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( ( Paradoxos da arte politica Passado o tempo da dentincia do paradigma moder- nista e do ceticismo dominante quanto aos poderes subver- sivos da arte, vé-se de novo a afirmagao mais ou menos ge~ neralizada de sua vocagdo para responder as formas de dominagio econémica, estatal e ideoldgica. Mas vé-se tam- bém essa vocagio reafirmada assumindo formas divergen- tes, se nao contradit6rias. Alguns artistas transformam em estétuas monumentais os icones mididticos e publicitérios para nos fazerem tomar consciéncia do poder desses {cones sobre nossa percepco; outros enterram silenciosamente monumentos invisiveis dedicados aos horrores do século; uns se empenham em mostrar-nos os “vieses” da represen- taco dominante das identidades subalternas, outros nos propem afinar o olhar diante das imagens de personagens com identidade flutuante ou indecifravel; alguns artistas fa zem os banners e as méscatas dos manifestantes que se in surgem contra 0 poder globalizado, outros se introduzem com falsas identidades nas reunides dos poderosos desse mundo ou em suas redes de informagdo e comunicacéo; al- ‘guns fazem em museus a demonstragao de novas méquinas ‘ecoldgicas, outros pdem nos subtirbios carentes pequenas pediras ou discretos sinais de néon destinados a criar um 8 ambiente novo, desencadeando novas relagées sociais; um transporta para bairros desfavorecidos as obras-primas de um museu, outros enchem as salas dos museus do lixo dei: xado por seus visitantes; um paga trabalhadores imigrantes para que, abrindo seu proprio tiimulo, demonsttem a vio- léncia do sistema salarial, enquanto outra vai trabalhar como caixa de supermercado para empenhar a atte na pré- tica de restauragao dos elos sociais. Avontade de repolitizara arte manif estratégias ¢ préticas muito diversas. Essa-diversidade 10 traduz apenas a variedade dos meios escolhidos para alingir © mesmo fim. Reflete uma incerteza mais fundamental so- bre o fim em vista e sobre a propria configuracéo do terreno, sobre 0 que & a politica e sobre o que a arte faz. Contudo, ‘essas préticas divergentes tém um ponto em comum: geral mente consideram ponto pacifico certo modelo de eficdcia: a arte é considerada politica porque mostra os estigmas da dominagdo, porque ridicul icones reinantes ou por que sai dé"seus Tagarés prdprios para transformar- prética social ei¢” Ao'cabo dé um bom século de suposta Critica da tradigao mimética, € forgoso constatar que essa tradicdo continua dominante até nas formas que se querem artistica e politicamente subversivas. Supde-se que a arte nos torna revoltados quando nos mostra coisas revoltantes, que nos mobiliza pelo fato de mover-se para fora do atelié ‘ou do museu, e que nos transforma em oponentes do siste- ma dominante ao se negar como clemento desse sistema Apresenta-se sempre como evidente a passagem da causa a0 efeito, da intengao ao resultado, a no ser que se suponha o artista indbil ou o destinatério incorrigivel. A “politica da arte” é assim marcada por. uma_estra- nha esquizofrenia. Artistas e criticos nos convidam a situar ‘0 pensamento e as préticas da arte num contexto sempre novo. Gostam de nos dizer que as estratégias artisticas de- ven ser inteiramente repensadas no contexto do capitalis- mo tardio, da globalizagéo, do trabalho pés-fordista, da comunicagao informatica ou da imagem digital. Mas conti- nuam a validar em massa modelos de eficécia da arte que 3 talvez tenham sido abaladas um s das a8 flovidades. Gostaria, portanto, de inverter a per pectiva habitual e ganhar certa distancia historica para fa~ zer algumas perguntas: a que modelos de eficécia obedecem nossas expectativas e ndssos juizos em matéria de politica da arte?.A que era esses modelos pertencem? ‘Transporto-me entao a Europa do século XVIII, no momento em que 0 modelo mimético dominante foi contes- tado de duas maneiras. Esse modelo supunha uma relagdo de continuidade entre as formas sensiveis da producio ar- tistica e as formas sensiveis segundo as quais so afetados ‘0s sentimentos e os pensamentos de quem as recebe. As- sim, supunha-se que a cena teatral classica deveria ser um espelho ampliador em que os espectadores eram convida- dos a ver, nas formas da ficgdo, os comportamentos, as vir- tudes ¢ os vicios humanos. O teatro propunha ldgicas de situagdes que deveriam ser reconhecidas para a orientagdo no mundo e modelos de pensamento e a¢ao por imitar ou evitat. Tartifo de Moliére ensinava a reconhecer e a odiar os hipécritas; Maomé de Voltaire ou Nata, 0 Sabio de Lessing, a fugir do fanatismo e amar a tolerdncia. Essa vocacao edifi- cante esté aparentemente distante de nossa maneira de pensar e sentir. No entanto, a légica causal que Ihe subjaz esté muito préxima de nés. Segundo essa légica, 0 que ve~ mos ~ num palco de teatro, mas também numa exposigao fotogréfica ou numa instalagdo — so 0s signos sensiveis de certo estado, dispostos pela vontade de um autor. Reconhe cer esses signos é empenhar-se em certa leitura de nosso mundo. E essa leitura engendra um sentimento de proximi- dade ou de distancia que nos impele a intervir na situagao assim significada, da maneira desejada pelo autor. Daremos 330.9 name de modelo pedagdgico da eficdcia da arse. Esse modelo continua marcando a prodygéo-e ajulgamento de fidssos contemporaineos. Sem divida jé nao acreditamos na corregéo dos costumes pelo teatro. Mas ainda gostamos de acreditar que a representaco de resina deste ou daquele ido- lo publicitario nos ergueré contra otaiperio thi petéculo ou que uma série fotografica sobre a representagao dos colonizados pelo colonizador nos ajudard a escapar hoje das ciladas da representagao dominante das identidades. Ora, esse modelo foi questionado jé nos anos 1760 de duas formas. A primeira 6 a do ataque frontal. Penso na Lettre sur les spectacles (Carta sobre os espeticulos] de Rous- seau e na deniincia que est em seu cerne: a da pretensa li- cdo de moral do Misantropo de Moliére. Além do ataque as intengdes de um autor, sua critica designava alguma coisa mais fundamental: a ruptura da linha reta suposta pelo mo- delo representativo entre a performance dos corpos teatrais, seu sentido e seu efeito, Moligre dard razao & sinceridade de seu misantropo contra a hipocrisia dos mundanos que © cercam? Dara razio ao respeito deles pelas exigéncias da vida em sociedade contra sua intolerancia? Ai também © problema aparentemente superado ¢ facil de transpor para a nossa atualidade: que esperar da representagio fotografica, nas paredes das galerias, das vitimas desta ou daquela ini- ciativa de exterminio étnico: revolta contra seus carrascos? Simpatia sem consequéncia pelos que sofrem? Célera con- tra os fotdgrafos que fazem da afligéo de populagées uma oportunidade de manifestacio estética? Ou indignagao con- tra seu olhar conivente, que naquelas populagées s6 vé a situagdo degradante de vitimas? A questao é indecidivel. Nao que o artista tivesse in- tengdes duvidosas ou pratica imperfeita, deixando assim de acertar na boa formula pata transmitir os sentimentos pensamentos apropriados 3 situagio representada. O pro- blema esta na propria formula, na pressuposigao de um con- tinuunt_sensivel entre a produgia de imagens, gestos ou_ ‘palavras ¢ a percepsao de uma situacao que empenhe pen’ ‘samentos, sentimentos e agdes dos espectadores. Nao é sur- preendente que 0 teatro tenha sido o primeito a perceber ‘que estava em crise, hé mais de dois séculos, um modelo no qual numerosos artistas plasticos ainda hoje acreditam ou fingem acreditar: € porque o teatro é o lugar onde se ex- pdem nuamente as pressuposigdes ~ e as contradigGes ~ que guiam certa ideia de eficacia da arte. Endo surpreendente que O Misantropo tenha dado a ocasio exemplar para isso, Py visto que seu proprio tema aponta para 0 paradoxo. Como 0 teatro poderia desmascarar os hipdcritas, se a lei que o rege €alei que governa o comportamento dos hipécritas: a ence- nagio por corpos vivos dos sinais de pensamentos e senti- mentos que nao sdo seus? Vinte anos depois da Carta sobre (65 espeticulos, um dramaturgo que ainda sonhava com 0 teatro como instituigo moral, Schiller, fazia a demonstra- gio teatral de tais coisas opondo em