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FREI ELIAS ZULIAN – UMA HISTÓRIA QUE MERECE SER CONTADA

“É preciso que a História, que nunca deixa de ser construída, conte o


passado e o presente da vida de uma comunidade que esqueceu de
lembrar a história de seu jardineiro e construtor mais dedicado: Frei
Elias.”
Rosicler Antoniácomi Alves Gomes

PARTE I

Era 17 de julho de 1976. Naquela madrugada fria de inverno, na Casa Paroquial da Igreja São
Cristóvão, no bairro de Oficinas, dormiam dois sacerdotes franciscanos, Frei Elias Eugênio Zulian e Frei
Cassimiro Czelusniak. Aproximava-se a realização da tradicional festa em louvor a São Cristóvão, no início do
mês de agosto e a preocupação era constante pelo sucesso do evento, já que as dívidas financeiras com o
comércio eram grandes. Aproximadamente às 2:30 horas, Frei Elias saltou da cama em sobressalto. Sentiu
cheiro de fumaça e logo deduziu que havia fogo no local. Rapidamente acordou Frei Cassimiro e juntos
começaram a combater as chamas que tinham se iniciado num local externo, onde havia um amontoado de
madeira velha.
Com o estalar das telhas, o crepitar das chamas na madeira e o clarão na noite, paroquianos
vizinhos acorreram ao local e num trabalho bem coordenado prosseguiram na operação contra o fogo. Com olhar
incrédulo, dezenas de pessoas acompanhavam no pátio da igreja o desenrolar daquela tragédia. Corajosamente
todos ajudaram: homens, senhoras, jovens e até crianças; alguns no combate direto ao fogo, outros
transportando objetos para a sacristia da igreja e ao clube paroquial. Na confusão alguém procurou por Frei
Elias. Havia sumido. Homem de fé inabalável, foi encontrado no interior da igreja a implorar socorro a São José,
de quem era devoto, a Nossa Senhora e a São Cristóvão. Certamente estava abalado.
Nos períodos que antecediam a festa de São Cristóvão ele era o único que não deixava
transparecer preocupação quanto ao pagamento das dívidas efetuadas por ocasião das inúmeras obras que
realizava. Quando os companheiros mais chegados demonstravam inquietação quanto ao resultado da festa, ou
mesmo com relação a possíveis chuvas no dia da festa, ele aparentava uma grande tranqüilidade. E
costumeiramente afirmava com uma convicção animadora: “... Vamos confiar na Providência Divina”.
Naquela madrugada de sábado, ajoelhado aos pés do altar, clamando por ajuda divina, talvez
questionasse a razão desse grave acontecimento. Por vezes ele se sentia angustiado e sentindo-se culpado
pelos caminhos que ele próprio traçara. Tanto esforço desprendido em construções de edificações. Mas ele
sabia que estava apostando no futuro de gerações. Quantas vezes soltava um grito de socorro da garganta, ao
afirmar que estava se afastando do povo, estava cada vez mais ausente de seus paroquianos. Sofria porque não
conversava com suas ovelhas, que tanto queriam lhe confiar os problemas espirituais. Ele nunca tinha tempo. A
imagem de super-homem, de realizador, não era compatível com os ideais sacerdotais.
Mas ele achava que já tinha se redimido dessa culpa que corroia seus mais puros sentimentos
cristãos. Essa redenção teria vindo em 9 de setembro de 1970, quando da celebração de missa solene pela
passagem das Bodas de Prata Sacerdotais de Frei Elias. Essa missa foi celebrada justamente no Cine Pax,
obra prima de suas obras, que lhe daria com certeza parte dos recursos financeiros para construção da sonhada
Cidade dos Meninos. O cinema estava lotado. E ali, ao fazer uso da palavra para agradecer aquele povo
generoso e fiel, confessou esse pecado que lhe amargurava. Disse que a partir dessa data, queria ser um irmão
entre irmãos. E num final surpreendente, afirmou: “ Quero que seja destruída a imagem que muitos tem na
cabeça, de super-homem... homem que não tem tempo, para formar outra imagem. O Frei Elias tirará nesta
semana a barba e a batina, ajudando-vos na nova imagem, a ver nele o irmão que está sempre disponível”.
