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WU aaa: Contetdos de Ensino Estudamos até aqui as tarefas da escola piblica democratica na esco- larizagao basica e a importincia de uma concepgio pedagégico-didética para orientar 0 desempenho dessas tarefas pelos professores. No capitulo 4, 0 processo didético foi caracterizado como mediagdo escolar de objetivos-contetidos-métodos apoiada no processo de ensino ¢ aprendizagem, tendo em vista as finalidades da instrugio e da educagao em nossa sociedade. Neste capftulo € no seguinte estudaremos mais deta- Ihadamente a relagio entre esses componentes do processo de ensino, aler- tando desde ja sobre a unidade objetivos-contetidos ¢ destes com os métodos. Os objetivos antecipam resultados e processos esperados do trabalho conjunto do professor ¢ dos alunos, expressando conhecimentos, habilidades € habitos (contetidos) a serem assimilados de acordo com as exigéncias metodolégicas (nivel de preparo prévio dos alunos, peculiaridades das ma- térias de ensino e caracteristicas do processo de ensino e aprendizagem). Os contetidos formam a base objetiva da instrugdio — conhecimentos sistematizados ¢ habilidades — referidos aos objetivos e viabilizados pelos métodos de transmissio e assimilagio. 119 Os métodos, por sua vez, so determinados pela relagio objetivo-con- teiido e dio a forma pela qual se concretiza esta relagdo em condigdes didaticas especificas; ao mesmo tempo, pelo fato de caber aos métodos a dinamizago das condigdes e modos de realizado do ensino, eles influem na reformulago ou modificago dos objetivos e contetidos. Neste capitulo serdo tratados os seguintes temas: jportincia dos objetivos educacionais; objetivos gerais ¢ objetives especificos; 0s contedidos de ensino; critérios de selegdo dos contetidos. oooo Aimportancia dos objetivos educacionais Em varios momentos do nosso estudo temos feito referéncia a impor- tancia dos objetivos no trabalho docente. Nos capitulos iniciais examinamos, detidamente, 0 fato de que a pratica educativa € socialmente determinada, pois responde as exigéncias e expectativas dos grupos ¢ classes sociais, existentes na sociedade, cujos propésitos so antagonicos em relagdo ao tipo de homem a educar e is tarefas que este deve desempenhar nas diversas esferas da vida pritica. Procuramos destacar, especialmente, que a prética educativa atua no desenvolvimento individual e social dos individuos, pro- porcionando-lhes os meios de apropriago dos conhecimentos e expe- rigncias acumuladas pelas geragdes anteriores, como requisito para a elaboragdo de conhecimentos vinculados a interesses da populagio ma- joritaria da sociedade. Dessas consideragées podemos concluir que a prética educacional se orienta, necessariamente, para aleangar determinados objetivos, por meio de uma agio intencional e sistemitica. Os objetivos educacionais expressam, portanto, propésitos definidos explicitos quanto 20 desenvolvimento das qualidades humanas que todos os individuos precisam adquirir para se ca- pacitarem para as lutas sociais de transformagio da sociedade. O carter pedagégico da pritica educativa est, precisamente, em explicitar fins e meios que orientem tarefas da escola e do professor para aquela diregio. Em resumo, podemos dizer que no ha prética educativa sem objetivos. Os objetivos educacionais t@m pelo menos trés referencias para sua formulagio: 1D os valores € ideais proclamados na legislago educacional e que ex- ppressam os propésitos das forgas politicas dominantes no sistema social; 120 Dos contetidos bisicos das ciéncias, produzidos e elaborados no decurso da prética social da humanidade; © as necessidades e expectativas de formagio cultural exigidas pela po- pulago majoritéria da sociedade, decorrentes das condigGes concretas de vida e de trabalho e das lutas pela democratizacio, Essas trés referéncias no podem ser tomadas isoladamente, pois esto interligadas e sujeitas a contradigdes. Por exemplo, os contetidos escolares estdo em contradigao néo somente com as possibilidades reais dos alunos em assimilé-los como também com os interesses majoritérios da sociedade, na medida em que podem ser usados para disseminar a ideologia de grupos e classes minoritérias. © mesmo se pode dizer em relago aos valores e ideais proclamados na legislago escolar. Isso significa que a elaboragio dos objetivos pressupde, da parte do professor, uma avaliagio critica das referéncias que utiliza, balizada pelas suas opgdes em face dos determinantes s6cio-politicos da pratica educativa. Assim, 0 professor precisa saber avaliar a pertinéncia dos objetivos e con- tetidos propostos pelo sistema escolar oficial, verificando em que medida atendem exigéncias de democratizacao politica e social; deve, também, saber compatibilizar os contetidos com necessidades, aspiragées, expecta- tivas da clientela escolar, bem como tornd-los exeqlfveis face ds condigdes sécio-culturais ¢ de aprendizagem dos alunos. Quanto mais o professor se perceber como agente de uma prética profissional inserida no contexto mais amplo da prética social, mais capaz ele sera de fazer correspondéncia entre os contetidos que ensina e sua relevancia social, frente As exigéncias de transformagio da sociedade presente e diante das tarefas que cabe a0 aluno desempenhar no ambito social, profissional, politico e cultural Os professores que nfo tomam partido de forma consciente e critica ante as contradigGes sociais acabam repassando para a pratica profissional valores, ideais, concepedes sobre a sociedade e sobre a crianga contrarios aos interesses da populagiio majoritéria da sociedade. s objetivos educacionais sio, pois, uma exigéncia indispensavel para © trabalho docente, requerendo um posicionamento ative do professor em sua explicitagdo, seja no planejamento escolar, seja no desenvolvimento das aulas. Consideraremos, aqui, dois niveis de objetivos educacionais: objetivos gerais e objetivos especificos. Os objetivos gerais expressam propésitos mais amplos acerca do papel da escola e do ensino diante das exigéncias postas pela realidade social e diante do desenvolvimento da personalidade dos alunos. Definem, em grandes linhas, perspectivas da pritica educativa na sociedade brasileira, que serdio depois convertidas em objetivos espect- 121 ficos de cada matéria de ensino, conforme os graus escolares ¢ niveis de idade dos alunos. Os objetivos especificos de ensino determinam exigéncias € resultados esperados da atividade dos alunos, referentes a conhecimentos, habilidades, atitudes e conviegdes cuja aquisicao e desenvolvimento ocor~ rem no proceso de transmissio ¢ assimilacdo ativa das matérias de estudo. futuro professor pode assustar-se com tantos objetivos e pode estar perguntando-se como dard conta de realizé-los, ou se realmente eles sio necessérios para o seu trabalho cotidiano em sala de aula. Na verdade, nao devemos ter diividas de que o trabalho docente é uma atividade que envolve conviegdes e opgdes sobre 0 destino do homem e da sociedade, e isso tem a ver diretamente com 0 nosso relacionamento com os alunos. Em outras palavras, isso significa que, conscientemente ou no, sempre trabalhamos com base em objetivos. Todo professor, quando elabora uma prova para 68 seus alunos, conscientemente ou nao, esta pensando em objetivos. Com isso queremos mostrar que, embora nao participe diretamente da elaboragio dos objetivos gerais do sistema escolar, 0 professor pode par- ticipar indiretamente, através das associagées profissionais, discutindo e Propondo alteragdes. Ja no nivel dos objetivos da escola ele participa di- retamente, pois o trabalho escolar deve ser necessariamente uma agio co- letiva. No plano de ensino, sua responsabilidade é mais direta ainda; mesmo trabalhando com outros colegas (0 que ¢ desejvel), é 0 seu plano que ird orientar sua pritica cotidiana na sala de aula, diante dos alunos. Por todas essas razGes € de fundamental importincia que o professor estude e forme convicgdes préprias sobre as finalidades sociais, politicas e pedagégicas do trabalho docente; sobre o papel da matéria que leciona na formagio de cidadios ativos © participantes na sociedade; sobre os melhores métodos que concorrem para uma aprendizagem s6lida e duradoura por parte dos alunos. A fim de auxiliar os futuros professores na formagio de suas proprias convicgdes pedagégicas, faremos algumas consideragdes sobre os objetivos gerais e especificos do ensino. Objetivos gerais e objetivos especificos Os objetivos so o ponto de partida, as premissas gerais do processo pedagégico. Representam as exigéncias da sociedade em relagio & escola, a0 ensino, aos alunos e, ao mesmo tempo, refletem as opgdes politicas e pedagégicas dos agentes educativos em face das contradi¢Ges sociais exis- tentes na sociedade. 