo de Delfos, que prevé que ele matara seu pai € casard com sua mie. Acreditando escapar da profecia, ele deixa Corinto e vai para Te- bas. No caminho, cruza por acaso com Laio 0 mata apés uma briga. Depois, se confron- ta com a Esfinge, temivel animal, monstro feminino alado, dotado de garras, que ma- ta aqueles que nfo resolvem 0 enigma que cla propSe sobre a natureza do ser humano: “Quem é aquele que caminha primeiro com quatro pés, depois com dois e mais tarde com trés?”. Edipo da a resposta certa e, pa- ra recompensé-lo, Creonte, rei de Tebas, lhe oferece Jocasta como esposa, com quem ele terd quatro filhos. (Os anos se passam, a peste e a fome asso- lam Tebas, e Edipo, o grande rei extremamen- 38 © inconsciente explicado ao meu neto te sébio, procura conhecer a causa desse fla- elo. Depois de investigar, ele acaba conhe- cendo a verdade. Ele fura os olhos e Jocasta se suicida. ~ Se entendi corretamente, essa historia signi- fica que Edipo ndo consegue enxergar sua prépria histéria. Ele é inconsciente? -Nio, ele no é inconsciente, mas 6 pre- sa do seu destino. ~Ele nao é culpado? Nio, ele nfo é culpado nem do homici- dio do pai nem do incesto com a mae. Mas cle 6 punido, por um lado, pelo destino, por- que nao deveria ter nascido, e, por outro, pe- los deuses, porque, ao resolver o enigma, ele afrontou o poder deles. Portanto, ele é puni- lo por uma falta que nao cometeu: € seu in- consciente, isto é, seu destino, que age em seu lugar. Eaalma? Para os gregos, ela contém diversas fa- cetas, mas sobretudo duas partes principais: uma, cheia de sangue e de fiiria, que deno- minamos thumos (alma-sangue), isto é, 0 que impele a agir, a desejar e a estabelecer rela- 39 Elisabeth Roudinesco ges com o mundo exterior; e a outra, psyche (alma-sopro), associada ao sono, & morte e a fiagilidade, mas também a eternidade e & imortalidade. Plato dizia que a alma era composta de és partes: a imortalidade, a lembranga e 0 conhecimento. Assim, a alma, no sentido platénico, € imortal porque ela existe sem © corpo, que é seu jazigo provisério durante uma vida. Consequentemente, ela conser- va a meméria de tudo que foi vivido. E, por fim, ela é como uma placa de cera, uma té- bula rasa, onde seriam gravadas as ideias, as emogGes e as representacdes. As trés partes esto ligadas. Sair do corpo é transcender 0 mundo sensivel para se elevar na dire¢o do conhecimento; recordar é saber quem so- mos; aprender é atualizar a forca da inteli- géncia que temos em nés. — Portanto, o inconsciente de ontem e de hoje é, 0 mesmo tempo, Deus, o destino, a alma, o desejo € 0 celeiro que recolhe as lembrangas e nos permite compreender quem somos e o que fazemos? ~ Pode-se dizer que sim, mas é preciso explicar. Sim, 0 inconsciente & nosso desti- no. E hoje, para vocé e para mim ~ e para os cidadaos dos paises democraticos e laicos cc) © inconsciente explicado ao meu neto © destino nao é mais Deus, mas a hist6ria humana, um destino no sentido grego, mas sem 0 ordculo que profetiza, sem os deuses. aquilo que atua sem que vocé se dé con- ta para que vocé possa desejar algo ou amar alguém, Enfim, 0 inconsciente é um lugar de meméria, um monumento ou um museu que vocé visita para conhecer 0 passado e a histéria de quem vocé amou, Ele conserva os arquivos da sua vida um pouco como o disco rigido do seu computador. E é também um estado psiquico. Um estado psiquico? O que vocé quer dizer? ~ Essa palavra, utilizada hoje pelos psi- célogos, vem do termo grego psyche (alma- sopro). Ela designa o que € consciente inconsciente. E Psiqué é também uma mu- Iher na mitologia grega e latina. Ela era tao bela que despertou o citime «le Afrodite (Vénus), a deusa do amor (eros). Esta, para puni-la, enviou seu filho Cupido (deus do amor), com suas fleches e asas. Ele leveria fazé-a se apaixonar por um monstro, mas cedeu aos seus encantose tornou-se seu amante, com a condigo de que ela jamais olhasse para ele. Eles se encontravam no es curo. Mas Psiqué era uma pessoa racional, a Elisabeth Roudinesco queria conhecer tudo, e ela contemplou o belo Cupido enquanto ele dormia, & luz de um candeeiro. Punida pelos deuses, ela foi forcada a realizar indmeras tarefas hortiveis até mergulhar num sono de morte. A hist6- tia acaba bem. Finalmente, ela se casa com Cupido e se torna imortal. Portanto, ela teria passado a vida inteira sofrendo provacdes pa- 1a, por fim, alcangar o amor e a imortalidade. ~ Psiqué virou psiquico? Qual a relagiio com 0 inconsciente? ~ Essa historia significa que a alma é um passaro noturno, Ela desperta a noite, como oinconsciente, que se revela melhor durante © sono, através dos sonhos. Ocstado psiquico — ou psiquismo, ou psi- que ~ € uma conjungao, ao mesmo tempo consciente e inconsciente, que conta a his- Tria de toda uma vida subjetiva, sua parte visivel e sua parte oculta: 0 amor, 0 desejo, 9 sono, a meméria, a mente, os ancestrais. E a historia de Psiqué confrontada com seu desejo e com os deuses. Ea sua histéria e & a nossa histéria. ~ Oqueéamente? ~ A mente ¢ diferente da alma e da psique. Na verdade, ela é um conjunto de faculdades a © ineonsetente explicade ao meu neto mentais ~ intuigdo ou percepgiic ~ que nos permitem pensar. A mente se 026e ao cor- po, mas ela engloba atividades censcientes e inconscientes. Ao contrario do inconsciente, mente é racional. ‘Mas como temos acesso ao inconsciente? Por meio da introspec¢ao, isto é, da es- cuta de si mesmo, da observagao de nossas reagdes ou de um “exame de consciéncia”. A ideia de nos confessarmos e de contar 0 que nos faz sofrer ou aquilo que vivenciamos oxiste hé muito tempo. Muitos escritores € artistas publicaram suas confissGes: santo Agostinho, Montaigne, Rousseau. Falar de si permite ter acesso ao inconsciente. Quem ocupao lugar de Deus e dos deuses hoje? - A ciéncia, por um lado, que se baseia no conhecimento objetivo da realidade, da natureza ou da mente; a crenca, por outro, que se apoia na opinido ou na vidéncia. Os videntes ¢ os astrdlogos se consideram mais Iticidos que os cientistas, pois esto conven- cidos de enxergar o que se esconde atrés das aparéncias, Mas, como vocé pode ver, no substituimos realmente Deus rem os deu- s. Contentamo-nos em nio enxergé-los da mesma maneira. 8 Elisabeth Roudinesco =O que é um vidente? ~ Os videntes costumam se atribuir no- mes estranhos. Mas eles nao so nem os her- deiros dos antigos adivinhos da Antiguidade nem dos curandeiros e outros xamas das sociedades selvagens. Eles também nao so sacerdotes, pois nao defendem uma teligigo, Consideram-se desvinculados de tudo e con- testam 0 que chamam de conhecimentos ofi- ciais: a politica, as religides estabelecidas, a psiquiatria, a medicina, a psicologia, o ensi- no divulgado nas escolas e universidades. E, gracas & internet, eles tém muito sucesso em todas as esferas. ~ Oque eles fazem? ~ Eles recebem, em seus consultérios, pais angustiados com os filhos, empresdrios deprimidos que tém medo de falir, pessoas abaladas por decepdes amorosas, além de outros que temem o fim do mundo, as ca- {astrofes naturais ou os deménios. Eles preveem o futuro por meio de cartas e bolas de cristal, e afirmam que a posicéio dos planetas fornece informagdes sobre 0 nosso futuro, Alguns acteditam descobrir um mon- te de coisas no seu inconsciente examinando sas ios, seus olhos, um lago, um espelho, 44 © inconsciente explicado ao meu neto uma andorinha ou peles de sapo. Eles vive rodeados de estatuetas, de incensos aromé- licos, de divindades e de objetos estranhos adlquiridos em antiquétios. Asvezes, eles assumem ares de grandes fi- Josofos para explicar que existem forcas ocul- tas que dirigem o mundo. Elesimeginam que seriamos dominados por um inconsciente cosmico povoado de simbolos ¢ sinais. Eles costumam ser chamadosdecharlatées ou im- postores, porque nao hesitam em abusar da ciedulidade das pessoas. Esses charlatdes sio perigosos? O que se pode dizer é que serapre foram considerados perigosos. Em 1184, o tribunal «lk Inquisig&o os condenou a merrer na fo- jueira como os “hereges”, e proibiu que fi- oysem adivinhagoes. Orei Luis XIV também 04 perseguiu, pois via neles a encarnagao de ua forga diabélica contraria & todo-podero- \ soberania real. Enfim, em 1810, Napoledo, onde organizador da medicina, da razao, da ciéncia e do Estado moderno, os