Então, o que estava havendo? Que provação era essa? Que momento de fraqueza era esse?
Não... ele poderia ter morrido no incêndio. Estava cansado. A casa era toda de material inflamável, bastaria ter
respirado um pouco de fumaça e talvez fosse tarde demais. Quem levantou seu corpo cansado? Quem lhe
acordou a tempo?
Os bombeiros chegaram lá pelas quatro horas da manhã. Mas o fogo já estava extinto, graças
ao trabalho corajoso e bem coordenado das pessoas que ali acorreram. Às cinco horas, o silêncio começou a
tomar conta do local, com o retorno dos bombeiros e dos paroquianos às suas casas. Frei Cassimiro não dormiu.
Ficou de plantão cuidando do local e rezando alguns terços. Já às sete horas começaram a chegar homens e
moços para o trabalho de remoção dos escombros e áreas danificadas. Era solidariedade na mais pura
concepção. Uns retiravam telhas quebradas e outros desmontavam paredes de madeira parcialmente
queimadas, estendendo-se os trabalhos até à noite de sábado. Telhas novas e madeira para reposição foram
adquiridas, de tal forma que já na semana seguinte os trabalhos foram encerrados. Tudo parecia se encaminhar
para um final sem conseqüências.
Frei Cassimiro estava de plantão e orando no silêncio daquela madrugada incrível. Porém, o
silêncio foi quebrado por um gemido. Seus olhos encontraram Frei Elias parado em um canto da casa. Estava
sério, rosto constrito. Gemia. A pedido foi deitar-se. Mas continuou a gemer, num som entrecortado por soluço e
tosse. Pediu que chamassem o Dr. Irapuan e o Dr. Puppi que não foram encontrados. Do Hospital Bom Jesus,
compareceu o Dr. Lisboa, que após exame preliminar anunciou da gravidade da situação. Lesão no coração. Frei
Elias precisava ser internado.
No domingo, já internado, proibiu-se visitas, tal era o afluxo de pessoas de todos os cantos da
paróquia e de toda cidade. As visitas só eram permitidas ao Frei Cassimiro, ao Superior dos Capuchinhos e ao
Sr. Bispo. Mas Frei Elias não era homem de se submeter a isolamento. Sempre dava um jeito de se comunicar
por telefone, às escondidas, com alguns paroquianos, durante o horário de refeições. Era preciso saber das
coisas da paróquia. Emocionou-se quando soube que os paroquianos estabeleceram um trabalho de contínua
oração pelo seu restabelecimento.
Naquele frio quarto de hospital continuava a pensar na Festa de São Cristóvão, que estava
bem próxima. Como seria sem ele para coordenar as ações? Mal sabia que era líder de uma comunidade
valorosa e que em seu nome houve uma união sem precedentes, no intuito de realizar um evento grandioso em
sua homenagem.
Na primeira semana de agosto, Frei Elias obteve permissão para continuar seu processo de
recuperação no seminário dos capuchinhos, junto à Igreja Matriz do Bom Jesus, em Uvaranas. Era preciso ficar
longe dos problemas da paróquia. Ali ele soube do resultado da festa. Mais uma vez a Providência Divina não o
havia abandonado. O saldo financeiro foi excelente, o que fez Frei Elias chorar.
Mas Frei Elias não estava satisfeito. Desejava visitar sua Paróquia, rever seus amigos, matar
saudades de seu rebanho. Dirigiu-se ao Provincial Frei Clemente, pedindo que o levasse até lá. Em certo
momento, disse: “... se o senhor não me levar, telefonarei para um táxi e irei!”. Diante de tanta insistência Frei
Clemente o levou. A notícia de seu retorno chegou a todos os cantos da paróquia. Frei Elias entrou na Igreja,
olhou as barraquinhas utilizadas na festa e ainda não desmontadas, entrou no salão da Casa Paroquial para ver
as crianças que estavam no catecismo. Ficou um instante, dirigiu algumas palavras e despediu-se. Num silêncio
que prenunciava um adeus retirou-se. Nunca mais voltaria àquele lugar e àquelas pessoas.