122 Os objetivos gerais sao explicitados em trés niveis de abrangéncia, do mais amplo ao mais especifico: a) pelo sistema escolar, que expressa as finalidades educativas de acordo com ideais e valores dominantes na sociedade; b) pela escola, que estabelece principios e diretrizes de orientago do trabalho escolar com base num plano pedagégico-didatico que repre- sente 0 consenso do corpo docente em relagdo & filosofia da educagao © A pratica escolar; ©) pelo professor, que concretiza no ensino da matéria a sua prépria visio de educagao e de sociedade. Ao considerar os objetivos gerais e suas implicagdes para o trabalho docente em sala de aula, 0 professor deve conhecer os objetivos estabele- cidos no ambito do sistema escolar oficial, seja no que se refere a valores ¢ ideais educativos, seja quanto as prescrigGes de organizagio curricular e programas basicos das matérias. Esse conhecimento é necessario ndo apenas Porque o trabalho escolar est4 vinculado a diretrizes nacionais, estaduais € municipais de ensino, mas também porque precisamos saber que con- cepgdes de homem e sociedade caracterizam os documentos oficiais, uma vez. que expressam os interesses dominantes dos que controlam os érgdos piblicos. Na sociedade de classes, como € a brasileira, os objetivos da educagZo nacional nem sempre vdo expressar os interesses majoritérios da populagao, mas, certamente, podem incorporar aspiragdes ¢ expectativas decorrentes das reivindicagées populares. E preciso que o professor forme uma atitude critica em relagio a esses objetivos, de forma a identificar os que convergem para a efetiva democratizagao escolar e os que a cerceiam. Para isso, deve ter clareza de suas convicgdes politicas e pedagdgicas em relagio ao trabalho escolar, ou seja: 0 que pensa sobre o papel da escola na formacio de cidadaos ativos e participantes na vida social, sobre a relacdo entre 0 do- minio de conhecimentos e habilidades ¢ as lutas sociais pela melhoria das condigdes de vida ¢ pela ampla democratizagao da sociedade; como fazer para derivar dos objetivos amplos aqueles que correspondem as tarefas de transformagio social, no Ambito do trabalho pedagégico concreto nas escolas ¢ nas salas de aula. Isto indica que ndo se trata simplesmente de copiar os objetivos e contetidos previstos no programa oficial, mas de reavalid-los em fungio de objetivos sécio-politicos que expressem os interesses do povo, das con- digdes locais da escola, da problemética social vivida pelos alunos, das peculiaridades sécio-culturais e individuais dos alunos. Nesse sentido, 123 alguns objetivos educacionais gerais podem auxiliar os professores na se- lego de objetivos especificos e contetidos de ensino. © primeiro objetivo € colocar a educagio escolar no conjunto das lutas pela democratizagiio da sociedade, que consiste na conquista, pelo conjunto da populacdo, das condigdes materiais, sociais, politicas e culturais através das quais se assegura a ativa participagao de todos na direcio da sociedade. A educagio escolar pode contribuir para a ampliagao da com- preensio da realidade, na medida que os conhecimentos adquiridos instru- ‘mentalizem culturalmente os alunos a se perceberem como sujeitos ativos nas lutas sociais presentes. O segundo objetivo consiste em garantir a todas as criangas, sem ne- nhuma discriminagio de classe social, cor, religio ou sexo, uma sélida Preparagdo cultural e cientifica, através do ensino das matérias. Todas as criangas tém direito ao desenvolvimento de suas capacidades fisicas e men- tais como condigio necesséria a0 exercfcio da cidadania e do trabalho. Esse objetivo implica que as escolas no s6 se empenhem em receber todas, as criangas que as procurem como também assegurem a continuidade dos estudos. Para isso, todo esforco seré pouco no sentido de oferecer ensino sélido, capaz de evitar as reprovacdes. O terceiro objetivo é o de assegurar a todas as criangas 0 méximo de desenvolvimento de suas potencialidades, tendo em vista auxilid-las na su- peragdo das desvantagens decorrentes das condigées sécio-econdmicas des- favoraveis. A maioria das criangas é capaz de aprender e de desenvolver suas capacidades mentais. Este objetivo costuma figurar nos planos de en- sino como “auto-realizagao”, “desenvolvimento das potencialidades” etc., mas, na prética, os professores prestam atenco somente nos alunos cujas potencialidades se manifestam € ndo se preocupam em estimular potencia- lidades daqueles que no se manifestam ou nao conseguem envolver-se ativamente nas tarefas. O ensino democratico supde, portanto, a adequagio metodolégica as caracteristicas sécio-culturais e individuais dos alunos e as suas possibilidades reais de aproveitamento escolar. © quarto objetivo é formar nos alunos a capacidade eritica e criativa em relagio as matérias de ensino e a aplicagdo dos conhecimentos ¢ ha- bilidades em tarefas te6ricas e priticas. A assimilagio ativa dos contetidos toma significado e relevancia social quando se transforma em atitudes ¢ conviegdes frente dos desafios postos pela realidade social. Os objetivos da escolarizagio nio se esgotam na difusdo dos conhecimentos sistemati zados; antes, exigem a sua vinculagdo com a vida prética, O professor niio conseguir formar alunos observadores, ativos, criativos frente aos desafios da realidade se apenas esperar deles a memorizago dos contetidos. Deve, 124 a0 contréio, ser capaz de ajudé-los a compreender os conhecimentos, pensar sobre eles, ligé-los aos problemas do meio circundante, A capacidade critica e criativa se desenvolve pelo estudo dos contetidos € pelo desenvolvimento de métodos de raciocinio, de investigagio e de reflexio. Através desses meios, sob a dirego do professor, os alunos vao ampliando o entendimento, to objetivo quanto possivel, das contradigdes € conflitos existentes na sociedade. Uma atitude critica nao significa, no entanto, a apreciagdo desfavordvel de tudo como se ser “critico” consistisse somente em apontar defeitos nas coisas. Atitude critica é a habilidade de submeter os fatos, as coisas, os objetos de estudo a uma investigagao mi- nuciosa ¢ reflexiva, associando a eles os fatos sociais que dizem respeito & vida cotidiana, aos problemas do trabalho, da cidade, da regifio. © quinto objetivo visa atender a fungdo educativa do ensino, ou seja, a formagio de conviegdes para a vida coletiva. O trabalho do professor deve estar voltado para a formacio de qualidades humanas, modos de agit em relago ao trabalho, ao estudo, & natureza, em concordancia com prin- cfpios éticos. Implica ajudar os alunos a desenvolver qualidades de cardter como a honradez, a dignidade, o respeito aos outros, a lealdade, a disciplina, a verdade, a urbanidade e cortesia. Implica desenvolver a consciéncia de coletividade e o sentimento de solidariedade humana, ou seja, de que ser membro da sociedade significa participar e agir em fungio do bem-estar coletivo, solidarizar-se com as lutas travadas pelos trabalhadores, vencer todas as formas de egofsmo ¢ individualismo. Para que os alunos fortalegam suas convicgdes, 0 professor precisa saber colocar-Ihes perspectivas de um futuro melhor para todos, cuja conquista depende da atuagdo conjunta nas varias esferas da vida social, inclusive no ambito escolar. Ainda em relagio ao atendimento da fungio educativa do ensino de- vernos mencionar a educagio fisica e a educagio estética. A educacio fisica e os esportes ocupam um lugar importante no desenvolvimento in- tegral da personalidade, no apenas por contribuir para o fortalecimento da satide, mas também por proporcionar oportunidades de expresszio cor- poral, auto-afirmacio, competicdo construtiva, formagio do carter e de- senvolvimento do sentimento de coletividade. A educagao estética se realiza mais diretamente pela educagao artistica, na qual os alunos aprendem o valor da arte, a apreciag3o, o sentimento eo desfrute da beleza expressa nna natureza, nas obras artisticas, como misica, pintura, escultura, arquite- tura, folclore e outras manifestagdes da cultura erudita e popular. A educagio artistica contribui para o desenvolvimento intelectual, assim como para a patticipacdo coletiva na produgZo da cultura e no usufruto das diversas ‘manifestagdes da vida cultural. 