criminalizou oi sett famoso Cédigo Penal, condenando- ‘0 « pagar uma multa caso continuassem a cobrar por suas profecias. Como vocé pode ver, cles sao rejeitados tanto pelas religides 45 Elisabeth Roudinesco como pelos defensores da ciéncia. Entretan- to, apesar de todas as leis, eles continuam a Prosperat. Hoje, embora tolerados, eles sio sistematicamente perseguidos quando afir- mam cuidar das doencas ou curé-las. Por- tanto, fora isso, eles podem tranquilamente observar seu inconsciente nos astros ou pre- ver uma catastrofe se vocé néo fizer o que eles mandam. Mas existem charlatdies entre aqueles que pre~ tendem explicar tudo racionalmente por meio da ciéncia? ~Sim, com certeza! Sao todos aqueles que afirmam que se pode ver o inconsciente, me- di-lo, pesé-lo, descrevé-lo, observar seu fun- cionamento a microscépio como algo que se pode pegar pelo rabo, pelos chifres ou pe- los dedos dos pés. E a mesma polémica que existia no passado com relagdo a alma. —De que polémica vocé esté falando? ~ Em 1907, um médico norte-america- no, obcecado pela ideia de encontrar a alma dentro do corpo e provar sua existéncia, pe- sou seis pacientes moribundos antes ¢ de- pois da sua morte. Constatando na diferenga de medidas uma por¢Zo nao justificdvel, ele 46 © inconseience explicado a0 meu neto deduziu que poderia se tratar do peso da al- ma escapando do corpo. Para tet certeza de nfo se enganar, ele reproduziu a experiéncia com quinze ces e nao observou nenhuma variagao. Ele entéo acreditou ter comprovado que 86 0 ser humano possui alma. - E de morrer de rir! - Podemos rir desse raciocinio, mas ele acontece com frequéncia. Emboraesse “cien- lista” possa ser um charlatao, els nao é de- nado como tal e é levado muito a sério. E, ho entanto, sua “ciéncia” nao é mais cienti- fica que a que se baseia nas bolas de cristal. Outro dia, na televisto, um jomalista disse jue, quando assistiamos a uma propaganda, éra- ios influenciadas por “mensagens subliminares” que atingiam diretamente nosso inconsciente. O que émensagem subliminar? De fato, especialistas em comunica- gio imaginaram que se fossem incorpora- das num filme imagens imperceptiveis para \ sua consciéncia, isto é “subliminares” ou subconscientes, elas poderiam influenciar seu comportamento sem que vect se desse conta disso. Eles afirmam que elas agem di- Jetamente no cérebro e, portanto, no incons- a Elisabeth Roudinesco ciente. Porexemplo, um publicitétio afirmou, sem prova alguma, que ao inserir num filme a mensagem imperceptivel “Beba Coca-Co- Ja” as vendas dessa bebida aumentariam de maneira significativa. Em 2000, por ocasio da campanha para a eleigao presidencial nor- te-americana, George Bush mandou divulgar imagens em que a palavra “rato” era inserida logo depois de uma foto do seu adversario politico, acreditando com isso que poderia vencé-lo, ~ Mas 0 que foi feito para lutar contra isso? ~Proibiram-se as mensagens ditas “subli- minares”, sem, contudo, obter a prova de que elas eram eficazes. Masa ideia da possivel efi- cécia dessa influéncia oculta tinha semeado © panico nos espectadores, que acreditaram que mensagens subliminares podiam trans- formar qualquer um em criminoso ou doente mental. Essas crengas numa influéncia po- tencial das mensagens subliminares so da ‘mesma natureza que as dos videntes, que, no entanto, nao se pretendem cientificas. Mas, entéio, o que é subliminar? ~ B aquilo que vocé percebe diretamente através do inconsciente. Mas nao precisamos temé-lo nem regulamenté-lo. 48 inconsciente explicado a0 meu neto ~ Existe outra maneira racioxal de acessar o in- consciente, quendo sejanem uma vidéncianem uma caricatura de ciéncia? ~ Sim, evidentemente: é a utilizada pe- los fildsofos, escritores, psicdlogos ou psi- quiatras ¢ por todos os pensadores que nao consideram os seres humanes supérfluos ou intiteis, nem que sua vida subjetiva se reduza acrengas estabelecidas de anzemiio ~ supers- tices ~ ou a cAlculos sem fundamento. Eles consideram que as confissées e as narrati- vas de si s4o importantes para compreender quem somos nés, eeles realmente tém razio. 4“ 4 Viagem ao centro do sonho - Esta noite sonhei que me encontrava em um navio gigantesco, que, na verdade, era uma dguia ‘oorme que usava wn grande manto com condeco- updes ¢ trazia um quepe preso no bico. O navio ba- (er: num iceberg. Era de noite, eu ia me afogar; mas dguia se transformou numa jangada e uma parte lela you, enquanto a outra permaneceu comigo, pura que eu ndo afundasse. O que isso significa? :sse sonho retoma varios elementos do josso didlogo. Eu comparei o inconsciente ‘uma ave noturna, e vocé o transforma nu- a, Eu evoquei o iceberg, essa mon- (nha branca cuja parte mais perigosa esté escondida pelo mar. Em seguida, comparei a Elisabeth Roudinesco inconsciéncia a um barco que vaga em meio as ondas. Mencionei também Descartes e 0 sujeito cortado em dois. E vocé sonha que a metade de uma 4guia o salva do afogamen- to, protegendo-o, e que a outra sai voando e o abandona. Isso quer dizer que tudo que falamos fi- cou gravado em sua meméria com imagens fortes. Em todo caso, vocé compreendeu que © inconsciente era ao mesmo tempo algo misterioso, noturno e temivel, mas também algo mais intimo e acolhedor. Podemos es- tudé-lo e saber que cle existe sem ter medo de nos afogarmos e sem precisar medi-lo ou pesé-lo. —Bu tive esse sonko depois de ter visto na televi- fio um filme formidayel sobre o naufrdgio do Tita- nic. Tinka a impressio de assistir a um sonho. Eu estava sozinho em casa. ~ Vocé assistiu ao mesmo tempo a um sonho, a uma histéria de amor romantica, a uma realidade reconstrufda gracas 4 magia do cinema e, finalmente, a uma epopeia sobre a forca € os defeitos dos seres humanos que termina num pesadelo. E, além disso, vocé ouviu o nome de Freud. 52 O inconsciente explicado ac meu neto — O que vocé quer dizer? —O filme inspirou-se num fato real, ocor- rido em abril de 1912, que ficou marcado na mente de todos: 0 naufragio €o mais belo transatlantico da chamada belle époque. Seu nome tinha origem nos titas, divindades gi- gantes da Grécia antiga que, apesar de sua forca, tinham sido vencidas por outros deu- ses mais inteligentes: os deuses do Olimpo. Simbolo da onipoténcia de uma época, mar- cada pelo progresso da navegacio, 0 Titanicdo filme leva a bordo, em sua viagem através do oceano Atlantico, 2.500 pessoas, homens, mulheres e criangas de quarenta nacionali- ladles diferentes e de diversas classes sociais: «los mais ricos aos mais pobres. Entre elas, uma comunidade de grandes burgueses pu- ritanos provenientes da alta sociedade anglo- americana, deslumbrados consigo mesmos, enredados em seu cinismo e ignorancia e que se deixam levar pelas ilusées a respei 1o lo seu destino, Bles so 0 joguete do seu inconsciente. © navio nao é aquilo que eles icreditam: ele tem um leme muito pequeno para o seu peso e um ntimero insuficiente de botes salva-vidas. B um tita exposto a intime- tos defeitos, invis{veis para alguns, que nao 53 Elisabeth Roudinesco querem ver nada, perceptiveis para outros, que so capazes de se aventurar para além das aparéncias enganosas. —O pesadelo 6 isso? ~ Sim, O transatlntico avanga rapida- mente. Durante a noite, ele se choca com um iceberg e vai a pique, levando com ele 1.500 passageiros. Dois anos mais tarde, a deslumbrante sociedade europeia da época, atrogante e refinada, também sogobraré nu- ma guerra na qual seu av6 ser morto como milhées de civis e soldados, vitimas de um conflito assassino que oporé as nagées euro- peias mais evolufdas do mundo. Celebramos em 2017 0 centenario dessa guerra, cujas til- timas testemunhas morreram. = Vocé quer dizer que nesse sonho as recordagées se misturam: nossas conversas sobre o inconsciente, os sacerdotes, os videntes, os deuses ¢ os psiquiatras ea lembrana do meu antepassado que poderia es- tar no Titanic? ~ Sim, seu antepassado poderia ser um dos passageiros do Titanic, como meu pai, que sobreviveu 4 guerra e do qual cu Ihe fa- Jei varias vezes. Eu lhe mostrei fotos dele nas trincheiras e, como vocé deve lembrar, nés 54 © inconsciente explicado ao meu neto assistimos juntos a um filme que o impres- sionou: A grande ilusdo. Vocé me disse que 0 filme parecia um sonho, que Jean Gabin era como seu ave Pierre Fresnay como meu