Os bandoleiras 0 hips- crita Franz Moor a seu irmao Karl, que leva ao ponto do crime o sublime da sinceridade revoltada contra a hipocrisia do mundo. Qual ligéo esperar do confronto de dois herdis que, agindo “em conformidade com a natureza”, agem como monstros? “Os elos da natureza estéo rompidos’, declara Franz. A fabula de Os bandoleiros levava ao ponto de ruptura a figura ética da eficdcia teatral. Dissociava os trés elemen- tos cujo ajuste supostamente inseria essa eficdcia na ordem da natuzeza: a regra aristotélica de construcao das ages, a moral dos exemplos & Plutarco ¢ as formulas modernas de expresso de pensamentos e sentimentos pelos corpos. Q problema entdo nao se refere & validade moral ou politica da mensagem_transmitida pelo dispositixo cepre~ sentativo. Refere-se ao proprio dispositivo, Sua fissura poe & mostra que a eficécia da arte nap consiste.em trangmitir mensagens, dar modelos ou contramodelos de comporta- ‘mento ou ensinar a decifrar as representagdes. Ela consiste sobretudo em disposigdes dos corpos, em recorte de espagos @ tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe. € 0 que a polémica de Rousseau punha em cvidéncia, Mas ela imediatamente punha em curto-citcuito © pensa- mento dessa eficécia por meio de uma alternativa demasia- do simples. Pois o que ela opde as duvidosas ligées de moral da representagdo € simplesmente a arte sem representacdo, a arte que nao separa a cena da performance artistica ea da vida coletiva. Ao piblico dos teatros ela ope 0 povo em ato, a festa civica em que a cidade se apresentaa si mesma, como faziam os efebos espartanos celebrados por Plutarco. Rous- seau retomava assim a polémica inaugural de Plato, opon- cy do & mentira da mimese teatral a boa mimese: a coreografia da cidade em ato, movida por seu prinefpio espiritual inter- no, cantando e dangando sua prépria unidade. Esse para- digma designa o lugar da politica da arte, mas para logo depois subtrair a arte e a politica juntas. Substitui a duvido- sa pretensao da representacio a corrigir os costumes e os pensamentos por um modelo arquiético. Arquiético no sen- tido de que os pensamentos ja nao do objeto de ligdes dadas por corpos ou imagens representados, mas esto di- retamente encarnados em.costumes, em modos de ser da comunidade. Esse modelo arquiético ndo deixou de acompa- nhar o que chamamos de modernidade, como pensamento de uma arte que se fortion fora de vida. Teve seus grandes momentos no primeiro quartel do século XX: a obra de arte total, o coro do povo em ato, a sinfonia futurista ou constru- tivista do novo mundo mecanico. Essas formas ficaram bem Jonge, para trés. Mas 0 que continua perto é 0 modelo de arte que deve suprimir-se a si mesma, de teatro que deve inverter sua ldgica, transfor mando o espectadot em ator, da performance artistica que faz a arte sair do museu para fazer dela um gesto na rua, ou anula dentro do préprio museu separaco entre arte e vida. O que se opée entao a pedagogia incerta da mediagio representativa é outa pedagogia, a da imediatez ética, Fssa polaridade entre duas pedagogias defi- neo circillo no qual ainda hoje esta frequentemente encerra- da boa parte da reflexdo sobre a politica da arte. Ora, essa polaridade tende a obscurecer a existéncia de uma terceira forma de eficécia da arte, que merece pro- priamente o nome de eficacia estética, pois ¢ propria do re- ‘gime estético da arte. Mas trata-se de uma eficdcia parado- xal: 6 a eficdcia da prépria separacio, da descontinuidade centre as formas sensiveis da produgo artistica e as formas sensfveis através das quais os espectadores, os leitores ou os ouvintes se apropriam desta, A eficdcia estética € a eficécia de uma distancia e de uma neutralizagao. Esse ponto mere- ce esclarecimento. A “distancia” estética na verdade foi as- sociada por certa sociologia a contemplagao extatica da be- leza, que esconderia os fundamentos sociais da produggo artistica e de sua recepgao e contrariaria, assim, a conscién- cia critica da realidade e dos meios de agir nela. Mas essa critica deixa escapar o que constitui o principio dessa dis- tancia e de sua eficdcia: a suspensio de qualquer relagao determinavel entre a intengdo do artista, a forma sensivel apresentada num lugar de arte, o olhar de um espectador e um estado da comunidade. Essa disjuncao pode ser emble- matizada, na época em que Rousseau escrevia sua Carta so- bre os espetdculos, pela descri¢ao aparentemente inofensiva de uma escultura antiga, descrigao feita por Winckelmann da estatua conhecida como Torso do Belvedere, A ruptura que essa andlise realiza em relacdo ao paradigma represen tativo consiste em dois pontos essenciais. Primeiramente, essa estétua estd desprovida de tudo © que, no modelo re- presentativo, possibilitava definir a beleza expressiva e 0 cardter exemplar de uma figura: nao tem boca para proferir uma mensagem, rosto para expressar um sentimento, mem- bros para comandar ou executar uma acdo. Apesar disso, Winckelmann decidiu converté-la na estétua do herdi ativo entre todos, Hércules, 0 herdi dos Doze ‘Irabalhos. Mas fez dela um Hércules em repouso, acolhido depois de seus tra- balhos no amago dos deuses. E dessa personagem ociosa ele fez 0 representante exemplar da beleza grega, filha da liberdade grega — liberdade perdida de um povo que nao conhecia a separagao entre arte e vida. A estdtua exprime, pois, a vida de um povo, como a festa de Rousseau, mas esse povo jé foi subtraido, esta presente apenas naquela figura ‘ociosa, que nao expressa nenhum sentimento e nao propoe nenhuma aco por imitar. Este é 0 segundo ponto: a estétua esté subtraida a todo e qualquer continuum que garanta uma relagio de causa e efeito entre a intengao de um artista, um modo de recep¢io por um ptiblico e certa configuracéo da vida coletiva, A descricgio de Winckelmann desenhava, assim, 0 modelo de uma eficécia paradoxal, que nao passava por tm suplemento de expresso ou de movimento, mas, ao contré- io, por uma subtracao ~ por indiferenca ou passividade ra- dical -, néo por um enraizamento numa forma de vida, mas ” ans pela distancia entre duas estruturas da vida coletiva. Esse paradoxo Schiller desenvolveria em suas Lettres sur Téduca- tion esthétique de l'homme [Cartas sobre a educagito estética do homem|, definindo eficacia estética como eficécia de uma suspensao. O “instinto de jogo” proprio & experiéncia neu- traliza a oposigao que tradicionalmente caracterizava a arte e seu enraizamento social: a arte se definia pela imposigio ativa de uma forma & matéria passiva, c esse efeito a coadu- nava com uma hierarquia social na qual os homens de inte ligéncia ativa dominavam os homens da passividade mate- rial, Para simbolizar a suspensao dese acordo tradicional entre a estrutura do exercicio artistico e a de um mundo hierarquico, Schiller ja ndo descrevia um curpo sem cabega, ‘mas uma cabeca sem corpo, a da Juno Ludovisi, caracteriza~ da também por uma indiferenga radical, por uma auséncia radical de preocupagio, vontade e finalidade, que neutrali- zava a propria oposicao entre atividade e passividade. Esse paradoxo define a conliguragio e a “politica” da- quilo que chamo regime estético da arte, em oposigao ao regime da mediagdo representativa e ao da imediatez ética. Eficacia estética significa propriamente a eficicia da sus pensdo de qualquer relacdo direta entre a produgao das for- mas da arte ¢ a produgiio de um efeito determinado sobre uum publico determinado. A estétua de que Winckelmann ‘ou Schiller nos falam foi a figura de um deus, o elemento de um culto religioso e civico, mas jé nao o &. Ja ndo ilustra nenhuma fé ¢ nao significa nenhuma grandeza social. Ja do produz nenhuma corregao dos costumes nem nenhuma mobilizagao dos corpos. Jé nao se dirige a nenhum piiblico especifico, mas ao pablico andnimo indeterminado dos vi sitantes de museus ¢ dos leitores de romances. Ela Lhes é oferecida da mesma mancira como é possivel oferecer uma Virgem florentina, uma cena de cabaré holandés, uma tige- la de frutas ou uma banca de peixes; da maneira como serao oferecidos mais tarde os ready-made, mercadorias desvia~ das ou cartazes descolados, Essas obras agora esto sepa- radas das formas de vida que haviam dado ensejo 