125 O sexto objetivo educacional se refere & instituigao de processos par- ticipativos, envolvendo todas as pessoas que direta ou indiretamente se telacionam com a escola: diretor, coordenador de ensino, professores, fun- cionérios, alunos, pais, A par do aspecto educativo da organizagio de formas cooperativas de gestio do trabalho pedagégico escolar, é de fundamental importancia o vinculo da escola com a familia e com os movimentos soci (associagées de bairro, entidades sindicais, movimento de mulheres etc.). O conselho de escola exerce uma atuacio indispensdvel para o cumprimento dos objetivos educativos. Esses objetivos nio esgotam a riqueza da ago pedagégica escolar em relagdo & formagio individual e social dos alunos em sua capacitagao para a vida adulta na sociedade. Entretanto, podem servir de orientagio para 0 professor refletir sobre as implicagdes sociais do seu trabalho, sobre o Papel da matéria que leciona na formagao de alunos ativos e participantes € sobre as formas pedagégico-didéticas de organizagio do ensino. Com essa visio de conjunto do trabalho escolar e com a programagio oficial indicada pelos érgios do sistema escolar, 0 professor esté em con- digdes de definir os objetivos especificos de ensino. Os objetivos especificos particularizam a compreensio das relagdes entre escola ¢ sociedade e especialmente do papel da matéria de ensino. Eles expressam, pois, as expectativas do professor sobre o que deseja obter dos alunos no decorrer do proceso de ensino. Tém sempre um candter pedagégico, porque explicitam 0 rumo a ser imprimido ao trabalho escolar, em torno de um programa de forme ‘A cada matéria de ensino corespondem objetivos que expressam re- sultados a obter: conhecimentos, habilidades e hdbitos, atitudes e convic~ Ges, através dos quais se busca o desenvolvimento das capacidades cognos- citivas dos alunos. H4, portanto, estreita relagdo entre os objetivos, os con- tetidos € os métodos. Na verdade, os objetivos contém a explicitagio pe- dagégica dos contetidos, no sentido de que os contetidos sio preparados pedagogicamente para serem ensinados e assimilados. J4 apontamos, no inicio do nosso estudo, o que significa esse cardter pedagégico do ensino. (No capitulo sobre planejamento de ensino, os estudantes poderao encontrar mais detalhes a respeito da formulagio de objetivos especificos.) O professor deve vincular os objetivos especificos aos objetivos gerais, sem perder de vista a situagdo concreta (da escola, da matéria, dos alunos) em que serdo aplicados. Deve, também, seguir as seguintes recomendagGes: &__ especificar conhecimentos, habilidades, capacidades que sejam funda- ‘mentais para serem assimiladas € aplicadas em situagdes futuras, na escola e na vida pratica; 126 © observar uma sequéncia l6gica, de forma que os conceitos e habilidades estejam inter-relacionados, possibilitando aos alunos uma compreensio de conjunto (isto é, formando uma rede de relagdes na sua cabeca); 1 expressar 0s objetivos com clareza, de modo que sejam compreenstveis aos alunos e permitam, assim, que estes introjetem os objetivos de ensino como objetivos seus; © dosar o grau de dificuldades, de modo que expressem desafios, pro- blemas, questdes estimulantes e também vidveis; 2 sempre que possfvel, formular os objetivos como resultados a atingir, facilitando 0 processo de avaliago diagnéstica e de controle; 3 como norma geral, indicar os resultados do trabalho dos alunos (uv que devem compreender, saber, memorizar, fazer etc.) Os contetdos de ensino A relevancia e 0 lugar que os conteiidos de ensino ocupam na vida escolar foram reiterados em diversos momentos dos nossos estudos de Di- dética. Desde o inicio deste trabalho vimos afirmando que a escola tem por principal tarefa na nossa sociedade a democratizagiio dos conhecimen- tos, garantindo uma cultura de base para todas as criangas e jovens. Assi- nalamos, depois, que essa tarefa é realizada no processo de enssino, no qual se conjugam a atividade de diregdo e organizagao do ensino pelo professor € a atividade de aprendizagem e estudo dos alunos. Temos, assim, 0 ensino como atividade especifica da escola, em cujo centro esté a aprendizagem € estudo dos alunos, isto é, a relag3o cognoscitiva do aluno com as matérias de ensino; 0 processo diditico como mediagio de objetivos e conteddos tendo em vista a aprendizagem dos alunos. Se perguntarmos a professores de nossas escolas o que stio 0s conteiidos de ensino, provavelmente responderdo: so os conhecimentos de cada ma- téria do curriculo que transmitimos aos alunos; dar conteddo é transmitir a matéria do livro didético. Essa idéia nao é totalmente errada. De fato, no ensino hé sempre trés elementos: a matétia, o professor, 0 aluno. O problema esta em que os professores entendem esses elementos de forma linear, mecdnica, sem perceber o movimento de ida e volta entre um € outro, isto &, sem estabelecer as relagdes reciprocas entre um e outro. Por causa disso, o ensino vira uma coisa mecdnica: 0 professor passa a matéria, 6s alunos escutam, repetem e decoram 0 que foi transmitido, depois resol- vem meio maquinalmente os exercicios de classe ¢ as tarefas de casa; af reproduzem nas provas 0 que foi transmitido e comega tudo de novo. 127 Esse entendimento sobre os contetidos de ensino é insuficiente para compreendermos o seu verdadeiro significado. Primeiro, porque sio toma- dos como estéticos, mortos, cristalizados, sem que os alunos possam re- conhecer neles um significado vital. Segundo, porque subestima a atividade mental dos alunos, privando-os da possibilidade de empregar suas capaci- dades ¢ habilidades para a aquisigao consciente dos conhecimentos, Ter- ceiro, porque 0 ensino dos contetidos fica separado das condigdes sécio- culturais ¢ individuais dos alunos ¢ que afetam o rendimento escolar. O ensino dos contetidos deve ser visto como @ ago reciproca entre a matéria, 0 ensino e 0 estudo dos alunos. Através do ensino criam-se as condigdes para a assimilagao consciente e sélida de conhecimentos, habi- lidades ¢ atitudes e, nesse proceso, o alunos formam suas capacidades ¢ habilidades intelectuais para se tornarem, sempre mais, sujeitos da prépria aprendizagem. Ou seja, a matéria a ser transmitida proporciona determi nados procedimentos de ensino, que, por sua vez, levam a formas de or- ganizacao do estudo ativo dos alunos. Sendo assim, no basta a selegio € organizagio l6gica dos contetidos ara transmiti-los. Antes, os préprios contetidos devem incluir elementos da vivencia pratica dos alunos para tomné-los mais significativos, mais vivos, mais vitais, de modo que eles possam assimilé-los ativa e conscientemente. Ao mesmo tempo, 0 dominio de conhecimentos ¢ habilidades visa, espe- cificamente, o desenvolvimento das capacidades cognoscitivas dos alunos, isto €, das fungGes intelectuais entre as quais se destaca o pensamento independente ¢ criativo. Para uma melhor compreensao destas idgias, de- senvolveremos os seguintes t6picos: 0 que so os contetidos de ensino; quais so os elementos que compéem os contetidos; quem deve escolhé-los € organizé-los; a dimensdo critico-social dos contetidos. 1. O que séo os contetidos Contetidos de ensino so conjunto de conhecimentos, habilidade habitos, modos valorativos e atitudinais de atuagdo social, organizados pe. dagégica ¢ didaticamente, tendo em vista a assimilagio ativa e aplicagao pelos alunos na sua pratica de vida. Englobam, portanto: conceitos, idéias, fatos, processos, principios, leis cientificas, regras; habilidades cognoscit vas, modos de atividade, métodos de compreensiio ¢ aplicagdo, habitos de estudo, de trabalho e de convivéncia social; valores, convieg&es, atitudes ‘Sto expressos nos programas oficiais, nos livros didaticos, nos planos de 128 ensino e de aula, nas aulas, nas atitudes e conviegSes do professor, nos exercicios, nos métodos e formas de organizagao do ensino. Podemos dizer que os contetidos retratam a experiéncia social da hu- manidade no que se refere a conhecimentos e modos de ago, transfor- ‘mando-se em instrumentos pelos quais os alunos assimilam, compreendem © enfrentam as exigéncias tedricas e priticas da vida social. Constituem o objeto de mediagio escolar no processo de ensino, no sentido de que a assimilagio e compreensio dos conhecimentos e modos de agio se con- vertem em idéias sobre as propriedades e relagdes fundamentais da natureza € da sociedade, formando convicgdes e critérios de orientagao das opgdes dos alunos frente as atividades teéricas e praticas postas pela vida social. Os contetidos sto organizados em matérias de ensino e dinamizados pela articulagiio objetivos-contetidos-métodos e formas de organizagi0 do ensino, nas condigdes reais em que ocorre o processo de ensino (meio social ¢ escolar, alunos, familias etc.). Vejamos de onde sio originados. Os contetidos da cultura, da cigncia, da técnica, da arte e os modos de ago no mundo expressam os resultados da atividade pritica dos homens has suas relagdes com o ambiente natural e social. Nesse processo, os homens vao investigando 0 mundo da natureza e das relagdes sociais elaborando conhecimentos e experiéncias, formando 0 que chamamos de saber cientifico. Nessas condigdes, o saber se torna objeto de conhecimento Cuja apropriagao pelas varias geragdes, no ensino, constitui-se em base para a produgio e a elaborago de novos saberes. Podemos dizer, assim, que os conhecimentos ¢ modos de ago sio frutos do trabalho humano, da atividade produtiva cientifica e cultural de muitas geragdes, no processo da pritica histérico-social. No seio desse mesmo proceso (de atividade prética transformadora pelo trabalho) a he- Tanga recebida da histéria anterior vai sendo modificada ou recriada, de modo que novos conhecimentos sio produzidos e sistematizados. Devemos esclarecer que, quando falamos do saber cientifico produzido pelo trabalho humano, referimo-nos ao trabalho como atividade que ocorre numa sociedade determinada, num momento determinado da histéria. Na sociedade capitalista o saber é predominantemente reservado ao usufruto das classes sociais economicamente favorecidas as quais, freqiientemente, © transformam em idéias e préticas convenientes aos seus interesses e as divulgam como validas para as demais classes sociais. Entretanto, o saber Pertence a classe social que o produz pelo seu trabalho; portanto, deve ser Por ela reapropriado, recuperando 0 seu nticleo cientifico, isto é, aquilo que tem de objetividade e universalidade. 