pai. — Sim, é verdade. Mas, entdo, 0 sonho é wma profecia? ~ O sonho nio prevé nada, ele exprime algo que vem do inconsciente de cada um, mas ele mistura as épocas, os mortos e os vivos, os objetos e os animais, o céu, a terra, omar, Ele pée em cena fabulas que nao exis- tem na realidade. Num sonho, vemos mons- tros, anjos, personagens com olhos no lugar los pés, um sexo no lugar de um braco, pai- sagens com chapéus na cabeca, Arvores onde brotam tesouras, bicos de aves implantados om elefantes, cidades suspensas no espaco, rob6s que se parecem com seres humanos, humanos com cabega de peixe. E omeu sonho, significa o qué? Seu sonho a respeito da aguia que o sal- va de um naufragio serve para exprimir seu imedo ea maneira de exorciz4-lo, de derro- Lilo: ele é, ao mesmo tempo, o medo e o jeméclio para o medo. Mas a aguia também avo e meu pai. Os dois usaram quepe 55 Elisabeth Roudinesco @ casaco durante a Grande Guerra, Um mor- reu € 0 outro sobreviveu, como em A grande ilusao. ~ Todo mundo sonha? ~ Todos os seres humanos sonham, e to- dos os povos atribufram um significado aos sonhos: existem sonhos bons e sonhos maus (0s pesadelos). O sonho é um fenémeno uni- versal que se produz durante o sono. Ele é constitufdo de uma série de imagens que es- capam a qualquer controle. Quando voce as- sistiu ao Titanic, ficou impressionado, como eu, com as imagens de um filme que se pa- rece tanto com um sonho como com a rea- lidade. O cinema é sempre uma maquina de inventar sonhos. ~Os sonhos sao uma parte da realidade? ~Sim, de fato, eles sao a realidade daquele que dorme, Durante milénios, em todas as sociedades, pensou-se que os sonhos eram profecias ou maus press4gios que anun- ciavam, na maioria das vezes, catdstrofes tragédias. Alids, utilizava-se a expresso “so- nho premonitério” para designar 0 sonho. A onirologia era a arte de interpretar os so- nhos - isto é, © que ¢ onfrico - como mensa- gens enviadas por Deus ou pelos deuses. No 56 © inconsciente explicado ao meu neto judaismo ¢ no cristianismo, Deus se dirige aos homens thes “enviando” sonhos. — Dé-me alguns exemplos... — Poderiamos contar uma in‘inidade de hist6rias de sonhos e adivinhagdes. Mas vou contar a do rei Nabucodonosor, perso- nagem biblico que deu origem a expresso “gigante com pés de barro”, que emprega- mos com frequéncia. Enquanto dormia, ha 2.600 anos, o rei avista uma estétua com- posta de diversos metais: a cabega de ouro, 0 peito de prata, 0 ventre eas coxas de bronze, ‘as pemnas de ferro, e os pés meiade de fer- ro e metade de barro. Uma pequena pedra, descolada da montanha, vem se aninhar aos és da estétua e depois acaba tomando toda ‘iquela terra. Inquieto, o rei manda chamar s adivinhos, que se mostram incapazes le interpretar 0 sonho. Alertado, 0 profeta Daniel se ditige a Deus, que, durante a noi- Lo, the revela o significado do senho. 0 que faz o profeta? [ile explica ao rei que seus magos néo (om © poder de interpretar esse sonho, € que s6 Deus detém a verdade. “Vés sois 0 {i dos reis”, diz ele, isto é, a cabega de ouro 37 Elisabeth Roudinesco daestdtua, um homem poderoso e venerado. Mas depois de vés virdo outros impérios cada vez mais mediocres, ¢ o tiltimo desmoronaré para dar lugar ao reino de Deus, representado pela pedra que se tornou montanha. ~Mas é a mesma historia do Titanic? ~ De fato, trata-se de uma profecia que anuncia a decadéncia dos impérios e a che- gada de um novo reino mais justo, capaz de destruir aqueles que se consideravam os mais poderosos do mundo. Vocé nao preci- sa acteditar em Deus para compreender es- sa fabula do gigante com pés de barro, Ela significa, como na hist6ria do Titanic e como na hist6ria de todos os seres humanos, que se nos considerarmos muito poderosos, ra- pidamente caimos no exagero e acabamos perdendo de vista a realidade. Somos entao vencidos por algo mais forte que um império: umaideia, uma aspiragao, aparentemente tio fragil quanto o barro. Em suma, uma utopia, isto é, uma coisa impossivel que de alguma forma se tornaria possivel. Um sonho torna- do realidade. —Existe uma diferenga entre 0 sonho eo devaneio? - 0 sonho é um espetéculo que ocorre durante a noite. E algo puramente noturno, 58 © inconsciente explicado 20 meu neco que se exprime durante o sono. A vida no- turna se contrapée a vida diurna, A vida real, 0 cotidiano. Mas ela também pode ser con- siderada a continuidade da vide real. —Em que vocé esta pensando? —Vocé assistiu comigo, na Comédie-Fran- saise, a pega do grande poeta irglés William Shakespeare, Sonho de uma noite de veriio, es crita hd quinhentos anos, quando as pessoas comegavam a duvidar seriamente da onipo- \éncia divina. Ela pée em cena quatro casais de namorados que se enfrentam: um rei e uma rainha do dia, um rei ¢ uma rainha da noite (elfos), divindades invisiveis e fantas- ticas que vivem nas florestas, dois jovens e dluas jovens que nao conseguem se amar. Aos quais vem se juntar um bufao que se trans- forma em asno. Aqui a vida noturna permite pagar as fronteiras entre o humano e 0 so- brenatural, abolir os conflitos intiteis a fim dle que cada personagem possa amar quem cle deseja. Nesse devaneio acordado, ¢ sonho é um hino A vida humana, @ alegria, liberdade © a0 desejo erdtico. Ele nao é uma profecia e nenhum rei reina nesse reino da noite. O so- nho dessa noite de verfo permi:e realizar um 39 Elisabeth Roudinesco devaneio, isto é, um desejo amoroso e sexual proibido durante o dia e recalcado no incons- ciente. O sonho é um devaneio contado co- ‘mo uma fibula. ~ Encontrei na internet dezenas de sites que ofe- recem classificasdes dos sonhos, Existe também um monte de diciondrios de devaneios. Como néo se confundir? - Na verdade, todos esses diciondrios ¢ outros tratados de vulgarizacio inspiram- -se num livro muito divertido que vocé po- de ler sem dificuldade: A chave dos sonhos (Oneirokritika). Ble foi escrito hé 1.800 anos Por um filésofo grego do Império Romano, Artemidoro de Daldis. Esse grande viajante tinha visitado todos os paises do Meditersa- neo, & maneira de um pesquisador ou jorna- lista, com o tinico objetivo de recolher uma grande quantidade de sonhos junto as popu- ages e aos adivinhos que ele encontrava. Ele tinha explorado todas as bibliotecas e li- do centenas de livros sobre sonhos. ~ Nunca ouvi falar desse Artemidoro... —E, no entanto, quando vocé fala de so- nhos, é como Artemidoro. Ele realizou uma 6 © inconsciente explicado ao meu neto verdadeira exploracdo de todas as producdes oniticas retomadas hoje nos manuais sobre A chave dos sonhos que encontramos facilmen- te na internet. Ele fez um inventério e redi- giu listas, mas, sobretudo, ele foi o primeiro a diferenciar os sonhos, que seriam profe- cias, dos devaneios, que seriam a expressio de um desejo pessoal. Ele também foi o pri- meiro a estabelecer diferencas entre os so- nhadores a partir da narrativa de um mesmo sonho. Artemidoro fala da vida privada, do nascimento, da familia, da sexualidade, da morte, do trabalho, das relagdes entre ho- mens ¢ mulheres e entre pais e filhos. = Qual era o objetivo d’A chave dos sonhos? ~ A obra tinha um objetivo pedagégico e teve um alcance revolucionério. Tratava-se, na verdade, de explicar aos leitores prove- nientes de todas as camadas sociais que eles nao precisavam recorrer a adivinhos, magos ou ordculos para interpretar seus sonhos. Gragas a um ensinamento rigoroso, baseado na pesquisa e na experiéncia, e por meio de classificagdes légicas, eles mesmos podiam compreendé-los sozinhos, deixar de temé- Jose, consequentemente, dar um significado 6 Elisabeth Roudineseo a sua dupla existéncia: a do dia diurna) ea da noite (noturna). ~ Mas vocé disse que as pessoas hoje consultan muito magos, videntes, adivinos echarlatdes, Isso quer dizer que elas temem, como outrora, que pro- fecias tragicas se tornem realidade? ~ De fato. Artemidoro procurava, co- Mo outros pedagogos ou filésofos, contro- lar os medos da época, E seu livro foi muito difundido. ~Mas é posstvel controlar os medos? ~ Nao completamente. Nés todos somos hoje um pouco supersticiosos, mesmo que nao acreditemos mais nem nas profecias nem nas maneiras de domesticé-las, e mes- ‘mo que sejamos pessoas racionais, Por exemplo, embora saibamos que o avido ~ que substituiu 0 transatlantico — 6 © meio de transporte mais seguro, embora leiamos uma grande quantidade de artigos @ esse respeito, ainda assim temos medo de cair do céu. E esse medo aumenta quando as viagens so longas ou quando as catés- trofes acontecem. Todos nés temos um Tita- nicna cabeca e todos nés precisamos de um a O inconsciente explicado ao meu neto ‘Artemidoro para nos proteger. Artemidoro como a aguia do seu sonho. = Voct disse que nesse filme eu tinka ouvido 0 nome de Freud. Nao tenho nenhuna lembranga disso... ~ Assista ao filme de novo, especialmen- te 0 comeco. 