8 sua pro- dugdo: formas mais ou menos miticas da vida coletiva do povo grego; formas modernas da dominagdo mondrquica, religiosa ou aristocritica que conferiam uma destinacao aos produtos das belas-artes. A dupla temporalidade da estatua grega, que agora é arte nos museus porque nio o era nas ceriménias civieas de outrora, define uma dupla relacdo de separagdo e ndo separasao entre arte e vida, £ por ter-se constituido ao redor da estétua desvinculada de sua desti- nagio primeira que 0 museu —entendido ndo como simples construcao, mas como forma de recorte do espaco comum c modo especifico de visibilidade — poderd acolher mais tarde qualquer outra forma de objeto do mundo profano, também assim desvinculado. & também por isso que em nossos dias cle poderd prestar-se a acolher modos de circulaggo de in. formagao e formas de discussdo politica que tentam opor-se aos modos dominantes de informagao e discussao sobre as quesiées comuns. A ruptura estética instalou, assim, uma singular for- : a eficécia de uma desconexéo, de uma rup- tura da relagio entre as produgées das habilidades artisticas e dos fins sectais defines, ent Formas sensivels signifi cages que podem nelas sér lidas e efeitos que elas podem produzir, Pode-sa-dizer de outro modo: a elicdcia de um dissenso. O que entendo por dissenso nao € 0 conflito de ideias“Ou “Sentimentos. E 0 conflito de varios regimes de sensorialidade. F por isso que a arte, no regime da separa: Gao estética, acaba por tocar.na politica. Pois 0 dissenso esta no cere da politica. Politica ndo é, em primeiro Tagar, exer- cicio do poder ou luta pelo poder. Seu ambito nao é defini- do, ent piiieito lugar, pelas leis e instituigées. A primeira questo politica é saber que objetos e que sujeitos sao visa- dos por essas instituigdes c essas leis, que formas de relacdio definem piopriameyité uma comunidade politica, que obje- tos essas relagdes visain, ule sujeitos sao aptos.a designar esses objetos e a discuti-los. A politica ¢ a atividade que re- configura os Ambitos sensiveis nos quais se definem objetos comuns. Bla rompe a evidéncia sensivel da ordem “natural” que destina os individuos e os grupos ao comando ou & obediéncia, & vida piiblica ou a vida privada, votando-os so- 8 bretudo a certo tipo de espago ou tempo, a certa maneira de set, ver e dizer. Essa légica dos corpos tem seu lugar numa distribuiggo do comum e do privado, que é também uma distribuigdo do visivel ¢ do invisivel, da palavra e do ruido, 6 0 que propus designar com o termo policia. A poli- tica & a pratica que rompe a ordem da policia que antevé as relagdes de poder na propria evidéncia dos dados sensfveis. Ela 0 faz por meio da invengio de uma instancia de enun- ciagdo coletiva que redesenha 0 espaco das coisas comuns, Tal como Platéo nos ensina a contrario, a politica comeca quando ha ruptura na distribuigo dos espacos e das com- peténcias — e incompeténcias, Comeca quando seres desti- nados a permanecer no espaco invisivel do trabalho que no deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que n3o tém para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar © que nao se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir 0 comum aquilo que era ouvido apenas como ruf- do dos corpos. Se a experiéncia estética toca a politica, é porque tam- bém se define como experiéncia de dissenso, oposta & adap- taco mimética ou ética das produgdes artisticas com fins soviais, As produgSes artisticas percem funcionalidade, sae da rede de conexdes que lhes dava uma destinagao anteven- do seus efeitos; sao propostas num espago-tempo neutrali- zado, oferecidas igualmente a um olhar que esté separado de qualquer prolongamento sens6rio-motor definiddo, O re- sultado no 6 a incorporagao de um saber, de uma virtude ou de um habitus. Ao contrario, & a dissociagao de certo cor- po de experiéncia. E nisso que a estétua do Torso, mutilada e privada de seu mundo, emblematiza uma forma especifica de relagio entre a materialidade sensivel da obra e seu efei to. Ninguém resumiu melhor essa relacao paradoxal do que um poeta que, no entanto, pouco cuidou de politica. Penso em Rilke e no poema por ele dedicado a outra estatua muti- Jada, 0 Torso atcaico de Apolo; o poema termina assim: Nela nao ha lugar Que nao te mire: precisas mudar de vida, ‘A vida deve ser mudada porque a estétua mutilada define uma superficie que “mira” o espectador de todos os lugares; em outras palavras, porque a passividade da esta- tua define uma eficécia de género novo. Para compreender essa frase enigmatica, talvez seja preciso atentar para outra historia de membros e de olhar que ocorre numa outra cena bem diferente, Durante a revolugao francesa de 1848, um jornal revolucionrio operdrio, Le Tocsin des travailleurs, pu- blicou um texto aparentemente “apolitico”, a descrigao da jornada de trabalho de um operario marceneiro, ocupado a taquear um aposento por conta do patréo e do dono do lu- gar. Ora, o que esté no cerne da descrigao é a disjungio en- tre a atividade dos bragos e a do olhar, que subtrai o marce- neiro a essas duas dependéncias. “Acteditando-se em casa, enquanto néo termina 0 aposento que esté taqueando, ele gosta dle sua disposi¢ao; se a janela se abre para um jardim ou domina um horizonte pitoresco, por um instante seus bragos param e em pensa- mento ele plana para a espacosa perspectiva, a fim frui-la melhor que os donos das habitagées vizinhas."” Esse olhar que se separa dos bracos e fende o espaco da atividade submissa destes para nela inserir 0 espaco de tuma inatividade livre define bem um dissenso, o choque de dois regimes de sensorialidade. Esse choque marca uma subverséo da economia “policial” das competéncias. Apo- derar-se da perspectiva é jé definir sua presenga num espa- G0 que nao é o d6."trabalho que nae espera”. EYomper a diviso éhire os que esto submetidos a neces balho dos bracos e os que dispdem da liberdade do olhar. £, por fim, apropriar-se desse olhar perspectivo tradicional- mente associado ao poder daqueles para os quais conver- gem as linhas dos jardins & francesa e as do edificio social Essa apropriagao estética nao se identifica com a ilusio de que falam socidlogos como Bourdieu. Ela define a constitui- 0 de outro corpo que jé nao est “adaptado” & divisao po- Ticial de lugares, fungdes e competéncias sociais. Portanto, 12.Gabriel Gauny, "Le travalll la journée" in Le Pilcsophe ptbtien, op. cit, pp. 45-6. nao por erro que esse texto “apolitico” aparece num jornal operdrio durante uma primavera revolucionéria. A possibi- lidade de uma voz coletiva dos operérios passa entéo_por essa ruptura estética, por essa dissociagao das maneiras operdrias de ser. Pois para 0s dominados a questéo nunca foi tomar consciéncia dos mecanismos de dominacéo, mas criar um corpo votado a outra coisa, que nao a dominagéo. Como nos indica o mesmo marceneiro, ndo se trata de adquirir conhecimento da situagio, mas das “paixdes” qtie sejam inapropriadas a essa situagio. Q. que produz essas paixées, essas subversdes na disposi¢ao dos corpos nio é esta ou aquela obra de arte, mas as'formas de olhar corres- pondentes as formas novas de exposigéo das obras, &s for- mas de sua existéncia separada. © que forma um corpo ope- xirio revoluciondrio nao ¢ a pintura revoluciondria, quer ela seja reyolucionaria no sentido de David, quer no de Dela. croix. E bem mais a possibilidade de tais obras serem vistas no espaco neutro do museu ou mesmo nas reprodugdes das enciclopédias por prego médico, onde sio equivalentes is que ontem contavam o poder dos reis, a gloria das cidades antigas ou os mistérios da fe. ‘© que funciona, em certo sentido, & uma vacancia. que nos ensina uma iniciativa artistico-politica aparente- mente paradoxal que atualmente se desenvolve num dos subtirbios de Paris cujo caréter explosivo se manifestou na rebclido do outono de 2005: um daqueles subtirbios marca dos pele relegacdo social e pela violencia das tenses interé~ tnicas. Numa dessas cidades, um grupo de artistas, Campe- ment urbain [Acampamento urbano}, montow um projeto estético na contramao do discurso dominante, que explica a “erise dos sublirbios” pela perda do elo social causada pelo individualismo de massa. Com o titulo “Je