129 Na escola, o conhecimento do mundo objetivo expresso no saber cien- tifico se transforma em conteiidos de ensino, de modo que as novas geragées ossam assimilé-los tendo em vista ampliar o grau de sua compreensio da realidade, e equipando-se culturalmente para a participagio nos processos objetivos de transformagao social. A aquisig’o do dominio te6rico-pritico do saber sistematizado € uma necessidade humana, parte integrante das demais condigdes de sobrevivéncia, pois possibilita a participagio mais plena de todos no mundo do trabalho, da cultura, da cidadania. Eis por que falamos da socializagao ou democratizagao do saber sistematizado. A escolha dos contetidos de ensino parte, pois, deste principio basic 0s conhecimentos ¢ modos de ago surgem da pritica social e hist6rica dos homens ¢ vio sendo sistematizados e transformados em objetos de conhecimento; assimilados e reelaborados, so instrumentos de ago para atuagao na pritica social e histérica. Revela-se, assim, o estreito vinculo entre 0 sujeito do conhecimento (0 aluno) € a sua pritica social de vida (ou seja, as condigées sociais de vida e de trabalho, 0 cotidiano, as priticas culturais, a linguagem etc.). Na escolha dos contetidos de ensino, portanto, leva-se em conta nao $6 a heranga cultural manifesta nos conhecimentos e habilidades mas tam- bém a experiéncia da pratica social vivida no presente pelos alunos, isto €, nos problemas e desafios existentes no contexto em que vivem. Além disso, os contetidos de ensino devem ser elaborados numa perspectiva de futuro, uma vez, que contribuem para a negagio das ages sociais vigentes tendo em vista a construgao de uma sociedade verdadeiramente humanizada. 2. Os elementos dos contetidos de ensino Que elementos da heranga cultural e da pratica social presente devem formar os contetidos de ensino? Que produtos da atividade humana cons- truidos no processo de trabalho devem ser assimilados pelas novas ge- ragdes como base para o desenvolvimento das capacidades especifica- mente humanas? ‘A heranga cultural construida pela atividade humana ao longo da his- t6ria da sociedade € extremamente rica ¢ complexa, sendo impossivel & escola basica abranger todo esse partriménio. E tarefa da Didatica destacar © que deve constituir objeto de ensino nas escolas, selecionando os ele: mentos dos contetidos a serem assimilados ou apropriados pelos alunos, em fungdo das exigéncias sociais e do desenvolvimento da personalidade. 130 Conforme a definigio dada, os contetidos de ensino se compéem de quatro elementos: conhecimentos sistematizados; habilidades e habitos; ati- tudes e conviegdes. Os conhecimentos sistematizados sio a base da instrucdo e do ensino, 08 objetos de assimilago e meio indispensdvel para o desenvolvimento global da personalidade. A aquisigiio e 0 domfnio dos conhecimentos so condigdes prévias para os demais elementos, ainda que a assimilagio destes concorra para viabilizar aqueles. Os conhecimentos sistematizados corres- pondem a conceitos e termos fundamentais das ciéncias; fatos e fenémenos da ciéncia e da atividade cotidiana; leis fundamentais que explicam as propriedades e as relagGes entre objetos e fendmenos da realidade; métodos de estudo da ciéncia e a hist6ria da sua elaboracio; e problemas existentes no Ambito da prética social (contexto econdmico, politico, social e cultural do proceso de ensino e aprendizagem) conexos com a matéria. As habilidades so qualidades intelectuais necessérias para a atividade mental no processo de assimilagio de conhecimentos. Os hdbitos sio modos de agir relativamente automatizados que tornam mais eficaz 0 estudo ativo e independente, Nem sempre € possfvel especificar um habito a ser formado, pois esses habitos vio sendo consolidados no transcorrer das atividades e exercicios em que sao requeridos. Habitos podem preceder habilidades e ha habilidades que se transformam em hébitos. Por exemplo, habilidade em leitura pode transformar-se em hdbito de ler e vice-versa. Algumas habilidades e habitos stio comuns a todas as matérias; por exemplo: destacar propriedades essenciais de objetos ou fendmenos, fazer relagdes, comparar, Giferenciar, organizar o trabalho escolar, fazer sinteses e esquemas ctc.; ‘outros sio especificos de cada matéria, como observacio de fatos da na- tureza, utilizagio de materiais especificos, resolucdo de problemas mate- miticos etc. As atindes e convicgdes se referem a modos de agir, de sentir ¢ de se posicionar frente a tarefas da vida social. Orientam, portanto, a tomada de posigao e as decisdes pessoais frente a situagdes concretas. Por exemplo, 0s alunos desenvolvem valores e atitudes em relagdo ao estudo e ao trabalho, a convivéncia social, & responsabilidade pelos seus atos, & preservacio da natureza, ao civismo, aos aspectos humanos e sociais dos conhecimentos cientificos. Atitudes e convicgdes dependem dos conhecimentos e 0s co- mhecimentos, por sua vez, influem na formagao de atitudes ¢ conviccées, assim como ambos dependem de certo nivel de desenvolvimento das ca- pacidades mentais. s elementos constitutivos dos contetidos convergem para a formago das capacidades cognoscitivas. Estas correspondem a processos psiquicos da atividade mental. No processo de assimilagio de conhecimentos, 0 de- 131 senvolvimento das capacidades mentais e criativas possibilita 0 uso dos conhecimentos ¢ habilidades em novas situagdes. Englobam a compreensio da relago parte-todo, das propriedades fundamentais de objetos e fendme- nos, diferenciagdo entre objetos e fendmenos, abstracio, generalizagio, and- lise ¢ s{ntese, a combinagio de métodos de ago, o pensamento alternativo (busca de solugées possiveis para um problema especifico) etc. Essas ca- pacidades se véo desenvolvendo no processo de assimilagio ativa de co- mhecimentos. Nio € dificil observar que 0s elementos do contetido de ensino esto inter-relacionados. Habilidades e capacidades so impossiveis sem a base dos conhecimentos. Por sua vez, 0 domfnio de conhecimentos supée as habilidades, as capacidades e os modos valorativos ¢ atitudinais. O futuro professor nao deve assustar-se com a complexidade da ela- boragdo dos contetidos de ensino, pois nenhum desses elementos € consi- derado isoladamente, mas reunidos em tomo dos conhecimentos sistema- tizados. Muitos dos resultados do processo de ensino no podem ser an- tecipados e muitos decorrem do préprio processo de assimilagio ativa dos conhecimentos ¢ habilidades. O aspecto importante a assinalar, entretanto, € um sélido conhecimento da matétia e dos métodos de ensino, sem o que ser muito dificil responder as exigéncias de um ensino de qualidade. 3. Quem deve escolher os contetidos de ensino Trata-se de uma questo muito importante do trabalho docente. De- vemos partir do principio de que a escolha e definigo dos contetidos 6, em tiltima instancia, tarefa do professor. E ele que tem pela frente deter- minados alunos, com suas caracteristicas de o , vivendo num meio cultural determinado, com certas disposigdes e preparo para enfrentar © estudo. O trabalho pedagégico implica a preparagio desses alunos para as atividades praticas — profissionais, politicas, culturais — e, para isso, © professor enfrenta duas questées centrais: 2 Que contetidos (conhecimentos, habilidades, valores) os alunos deverao adquirir a fim de que se tomem preparados e aptos para enfrentar as exigéncias objetivas da vida social como a profissio, 0 exercicio da cidadania, a criagio e 0 usufruto da cultura e da arte, a produgio de novos conhecimentos de acordo com interesses de classe, as lutas pela melhoria das condigdes de vida e de trabalho? 2 Que métodos ¢ procedimentos didético-pedagégicos stio necessérios para viabilizar 0 proceso de transmissio-assimilagio de contetidos, 132 pelo qual so desenvolvidas as capacidades mentais © praticas dos alunos de modo a adquirirem métodos préprios de pensamento e ago? Sai trés as fontes que o professor utilizar para selecionar os contetidos do plano de ensino e organizar as suas aulas: a primeira é a programagio oficial na qual so fixados os conteiidos de cada matéria; a segunda sio 08 préprios contetidos bisicos das ciéncias transformadas em matérias de censino; a terceira sio as exigéncias tedricas e praticas colocadas pela pratica de vida dos alunos, tendo em vista 0 mundo do trabalho e a participagio demoeratica na sociedade. Pode parecer que essas trés fontes no stio concilidveis. Como intro- duzir nos contetidos as necessidades ¢ problemas existentes na pratica de vida dos alunos, se os conteddos j4 estariam previamente estruturados? Na verdade € perfeitamente possivel (e necessiria) a ligagdo entre 0s co- nhecimentos sistematizados e a experiéncia vivida pelos alunos no meio social. Vejamos como. Na sociedade moderna, 0 Estado (poder ptiblico) tem o dever cons. titucional de assegurar ensino piblico, estabelecendo uma politica escolar que viabilize esse dever e determinando um programa de educagio geral, igual para todos os membros da sociedade. Ao estabelecer objetivos de Ambito nacional, o Estado nio s6 organiza 0 sistema de ensino como pre- tende também a unificag3o nacional e o desenvolvimento cultural da so- ciedade. Se nao tem sido assim, cabe A propria sociedade organizar-se © exigir 0 cumprimento dessas responsabilidades