8 5 Um médico em Viena ~ Assisti d cena do Titanic a que vocé se referiu a propésito do nome de Freud, Durante o jantar, Rose, a heroina do filme, ridiculariza o presidente dacompanhia maritima, que se vangloria do tama- nho, do luxo e da poténcia do seu transatlantico. Ela diz: “O senhor conhece o dr. Freud? Suas ideias a respeito das questdes masculinas relacionadas & poténcia dos homens poderiam interessi-lo”. E ele responde: “Quem é esse Floyd, um passageiro?”. O que isso quer dizer? = Rose esté revoltada com os riquissimos ¢ arrogantes burgueses que embarcaram no Titanic. Eles so estiipidos, desprezam a in- teligéncia, a arte e a pintura moderna de Elisabeth Roudinesco Picasso e Manet. Rose os detesta. Mas, a0 mesmo tempo, ela pertence a uma familia de aristocratas arruinados. Sua mie, uma vitiva rigida, vitima da sua condicéio de mu- Iher prisioneira de seus preconceitos, obri- gaa filha a se casar com um desses homens a fim de poder preservar sua posico social. Rose se revolta e tenta se suicidat. Ela é salva por um jovem pintor de condigio modesta, que também embarcou no Titanic, na tercei- ra classe, com os emigrantes que sonham com a América. Nessa época, a América 6 0 sonho coletivo cla Europa, 0 sonho de uma outra vida, encarnado pela arte cinematogré- fica, por Hollywood. Mas ela sabe que nao conseguir escapar dlesse casamento que lhe causa horrc Portanto, ela est condenada a uma re- volta impotente: a das jovens de sua geracdo que nao conseguem se livrar da opresséo do seu meio. Ela se sente oprimida por esses homens insuportiveis que se consideram onipotentes. —O que isso tem aver com Freud? ~ Rose sabe da existéncia desse médico, Sigmund Freud, judeu austriaco, célebre no mundo inteiro. Quatro anos antes, 20s 53 anos, ele atravessou o Atlantico a bordo de 66 © inconsciente explicado a0 meu neto outro transatlantico, o George Washington. Por ocasiao de um jantar de gala no Titanic, como vocé viu, ela esfrega o nome de Freud na ca- xa do imbecil, que no compreende do que se trata, ~Ewm nome mégico para ela? ~ Sim. Rose sabe que Freud conquistou a Europa e a América com suas ideias novas sobre 0.mor; 0 sexo, o sonho ¢o inconscien- te, enquanto cuidade jovenscomoelaque so sufocadas por pais omissos cheios de poder ¢ por mées destruidoras esutmissas. Podemos deduzir dessa cena do filme que ela desejaria conhecer Freud para Ihe contar seus proble- mase no sentir mais as decep¢des que a mae Ihe imp6e. Rose faz parte do grupo de mocas conhecidas entéo como neuréticas (pertur- badas), que gostariam de viver livremente, se realizar amorosamente, trabalhar, se eman- cipar, fumar cigarro, dangar, usar calga com- prida. Mas elas no conseguem fazé-lo, pois uma forca interior as impede e as forgaa uma obediéncia que elas recusam. Daf o conflito, a agitagdo e o desejo de morrer. — Rose esta doente? ~ Nao, mas o mundo em que ela vive es- 14. Rose sabe que Freud questiona o dominio or Elisabech Roudinesco dos homens sobre as mulheres. Entao ela zomba do presidente da companhia mariti- ma fazendo alusdo & suposta “poténcia” do seu transatlantico, comparadoa um érgao se- xual masculino: um pénis. Ao contrario dele, ela percebe claramente o perigo a que todos estariam expostos em caso de naufragio. Ela observou que nao havia uma quantidade su- ficiente de botes salva-vidas = Que diz exatamente Freud a propésito das criangas? E por que isso é sempre considerado tio escandaloso? ~ Quando Freud publica seu estudo sobre a sexualidade infantil em 1905, ele nao uti. liza nem palavras latinas nem termos vulga- res. Ele explica, num estilo simples e com palavras de uso corrente, como as criangas imaginam a sexualidade a partir dos 4 anos, a idade de Gabor hoje. E a explicagao ainda é valida. E verdade que esse livro destinava- -se aos adultos, mas ele desmistifica a ideia de que as criangas pequenas ignorariam seus corpos ou as relacdes sexuais entre os adul- tos. Freud pensava que era preciso chamar 08 6rgios sexuais ¢ os atos carnais pelo no- me e nao ficar assustado diante da evocacao das praticas sexuais. Ele explicava o que as os © inconsciente explicaco ao meu neto criangas querem dizer quando empregam palavras préprias para designar a diferenca entre meninas e meninos ou a maneira pela qual clas s40 concebidas pelos pais. ~ Ele explica que 0 ato de sugar, as brin- cadeiras com 0 corpo ou 0s excrementos s40 uma fonte de prazer para as criangas. Ressal- ta que, antes dos 4 anos, a crianga é um ser cruel que se entrega a todo tipo de experién- cias prazerosas, as quais renunciard na idade adulta. Ele diz também que essas atividades eréticas da crianca nao conhecem leis nem proibicdes, e que elas se satisfazem com um monte de objetos: bonecos de peliicia, peda- cos de plistico, bolinhas de gude, panos, par~ tes do corpo (pés, maos, peito). ~ Mas, essas criangas tao novas e que mal falam, o que elas querem dizer ao fazer tudo isso? ~Elas inventam todo tipo de teoria a pro- pésito da sua origem. Pensam, por exemplo, que os bebés vém ao mundo pelo anus, como as matérias fecais, que as maes dao Aluz pelo umbigo, que as mulheres e os homens tém relagées por trs como os gatos eos ces, que 0 sémen depositado no ventre é urina, que os 6 Elisabeth Roudinesco homens podem levar os bebés na barriga co- mo as mulheres. Freud também percebeu que as criancas dizem que querem se casar com os pais quan- do crescerem, que os meninos querem ocu- par o lugar do pai, e as meninas, o da mie, ou vice-versa, € que tanto eles como elas vi- vem em rivalidade constante com os adultos. Mas nao é verdad, ew nunca pensei nisso... = Claro que sim, voce pensou e até mesmo disse, mas nao se lembra, Escute os menores que vocé e veri o que eles dizem... = Vocé quer dizer que esqueci o que eu disse e pen- sei quando era menor? — Exatamente. Ainda bem, alias. Se nos Iembrassemos de tudo, virarfamos um rob6 ou um computador. Também é preciso es- quecer, Podemos até mesmo dizer que esse esquecimento € necess4rio, é um recalque, isto é, algo que é repelido para fora da cons- ciéncia. Na verdade, essas historias infantis sdo fantasmas que exprimem situagGes ima- gindrias recalcadas no inconsciente. ~O que 6 recalcado nunca mais volta? = Ao contrario, 0 que é recalcado pode voltar & consciéncia em um determinado 70 © inconsciente explicade ao meu neto momento ou se manifestar por meio de si- nais: pronunciar uma palevra em vez de ou- tra, enganar-se com nomes préprios, um Japso (uma palavra no lugar da outra). Pa- ra Ihe dar uma ideia do que denominamos “retorno do recaleado”, pense num romance policial com o seguinte roteiro. Um assassi- no esconde cuidadosamente um cadaver. Pa- ra dissimular seu crime, ele elimina todas as pistas. Um dia, porém, por acaso, elas reapa- recem no momento em que ele menos espe- 1a. E isso 0 retorno do recalcado. Com suas histérias sobrea sexualidade eo re- calque, Freud trowxe, entdo, algo de novo para 0 conhecimento do inconsciente? ~ Freud abandona os adivinhos, as pro- fecias, as pesquisas empiricas, as classifica- ses dos psiquiatras e dos psicdlogos, mas também a ideia de que os sonhos seriam di- ferentes conforme os paises e as culturas. Ele transforma 0 sonho no caminho princi- pal para compreender o inconsciente de todo mundo, um fendmeno universal presente em todos os seres humanos, qualquer que seja © pais e a classe social. Uma novidade: em vez de interpretar os sonhos para lhes atti- buir um significado indiscutivel, cle pede que n Elisabeth Roudinesco © préprio sonhador o comente. A verdade do sonho surge, entao, de um didlogo entre aquele que sonha ¢ aquele para quem 0 so- ho é relatado. ~Mas, enti, como conhecer esse inconsciente? — Por meio da interpretagao dos sonhos, mas nfo apenas dessa maneira. Para cada pessoa, 