et Nous” [Eu e Nés], 0 intuito foi mobilizar uma parte da populago para criar um espago aparentemente paradoxal: um espaco “to- talmente indtil, fragile improdutivo", um lugar aberto a todos ¢ sob a protecdo de todos, mas que $6 possa ser ocu: pado por uma pessoa para a contemplacio ou a meditacao solitaria. O aparente paradoxo dessa luta coletiva por um 8 lugar tinico é simples de resolver: a possibilidade de estar sozinho(a) aparece como forma de relagao social, a dimen- Jo da vida social que, precisamente, é impossibilitada pelas condigées de vida naqueles subirbios. Aquele lugar vazio desenha ao inverso uma comunidade de pessoas que te- nham a possibilidade de ficar sozinhas. Significa a igual ca- pacidade dos membros de uma coletividade para ser um Eu Cujo jufzo possa ser atribuido a qualquer outro e criar assim, com base no modelo da universalidade estética kantiana, uma nova espécie de Nés, uma comunidade estética ou dis- sensual. © lugar vazio, intitil e improdutivo define uma ruptura na distribuigéo normal das formas da existén sensivel e das “competéncias” e “incompeténcias” a ela vin- culadas. Num filme ligado a esse projeto, Sylvie Blacher mostrou habitantes com camisetas ostentando uma frase que cada pessoa havia escolhido, portanto, algo como um lema estético. Entre aquelas frases, lembro-me desta, em que uma mulher velada diz com suas palavras o que o lugar se propée formular: “Quero uma palavra.vazia que eu possa preencher.” ‘A partir das, 6 posstvel enunciar 0 paradoxo da relagio entre arte e politica. Arte e politica tém a ver uma.com a outra comp formas de dissenso, operagdes de reconfigura- cao da experiéncia comum do sensivel. Ha uma estética da politica no sentido de que os atos de subjetivagio politica tedefinem 0 que ¢ visivel, o que se pode dizer dele ¢ que sujeitos sao capazes de fazé-lo. Hé uma politica da estética no sentido de que as novas formas de circulagao da palavra, de exposi¢ao do visivel e de producao dos afetos determi- nam capacidades novas, em ruptura com a antiga configu- ago do possfvel. Hé, assim, uma politica da arte que pre- cede as politicas dos artistas, uma_politic te como recorte singular dos objetos da experiéneia comum, que fupciona por si mesma, independentemente dos desejes que 0s artistas passam ter de servir esta ou aquela causa. O efei to do museu, do livro ou do teatro tem a ver com as divisées de espago e tempo e com os modos de apresentacao sensivel que instituem, antes de dizer respeito ao contetido desta ou ia daquela obra. Mas esse efeito ndo define nem uma estraté- gia politica da arte como tal nem uma contribuigdo caleulé- vel da arte para a agio politica Aquilo que se chama palitica da arte, portanto, é 0 entrelagamento de iégicas heterogéneas. Hé, em primeiro lugar, aquilo que se pode chamar “politica da estética’, ou seja, 0 efeito, no campo politico, das formas de estruturagao da experiéncia sensivel prdprias a um regime da arte. No regime estético da arte, isso quer dizer constituigao de espa- os neutralizados, perda da destinagao das obras ¢ sua dis- ponibilidade indiferente, encavalamento das temporalida~ des heterogéneas, igualdade dos sujeitos representados ¢ anonimato daqueles a quem as obras se dirigem. Todas es- sas propriedades definem o dominio da arte como dominio de uma forma de experiéncia propria, separada das outras formas de conexao da experiéncia sensivel. Determinam o complemento paradoxal dessa separagio estética, a ausén- cia de critérios imanentes as préprias produces da arte, a auséncia de separacao entre as coisas que pertencem & arte € as que ndo pertencem. A relacdo dessas duas propriedades define certo democratismo estético que ndo depende das in- tengSes dos artistas © nao lem efeily detersindvel em ter- mos de subjetivagao politica, Nesse quadro, hd, em segundo lugar, as estratégias dos artistas que se propdem mudar os referenciais do que ¢ visivel e enunciavel, mostrar 0 que néo era visto, mostrar de outro jeito 0 que nao era facilmente visto, correlacionar 0 que ndo estava correlacionado, com o objetivo de produzir tupturas no tecido sensivel das percepgdes e na dinamica dos afetos. Esse é 0 trabalho da ficgdo. Fic¢ao nao € criacao de um mundo imagindrio oposto ao mundo reall. E 0 traba~ Tho que realiza dissensos, que muda os modos de apresenta- cio sensivel e as formas de enunciagio, mudando.quadros, escalas ou ritmos, construindo relagées novas entre a apa- réncia e.a realidade, o singular e 0 comum, o visivel e sua significagdo. Esse trabalho muda as coordenadas do repre. sentével; muda nossa percepcao dos acontecimentos sensi veis, nossa maneira de relaciond-los com os sujeitos, o modo oy como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras. O romance moderno, assim, realizou certa democratizago da experiéncia, Transgredindo as hierarquias entre sujeitos, acontecimentos, percepgGes e encadeamentos que governa- vam a fice cléssica, ele contribuiu para uma nova distri- buicdo das formas de vida possiveis para todos. Mas nao ha principio de correspondéncia determinado entre essas mi- ‘cropoliticas da redescrigo da experiéncia e a constituiga0 de coletivos politicos de enunciacao. As formas da expetiéncia estética e os modos da fi so criam assim uma paisagem inédita do visivel, formas novas de individualidades e conexées, ritmos diferentes de apreensio do que é dado, escalas novas, Nao o fazem da maneira especifica da atividade politica, que cria formas de enunciagio coletiva (nds). Mas formam o tecido dissensual ‘N0 qual se recortam as formas de construgio de objetos e as possibilidades de enunciacdo subjetiva préprias & agdo dos Coletivos politicos. Enquanto a-pelitica propriamente dita consiste na producde-de sujeitos que dio voz aos andnimos, 2 politica prépria A arte no regime estético consiste na ela boracSado mundo sensivel do andnima, des modos do isso © do eu.co.qual emergem os mundos propri see politi- 3 medida que passa pela ruptura estética, esse efei- to nao se presiaa nenhum-céleulo determinavel. Foi essa indeterminacdo que pretenderam ultrapassar as grandes metapoliticas que atribuiram & arte a tarefa de transformagio radical das formas da experiéncia sensivel Elas quiseram fixar a relagao entre o trabalho de produgdo artistica do isso e o trabalho de criaco politica do nds, &.cus~ ta de fazer deles um tinico e mesmo processo de transfor- magdo das formas da vida, & custa de a arte assumir a tarefa de se suprimir na realizacao de sua promessa histérica A “politica da arte” é assim, feita do entrelacamento de trés Tgicas: ica das formas da experiencia estética, a do trabalho fi cot ee Metapalificas. Esse entrelacamento também implica um entrangamento singu- Jar e contradit6rio entre as trés formas de eficdcia que tentei definir: a logica representativa que quer produzir efeitos pelas representagdes, a logica estética que produz efeitos pela suspensdo dos fins representativos ea légica ética, que quer que as formas da arte e as formas da politica se identifiquem. diretamente umas com as outras. ‘A tradigdo da arte critica quis articular essas trés légi- cas numa mesma formula. Tentou produzir 0 efeito ético de mobilizago das energias encerrando os efeitos da distancia estética na continuidade da relagdo representativa. Brecht deu a essa tentativa o nome emblemético de Verfremdung — um tornar-se-estranho, geralmente traduzido em francés por “distanciation”*. © distanciamento é a, indeterminacio da relagdo estética repatriada para o interior da ficcao repre- sentaliva, coneentzada em pader de choque de uma hetero- ‘geneidade. Essa heterogeneidade — uma historia estapatér- dia de venda ce um falso elefante, devendedores de couve-flor dialogando, e outras ~ devia produzir dois efeitos: por um lado, a estranheza sentida devia dissolver-se na compreen- so de suas razes; por outro, devia transmitir intacta a sua forca de afeto para transformar essa compreensao em forca de revolta, Tratava-se, pois, de fundir num tinico e mesmo proceso 0 choque estético das sensorialidades diferentes e ‘a corregio representativa dos comportamentos, a separagao cestética e a continuidade ética. Mas nao hé razio para que o chogue de dois modos de sensorialidade se traduza em