sociais. Entretanto, sabemos que a politica escolar expressa interesses e obje- tivos das forgas sociais e politicas que hoje controlam o Estado. Esses interesses quase sempre no coincidem com os interesses majoritérios da sociedade, pois mantém a escola para preservacao das relagdes sociais vi- gentes. De fato, a educacio escolar € um importante mecanismo de pre- parago para o trabalho no sistema de producio capitalista, bem como de transmissio de idéias, valores, crencas que sustentam essa forma de orga- nizago social, sem por em risco o atual sistema de relagdes sociais. Mas, ao mesmo tempo que a sociedade capitalista se organiza para reproduzir a forga de trabalho necesséria 2 produgio, também ocorre a socializagao do saber, através do qual os trabalhadores podem ampliar a compreensao da realidade social e produzir outros conhecimentos que expressem seus interesses de classe. Na medida em que o saber escolar € colocado em confronto com a pritica de vida real, possibilita-se 0 alargamento dos co- nhecimentos ¢ uma visio mais cientifica e mais critica da realidade. Se € verdade que a politica escolar visa preservar a organizagao politica e econémica vigente através das priticas escolares, é verdade também que 133 ela expressa as contradigdes da sociedade, de modo que os seus resultados podem levar & contestagdo da ordem social; a sociedade politica nfo é um bloco compacto ¢ harmonioso. Além disso, a luta pela socializagao do saber — no sentido de que todos tenham acesso & instrugio e a educagio — depende de uma base comum de conhecimentos, fixada nacionalmente, € dos recursos para a manutengio do sistema escolar, de modo que as diferengas regionais e locais, econémicas e culturais, nao sejam motivo de discriminagao no acesso de todas as criangas e jovens do pais & escola. Isso tudo nos leva a encarar a importincia dos programas oficiais e, por extensiio, do livro didético, Contudo, devemos encaré-los como dire ttizes de orientagdo geral. As particularidades em relagio ao desdobramento dos programas, & resselegao de contetidos, & escolha de métodos e técnicas so determinadas pelo professor de modo mais ou menos independente, tendo em conta as condigdes locais da escola, dos alunos, bem como as situagdes didaticas especificas as diferentes séries. Além disso, devemos avaliar criticamente os programas, confrontando-os com a nossa visio de homem, de mundo e do processo pedagégico. A segunda fonte que o professor utiliza para selecionar ¢ organizar 08 contetidos de ensino so as bases das ciéncias, da técnica, da arte. Os conhecimentos escolares se baseiam nas disciplinas cientificas, de modo que do sistema das ciéncias resulta um sistema de matérias de ensino. Se cabe ao professor fazer uma re-selegio dos contetidos a partir do que 6 sugerido na programagiio oficial, é preciso que ele tenha um seguro dominio do contetido cientifico da matéria para saber 0 que € mais relevante so- cialmente para ser ensinado aos seus alunos. Ele precisa saber 0 que esco- Iher, a sequéncia dos conceitos, e como coordenar a sua disciplina com as demais, levando em conta que o ensino ndo uma cépia esquematizada da ciéncia que d4 origem & matéria de estudo. Os fatos, conhecimentos, métodos de uma ciéncia (Matemética, Histéria, Biologia etc.) transformam- se em matéria de ensino e por isso importa saber 0 que é bisico para a formagao geral de todos os alunos e como tomé-las didaticamente assimi. laveis conforme as peculiaridades de idade e desenvolvimento dos alunos, nivel de conhecimentos e capacidades jé alcancados por eles ¢ suas carac- teristicas s6cio-culturais e individuais. Passamos, assim, & terceira fonte: a experiéncia da pritica de vida dos alunos ¢ necessidades postas pelas tarefas profissionais, sociais, politicas € culturais na sociedade. Com efeito, selecionam-se contetidos de ensino para que os alunos os assimilem enquanto instrumentos teéricos e praticos Para lidar com os desafios e problemas da pratica social, isto é, para torné-los agentes ativos da transformacao social. A questo é muito menos de adaptar a matéria & realidade dos alunos (inclusive &s suas condigées de rendimento 134 escolar), € muito mais de transformar os contetidos de modo que neles sejam contempladas as exigéncias tedricas e priticas decorrentes da pratica de vida dos alunos. A escolha de contetidos vai além, portanto, dos programas oficiais e da simples organizagao lgica da matéria, ligando-se as exigéncias te6ricas € préticas da vida social. Tais exigéncias devem ser consideradas em trés sentidos. O primeiro deles € que a participagao na prética social — no mundo do trabalho, da cultura e da politica — requer o dominio de conhecimentos basicos e habilidades intelectuais (leitura, escrita, célculo, iniciagdo as cién- cias, & hist6ria, 4 geografia etc.). Os progressos conseguidos pela humani- dade nos conhecimentos e modos de atuag3o so conquistas que devem ser democratizadas, ndo apenas como direitos do cidad’o mas também como requisitos para fazer frente as exigéncias da prética social, princi- palmente na atividade profissional. segundo aspecto consiste em considerar que a prética da vida co- tidiana dos alunos, na familia, no trabalho, no meio cultural urbano ou rural, fornece fatos, problemas (isto é, a matéria-prima da realidade) a serem conectados ao estudo sistemético das matérias. Os alunos vivem num meio do qual extraem conhecimentos e experiéncias (que se manifes- tam em formas prdprias de linguagem) e que sio pontos de partida para a compreensio cientifica dos fatos e fenémenos da realidade. Se, por um lado, 0 saber sistematizado pode estar distanciado da realidade social con- creta, por outro, © trabalho docente consiste precisamente em vencer essa contradi¢ao, tornando os contetidos vivos e significativos, correspondendo aos problemas da pritica cotidiana. Ao falarmos, pois, das exigéncias te6- ricas e priticas, queremos dizer que o eixo das tarefas didaticas esté em organizar as condigdes e modos de ensino que assegurem a passagem da experiéncia cotidiana e do senso comum aos conhecimentos cientificos, através dos quais sao adquiridos novos modos de atuago na vida pritica. Para isso, € preciso transformar os contetidos em questdes ou problemas, verificar os conhecimentos que os alunos possuem ou nao para enfrentar a matéria nova, refletir sobre as conexdes entre os conteiidos e os problemas do meio social. terceiro aspecto colocado pela pratica social se refere as proprias condigdes de rendimento escolar dos alunos. Sabemos que a maioria dos alunos das escolas piblicas pertence as camadas populares, isto é, sto filhos de assalariados, subempregados ¢ parcelas da classe média baixa. ‘Trazem as marcas da sociedade desigual e discriminadora e, por isso, face as exigéncias da escola, carregam consigo desvantagens sociais ¢ culturais 135 que os colocam em desigualdade em relago a outros alunos economica- mente favorecidos. Mas trazem também uma riqueza de experiéncias sociais. que expressam sua visto da realidade. Esse conjunto de caracteristicas é © ponto de partida para o trabalho escolar e, portanto, elemento para a escolha dos contetidos. Com isso queremos dizer que a pritica social determina a contradigao entre as exigéncias de aquisicio e estudo das matérias e as condigdes s6- cio-culturais © o nivel de preparo para realiz4-los. A superagio dessa con- tradigo requer que se levem em conta as possibilidades reais de rendimento escolar dos alunos e, dentro desse pardmetro, estabelega-se 0 maximo nivel de exigéncias que se pode e deve fazer a eles. 4, A dimenséo critico-social dos contetidos Os assuntos que acabamos de estudar jé trouxeram uma importante questio, cujo entendimento € necessério aprofundar: os contetidos de ensino retirados das cigncias so objetivos ¢ universais ou refletem valores e in- terpretagdes de acordo com os interesses de grupos ¢ classes soci Possuem 0 poder politico e econdmico na sociedade? Os contetidos de ensino sio as duas coisas. Uma pedagogia de cunho critico-social reconhece a objetividade e universalidade dos contetidos, as- sim como reconhece que nas sociedades capitalistas difunde-se um saber que reflete os interesses do poder, isto é, um saber que seja vantajoso para reforcar a atual forma de organizagdo social e econémica. Existe, pois, um saber objetivo ¢ universal que constitui a base dos contetidos de ensino, mas nao se trata de um saber neutro. A objetividade e universalidade dos contetidos se apéia no saber cien- lifico, que se constitui no proceso de investigagdo e comprovacdo de le objetivas que expressam as relagGes internas dos fatos e acontecimentos da natureza e da sociedade. Nesse sentido, 0 conhecimento é, também, hist6rico, pois, ao investigar as relagdes internas de fatos e acontecimentos, busca apanhar o movimento do real, isto 6, as transformagdes que ocorrem na realidade com a intervengao humana. Mas, 0 conhecimento é sempre intzressado, uma vez que é produzido “em sociedade” (socialmente), isto é, na relacdo entre as classes sociais e suas contradigdes. Apropriado pelas forcas que detém o poder na sociedade, ha interesse de que idéias ¢ explicagdes vinculadas a uma