0 sonho é a realizacao de um dese- jo inconsciente que 0 sonhador recalca. Por exemplo, se vocé sonha que uma pessoa que vocé ama Ihe traz sua cabeca cortada numa bandeja, isso pode significar que vocé dese- ja inconscientemente cortar-Ihe a cabega, 0 sexo ou outra coisa. Mas isso também po- de significar que vocé tem medo que sua ca- bega seja separada do seu corpo. Podemos muhtiplicar infinitamente as interpretacées, segundoamaneira que vocé contar4o sonho. Mas o sonho nao prediz nada e nao determi- na sua conduta futura, Ele se limita a dizer 0 que se passa em seu inconsciente — Existe um método para néo se enganar de interpretagéio? — Nao, nenhum método ¢ infalivel. Freud chamou de psicandlise, ou cura pela palavra, n © inconsciente explicado aa meu neto ométodo que permite explorar 0 inconscien- te. Esse método nfo se destina apenas atratar pessoas que no esto bem, ele diz respeito a todo mundo, a qualquer pessoa que deseje saber o que se passa com ela. —Vocé nao acha que isso tudo esté um pouco fo- rade moda? Hoje as criangas assistem a filmes por- nds na internet e estdo completamente informadas sobre tudo. ~Sim, éverdade, tudo mudou desdea épo- ca de Freud. E é um avanco importante. Mas néo & porque assistimos a atos sexuais na televistio que necessariamente compreende- mos 0 que vemos. Isso setia muito simples. ‘Vocé acredita realmente que o fato de assistir aesses filmes permite ser um prodigio amo- oso e sexual? — Por que néio? ~ As criangas, assim como os adultos, alids, podem estar informadas a respeito de uma realidade sem que por isso a compreen- da ou assimile. Hoje em dia, aliés, com os ta- lets, as telas e 0s sites, somos inundados por imagens e informag6es. Podemos aprender milhares de coisas, mas se no soubermos 3 Elisabeth Roudinesco fazer uma triagem ou se nao nos conhecer- mos, seremos rapidamente soterrados por elas. E depois tem aquilo que aprende- mos conscientemente e que recalcamos no inconsciente. —O que voce quer dizer? ~Vocé lembra que, quando tinha 5 anos, seu melhor amigo morreu num acidente. Disseram a vocé que nao se deve mentir para as criangas a respeito de coisas importantes. Vocé ficou muito triste, compreendeu mui- to bem e, no entanto, um més mais tarde disse: “Compreendi muito bem que Benoit morreu, mas por que ele no vem mais brin- car cm casa?”, = Néio me lembro. Mas o que isso quer dizer? ~ Quer dizer que podemos muito bem dar a impressdo de compreender tudo sem ter assimilado no inconsciente 0 que sabe- mos conscientemente, Podemos tomar do inconsciente uma coisa diferente daquilo que vemos ¢ pensamos conscientemente. Kari- ne assistiu a um filme pornogréfico com os colegas do colégio. Quando lhe perguntei o que ela tinha memorizado, ela me respondeu 7 © inconsciente explicedo ao mew nero que era tudo falso, porque a verdadeira se- xualidade é “nanar junto” e “ter bebés”. —O que vocé acha da exposigéo O pipi sexual [Le zizi sexuel], que conta «s aventuras de Titeuf e Nadia? — Nao a vi, mas Emile fala bastante dela. Ele achou que era de morrer de rir, especial- mente a maquina em cujo pedal as pessoas se apoiam para erguer um “pipi ereto” que ejacula. ~ Mas ela provocou um esciindalo! Houve até uma petigio para proibi-la! — Sim, é claro, existem sempre pais que acham que os filhos so idiotas. E vocé, 0 que acha disso? ~ Eu vi com os meus amigos. Eles se divertiram bastante, mas eu fiquei entediado, pois nio existe nenhuma histéria e é técnico demais. Sim, é verdade. Mas vocé também me disse que tinha ficado espantado quando o sett amigo Ihe disse que a exposigao o tinha ajudado a compreender que ele nao deveria ter medo quando seu pipi intumescia. Antes dessa visita, ele estava convencido de que os 7 Elisabeth Roudinesco médicos cortariam seus pés se ele no con- seguisse impedir essa intumescéncia. —E verdade, e, consequentemente, eu conversei comele sobreisso. Agora me diga qual 6a diferenga entre esse inconsciente freudiano e o subconsciente dos psicélogos psiquiatras aos quais nos referimos anteriormente. ~ Freud aboliu a ideia que o pensamento estaria dividido em dois, como dissera Des- cartes. Elecliminouas fronteirasentrearazio ea loucura e mostrou que somos ao mesmo tempo racionais ¢ irracionais, e que existe uma continuidade entre 0 corpo e a alma. Cada um de nés é, 20 mesmo tempo, um adulto e uma crianga, um doente e uma pes- soa saudével, um selvagem e um civilizado, um criminoso e um heréi, um artista e um tirano. Nés ndo somos divididos em dois, mas somos algo e, concomitantemente, seu contrario. Nao somos um objeto com duas facetas bem definidas, mas um cruzamento onde transita todo tipo de forgas contrérias que € preciso controlar. Essas forgas s40 cha- madas de puls6es, isto 6, cargas energéticas que tanto podem nos destruir como nos im- pelir na direcao do amor, da arte, da beleza, da criagao 76 inconsciente explicado ao meu neto —Em swma, 0 que éesse inconsciente? ~E um reservatério do passado que est separado do presente: ¢ algo desconhecido, uma cena que escapa da consciéncia. E como as ruinas de Pompeia: uma cidade soterrada cujos vestigios procuramos sem conseguir determiné-los. O inconsciente é a infancia gravada na meméria, 6 um romance onde se cruzam herdis de todas as épocas e paises. E um lugar atemporal em que nada termina, nada avanca, nada recua. ~ Vocé quer dizer que Freud substituiu a cons- ciéncia pelo inconsciente, a alma pela pulse 0 so- niho pelo desejo do sonhador? ~ Sim, e ele pds ordem no galinheiro in- ventando palavras para descrever 0 que os antigos chamavam de psique. Ele a dividiu em trés regides: 0 consciente, equivalente da consciéncia; o pré-consciente, parte incons- ciente do consciente; ¢ 0 inconsciente, cons- tituido pelo recalque e por aquilo que escapa ao consciente e ao pré-consciente. ~Mas entéio tudo édominado pelo inconsciente? ~ De fato. E Freud acentuou esse reinado do inconsciente ao definir depois essas tres regides coms seguintes nomes: id, superego 7 Elisabeth Roudinesco © ego. Ele eliminou, portanto, a ideia de que © sujeito esté dividido em dois (Descartes) ¢ assimilou a alma (de Plato) ao inconsciente O id € a regiao mais impenetravel da per- sonalidade, isto é, 0 inconsciente no sentido do desconhecido. © superego é a consciéncia moral, situado no interior da personalidade € transmitido pela autoridade da familia, da sociedade ou dos educadores. Ele anuncia as Proibicdes: 0 que vocé pode ou nao pode fa- zer. Por exemplo, proibicao de cometer inces- to, crimes, delitos etc. Finalmente, 0 ego éa parte mais consciente dessa estrutura: ele se equilibra entre o mundo exterior (a realida- de), oid (ocaldeirdo de pulsdes) eo superego: uma pobre criatura que tem de servir a trés senhores. Um equilibrista enfrentando os pe- tigos com a ajuda de uma vara nao confidvel. Além disso, Freud acrescentou ao supere- go um “ideal de ego”, isto é, um modelo de referéncia idealizado. Quando vocé se enga- ja numa causa para defender valores, vocé se vincula, quer queira ou no, a um ideal: © bem, a justica, ou, ao contrério, o mal e 0 crime. Em suma, Freud permitiu que com- preendéssemos que existe uma légica do in- consciente. E essa légica nunca se engana, ‘mesmo que néo consigamos decodificé-la. 78 inconsciente explicado ao meu neto Freud transformou o destino numa légica da qual ninguém pode escapar. ~ Que légica é essa? ~ £0 conjunto das regras que organizam © inconsciente, Quando dizemos que exis- te uma l6gica do inconsciente, isso significa gue o inconsciente funciona de acordo com regras, e Freud descreveu essas regras. — Isso quer dizer que somos obrigados a admitir hoje que temos um inconsciente e que ele é ligico. Para que serve isso? ~ Bem, por exemplo, quando uma pessoa que tem tudo para ser bem-sucedida — ta- lento, beleza, inteligéncia etc. -, mas passa © tempo se enganando, se autodestruindo, detestando os outros, enquanto atribui todos 08 seus fracassos ou enganos a circunstancias externas, podemos dizer que seu inconscien- te estd Ihe pregando pegas. Seu inconsciente, isto é, aquilo que ele recalca, entaoo princi- pal responsével por aquilo que Ihe acontece: ele é sua “mé-fé", a origem de sua cegueira. E melhor que ela tome consciéncia de que aquilo que a perturba vem em parte dela mesma, mesmo se ela foi realmente perse- guida ou foi vitima de algum opressor. 