compreensio das razdes das coisas, nem para que esta pro- duza a decisao de mudar o mundo. Essa contradigéo que habita o dispositivo da obra critica, porém, nao a torna sem efeito. Pode contribuir para transformar o mapa do percep- tivel e do pensdvel, para criar novas formas de experiéncia do sensfvel, novas disténcias em relacao as configuragies existentes do que é dado. Mas esse efeito nao pode ser uma transmissio calculével entre choque artistico sensivel, to- mada de consciéncia intelectual e mobilizagao politica. Nao se passa da visdo de um espetdculo a compre do e da compreensao intelectual a uma decisdo de agao. Passa-se de um mundo sensfvel a outro mundo sensfvel que define outras tolerancias e intolerancias, outras capacidades in portugués, dstanciamento ou estranhamento, [N. da] e incapacidades. O que esté em funcionamento s&o disso ciagSes: ruptura de uma relagao entre sentido e sentido, en- tre um mundo visivel, um modo de afeigao, um regime de interpretagio e um espaco de possibilidades; ruptura dos referenciais sensiveis que possibilitavam a cada um 0 seu lugar numa ordem das coisas. A distancia entre as finalidades da arte critica ¢ suas formas reais de eficdcia foi sustentével enquanto o sistema de compreensao do mundo e as formas de mobilizagio po- litica que ele supostamente favorecia cram suficientemente fortes por si mesmos para suporté-la. Mostrou-se a nu a partir do momento em que esse sistema perdeu evidéncia e essas formas perderam forga, Os elementos “heterogéneos” que 0 discurso critico reunia na verdade estavam interliga- dos pelos esquemas interpretativos existentes. As perfor- ‘mances da arte critica alimentavam-se da evidéncia de um mundo dissensual. A pergunta entio é: 0 que aconteceu com a arte critica quando esse horizonte dissensual perdeu evidéncia? O que Ihe ocorre no contexto contemporaneo de consenso? A palavra consenso significa muito mais que uma for- ma de governo “moderno” que dé prioridade a especialida de, & arbitragem e a negociagio entre os “parcciros sociais” ou os diferentes tipos de comunidade. Consenso significa acordo entre sentidore'sentido, ou soja, entre um modo de apresentagdo sensivel e um regime de interpretago de seus dados. Significa que, quaisquer que sejam nossas divergén- cias de ideias ¢ aspiragdes, percebemo$ as mesmas coisas e Thes damos o mesmo significado. O contexto de globali <0 écondinica impée essa imagem de mundo homogéneo ‘no qual o problema de cada coletividade nacional é adaptar- -se 2. um dado sobre o qual ela nao tem poder, adaptar a ele seu mercado de trabalho e suas formas de protegao social Nesse contexto, desvanece-se a evidéncia da luta contra a dominacao capitalista mundial que sustentava as formas da arte critica ou da contestagio artistica. As formas de luta contra a inevitabilidade mercantil so cada vez mais identi- ficadas a reagdes de grupos que defendem seus privilégios a arcaicos contra as exigéncias do progresso. Ea extensio da dominagao capitalista global é equiparada a uma fatalidade da civilizaggo moderna, da sociedade democritica ou do individualismo de massa. Nessas condigdes, 0 choque “eritico” dos elementos heterogéneos jé ndo encontra analogia no choque politico de mundos sensiveis opostos. Tende entéo a voltar-se para simesmo, As intengdes, os procedimentos e a ret6rica justi ficativa do dispositive critico quase nao variam hé décadas. Hoje como ontem, pretende-se denunciar 0 reinado da mer- cadoria, de seus icones ideais e de seus detritos sérdidos por meio de estratégias bem surtadas: filmes publicitarios paro- diados, mangas desvirtuados, sons aposentadus de dance- terias, personagens de telas publicitérias transformadas em estatuas de resina ou pintadas no estilo herdico do realismo sovitico, personagens da Disneylandia transformadas em perversos polimorfos, montagens de fotografias vernacula~ res de interiores domésticos semelhantes a publicidades de lojas de departamento, lazeres tristes e detritos da civiliza- cdo consumiste; instalagdes gigantescas de mangueiras méquinas a representarem o intestino da maquina social que absorve todas as coisas e as transforma em excremento etc, ete. Esses dispositivas continuam ocupando nossas ga~ lerias ¢ nossos museus, acompanhados de uma ret6rica que ‘pretende levar-nos assim a descobrir 0 poder da mercado- ria, 0 reino do espetaculo ou a pornografia do poder. Mas, como ninguém em nosso mundo € tio distraido que seja preciso chamar-Ihe-a atengao.para tais coisas, 0 mecani mo gira em torno de si:mesmo e se vale da prépria indeci- dibilidade de seu dispositivo. Essa indecidibilidade foi ale- gorizada de forma monumental na obra de Charles Ray denominada Revolugao. Contrarrevolucao. A obta tem toda a aparéncia de um carrossel. Mas o artista modificou o meca~ nismo do carrossel. Desconectou do mecanismo rotativo de conjunto © mecanismo dos cavalos, que andam para tras muito devagar enquanto 0 cartossel avanga. Esse duplo mo- vimento confere sentido literal ao titulo. Mas esse titulo também transmite o significado alegérico da obra e de seu 8 estatuto politico: yma stibversio de-méquina.da enteriain- ment, que.< indiscem‘yel do funcionamento da paipria mé- quina. O dispositivo alimenta-se entio da equivaléncia-en- tte_a parddia como critica e a parédia da critica, Vale-se.da indecidibitidade da relag3o entre os dois efeitos. © modelo critico tende, assim, a autoanulacéo. Mas hé varias maneiras de extrair um balango. A primeira con- siste em diminuir a carga politica posta sobre a arte, em re- duzir © choque dos elementos heterogéneos ao inventério dos signos de pertenga comum e reduzir o peremptdrio po- émico da dialética a leveza do jogo ou a distancia da alego- ria. Nao voltarei aqui as transformacdes que comentei em outro lugar. Em compensacéo, vale a pena demorar-nos na segunda, pois la staca 0 suposto pivo do models, a cons- fncia éspectadora_Propée eliminar essa mediagao entre a afte produtora de dispositives visuais « a transformacio das relagdes sociais. Os dispositivos da arte nesse caso apresen- tam-se,diretamente como propostas de relagdes_sociais. Bisa € a.tese popularizada-per-Nicolas Bourriaud com o nome de estética relacional: o trabalho da arte, em suas for- mas novas, superou a antiga producdo de objetos para ver. Agora produz diretamente “relacdes.com.o mundo’, por- tanto Formas ativas de comunidade. Essa produgdo hoje pode englobar “meetings, reunides, manifestacdcs, diferen- tes tipos de colaboragao entre pessoas, jogos, festas, lugares de convivio, em suma, 0 conjunto dos modos do encontro e da invengao de relagdes". O interior do espago dos museus eo exterior da vida social aparecem entao como dois lugares equivalentes de produgSo de relagdes. Mas essa banalizagio logo mostra seu avesso: a dispersao das obras d multiplicidade das relagées 1is 80 vale para ‘eja porque o'érdina ago na qual nio ha “nada a ver” esta exémmplarmente alojado no. espaco.normalmente destinado & exibigao das obras, seja porque, inversamente,a 13 Reseto as andlises de algumas expasiqées emblemsticas dessa virada,apre- sentadasem Les Destin des mages (La Fabrque, 2003) ¢ Malic dont esttigue (Galilee, 2005) 1 Nicolas Bouriaud, sthtique relational, Les Presses du rel, 198, p. 29. produgdo dos elos sociais no espaco puiblico € munida-de uma forma artistica espetacular. O primeiro caso é emble- matizado pelos célebres dispositivos de Rirkrit Tiravanija gue poem A disposicao dos visitantes de uma exposigao um fogareiro, uma chaleira e saquinhos de sopa, destinados a promover a aco, a reunido e a discussdo coletiva, ou mes- mo uma reprodugio de seu apartamento, onde & possivel uma soneca, tomar um banho de chuveiro ou preparar uma refeigao. O segundo poderia ser ilustrado pelas roupas transformaveis de Lucy Orta, disponiveis pata que as pes- soas se troquem, se for o caso, em tendas de socorro, ou para ligar diretamente os participantes de uma manifesta- 60 coletiva, como o surpreendente dispositive inflavel que nao se limitava a interligar as combinagGes, decoradas de niimeros, de um grupo de manifestantes dispostos em qua- drado, mas também exibia a prépria palavra ligagdo (link) para significar a unidade daquela multiplicidade. O tornar ~se-ago ou tornar-se-elo que substituia “obra vista” s6 tem eficécia em ser visto como saida exemplar da arte para fora de si mesma. ce a Esse vai-e-vem entre a saida da arte para a realidade das relagdes sociais e a exibicao que, s6 ela, garante sna cfi- cécia simbdtica era muito bern manifestada pela obra de um artista cubano, René Francisco, apresentada ha quatro anos na Bienal de S40 Paulo*, Esse artista utilizou o dinheito de uma fundagao artistica para uma pesquisa sobre as condi- ges de vida num bairro carente e, com outros amigos artis- tas, decidiu reformar a casa de uma idosa daquele bairro. A obra nos mostrava uma tela de tule sobre a qual estava im- pressa a imagem de perfil da mulher voltada para um moni- tor no qual um video exibia os artistas trabalhando como pedreiros, pintores ou encanadores. O fato de essa interven- ‘do ter ocorrido num dos éiltimas pafses do mundo a identi: ficar-se com 0 comunismo evidentemente produzia um conflito entre dois tempos e duas ideias de realizagio da arte. Criava um sucedaneo da grande vontade expressa por Malevitch no tempo da revolugdo soviética: nao fazer qua- * Bienal de 2004, [do T] ” dros, mas construir diretamente as formas da vida nova. Essa construgao hoje estd reduzida a relagio ambigua entre ‘uma politica da arte provada pela ajuda & populacao em di- ficuldades e uma politica da arte simplesmente proyada pelo ato de sair dos lugares da arte, por sua intervenco no real. Mas a safda para o real e 6 servigo para os carentes s6 ganham sentido quando sua exemplaridade é manifestada no espaco do museu. Nesse espago, 0 olhar voltado para 0 relato visual dessas saidas nao se distingue do olhar voltado para 0s grandes mosaicos ou tapegarias com os quais nu- -merosos artistas hoje representam a multidao de anénimos ou 0 ambito da vida deles. Tal como a tapecaria de mil ¢ seiscentas fotografias de identidade costuradas juntas pelo artista chinés Bai Yiluo num conjunto que quer evocar ~ eu © cito ~ “os elos delicados que unem as familias e as co- munidades”. O curto-circuito da arte que cria diretamente formas de relagdes em vez de formas plasticas 6, afinal, 0 curto-circuito da obra que se apresenta como realizagao an- tecipada de seu efeito, Supde-se que a arte una as pessoas da mesma maneira como o artista costurou juntas as foto- grafias que ele pegara num estiidio em que trabalhava. A assemblage das fotografias assume a fungao de uma escultu- ra monumental que torna presente hic et nunc a comunidade humana que é seu objeto e seu objetivo. O conceito de me- tAfora, onipresente hoje na retérica dos comissdrios de ex- posigéo, tende a conceitualizar essa identidade antecipada entre a apresentagdo de um dispositivo sensivel de formas, a manifestacao de seu sentido e a realidade encarnada des- se sentido. O sentimento desse impasse alimenta a vontade de dar a politica da arte-um objetivo que nao seja a produgio de los sociais em geral, mas uma subversao.de.elos sociais bem determinados, aqueles que prescrevem as formas do mercado, as decisdes dos dominantes e a comunicaggo mi- didtica, A acdo artistica identifica-se entao com a produgo de subversdes t6picas e simbélicas do sistema. Na Franga, essa estratégia foi embleratizada pela agao de um artista, Matthieu Laurette, que decidiu tomar ao pé da letra as pro- n messas dos fabricantes de produtos alimenticios: “Sua satis- fac4o ou seu dinheiro de volta.” Assim, ele comecou a com- prat esses produtos sistematicamente nos supermercados & a expressar insatisfagio para receber 0 dinheiro de volta. Utilizow os estimulos da televisdo para incitar todos os con- sumidores a seguir seu exemplo. Como consequéncia, a ex- posigao intitulada “Nossa Historia” no Espaco de Arte Con- temporanea de Paris em 2006 apresentava seu trabalho na forma de uma instalagdo que compreendia trés elementos: uma escultura de cera que o mostrava a empurtar um carti- nho atulhado de mercadorias; uma parede coberta por telas de tevé, todas reproduzindo sua intervencao televisionada; © ampliagdes fotogréficas de recortes de jornal que relata~ vam sua iniciativa. Segundo o comissério da exposigao, essa acdo artistica invertia ao mesmo tempo a légica comercial de aumento do valor e o princfpio do show televisionado. Mas a evidéncia dessa viravolta teria sido muito menos per- ceptivel se houvesse uma tinica tela de tevé em vez de nove, e Se as fotografias de suas ages e dos comentarios dos jor- nais tivessem dimensdes normais. A realidade do efeito também estava antecipada na monumentalizagao da ima~ gem, Essa € uma tendéncia de muitas obras ¢ exposigdes hoje em dia, que leva certa forma de ativismo artistico de volta a antiga légica representativa: a importancia do lugar gcupado no espaco do museu serve para provar a realidade de um efeito de subversdo na ordem social, assim como a monumentalidade dos quadros histéricos provava oulrora a grandeza dos principes cujos palacios ornavam, Acumu- lam-se assim os efeitos da ocupagao escultural do espago, da performance viva e da demonstracio retérica. Ao encher as salas dos museus de reprodugbes de objetos ¢ imagens do mundo cotidiano ou de relatos monumentalizados de suas prdprias performances, a arte ativista imita e antecipa seu proprio efeito, com o risco de tornar-se a parddia da eficécia que reivindica, O mesmo risco de eficécia espetacular encerradaém ‘sua propria demonstracao apresenta-se_quando os artistas assumem a tarefa especifica de “infiltrar-se” nas-redes de 2 dominagio. Penso aqui nas performances dos Yes Men que, com falsas identidades, se insinuam em pracas-fortes da do- minacao: congressos de gente de negécios, onde um deles mistificou a plateia apresentando um inveross{mil equipa- mento de vigilancia, comités de campanha de George Bush ou programas de televisao. Sua performance mais espeta- cular refere-se a catéstrofe de Bhopal na India. Um deles conseguitt fazer-se passar na BBC por um dos responsaveis da companhia Dow Chemical, que naquele interim havia adquirido a empresa responsdvel, Union Carbide. Com essa identidade, anunciou em horario nobre que a companhia reconhecia sua responsabilidade e comprometia-se a inde- nizar as vitimas. Duas horas depois, evidentemente, a com- panhia reagia e declarava que $6 tinha responsabilidade perante seus acionistas. Era exatamente esse o efeito busca- do, e a demonstragio era perfeita. Resta saber se essa per- formance bem-sucedida de mistificagao da midia tem 0 po- der de provocar formas de mobilizagdo contra as poténcias internacionais do capital. Ao fazer o balanco de sua infiltra- sfo dos comités de campanha paraa eleigdo de George Bush ‘em 2004, os Yes Men falavam de um sucesso total que fora a0 mesmo tempo um fracasso tolal: sucessu total porque ti- nham mistificado seus adversérios ao assumirem as razbes, @ as maneiras deles. Fracasso total porque a aco deles fora perfeitamente indiscernivel's. $6 era discernivel, realmente, fora da situagao na qual se inseria, exposta em outros luga- res como performance de artistas. Esse ¢ 0 problema inerente a tal politicada arte como agdo.direta no coragao da realidade da_dominacdo. Essa saida da arte para fora. de sous lugares assume ares de demonstragao simbélica, semelhante as que a aco politica fazia hd algum tempo quando mirava alvos simbdlicos do poder do adversario. Mas precisamente o golpe desferido no adversario por uma aco simbélica deve ser julgado como acdo politica: nao se trata entdo de saber se ela é uma safda bem-sucedida da solidao artistica em diregdo a realidade 15 Intervencio dos Yes Men na conferéncla Klartext! Der Status des plitschen in sktuller Kunst und Kult, Beri, 18 de janeiro de 2005, " das relagdes de poder, mas sim que forgas ela da a ago co- Ietiva contra as forgas da dominagao que toma como alvo. Trata-se de saber se a capacidade entdo exercida significa a afirmagdo e a ampliago da capacidade de qualquer um. Essa questo obliterada quando se cruzam os critérios de juizo ao se identificarem diretamente as performances indi- viduais dos virtuoses da infiltragao com uma nova forma politica de ago coletiva. © que sustenta essa identificagao 6 a visdo de uma nova era do capitalismo em que a producao material e imaterial, o