visio particular de uma classe social sejam afirmadas como validas para todas as demais classes sociais. Nesse sentido, a escola a sociedade capitalista controla a 136 distribuigéo do saber cientifico, ora escondendo aspectos da realidade, ora simplificando esse saber, contentando-se apenas com as aparéncias dos fatos e acontecimentos. Além disso, os fatos e acontecimentos nao sio tomados no seu desenvolvimento histérico, nas suas transformagdes, mas como algo acabado, estitico, solidificado. Essa constatagio, entretanto, nfo deve levar a sacrificar a riqueza do conhecimento cientifico ¢ das experiéncias acumuladas pela humanidade. © que cabe & submeter os contetidos de ensino ao crivo dos seus determi- nantes sociais para recuperar 0 seu niicleo de objetividade, tendo em vista Possibilitar 0 conhecimento cientifico, vale dizer, critico da realidade. E o que chamamos dimensaoo eritico-social dos contetidos. ‘A dimensio critico-social se manifesta, em primeiro lugar, no trata- mento cientifico dos contetidos. Nas matérias de estudo estudam-se as leis objetivas dos fatos, fendmenos da natureza e da sociedade, investigando as suas relagdes internas € buscando a sua esséncia constitutiva por detris das aparéncias, Para isso, empregam-se métodos didéticos e os métodos préprios da ciéncia: observagao da realidade, identificagao das propriedades e€ relagdes de objetos e fatos com os outros, comparacao de diferentes situagGes. Pelo estudo ativo das matérias, portanto, os alunos vao formando estruturas mentais, métodos préprios de estudo e de pensamento para a compreensio critica da realidade. O movimento que leva a consciéncia critica vai, pois, do conhecimento cientifico para a aplicagao teérica e pré- tica, mobilizando a formagtio de conviegdes para a participagao na vida Pratica. Em segundo lugar, os conteiidos tém um caréter histérico, em estreita ligagio com o cardter cientifico. Os contetidos escolares no sio informa- Ges, fatos, conceitos, idéias etc. que sempre existiram na sua forma atual, registrada nos livros didaticos, nem so estiticos e definitivos. Os contetidos vo sendo elaborados e reelaborados conforme as necessidades praticas de cada época histérica e os interesses sociais vigentes em cada organizagio social. O sentido hist6rico dos conteiidos se manifesta no trabalho docente quando se busca explicitar como a pritica social de geragdes passadas ¢ das geragOes presentes interveio ¢ intervém na determinagdo dos atuais contetidos, bem como o seu papel na produgiio de novos conhecimentos ara 0 avango da ciéncia e para o progresso social da humanidade. A dimensio critico-social, em terceiro lugar, implica vincular os con- tetidos de ensino a exigéncias tedricas e priticas de formagio dos alunos, em fungdo das atividades da vida pritica. A assimilagio ou apropriagao de conhecimentos ¢ habilidades adquire importancia e sentido se propor- ciona 0 dominio ativo e pratico de modos de atuagao critica e criativa na 137 vida, na profissio, no exercicio da cidadania. Por essa razo, somente se 4 a assimilagao critica dos contedidos quando se faz. a ligagio destes com as experiéncias reais ¢ concretas vividas pelos alunos na sua pratica social. Em sintese, a dimensio critico-social dos contetidos corresponde & abordagem metodolégica dos contetidos na qual os objetos de conhecimento (fatos, conceitos, leis, habilidades, métodos etc.) sto apreendidos nas suas Propriedades e caracteristicas préprias e, ao mesmo tempo, nas suas relagdes com outros fatos e fendmenos da realidade, incluindo especificamente as ligagdes e nexos sociais que os constituem como tais (como objetos de conhecimento). © conhecimento € considerado, nessa perspectiva, como vinculado a objetivos socialmente determinados, a interesses concretos a que estiio implicadas as tarefas da educagio escolar. A dimensio critico-social dos conteiidos € uma metodologia de estudo io dos objetos de conhecimento — explicitados nas matérias de ensino — como produtos da atividade humana e a servigo da pritica social. Por isso, os contetidos sto apreendidos, estudados, na sua transfor- mago, no seu desenvolvimento, isto é, na sua historicidade; trata-se de situar um tema de estudo nas suas ligagdes com a prética humana: como os homens, na sua atividade pritica coletiva nas varias esferas da vida social, intervém, modificam, constroem esse tema de estudo; sua impor- tancia para atender necessidades préticas da vida social, como os problemas sociais, o desenvolvimento da ciéncia e da tecnologia, as necessidades hu- manas bésicas etc. Asse método de apreensiio da realidade (sob forma de conhecimentos) agtegam-se e conjugam-se métodos de conhecimento gerais (como a ob- servago, a andlise-sintese, a indugdo-dedugdo, a abstragio, a generalizagio ¢tc.), métodos proprios da matéria que esta sendo estudada, e métodos de ensino (como a exposigao, 0 estudo dirigido independente, a conversagZo criativa com a classe etc.) Pensar criticamente ¢ ensinar a pensar criticamente é estudar cienti- ficamente a realidade, isto é, sob 0 ponto de vista historico, apreendendo a realidade natural ¢ social na sua transformagio em objetos de conheci- ‘mento pela atuaciio humana passada e presente, incluindo a atividade prépria do aluno de reelaboragdo desses objetos de conhecimento. tratamento metodolégico dos conteiidos numa ética erftico-social pressupde que as propriedades ¢ caracterfsticas dos objetos de estudo esto impregnadas de significagdes humanas e sociais. Isso significa no sé que 08 conhecimentos so criagdes humanas para satisfazer necessidades hu- manas, que devem servir & prética, ser aplicados a problemas e situagoes da vida social pritica, como também que devem ser evidenciadas as dis- 138 torgées a que esto sujeitos quando sao utilizados para o ocultamento das relagdes sociais reais desumanizadoras existentes na sociedade. Em relagio a um determinado tema de estudo, seré sempre necessdrio que nos per- guntemos: quais so as caracterfsticas do objeto de estudo deste tema? Como a prética humana esta embutida nesse tema? Como as pessoas esto relacionadas com ele; quem usufrui dos seus beneficios, como usufrui? O que a vida real das pessoas tem a ver com esses objetos de estudo? A dimensao critico-social dos contetidos, tendo como base para sua aplicagio no ensino a unidade e a relacdo objetivos-contetidos-métodos, possibilita aos alunos a aquisi¢ao de conhecimentos que elevem o grau de compreensao da realidade (expressa nos conteidos) e a formagio de con- vicgbes ¢ principios reguladores da aco na vida prética. O resultado mais importante desse modo de abordagem dos contetidos de ensino é pér em agtio métodos que possibilitem a expresso elaborada dos interesses das camadas populares no processo de lutas efetivas de transformagio social. professor Dermeval Saviani afirma, sobre esse assunto, que a apro- riagfio dos conhecimentos pelos trabalhadores, na medida em que se ar- ticula com as condigées e lutas concretas que se dio na vida pratica, pode desenvolver determinadas condigdes subjetivas — isto &, consciéncia de seus interesses e necessidades — que, impulsionadas por processos objetivos de luta, podem conduzir & transformago das condigdes sociais presentes. 5. Os contetidos e o livro diddtico Nas consideragdes anteriores, procuramos mostrar que 0 saber cient fico expresso nos contetidos de ensino ¢ o principal objetivo da mediagio escolar. Sua democratizagao é uma exigéncia de humanizacao, pois concorre para aumentar 0 poder do homem sobre a natureza e sobre 0 seu proprio destino, Na sociedade capitalista, 0 saber se torna propriedade dos grupos e classes que detém o poder e que controlam a sua difusdo: para os seus filhos oferecem o ensino das ciéncias sociais e exatas, além de uma pre- paragao intelectual; para os filhos dos trabalhadores limitam e simplificam 08 contetidos, destinando-Ihes uma débil formagio intelectual, pois se trata de preparé-los para o trabalho fisico. Na sociedade atual, portanto, ha uma distingao dos contetidos de ensino para diferentes grupos sociais: para uns, esses contetidos reforgam os privilégios, para outros fortalecem os espirito de submissao conformismo. Ora, 0s livros didéticos se prestam a sistematizar e difundir conheci- ‘mentos mas servem, também, para encobrir ou escamotear aspectos da realidade, conforme modelos de descrigao e explicagdo da realidade 139 soantes com os interesses econdmicos e sociais dominantes na sociedade. Se o professor for um bom observador, se for capaz de desconfiar das aparéncias para ver os fatos, os acontecimentos, as informages sob varios Angulos, verificaré que muitos dos conteiidos de um livro didatico nao conferem com a realidade, com a vida real, a sua ¢ a dos alunos. Textos de Lingua Portuguesa e Estudos Sociais passam nogdes, por exemplo, de que na sociedade as diferengas entre as pessoas sao individuais e nao devidas a estrutura social; que nela todos tém oportunidades iguais, bastando que cada um se esforce ¢ trabalhe com afinco. Textos de Ciéneias nao auxiliam 0s alunos a colocar cientificamente problemas humanos, a compreender 0 esforgo humano de varias geragdes de homens no conhecimento da