7” Elisabeth Roudinesco ~Mas voce também disse que ha pessoas que niio precisam saber que elas tm ura inconsciente. O que clas tém no lugar dele? — Como eu jf disse, elas tém as religides, os xamas, as drogas, os tratamentos quimi cos, as classificagdes da psiquiatria, as cren- cas, os espiritos que organizam complés, os neurdnios, 0 subconsciente, a supracons- ciéncia subliminar, ‘Mas isso nao impede que o nome de Freud esteja presente agora na cultura universal. E, a propésito, se suas ideias no tivessem sido vitoriosas, nao haveria inimigos de Freud e nfo discutirfamos tanto 0 inconsciente. Nao teriamos necessidade dele. — Isso quer dizer o qué? —Isso quer dizer que Freud deu seu nome a0 inconsciente. 6 Existe uma vida no inconsciente? — Sabemos agora que Freud dew seu nome ao in- consciente. Sabemos que a inconsciente é uma par- te desconhecida do nosso pensamento, que ele se exprime nos sonkos e ludibria nossa vigilancia. O inconsciente estd contido no cérebro, mas ndo 0 en- contramos em nenhum neurénio. Sabemos que as pessoas consideradas “inconscientes” exprimem 0 que esté contido em seu inconsciente. Sabemos que quando recaleamos um desejo ow uma ago, 0 re- caleado volta para nos incomsdar. Mas existe uma vida no inconsciente, que seria como a vida mum outro planeta diferente do nosso? = Sim, é claro. Mas ela seria, na verdade, uma vida inconsciente: a vida do id. Uma vida Elisabeth Roudinesco paralela que convive com a vida consciente numa mesma pessoa. Algumas mulheres afirmam possuir per- sonalidades diferentes e que cada uma delas pode assumir, alternadamente, o controle das outras. Por exemplo: uma mulher pode afirmar que a noite ela 6 uma princesa india- na e de dia uma amazona vinda das estepes da Mong6lia. Na semana seguinte, ela se tor- na. uma dama da Idade Média encerrada num castelo ¢ ameacada por um dragéo. Depois, se transforma numa rainha africana. Uma outra mulher est grivida, mas nao se dé conta de que traz um bebé dentro de si. Quando dé a luz, ela tem a impressao de ter sido libertada de algo que a incomodava. Fla poe o recém-nascido num saco de lixo eo es- conde num congelador. Essas mulheres levam uma vida conscien- te perfeitamente normal. Elas v4o toda ma- nha para o trabalho, e ninguém ao seu redor percebe a existéncia de suas vidas paralelas delirantes. — So sempre mulheres? = Nao, também existem homens com vi- das miltiplas. Algumas mulheres e alguns homens estéo convencidos de que tiveram 2 O inconsciente explicado ao meu nevo vidas anteriores. Uns eram ledes ou impe- radores, outras eram gazelas ou deusas. As vezes, as pessoas evocam os espiritos dos mortos. Chamamos isso de espiritismo. Po- de ter certeza de que ao seu redor deve ha- ver pessoas que se retinem & noite e fazem aS mesas se moverem ao contato das maos, depois formam um circulo e esperam que 08 mortos se comuniquem. Também existe gente que ouve vozes ou que cruza com fan- tasmas na rua, Dizemos que elas tém aluci- nagdes; a consciéncia delas nao controla 0 inconsciente. Sua loucura nao é imediata- mente perceptivel. — Um cientista pode ter wna vida paralela, po- de delirar? — Sim, ¢ esse foi o caso de Kurt Gédel, 0 maior légico do século passado, autor do fa- ‘moso teorema da incompletude, por meio do qual ele demonstra que um sistema axioma- tico nfo pode ser ao mesmo tempo coeren- te e completo e que, se o sistema é coerente, ento a coeréncia dos axiomas nao pode ser provada no interior de um mesmo sistema. Assim como Einstein e Darwin, esse cien- tista revolucionou nossa representagéo do mundo, Bem, esse mesmo cientista estava 83 Elisabeth Roudinesco convencido, por outro lado, de que mundos imagindrios conviviam com 0 mundo huma- nol Por isso ele quis dar uma base tedrica a existéncia de deménios, anjos e extraterres- tres, Ele definia a famflia como um atomo em que o homem seria o nticleo, ¢ a mulher, © elétron diabélico. Certo dia, partindo da teoria de que os universos so girat6rios, ele reservou varios quartos de hotel em Paris a fim de ocupé-los simultaneamente num tem- po em duas dimens6es... = As eriangas tém inconsciente? — Sim, mas é um inconsciente frdgil. Ele se forma gradativamente, a medida que ocorrea aprendizagem da linguagem e da fala. Ninon, com 8 anos, nao sabe o que é 0 inconsciente, mas sua irma mais velha, Zoé, o define muito bem, como Lucie, alids. Isso quer dizer que elas tém consciéncia de que possuem algo desconhecido dentro de si = Portanto, 0 inconsciente pode realmente falar sozinho fora da consciéncia? ~ Nao exatamente, mas ele pode invadir toda a parte consciente do sujeito porque possuii uma légica prépria. Dois poetas, An- dré Breton e Philippe Soupault, inventaram 4 © inconseiente explicado a0 meu neto uma arte nova em 1920 e a denominaram surrealismo: além ou acima do realismo. Tra- tava-se, para eles, de libertar o inconsciente € 0 sonho de toda forma de controle pela ra- z4o. Assim, para o movimento surrealista, a criagao literdria ou pictérica deveria se tornar a tradugao literal dos pensamentos incons- cientes: uma mac quadrada, uma laranja verde, uma maquina de costura que passeia com um bonde. Também se podem justapor imagens ou palavras de maneira ilégica: um asno em cima de um pizno, pedagos de pa- rede levados por uma tempestade, um sexo no Lugar do rosto, janelas que se abrem para um personagem visto de costas. Ele se ob- serva num espelho que reflete suas costas, nao seu rosto. ~Mas isso nfo era um deifrio, como no caso das personalidades muiltiplas ou das vides paralelas? —Nio, era uma experiéncia destinadaa dar voz a légica do inconsciente. ~ Vocé também disse que o inconsciente fala por meio de historias e lendas. Ele néo é, portanto, uni- camente uma propriedade minha? — Na verdade, 0 inconsciente também & coletivo. Ele contém invariantes da condigao 85 Elisabeth Roudinesco humana denominadas mitos, isto é, relatos explicativos sobre nossas origens: a origem do mundo, do ser human, dos fenémenos naturais. A mitologia é © conjunto desses mitos, que possuem intimeras variantes. Encontramos os mesmo mitos em todas as culturas e religides. Eles contam as mesmas historias: a luta dos filhos contra os pais, a necessidade de se revoltar contraa tirania pa- ra instaurar uma sociedade melhor, o lugar da sexualidade nas relagdes entre homens € mulheres, a ideia de que a vida ¢ uma longa viagem e que, antes de encontrar a sabedo- ria, é preciso enfrentar provagies — Una longa viagem? ~ Vocé conhece a histéria de Ulisses, o rei de ftaca, que partiu para enfrentar os troia- nos. Esse homem astuto levaré vinte anos para voltar ao seu pais e encontrar a mulher, Penélope, eo filho, Telémaco. E cle deveré en- frentar todo tipo de provagées durante a via- gem, Iré ao inferno e ter aventuras erdticas. Finalmente, depois de reencontrar a esposa fiel, ele serd morto por Telégono, o filho que ele havia tido com a feiticeira Circe. Como na histéria de Edipo que Ihe contei, 0 filho no sabe que est matando o pai, e este ndo 86 O inconsciente explicado a0 meu neto sabe que o assassino é seu filho. E 0 destino transformado em inconsciente: quando sabe averdade, ele o perdoa. Quanto aTelémaco,o outro filho de Ulisses, ele assumiu seu lugar junto a Penélope durante a auséncia do pai, para protegé-la dos pretendentes. Ele tam- bém é o joguete do seu destino, determina- do pelo oraculo. Depois da morte de Ulisses, ele se casaré com Circe, a mae de Telégono, co qual se tornard o marido de Penélope. Des- te iltimo casamento na: Assim, uma mae se casacom o filho que scu marido teve com outra mulher, e um filho se ‘4 {talos (a Itdlia). casa com a mae de seu meio-irmio. ~Portanto, o inconsciente esta cheio de mitos, de viagens e de vidas paralelas? -Sim, ¢ os mitos nos remetem @ nossa historia individual ¢ Aquilo que ¢ permitido € proibido numa sociedade. Cada um de nés procura se livrar de um tirano, cada um de nés tem desejos de poder e de matar, cada um quer viajar e aspira a uma vida melhor, cada um deseja saber de onde veio: quem é seu pai, quem é sua mie, como ele mesmo veio ao mundo, o que aconteceu antes do seu nascimento. 