saber, a comunicacio e a performan- ce artistica se fundiriam num tinico e mesmo proceso de realizagio do poder da inteligéncia coletiva. Mas, assim como ha muitas formas de realizagao da inteligéncia coletiva, ‘hd também muitas formas e cenas de performance. A visio do novo artista imediatamente politico pretende opor a rea lidade da ago politica aos simulacros da arte encerrada nos ecintos dos museus. Mas, ao revogar a distancia estética inerente & politica da arte, o efeito talvez seja inverso. Ao eli- minar a distancia entre politica da estética e estética da polt- tica, ela também elimina a singularidade das operacées por meio das quais a politica cria uma cena de subjetivacao pro- pia. E, paradoxalmente, exagera a visio tradicional do artis- ta como virtuose e estrategista, 20 identificar de novo a efe- tividade da arte com a execugao das intengdes dos artistas. A politica da arte, portanto, ndo pode resolver seus paradoxos na forma de intervengao fora de seus lugares, no “mundo real”. Nao ha mundo real que seja 0 exterior da arte. Hé pregas e dobras do tecido sensivel comum nas quais se jungem e desjungem a politica da estética e a estética da politica. Nao hé real emi, mas configuragdes daquilo que 6 dado como nosso real, como o objeto de-nossas percepyes, de nossos pensaiiieritos e de nossas intervengdes. O real & sempre objeto de uma ficgdo, ou seja, de uma construgio do espaco no qual se entrelagam o vistvel, o dizivel e o factivel. Ba ficgéo dominante, a ficcao consensual, que nega seu ca- réter de ficgio fazendo-se passat por realidade e tragando uma linha de divisdo simples entre o dominio desse real e 0 das representagGes ¢ aparéncias, opinides e utopias. A ficgao " artistica e a ago politica sulcam, fraturam ¢ multiplicam esse real de um mado polémico. O trabalho da politica que inventa sujeitos novos e introduz objetos novos e outra per- cepsao dos dados comuns é também um trabalho fiecional. Por isso, a relago entre arte e politica ndo é uma passagem da ficgéo para a realidade, mas uma relagéo entre duas ma- neiras de produzir ficgdes. As priticas da arte nao séo ins- trumentos que fornegam formas de consciéncia ou energias mobilizadoras em proveito de uma politica que lhes seja ex- tetior. Mas tampouco saem de si mesmas para se tornarem formas de ago politica coletiva. Contribuem para desenhar ‘uma paisagem nova do visivel, do dizivel e do factivel. For- jam contra o consenso outras formas de “senso comum’, formas de um senso comum polémico. A involugao da fSrmula critica ndo deixa lugar apenas 8 alternativa da parédia desencantada ou da autodemons- tragio ativista. O refluxo de certas evidéncias abre também caminho para uma multidao de formas dissensuais: as que se empenham em mostrar o que permanece invisivel na su- posta enxurrada de imagens; as que poem em ago, com formas inéditas, as capacidades de representar, falar e agir que pertencem a todos; as que deslocam as linhas de divi- sio entre os regimes de apresentagio sensivel, as que reexa- minam e reconvertem em ficgao as politicas da arte. Fi lu- gar para a multiplicidade das formas de uma arte critica, entendida de outro modo. Em seu sentido original, “critica” quer dizer: 0 que concerne & separagao, & discriminacéo. Critica € a arte que desloca as linhas de separago, que in troduz separagdo no tecido consensual do real e, por isso mesmo, embaralha as linhas de separagao que configuram © campo consensual do que é dado, como a linha que sepa- ra 0 documentério da ficgdo: distingdo em géneros que se- para principalmente dois tipos de humanidade, a que sofre ea que age, a que é objeto e a que é sujeito. A ficgo & para 0 israelenses e o documentério, para os palestinos, dizia ironicamente Godard. E essa a linha embaralhada por int- meros artistas palestinos ou libaneses ~ mas também istee- lenses -, que, para tratar da atualidade da ocupacao ¢ da 8 guerra, tomam formas ficcionais a partir de diversos gene- ros, populares ou sofisticados, ou criam falsos arquivos. Po- dem ser chamadas de criticas as ficgSes que assim questio- nam as linhas de separagdo entre regimes de expressio, tanto quanto as performances que “invertem o ciclo de degradagao produzido pela vitimizacdo”"s, manifestando as capacidades de falar e representar que pertencem dqueles e Aquelas que dada sociedade relega as suas margens “passi- vas”. Mas o trabalho eritico, o trabalho sobre a separacao é também o que examina os limites prdprios & sua pratica, que se recusa a antecipar seu efeito e leva em conta a sepa- ragio estética através da qual esse efeito é produzido. £, em suma, um trabalho que, em vez de pretender suprimir a passividade do espectador, reexamina a sua atividade. Gostaria de ilustrar essa frase com duas ficgdes que, da prépria distancia em que estdo sobre a superficie plana de uma tela, podem ajudar-nos a reformular a questo das relages entre os poderes da arte e a capacidade politica da maioria. A primeira é 0 video de Anri Sala, Damini i Colori Este pe de novo em cena uma figura mestra entre as poli- ticas da arte: a reflexdo sobre a arte como construgao de for- mus sensiveis da vida coletiva. Hd alguns anos, o prefeito da capital albanesa, Tirana, que é pintor, decidiu mandar re- pintar de cores vivas as fachadas dos prédios de sua cidade, A intengdo era nao sé transformar o ambiente vital dos ha- bitantes, mas também provocar um senso estético de apro- priago coletiva do espago, quando o desmantelamento do tegime comunista dava lugar apenas a expedientes indivi- duais. Era, portanto, um projeto que se inscrevia no prolon- gamento do tema schilleriano da educacdo estética do ser humano ¢ de todas as formas dadas a essa “educacdo” pelos artistas das Arts and Crafts, do Werkbund ou do Bauhaus: a criagao de uma maneira apropriada de habitar em conjunto o mundo sensivel, por meio do sentido da linha, do volume, da cor ou do ornamento. © video de Anri Sala deixa-nos 16, Entrevista com John Malpede, ww inmotionmagazine com/jmt html John Malpede & diretor do L.os Angeles Poverty Department, instituigio teatal alternativa que, ironicamente, etomou as farnosasiniciass LAPD), ouvir o prefeito artista falar do poder da cor para antecipar uma comunidade e fazer da capital mais pobre da Europa a ‘inica onde todos falam de arte nas ruas e nos cafés. Mas, também, os longos travellings e os closes estilhagamn a exem- plaridade dessa cidade estética, poem & mostra outras su- perficies coloridas, outras cidades que so confrontadas com as palavras do orador. A cdmera, fazendo desfilar fachadas azuis, verdes, vermelhas, amarelas ou alaranjadas, parece levar-nos a visitar um projeto urbanistico em implantacao. Outras vezes, ela poe uma multidao indiferente a atravessar aquela cidade-modelo, ou entdo se abaixa para confrontar a policromia feérica das paredes & lama das calcadas esbura- cadas e cobertas de detritos. Algumas vezes também apro- xima-se e transforma os quadrados coloridos em dreas abs- tratas, indiferentes a qualquer projeto de transformagio da vida. A superficie da obra organiza assim a tenso entre a cor projetada pela vontade estética nas fachadas e a cor res- tituida pelas fachadas. Os recursos de uma arte da distancia servem para expor e problematizar a politica que quer fun- dir arte e vida num tinico processo de criagao de formas. E outra fungao da cor e outta politica da arte que se encontram no cerne dos trés filmes (Ossos, No quarto da Vanda e Juventude em marcha) que o cineasta portugués Pe- dro Costa dedicow a um pequeno grupo de marginais lisbo- etas ¢ imigrantes cabo-verdianos, que flutuam entre drogas e bicos no “bairro de lata” de Fontainhas. Essa trilogia é a obra de um artista profundamente engajado. No entanto, nem Ihe passa pela cabeca dar uma maozinha no habitat dos mal-alojados, tampouco apresentar alguma explicaggo para a l6gica econémica e estatal global que governa a exis- téncia do “bairto de lata” e depois a sua exting3o. E, contra- riando a motal aceita, que nos veda “estetizar” a miséria, Pedro Costa parece aproveitar a oportunidade para valori- Zat 08 recursos artisticos apresentados por aquele cendrio de vida minimalista. Uma garrafa de gua de plistico, uma faca, um copo, alguns objetos