Na sexta-feira, 13 de agosto, Frei Elias, repentinamente sentiu-se indisposto e fraco. Precisava
ser novamente internado. Pediu que o levassem ao Hospital 26 de Outubro. Foi ali naquele estabelecimento que
iniciara sua vida apostólica de Capelão da Rede. Queria passar uns dias com seus irmãos ferroviários. Ele
sempre fez seu trabalho espiritual entre os ferroviários. Visitava as turmas e as estações dando encaminhamento
espiritual a quem precisasse. Num dia rezava missa numa estação, noutro dia em outra estação, conforme
testemunharam tantos operários dessa laboriosa classe profissional. Seja utilizando-se de trens, ou mesmo
vagonetes, sempre se fez presente nas localidades de Palmeira, Teixeira Soares, Mafra, Rio Negro, Castro, Piraí
do Sul e tantas outras, transportando em uma mala os objetos e roupas para qualquer atividade inerente a seu
apostolado.
No dia 14 de agosto Frei Elias acordou no Hospital 26 de Outubro, feliz e eufórico. Afinal,
aquele dia marcava o 56º aniversário de seu Batismo na Igreja Católica Apostólica Romana. Seu rosto rude,
olhar expressivo e penetrante, sorriso enigmático, não deixava transparecer seu estado de saúde. Sofrera um
infarto, mas sua fé inabalável não lhe permitia momentos de fraqueza. Estava sereno. Ainda tinha muito a fazer,
a construir. O sonho da Casa dos Meninos, ali no Cará-Cará, onde hoje é a fábrica da Kaiser, ainda estava vivo.
O trabalho contínuo em busca desse sonho e a opção pelos mais pobres anuviaram seus olhos. Custou a
entender o poder e a ganância dos homens. Afinal, deixara sua família simples e uma vida feliz na cidade de
Postioma, Itália, para dedicar-se a uma comunidade num país estranho, que não era o seu. Não estava
preparado para esse embate com os lobistas da indústria cinematográfica. Nunca havia lutado nessa arena.
Afinal a tão sonhada Casa dos Meninos dependia do sucesso de seu belo cinema, projetado e construído com
suas mãos: o Cine PAX. Teve de admitir que não podia concorrer com aqueles que detinham o cartel da
distribuição de filmes na cidade. A decepção e o desânimo abalaram seu corpo e seu coração, mas não sua
vontade inquebrantável de acolher os meninos pobres e necessitados da comunidade. Tinha apenas 56 anos.
Começaria tudo novamente.
Era, pois, a manhã do dia 14. Depois de uma noite tranqüila, com uma serenidade absoluta e feliz,
talvez estivesse fazendo planos. Talvez estivesse repassando sua vida de trabalho, sua família, a pequena
cidade em que viveu, seu apostolado. Deve ter orado e pedido proteção ao Santíssimo Sacramento e à Virgem
Maria e a São José, de quem era extremamente devotado. Talvez a São Cristóvão tenha dedicado parte de seus
pensamentos. Precisava continuar. Era cedo ainda. Nos seus longos sermões pregava que era mais fácil contar
as estrelas no céu e os grãos de areia nas praias do que entender os desígnios de Deus. Mas então, será que
Deus entendia que ela já tinha construído sua história... que a comunidade celestial estava necessitando de um
homem vibrante, corajoso, arrojado, sublime, construtor de almas? Será por isso esse aperto no peito. Talvez
nesse lapso de tempo tenha vivenciado tudo aquilo que pregou durante sua vida de sacerdote. Com certeza
lembrou de sua mãe no momento de sua despedida, no porto de Gênova. Sim, ela estava certa. As portas
estavam fechadas para o retorno.... ele não voltaria mais à sua Itália!
Num rompante imperceptível, tudo se desvaneceu. Seu coração que abrigava tantos sonhos e ao
mesmo tempo tantas realizações, parava de pulsar. Aquele homem que mudara sua imagem à semelhança de
seus paroquianos, para senti-los mais perto, agora jazia naquele quarto de hospital. Seu rosto se recompôs na
mais plácida serenidade e parecia iluminado pelo sorriso. Aquele mesmo sorriso permanente que o acompanhou
em toda sua vida. Era hora de entregar-se a um repouso profundo, onde nenhuma preocupação mais o
atormentaria.
Tudo estava terminado!