87 Elisabeth Roudinesco — Qual éo mito que aparece com mais frequéncia? ~ O da crianga abandonada que nao sabe quem sao seus pais. Determinada a buscar sua identidade, a crianga percorre o mundo, torna-se uma herofna, liberta o reino de uma tirania, pde-se a servigo dos explorados, con- traosexploradores. Masomito também pode se transformar no oposto, como na histéria de Edipo. O heréi torna-se ent4o um maldi- to ao matar, sem o saber, o pai e ao cometer incesto. Em geral, ele paga pelos erros da ge- ragio anterior. Outra versao possivel: 0 he- 16i se livra dos crimes cometidos por seus ancestrais ao restabelecer um poder basea- do na justica. Ou entio ele tem uma origem modesta e consegue, por meio da educacéo, tornar-se s4bio; ou, ao contrario, ele tem uma origem divina e real e se poe servico dos ne- cessitados. Ou, ainda, o heréi é um bastardo ou um “mal-amado”, expulso pelo pai, e que volta depois para se vingar, assumindo 0 po- der e semeando o terror em seu reino. Vocé viu isso em intimeras séries de TV. ~ Como isso esclarece a histéria pessoal? — Ha cerca de cem anos, Otto Rank, um. discfpulo de Freud, estudou as lendas rela- cionadas ao mito do nascimento do heréi. 88 O inconsciente explicado 20 meu neto Ele percebeu que R6mulo, Moisés, Edipo, Jesus, Lohengrin e muitos outros sao crian- gas encontradas, abandonadas ou deixadas ao sabor das Aguas por pais pertencentes a realeza, preocupados em preservé-las de uma profecia. Destinadas a morte, clas geralmente sio recolhidas e criadas por uma familia de classe social inferior. Na idade adulta, elas descobrem sua verdadeira identidade e tém acesso a uma nova vida, ‘Transposto para nossa historia individual, esse mito significa que as crianas~meninos ou meninas ~ tém a tendéncia de idealizar os pais, de querer se parecer com eles para de- pois seafastar deles e, as vezes, até mesmode inventar outros pais mais adequados ao seu desejo, Existe todo tipo de variante. —Por exemplo? ~ Bem, vou Ihe contar a histéria de Emi- le, que foi adotado ao nascer. Ele nao sabia que tinha sido adotado. Aos 5 anos, ele co- megou a ficar muito ansioso. Dizia que seus pais no eram seus pais, que ele tinha nas- cido num ninho no alto das arvores, que era um passaro e que esperava ter asas. E, mais, tarde, ele comegou a coiecionar passaportes, documentos de identidade e fotografias de 89 Elisabeth Roudinesco paisagens estrangeiras. Ele afirmava que Ihe tinham dado um nome que nfo era o seu. Como vocé pode ver, seu inconsciente sabia algo que ele ndo conhecia conscientemente: um segredo de familia. Tinham escondido dele a verdade sobre suas origens ¢ isso 0 fazia softer. Isso mostra que o inconsciente ndo se engana. Voc’ acha, entio, que devemos dizer a verda- de ds criangas? ~ Sim, é preciso encontrar as palavras cer- tas para dizé-la, pois, de todo modo, assim comonaslendasenos mitos, quandoas crian- gas crescem elas acabam sempre por conhe- cé-la. Ela habita sua meméria inconsciente. 90, 7 Os animais tém inconsciente? ~ Quando sonho, vejo animais. Isso quer dizer que o inconsciente estd cheio de animais? ~ Esses animais que voce vé no sonho so quimeras, isto é, monstros compostos, por exemplo, de uma cauda de cachorro, um cor- po de cabra com asas, uma cabeca humana, dentes de ledo e patas de elefante. — Mas por que animais? ~Porque os animais séo, desde sempre, os companheiros dos humanos, sejam eles sel- vagens ou domésticos. Nes sociedades primi- tivas, um animal pode servenerado como um. deus, como um ser mitico - um totem - que Elisabeth Roudinesco designaoancestral deum la. Vocé certamen- te ja viu totens indigenas ou afficanos nos museus. Sdo esculturas magnificas. Além disso, os deuses e as deusas podem ter uma feicao humana ou animalesca, ou ambas ao mesmo tempo. Sé as religides monoteistas banirama figuradoanimaldivinizado, exceto para pé-lo no inferno. O diabo, por exemplo, seja qual for o seu nome deménio, Sata ou outro qualquer -, é sempre um animal. Bum anjo decaido que personifica o mal. — Nés nao somos descendentes dos macacos? — f claro, nés pertencemos a familia dos hominfdeos, isto é, dos primatas que cha- mamos de macacos: os chimpanzés. Perten- cemos, em parte, ao reino animal dos ma miferos, aqueles que alimentam os filhotes com leite. Mas isso nao quer dizer que o ser humano seja um macaco, um gato, um rato ‘ou um cio, Mas voct disse que algumas pessoas podem ter a convicgio de que sao outra coisa além delas mes- mas. Bem, eu tenho uma amiga que estd convenc: da de que, por amar os gatos, ela teria sido wm gato em outra vida. = Nao é apenas um delirio ou uma brin- cadeira. Algumas religides pregam a crenca 2 O inconsciente explicado ao meu nero na metempsicose, isto &, a ideia da transmi- gtagdo da alma de um corpo a outro, inclusi- ve 0 de um animal. Nesse caso, nao se deve comer o animal. ~ Se 0 nosso inconsciente esté povoado de ani- ais, isso quer dizer que os animais sonham com os seres humanos? ~ Nao é possivel saber, jé que os animais no podem contar os seus sonhos. —Mas como sabemas que eles sonharn? — Porque eles soltam gritos durante o so- no, $6 0s humanos tém conhecimento da da dos animais. —Se os animais sonham, isso quer dizer que eles tém inconsciente? —Durante muito tempo seconsiderou que 0s animais, como os escravos e os loucos, exam coisas. Dizia-se, aliés, que eles eram inconscientes porque obedeciam a orcas as- sassinas. Portanto, era preciso domesticé-los ou prendé-los em jaulas, ou entao deix4-los esfomeados para ensiné-los a matar gente. Como 08 loucos, os animais foram presos em centros de estudo € depois em zoolégi- cos, onde eram expostos 4 visitacao publica. 93 Elisabeth Roudinesco = Portanto, ser inconsciente significa ser louco ou ser um animal? De certa maneira, sim. Em todo caso, 08 animais eram considerados loucos: des- providos de razao ou de consciéncia. E é por motivos idénticos que, durante séculos, os anormais foram comparados aos animais. — Os anormais? = Sim, os corcundas, os andes, os albinos, os mongoloides, os siameses, as pessoas com mé-formacio fisica ou, ainda, as crianeas sel- vagens que, abandonadas ao nascer, sobre- vivem nas florestas sem nunca aprender a falar. Outrora eles eram exibidos em citcos ou entao eram confiados a cientistas € mé- dicos para serem analisados. Porém, com as conquistascoloniais, também foram tratados da mesma maneira os povos originarios, os selvagens, os indios e os afticanos. Durante muito tempo as pessoas se perguntaram se eles tinham alma ou consciéncia. —Mas, justamente, como vocé disse, ter um in- consciente no é a mesma coisa que ser inconsciente. = Realmente, ¢ é por isso que hoje nao se diz mais que 0 louco ou o animal é incons- ciente. Nés sabemos que os animais sofrem, 94 © inconsciente explicado ao meu neto tém emogGes e que, mesmo que nao possuam nenhuma representacao da morte, eles ex- perimentam sensacdes quando um de seus familiares est4 agonizando. Nao podemos dizer que eles tém um inconsciente como 0 nosso porque eles no tém nem conscién- cia, nem razo, nem linguagem para expri- mi-lo. Mas os animais — principalmente os hominideos e alguns mam(feros ~ tem um inconsciente dito “cognitivo”, isto 6, um in- consciente capaz de imprimir nos neurénios © que acontece ao seu redor. — Portanto, a diferenga entre o ser humano e 0 animal éque no ser humane o inconsciente se expri- ‘me por meio da linguagem, ao passo que no animal ele ndo se exprime, mas registra sensagdes. ~ De fato, nesse seatido pode-se dizer que existe um inconsciente no animal, mas isso nao tem nada aver com o inconsciente humano. — Mas eu li que cientistas muito sévios afirmam que néio existe nenhuma diferensa entre o cérebro deum macaco ¢0 nosso, eque épossivel até ensinar um macaco a se tornar um ser humano. ~ Sim, é claro. E possivel domesticar os macacos para fazé-los parecer aos seres 95 Elisabeth Roudinesco humanos, ¢ domesticar os homens para imi- tar os macacos. Alguns cientistas acreditam até mesmo que o cérebro humano é uma mé- quina neuronal autossuficiente para pensar ou criar obras de arte. Alguns afirmam ser capazes de construir uma méquina para re- gistrar ou interpretar os sonhos estudando a maneira como os neur6nios funcionam no cérebro. Também existem psicdlogos e fil6- sofos que esto convencidos de que barreira entre as espécies nao existe, que os humanos ¢ 0s hominideos se parecem tanto que de- veriam poder ser casar. Iniimetos cientistas também pensam que os seres humanos e os macacos possuem um inconsciente idénti- co, ¢ eles sonham em fazer os macacos falar edetectar 0 contetido dos seus pensamentos nos neurénios. = Mas existem seres humanos privados de lin- _guagem e que continuam a pensar? ~ Evidentemente. E 0 caso de todos aque- les que tém doengas, mas-forma¢Ses ou ano- malias cerebrais, neurolégicas ou genéticas. Eles perdem o uso da linguagem, da fala ou da capacidade de pensar. Apesar disso, po- rém, eles no se assemelham aos animais, que nunca tiveram essa capacidade. 