reali- dade, como se 0 conhecimento cientifico nada tivesse a ver com problemas reais da vida cotidiana. Ao selecionar os contetidos da série em que ird trabalhar, o professor precisa analisar os textos, verificar como so enfocados os assuntos, para enriquecé-los com sua prépria contribuigdo e a dos alunos, comparando 0 que se afirma com fatos, problemas, realidades da vivéncia real dos alunos. Seria desejavel que os professores se habituassem a fazer um estudo critico dos livros didaticos para analisar como sio tratados temas como o trabalho, a vida na cidade e no campo, o negro, a mulher, a natureza, a familia, e outros. A Professora Ana Liicia G, de Faria (1985: 61) pesquisou em livros idaticos das séries iniciais do ensino de 1° grau o conceito de trabalho. Como exemplo, vamos reproduzir alguns trechos de livros pesquisados. “O homem do campo tem dois tipos de trabalhos: pode ser um agri- cultor, quando planta ¢ colhe 0 que plantou. Pode ser um criador de gado, quando cuida do seu rebanho”. “O trabalho do lavrador rende pouco ¢ a produgio é pequena. Essa agricultura é chamada primitiva ou de subsisténcia. J4 na agricultura cientifica, empregam-se méquinas agricolas, ¢ o agricultor é assistido or agrénomos que orientam no preparo do solo, a selego de sementes, ‘© emprego de inseticidas e outros recursos. Assim a produgio € maior, € melhor, e 0 solo € conservado”, “(© agricultor na agricultura primitiva) esta pobre e mal vestido, Usa instrumentos muito simples. Pratica uma agricultura primitiva. (O da agricultura moderna) esta sobre um trator, apresenta-se forte ¢ mais bem vestido. Pratica a agricultura mecanizada”, Nao € dificil constatar que esses textos dio uma impressio de que a vida no campo € muito tranquil, apesar de o lavrador pobre ser mais simples e atrasado. Existir agricultura primitiva e mecanizada, usar roupas 140 simples ou melhores, usar a enxada ow o trator, tudo € muito natural, como se as diferengas sociais fossem também naturais e ndo decorrentes das formas de organizacao da sociedade. A vida social no campo aparece como solidificada, como se tudo 0 que acontece ali fizesse parte da normalidade das coisas. Os textos néio revelam as relagdes internas entre os fatos, nlio mostram 0 significado social implicado no tema estudado. Hé o lavrador, © agricultor, o criador de gado, mas as razGes das diferengas entre um tipo € outro de trabalho esto escondidas. O professor ndo pode esperar que os livros didaticos revelem os as- pectos reais das coisas, as razdes reais que estio por detris das diferengas sociais. Esta é tarefa sua, sabendo que sua postura critica nem sempre sera aprovada, Nao é necessério ir muito Ionge: alguns pais, alguns diretores de escola também nio desejam que o real funcionamento das relagdes sociais na sociedade seja revelado. Além disso, 0 proprio professor pode no se ver como um assalariado e confirma aos alunos valores, idéias, concepgdes de mundo distantes da realidade concreta, passadas pelo livro didatico ou que circulam nas conversas, na televisii, no rédi Ana Lticia G. de Faria descreve, também, opiniées das criangas sobre © trabalho, que refletem o que aprendem nas aulas: os médicos ganham mais porque so mais inteligentes; os pretos também podem ficar ricos, apesar de 0 branco ter mais possibilidade de arrumar emprego; quem ganha ‘menos é porque nio trabalha direito; nio fica rico quem nao for estudioso; quem nio tem boa profissao, para ficar rico precisa fazer hora extra, guardar dinheiro na caderneta de poupanga. Esses exemplos mostram a forga com que os livros didaticos e até mesmo as informagées do professor influenciam na formagao de idéias sobre a vida, 0 trabalho, que nao tém correspondéncia na realidade. Ser rico, ser branco, ser inteligente € quase a mesma coisa e as criangas recebem. tais informagdes como verdadeiras. Ao recorrer a0 livro didatico para escolher os contetidos, elaborar plano de ensino ¢ de aulas, é necessdrio ao professor 0 dominio seguro da matéria e bastante sensibilidade critica. De um lado, 0s seus contetidos sio necessérios e, quanto mais aprofundados, mais possibilitam um conheci- mento critico dos objetos de estudo, pois os conhecimentos sempre abrem novas perspectivas ¢ alargam a compreenstio do mundo. Por outro lado, esses contetidos no podem ser tomados como estéticos, imutaveis e sempre verdadeiros. E preciso, pois, confronté-los com a pratica de vida dos alunos € com a realidade. Em certo sentido, os livros, ao expressarem 0 modo de ver de determinados segmentos da sociedade, fornecem ao professor uma oportunidade de conhecer como as classes dominantes explicam as reali- 141 dades sociais e como dissimulam o real; ¢ podem ajudar os alunos a coi frontarem 0 contetido do livro com a experiéncia pratica real em relagao a esse contetido. Critérios de selegao Como vimos, a escolha dos contetidos é uma das tarefas mai {antes para o professor, pois eles so a base informativa e form: processo de transmissio-assimilagio. A pritica escolar atual mostra que no tem havido uma escolha cri- teriosa de contetidos. A sobrecarga de assuntos € uma heranga maléfica da educagao escolar elitista, quando apenas as classes social e economicamente Privilegiadas tinham acesso a escola. Hoje em dia, os professores continuam com a mania de esgotar 0 livro a qualquer custo, sem levar em considera 6s assuntos realmente indispensaveis de serem assimilados, a capacidade de assimilagio dos alunos e o grau de assimilacao anterior e a consolidagio do aprendizado. Escolher os contetidos de ensino no é uma tarefa fécil. Nos t6picos anteriores jé foram feitas indicagdes de orientago geral. Aqui, propomos, de forma mais ordenada, os critérios de selegio. 1. Correspondéncia entre objetivos gerais e contetidos Os conteiidos devem expressar objetivos sociais e pedagégicos da es- cola piblica sintetizados na formagdo cultural ¢ cientifica para todos. A expresso “ensino para todos” deve ser entendida como ensino para a po- Pulagdo majoritéria da sociedade. Se a educagdo escolar deve exercer a sua contribuiggo no conjunto das lutas pela transformagio da sociedade, devemos ter em mente que os contetidos sistematizados visam instrumen- talizar as criangas ¢ jovens das camadas populares para a sua participagio ativa no campo econémico, social, politico e cultural. Basicamente, este & © critério que definiré que contetidos si0 importantes ou nao. 2. Cardter cientifico Os conhecimentos que fazem parte do contetido refletem os fatos, conceitos, idéias, métodos decorrentes da ciéncia modema. No processo 142 de ensino, trata-se do selecionar as bases das ciéncias, transformadas em objetos de ensino necessérios & educagio geral. Os livros didaticos de cada série, bem ou mal, realizam essa tarefa, mas isto nao dispensa o professor de destacar os conhecimentos basicos de que necessitam os seus alunos, da sua escola. Um dos modos de atender esse critério 6 conhecer bem a estrutura da matéria, ou seja, sua espinha dorsal, 0 conjunto de nogdes basicas 1o- gicamente concatenadas que correspondam a0 modo de representagio que © aluno faz delas na sua cabeca e que tenham o poder de facilitar a0 aluno “encaixar” temas secundédrios em um tema central. Este procedimento, alia- do aos demais critérios que veremos a seguir, permite no s6 estabelecer © volume da matéria, independentemente do que prescreve o livro didatico, mas também uma interdependéncia entre 0 conhecimento novo e 0 co- nhecimento anterior. A capacidade de 0 professor selecionar nogdes basicas, evitando a sobrecarga de matéria, € a garantia de maior solidez e profundidade dos conhecimentos assimilados pelos alunos. Tudo o que temos estudado neste livro vem ressaltando a idéia de que 0 processo de ensino é algo que nao se pode apressar, j4 que sem o estudo ativo e persistente do aluno ¢ 0 desenvolvimento das capacidades cognoscitivas no ocorre uma verdadeira aprendizagem. Além disso, o nivel de preparo e de pré-requisitos culturais dos alunos da escola pablica esta sujeito a condicionantes impostos pelas condigdes materiais de vida e nem sempre € suficiente para enfrentar as exigéncias escolares. Disso decorre a necessidade de constantes revisdes da matéria, suprimento de pré-requisitos para assimilagio de matéria nova, a reposicio de matéria insuficientemente assimilada, volume maior de exer- cicios e tarefas, avaliagdes parciais mais constantes. 3. Cardter sistemdtico O programa de ensino deve ser delineado em conhecimentos sistema- tizados ¢ niio em temas genéricos e esparsos, sem ligaco entre si. O sistema de conhecimentos de cada matéria deve garantir uma légica interna, que permita uma interpenetragao entre os assuntos. 