PARTE II
Em 1919, o bispo de Curitiba, Dom João Francisco Braga, em visita ad Limina, pediu ao papa Bento XV
que enviasse missionários para os lugares de sua Diocese que necessitavam de assistência religiosa. O bispo
alegava o grande número de imigrantes italianos que viviam no Paraná, e a maioria vindos justamente do Norte
da Itália e principalmente da região de Veneza.
Nessa mesma ocasião, Dom Francisco encontrou-se com o pregador apostólico, Frei Lucas de Pádua,
que o aconselhou a falar com o Ministro provincial de Veneza, Frei Serafim de Údine. O bispo falou com o
Ministro Geral, Frei Venâncio de Lisle-en-Rigault, que o encaminhou ao Ministro provincial de Veneza, ao qual
escreveu aos 7 de abril de 1919, fazendo a proposta de enviar missionários.
Em 14 de abril de 1919, Frei Serafim de Údine respondeu ao Ministro Geral e pediu que o bispo fosse
falar pessoalmente com os Freis Vênetos. Assim Dom João Francisco viajou para Veneza e, aos 7 de maio de
1919, falou aos capuchinhos, reunidos em retiro espiritual anual. Houve aprovação dos presentes e a notícia
correu pela Província. Ao deixar Veneza, o bispo já tinha assinado um primeiro contrato com a Província de
Veneza.
Aos 16 de maio de 1919, o Ministro Provincial, Frei Serafim de Údine, escreveu ao bispo informando-o
de que poderia enviar ao Paraná quatro sacerdotes. Por isso, Dom João Francisco interessou-se pessoalmente
pela documentação dos Freis para viajarem com ele, de navio. Nesse primeiro grupo de missionários, vieram os
seguintes Freis: Frei Ricardo de Vescovana (superior), Frei Angélico de Ênego, Frei Teófilo de Thiene e Frei
Maximiliano de Ênego. Fizeram sua despedida na igreja do SS. Redentor, em Veneza, aos 11 de setembro de
1919, e embarcaram no navio Princesa Mafalda. Os Freis Ricardo e Teófilo foram chamados a Curitiba,
chegando no dia 20 de janeiro de 1920, e logo após foram encaminhados para Jaguariaíva, onde se
estabeleceram em 31 de janeiro do mesmo ano. Jaguariaíva foi a primeira sede oficial desse grupo.
Justamente no ano em que os capuchinhos vindos da província-mãe, Veneza, se instalavam no Paraná,
nascia em Postioma, diocese de Treviso, no dia 9 de agosto de 1920, Frei Elias Zulian. Com doze anos, no
primeiro dia de setembro de 1932 foi aceito no seminário de Rovigo. Vestiu o hábito de capuchinho em Bassano
aos 19 de julho de 1938 e no dia 20 de julho do ano seguinte emitiu os votos temporários. Estudou filosofia na
cidade de Pádua entre 1939 e 1942. Na cidade de Veneza, em 28 de maio de 1944, professou perpetuamente,
sendo ordenado sacerdote aos 9 de setembro de 1945, na igreja do Santíssimo Redentor, na mesma cidade de
Veneza, pelo bispo capuchinho D. Cornélio Sebastião Cuccarollo. Ainda em Veneza, estudou teologia no período
de 1945 a 1946.
A seguir exerceu apostolado na Província Vêneta, nas seguintes localidades: como auxiliar do capelão
do cemitério em Údine (1947), em Trieste (1948) e auxiliar do capelão do hospital civil de Veneza, em 1949.
Mas queria a Providência Divina que Frei Elias Zulian viesse ao Brasil. Aos 8 de julho de 1949, os
superiores o destinavam como missionário para o Paraná, no Brasil. Decorriam trinta anos da vinda dos
primeiros capuchinhos da Província de Veneza, para a Província São Lourenço de Brindes, que abrangia
Paraná, Santa Catarina e Paraguai.