96 © inconsciente explicado ao meu nero = Mas, entao, como definir 0 inconsciente animal? ~O inconsciente animal seria, na verda- de, a manifestagio de uma atitude natural e de um instinto. = O que éinstinto? ~ £ um comportamento intuitivo ¢ here- ditério proveniente da natureza. Ble resulta de um mecanismo fisiolégico. Por exemplo: © caminhar (locomogio), 0 medo, o acasa- lamento (reprodugdo), a necessidade de se alimentar (nutrigao), a audicao, 0 olfato, 0 paladar, as expressdes dos olhos e do rosto, a agressfo, o fato de se agrupar para se pro- teger do perigo (instinto gregério). = Nido existe instinto ertre os humanos? ~ Nao exatamente, pois, diferentemente dos animais, os humaaos sio seres dividi- dos entre a natureza e 2 cultura. Eles falam, inventam mitos, pensam, tém desejos e néo apenas necessidades. Fala-se de “instinto” entre os humanos quando se pretende indi- car, geralmente de maneira pejorativa, a pre~ senga de um resto de animalidade neles. Na verdade, para os humanos, falamos mais de ” Elisabeth Roudinesco pulsio, isto é, de uma forca inconsciente, um impulso ao mesmo tempo psiquico e sométi- co situado entre 0 corpo ea mente. —Esse também é um conceito freudiano? = Sim, mas outros antes dele jé haviam pensado nisso, justamente para diferenciar 0 animal do homem. Freud classificou as pul- sdes da mesma maneira que descreveu as re- gides do inconsciente. Ele distingue a pulsio de vida (o amor, a reprodugao, o desejo) da pulsdode morte, que nos impele a destruigao dos outros e de nés mesmos: oassassinato, a guerra, o suicidio, Embora sejam inconscien- tes, sabemos que as pulsdes existem. — Por que dizemos que um comportamento hu- mano é animal? Nés néio acusamos os animais de serem humanos despreziveis, entdo por que dizemos “animal desprezivel”? ~Vocé deve saber que um fildsofo francés acusou Freud de ter inventado com a psica- nélise “uma psicologia de macaco”, 0 que, em sua boca, nfo era mais amavel para os homens que para os macacos. E, aids, os ra- cistas comparam os negros 20s macacos. Mas 05 tempos mudaram, Atualmente se critica Freud por nfo ter inventado uma psicologia 98 © inconsciente explicado ao meu neto do macaco valida pare os seres humanos. Outrora, consideravamos “animalesca” toda abordagem da sexualidade humana, e agora €0 contratio. Acreditamos que os macacos s40 muito mais dotados que os humanos Jos. para fazer amor e que é preciso imi = O que fazer com os animais? ~Naverdade, nao devemos nos servir dos animais para rebaixar os seres humanos, nem. comparar os seres humanos aos animais, nem maltratar uns para valorizar os outros. Nés convivemos com os animais, temos inti- meras caracteristicas em comum com eles, mas existe uma barreira que nao se deve ul- trapassar entre o reino animal e o reino dos. humanos: uma barreirade espécies. E por is- 50, alids, que a zoofilia (envolvimento sexual com 0s animais) é considerada uma cruelda- de. Pois o animal nao tem livre-arbitrio, ele nao pode escolher seu parceiro. — Mas ji que existe wma continuidade entre o mundo animal e 0 mundo humano, diga-me o que é comum aos dois mundos? ~O vinculo, a perdae a separacéo. Assim como nés, os animais tém necessidade, ao nascer, de um contato fisico com a mae (ou 99 Elisabeth Roudinesco com um substituto), sendoeles nao se desen- volvem bem. Eles sofrem com a perda desse contato, eé porisso que, quando o objeto pri- meiro do vinculo desaparece, eles se sentem abandonados, como nés, ¢ procuram outro em seu grupo: vocé assistiu a isso varias vezes na televisdo nos documentérios dedicados aos macacos ou aos elefantes. Enfim, como 1nés, os animais devem se separardaquelaque os alimentou: é 0 chamado desmame. Outro dia, vocé me emprestow um livro de que eu gostei muito: Os cativos do zoo. A autora, Vera Hegi, guarda de zooldgico em Moscow em 1930, conta hist6rias horrtveis de animais apri- sionados ou maltratados. Nossa conversa me fez ‘pensar nisso agora. ~ Nesse livro, Vera Hegi descreve os ani- mais confrontados a0 mundo dos humanos: a fitria do tigre real que se recusa a comer na presenca dos seus guardadores, a histéria do urso morto de emogao depois de ter espan- cado uma companheira que Ihe havia sido imposta, ou ainda a aventura de uma jovem elefanta. Certo dia, um visitante Ihe estende um pao. Ela pega o pao, o reduz a migalhas e depois rejeita coma tromba uma lamina de navalha cuidadosamente escondida no pao. 100 inconsciente explicado ao meu neto O visitante queria saber se o animal tinha consciéncia da presenga dessa arma mortal. Teve a resposta. ‘Mas como a elefanta conseguiu perceber que o visitante Ihe estendia uma armadilha? ~ Ela nao percebeu, mas sentiu. £ isso 0 instinto. Os animais presos no sio iguais aos animais em liberdade. Eles se acostu- mam a ver desfilar diante deles uma multi- dao barulhenta, ¢ ainda mais agressiva pe- lo fato de nao correr o risco de ser atacada, como na selva. Os visitantes dos zoolégicos. ficariam aterrorizados se encontrassem em plena natureza animais em liberdade que poderiam maté-los. Mas, diante de animais presos, alguns deles se vingam desafiando- -os, humilhando-os e estendendo-lhes ar- madilhas. Consequentemente, os animais se adaptam a esse novo perigo a ponto de, as vezes, ludibrié-lo. ~ Voc® parece dizer que os humanos siio mais crudis que os animais. Mas eu assisti na televisao a vérios documentdrios sobre cs animais selvagens. E torrivel, eles se devoram entre si, os mais fortes ata- cam ferozmente os mais fraces. ~ Sim, é claro, mais isso nfo tem nada a ver com os humanos. Os animais obedecem 101 Elisabeth Roudinesco as leis da natureza. Em nenhum momento eles sentem prazer em matar, S6 0s humanos cometem crimes, organizam massacres ou inventam torturas para provocar sofrimento Nos seus semelhantes. $6 os humanos humi- Iham osanimais, tingindo-Ihes pelo, cortan- do-lhes as patas ou as asas, fazendo-os usar éculos para cagoar deles, treinando-os para matar. S6 os humanos séo capazes das pio- res perversdes. — Perversies? ~ Perverter significa desviar, inverter, vi- rar do avesso, inverter, transformar o bem ‘em mal ou, ainda, gostar de se destruir ou destruir os outros, comportar-se como um carrasco. Os animais nao sao perversos, pois eles nao destroem nada pelo prazer de des- truit. Os animais sao seres sem ambivaléncia, que no tém nem subjetividade, nem supe- rego, nem linguagem, nem inconsciente no sentido humano. Eles existem, vivem, mor- rem, sofrem e se reproduzem. ~ Mas nds podemos, de todo modo, treinar os animais para transformd-los em assassinos? ~ Correto. E vocé sabe que os nazistas ti- veram a ideia de substituir as sentinelas dos 102 © inconscience explicado ao meu neto campos de concentracao por ces ou, ainda, de obrigé-los a vigiar os detentos. Mas es- sas tentativas nao deram nenhum resultado: mesmo treinados para devorar os prisionei- Tos, 0s c4es no conseguiam se igualar aos nazistas que os tinham transformado em as- sassinos. A “besta imurda” nfo é o animal, e sim o ser humano. ~ Os animais se comem entre sie nbs comemos 0s animais. Isso é uma perversdo? ~ Nao, os humanos so naturalmente car- nivoros; portanto, comer o animal é natural ao ser humano. Mas como nés temos cons- ciéncia do fato de que matar é um ato bér- baro, somos sensiveis 20 softimento dos animais. O que é cruel é matar inutilmen- te animais, fazé-los so‘ter ou transformé- -los em carne enquanto esto vivos, nas cria- Ges industriais intensivas. ~ Mas os seres humanos nao sao simplesmente destruidores? ~ Como os seres hurranos so capazes de todos os crimes possiveis, eles também sio capazes dos gestos-mais sublimes: morrer pela liberdade, amar com paixio, combater as desigualdades, aspirar a uma sociedade 103

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