4, Relevancia social Este critério corresponde & ligagdo entre 0 saber sistematizado © a experiéncia prética, devendo os contetidos refletir objetivos educativos es- perados em relaco & sua participaco na vida social. A relevancia social 143 dos contetidos significa incorporar no programa as experiéncias e vivéncias das criangas na sua situagdo social concreta, para contrapor a nogdes de uma sociedade idealizada e de um tipo de vida ¢ de valores distanciados do cotidiano das criangas que, freqlientemente, aparecem nos livros didé- ticos. Para isso, a escolha dos conteiidos deve satisfazer as seguintes preo- cupagées: como ligar a exigéncia do dominio dos conhecimentos com a vida real das criangas? que conhecimentos precisam ser introduzidos face a exigéncias te6ricas ¢ préticas do contexto social, embora no fagam parte da experiéncia cotidiana das criangas? O dominio efetivo dos conhecimentos nfo se garante, pois, apenas pela memorizagio e repeti¢ao de férmulas e regras. Implica fundamental- mente a compreensio teérica e pritica, seja utilizando os conhecimentos € habilidades obtidos nas préprias aulas, seja para utilizé-los nas situagdes concretas postas pela vida pratica. Entretanto, é preciso nfo confundir as expressdes “conhecimentos relevantes para a pritica social” e “conheci- mento pritico”. Muitos professores entendem que ligar os conhecimentos com a realidade € ensinar apenas coisas praticas. Esta é uma visio muito estreita do critério de relevancia social. Muitos assuntos da matéria niio tém um vinculo direto, mas tém um efeito prético fundamental para de- senvolver 0 pensamento tedrico dos alunos. Os conhecimentos so rele- vantes para a vida concreta quando ampliam 0 conhecimento da realidade, instrumentalizam os alunos a pensarem metodicamente, a raciocinar, a de~ senvolver a capacidade de abstrago, enfim, a pensar a propria pritica. Ultrapassam, portanto, 0 nfvel das coisas simplesmente priticas, para al- cangar um nivel de experiéncia e pensamento compativel com 0 conhe mento cientifico e teérico. Agir praticamente significa utilizar 0 poder in- telectual frente as tarefas da vida, seja na escola, seja na sociedade, 5. Acessibilidade e solidez Acessibilidade significa compatibilizar os contetidos com o nivel de preparo ¢ desenvolvimento mental dos alunos. E 0 que se costuma deno- minar, também, de dosagem dos contetidos. E muito comum as escolas estabelecerem um volume de conteiidos muito acima do que o aluno & capaz de assimilar ¢ num nfvel tal que os alunos no dio conta de com- preendé-los. Deve-se observar, assim, que um contetido demasiado com- Plicado e muito acima da compreensio dos alunos nao mobiliza a sua atividade mental, leva-os a perderem a confianca em sie a desanimarem, comprometendo a aprendizagem. Por outro lado, se 0 contetido é muito 144 ficil ¢ simplificado, leva a diminuir o interesse ¢ no desafia o seu desejo de vencé-lo. Se 0s contetidos sto acesstveis e didaticamente organizados, sem perder © cardter cientifico e sistematizado, havera mais garantia de uma assimilagio s6lida e duradoura, tendo em vista a sua utilizago nos conhecimentos novos ¢ a sua transferéncia para as situagdes préticas. Sugestées para tarefas de estudo Perguntas para o trabalho independente dos alunos 2 Que sentido tem a afirmagai mente determinados”? 2 Como a filosofia educacional dos professores influi na escolha de ob- jetivos? “Os objetivos educacionais sio so Como se articulam objetivos gerais e objetivos especificos? 1D Quais sto as relagées basicas entre objetivos e contetidos? 5 Formular uma definigdo de “contetdos escolares” ¢ explicar 0 seu caréter social € histérico. © Descrever os elementos que compdem os contetidos (tipos de contet- dos). & Como fazer para selecionar e organizar os contetidos? Quais so as fontes que influem na selegao de contetidos de ensino? 2 Explicar 0 que € a dimensio critico-social dos contetidos. 5 Comentar as vantagens e as limitages do livro didatico em relagdo 4 dimensiio critico-social dos contetidos. D — Quais so 08 critérios de selecdo dos contetidos? Temas para aprofundamento do estudo D Coletar documentos de planos de ensino nas escolas. Analisar os se- guintes aspectos: politico, pedagdgico e didatico. 2 Tomar o plano de ensino de uma matéria e reconstituir os objetivos de ensino, com base nos capitulos jé estudados. 145 © Pesquisar 2 ow 3 livros de Didética ou de Psicologia da Educagio escolher temas que tratem a questio dos objetivos e contetidos. Fazer um resumo dos posicionamentos desses autores. Discutir em classe. 5 Considerar documentos de planos de ensino usados nas escolas da cidade. Reler 0 t6pico 2 do capitulo 4 e os t6picos 3 e 4 deste capitulo e, em seguida: a) fazer uma apreciagio critica dos contetidos regis- trados; b) refazé-los. 5 Analisar os contetidos do livro didético ou dos planos de ensino, ¢ estudar possibilidades de tratamento critico-social, conforme sugere o exemplo do texto. Temas para redagéo Os livros didaticos e a dimensio critico-social dos contetidos. A articulago entre os elementos dos contetidos no plano de ensino. ‘A relagio entre objetivos gerais e objetivos especificos. ‘A importincia dos objetivos no processo de ensino. Redigir um texto com o seguinte titulo: “Justificativa do ensino de Lingua Portuguesa” (ou Estudos Sociais, Matemética etc.). oaaoo Bibliografia complementar ABREU, M. Célia dee MASEITO, Marcos T. 0 Professor Universitério em Aula (Pratica e Princtpios Tedricos). Sio Paulo, Cortez/Autores Associados, 1985. BALZAN, Newton C. “Sete Assergdes Inaceitiveis sobre a Inovagio Educacional” Revista Educapio & Sociedade, (6): 119-139, So Paulo, Cortez/Cedes,1980. BERGAMIN, Maria E. e MANSUTTI, Maria A. “Revisto dos Programas de uma Rede de Ensino: Um Processo, uma Experiéncia”. Revista da Ande, (12): 39-45, Sio Paulo, 1987, ENRICONE, Délcia et alii, Ensino — Revisiio Critica. Porto Alegre, Sagra, 1988. FARIA, Ana Licia G. Ideologia no Livro Didético. $80 Paulo, Cortez/Autores, Asociados, 1985. FRANCO, Luiz A. C. 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SAVIANI, Dermeval, entrevista concedida a0 jomnal La Hora, de 28.02.87, de Montevidéu (Uruguai). VEIGA, Ima P.A. (org.). Repensando a Didatica. Campinas, Papirus, 1988. 147 IE URIGR IST O processo de ensino se caracteriza pela combinago de atividades do professor ¢ dos alunos. Estes, pelo estudo das matérias, sob a diregio do professor, vio atingindo progressivamente 0 desenvolvimento de suas capacidades mentais. A diregao eficaz desse processo depende do trabalho sistematizado do professor que, tanto no planejamento como no desenvol- vimento das aulas, conjuga objetivos, contetidos, métodos ¢ formas orga- nizativas do ensino. Os métodos sio determinados pela relagio objetivo-contetido, € refe- rem-se aos meios para alcangar objetivos gerais e especificos do ensino, ou seja, ao “como” do processo de ensino, englobando as agdes a serem ealizadas pelo professor ¢ pelos alunos para atingir os objetivos e conted- dos. Temos, assim, as caracteristicas dos métodos de ensino: estio orier tados para objetivos; implicam uma sucessio planejada e sistematizada de ages, tanto do professor quanto dos alunos; requerem a utilizagao de meios. Em virtude da necesséria vinculagaio dos métodos de ensino com os objetivos gerais e especificos, a decisdo de selecioné-los e utilizé-los nas situagdes didaticas especificas depende de uma concep metodolégica 149 mais ampla do proceso educativo. Nesse sentido, dizer que 0 professor “tem método” € mais do que dizer que domina procedimentos e técnicas de ensino, pois 0 método deve expressar, também, uma compreensio global do proceso educativo na sociedade: os fins sociais e pedagégicos do ensino, as exigéncias e desafios que a realidade social coloca, as expectativas de formagao dos alunos para que possam atuar na sociedade de forma critica e criadora, as implicagdes da origem de classe dos alunos no processo de aprendizagem, a relevancia social dos contetidos de ensino etc. A diregao do processo de ensino requer, portanto, o conhecimento de Principios € diretrizes, métodos, procedimentos e outras formas organiza- tivas, Neste capitulo trataremos dos seguintes temas: conceito de método de ensino; a relagio objetivo-contetido-método; 08 prinefpios bésicos do ensino; classificagio dos métodos de ensino. pooa Conceito de método de ensino © conceito mais simples de “método” é 0 de caminho para atingit um objetivo, Na vida cotidiana estamos sempre perseguindo objetivos. Mas estes nao se realizam por si mesmos, sendo necesséria a nossa atuagio, ou seja, a organizago de uma seqliéncia de agdes para atingi-los, Os métodos silo, assim, meios adequados para realizar objetivos. Um cientista busca um objetivo que € a obtengao de novos conheci- mentos e, para isso, utiliza métodos de investigacao cientifica. Jé o estudante tem como objetivo a aquisigdio de conhecimentos e, para isso, utiliza mé- todos de assimilagio de conhecimentos. Cada ramo do conhecimento, por sua vez, desenvolve métodos pré- prios. Temos, assim, métodos matemiticos, métodos sociol6gicos, métodos pedagégicos etc. Podemos falar, também, em métodos de transformagio da realidade, como métodos de luta politica, métodos de difusio cultural, métodos de organizagao etc. O professor, ao dirigir e estimular 0 processo de ensino em fungao da aprendizagem dos alunos, utiliza intencionalmente um conjunto de ages, Passos, condigdes externas e procedimentos, a que chamamos métodos de ensino. Por exemplo, a atividade de explicar a matéria corresponde 0 método de exposigio; & atividade de estabelecer uma conversagio ou discussio 150

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