largacos sobre uma mesa de madeira branca num apartamento invadido, mais a luz ra- sante sobre o tampo, af esté a oportunidade para uma bela ” natureza-morta. Quando a noite cai naquele alojamento sem eletricidade, duas pequenas velas sobre a mesma mesa dardo conversa miserdvel ou a sesséo de herofna na veia certo ar de claro-escuro holandés do Século de Ouro. E 6 trabalho das escovadeiras demolindo o baitro é a oportunt dade de pdr em destaque, com 0 desmoronamento das ca- sas, os blocos esculturais de concreto ou largas paredes con- trastantes em cores azul, rosa, amarelo ou verde. Mas essa “estetizagio” significa justamente que o territério intelec- tual © visualmente banalizado da miséria e da margem 6 devolvido a sua potencialidade de riqueza sensfvel compar- tilhavel. A exaltagao das dreas coloridas e das arquiteturas singulates pelo artista corresponde, portanto, estritamente sua exposigéo aquilo que ele nao domina: as idas e vindas das pessoas entre os Jugares fechados da droga e o exterior onde elas se entregam a diversos pequenos afazeres, mas também a lentiddo, as aproximagies, as paradas e as reto madas da fala por meio da qual os jovens drogados extraem da tosse e do abatimento a possibilidade de dizer e pensar sua prdpria histéria, de pdr a vida em exame e de, assim, retomar sua posse, por pouco que seja. A natureza morta luminosa, composta com uma garrafa de plistico e alguns objetos reaproveitados sobre a mesa de madeira branca de um apartamento invadido esté assim em harmonia com a obstinacao “estética” de um daqueles invasores que, a des- peito dos protestos de seus companheiros, limpa meticulo- samente com sua faca as manchas da mesa fadada aos den: tes da escavadeira Pedro Costa pe assim em aga uma politica da esté tica tdo afastada da visao sociol6gica segundo a qual “polf- tica” da arte significa explicagao de uma situagio — ficcional ou real — pelas condigées sociais, quanto da visio ética que pretende substituir a “impoténcia” do olhar e da palavra pela acdo direta. Ao contrario, o que estd no cerne de seu trabalho é o poder do olhar e da palavra, 0 poder do sus- pense que eles instauram. Pois a questo politica é, em pri- meiro lugar, a capacidade de corpos quaisquer se apodera- rem de seu destino, Por isso, Costa se concentra na relagao n entre a impotincia e o poder dos corpos, no confronto das vidas com aquilo que elas podem. Coloca-se assim no né da relagdo entre uma politica da estética e uma estética da po- litica. Mas também assume sua separacdo, a distancia entre a proposta artistica que confere potencialidades novas & paisagem da “exclusao” e os poderes préprios da subjetiva- ‘40 politica, A reconciliagao estética que No quarto da Vanda parecia encarnar-se na relagao entre a bela natureza-morta © 0 esforgo dos corpos a recuperarem sua voz, 0 filme se~ guinte, Juentude em marcha, ope uma cisio nova. Aos marginais regenerados, reconvertidos - uma, mae de fami- lia bem falante, outro, empregado-modelo ~ ele confronta a silhueta trdgica de Ventura, imigrante cabo-verdiano, ex- -pedreiro incapacitado para o trabalho por uma queda do andaime e para a vida social normal por uma fissura men- tal. Com Ventura, sua sithueta alta, seu olhar selvagem e sua fala lapidar, o intuito nao é oferecer 0 documentario de uma vida dificil; trata-se, ao mesmo tempo, de colher toda a riqueza de experiéncia contida na historia da colonizacao, da rebeliao ¢ da imigragéo, mas também de enfrentar 0 in- compartilhavel, a fissura que, no fim dessa historia, separou um individuo de seu mundo e de si mesmo. Ventura nao um “trabalhador imigrante”, um humilde a quem caberia devolver a dignidade e o gozo do mundo que ele ajudou a construir. Ele é uma espécie de errante sublime, de Edipo ou de rei Lear, que interrompe por si mesmo a comunicagao e 0 interedmbio e expe a arte a confrontar seu poder e sua im- poténcia. Fo que o filme faz quando enquadra uma estra- nha visita ao museu entre duas leituras de uma carta de amor e de exilio. Na fundagao Gulbenkian, cujas paredes Ventura ajudou outrora a construitr, sua silhueta negra, en- tre um Rubens e um Van Dyck, aparece como um corpo estranho, um intruso delicadamente empurrado para a sai- da por um compatriota que encontrou refiigio naquele “mundo antigo”, mas também uma interrogagao feita 3que- las dreas coloridas encerradas em molduras, incapazes de devolver aos que as olham a riqueza sensivel de sua expe- riéncia. No alojamento miserdvel onde o cineasta soube com- 9 por outra natureza-morta com quatro garrafas diante de uma anela, Ventura Ié uma carta de amor enderecada aque- la que ficou na terra, carta em que 0 ausente fala do trabalho eda separagao, mas também de um reencontro préximo que embelezaré duas vidas por vinte ou trinta anos, do sonho de oferecer & amada cem mil cigarros, vestidos, um carro, uma casinha de lava e um buqué de quatro tosties, e do esforco de aprender a cada dia palavras novas, palavras bonitas, ta- Ihadas na medida tinica de dois seres como um pijama de seda fina. Essa carta que serve de reftdo ao filme aparece propriamente como a performance de Ventura, performan- ce de uma arte da divisao, que nao se separa da vida, da experiéncia dos deslocados e de seus meios de preencher a auséncia ¢ aproximar-se do ser amado. Mas a pureza da oposigao entre a grande arte e a arte viva do povo logo se embaralha. Pedro Costa compés a carta a partir de duas fontes diferentes: verdadeiras cartas de emigrantes e uma carta de poeta, uma das tiltimas cartas enviadas por Robert Desnos a Youki de um campo de concentracao em Fléha, no caminho que o levava a Terezin e a morte. A arte ligada a vida, a arte tecida de experiéncias compartilhadas do trabalho da mao, do olhar e da voz, essa arte s6 existe na forma desse patchzoork. O cinema nao pode ser 0 equivalente da carta de amor ou da miisica comparti- Ihada dos pobres. Também no pode ser a arte que simples- mente devolve aos humildes a riqueza sensivel de seu mundo Ele precisa separar-se, consentir em ser apenas a superficie em que um artista procura traduzir em figuras novas a ex- periéncia daqueles que foram relegados & margem das cir- culagées econdmicas e das trajetdrias sociais. O filme, que Pde em questo a separagao estética em nome da arte do povo continua sendo um filme, um exercicio do olhar e da audigo, Continua sendo um trabalho de espectador, ende- recado na superficie plana de uma tela a outros espectado: res, cujo ntimero e diversidade serd estritamente restringido pelo sistema de distribuicao existente, arrolando a histéria de Vanda e de Ventura na categoria dos “filmes de festival” ou de obras de museu. Filme politico hoje em dia talvez também queira dizer filme que se faz em lugar de outro, filme que mostra sua distancia com 0 modo de circulacao de palavras, sons, imagens, gestos e afetos, em cujo Amago ele pensa o efeito de suas formas. Aocitaressasduas obras, eu ndo quis propor modelos daquilo que deve ser arte politica hoje, Espero ter mostrado Suficientemente que tais modelos nao existem. Cinema, fo- tografia, video, instalacdes e todas as formas de performan- ce.do corpo, da voz e.dos sons contribuem para reconstruir Qambito de nossas percepcSes e o dinamismo de nosss afetas_Com isso, abrem passagens possiveis para novas for- mas de subjetivacio politica. Mas nenhum deles pode evitar aruptura estética que separa os efeitos das intengies e veda qualquer via larga para uma realidade que estaria do outro lado das palavras e das imagens. Nao hé outro lado. Arte critica é uma arte que sabe que seu efeito politico passa pela distncia estética. Sabe que esse efeito nao pode ser garan- tido, que ele sempre comporta uma parcela de indecidivel Mas ha duas maneiras de pensar esse indecidivel e de tra- balhar com ele. Ha aquela que o considera um estado do mundo em que 0s opostos se equivalem e transforma a de- monstragdo dessa equivaléncia em oportunidade para um novo virtuosismo artistico. E hé aquela que reconhece ai 0 entrelacamento de varias politicas, confere figuras novas a esse entrelagamento, explora suas tensdes e desloca assim 0 equilibrio dos possiveis e a distribuicdo das capacidades.

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