No dia 22 de outubro de 1949, Frei Elias embarcava no navio Anna Costa, no porto de Genova. Estava
acompanhado de Frei Celestino Coletti. No momento do embarque estavam presentes um irmão, uma irmã e
sua mãe, dona Giovanna Durigon. Os irmãos choravam. Mas a mãe, apenas com os olhos demonstrava sua dor
pela partida. Não derramara uma só lágrima. Apenas recordou ao filho o que havia dito antes do seu ingresso no
seminário seráfico: “Meu filho, pensa bem no que estás fazendo... Vede! A porta desta casa está aberta para a
tua partida, mas ficará fechada para o teu retorno. Assim te falei... Agora, após ter-me pedido a bênção para ir à
missão, a minha atitude não mudou. Vai e cumpre o teu dever até o fim... Desta vez não quero chorar, pois sei
que estás para assumir uma missão sacrossanta”. Era preciso ser forte e transmitir ao filho a aceitação da
missão apostólica a que estava destinado. Com esse gesto, sua mãe entregava o filho aos cuidados de uma
comunidade que o aguardava na cidade de Ponta Grossa. Frei Elias registrou esse momento, em documento
escrito que deixou: “ Eu não agüentei o que estava acontecendo; retirei-me na minha cabina e prorrompi em
prantos”. Frei Celestino Coletti era um homem muito espirituoso e, com seu jeito humorístico, animou-lhe o
espírito.
Em 9 de novembro, ambos os sacerdotes desembarcaram no porto de Santos. Estava a recebê-los o
Frei Cleto Barbiero, que há dois anos trabalhava no Paraná. Aos 12 de novembro chegaram em Curitiba, na
condição de missionários. Nos dois primeiros anos no Brasil exerceu seu apostolado como professor e vigário
paroquial em Barra Fria – SC e Bandeirantes, no Paraná. Porém estava destinado a cumprir sua missão na
cidade de Ponta Grossa, para onde veio em 14 de janeiro de 1952, assumindo a capelania dos ferroviários da
então Rede Viação Paraná – Santa Catarina – RVPSC, no bairro de Oficinas. Nunca mais sairia dos trilhos de
sua missão apostólica até sua santa morte.

PARTE III

O nome Oficinas surgiu com a necessidade de implantação de uma oficina de manutenção de


equipamentos ferroviários, que foi instalada aproximadamente três quilômetros do centro da cidade, tendo em
vista a enorme demanda de fluxo ferroviário na região. Foi escolhido um lugar plano e sem árvores, conhecido
por “Pelado”. Situando-se entre São Paulo e Rio Grande do Sul, esse complexo de manutenção servia toda à
Companhia Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, constando de pátios de manobra, armazenamento de
comboios, oficinas de locomotivas e vagões, estações de cargas e passageiros, depósitos de vagões e
locomotivas e cargas, usinas de tratamento de dormentes entre outros. A ferrovia era quem criava a maior oferta
de empregos na região. A empresa Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande detinha a concessão dada pelo
governo para exploração do sistema ferroviário. Essa concessão foi dada por cinquenta anos a partir de 1890,
encerrando-se no ano de 1940, quando em 8 de março daquele ano, o sistema foi encampado pelo governo
federal, passando a constituir, a partir de 25 de setembro de 1945, a Rede Viação Paraná – Santa Catarina. Em
1957 a RVPSC juntamente com outras autarquias veio a constituir a Rede Ferroviária Federal S.A.
Integravam o sistema ferroviário, a vila dos operários próximo às oficinas, a Cooperativa Mista 26 de
Outubro, fundada em 26 de outubro de 1906, a Escola Profissional Ferroviária Cel. Tibúrcio Cavalcanti, fundada
em 29 de setembro de 1940, e ainda o Hospital 26 de Outubro.
A categoria profissional dos ferroviários nessa primeira metade do século XX, sempre foi considerada a
mais destacada na região, seja em número ou pela aprimorada organização sindical. Foi destaque nacional na
Greve Geral de 1917, dirigindo o Comando de Greve.
Junto à vila dos operários, próximo às oficinas de manutenção, mais precisamente na Rua João Frare a
Rede Viação Paraná -Santa Catarina doou um terreno para a construção de uma capela para o atendimento da
comunidade ferroviária, que carecia de um atendimento espiritual. Todo investimento em material e mão de obra
foi da própria RVPSC. A construção começou no ano de 1950 estando a comunidade sob responsabilidade do
Frei Barnabé.
Quando Frei Elias chegou, em janeiro de 1952, na condição de capelão da RVPSC, no Hospital 26 de
Outubro, a construção já estava em sua etapa final. Assumiu os trabalhos de coordenação até o dia 18 de maio
de 1952, quando foi inaugurada a Igreja Matriz de São Cristóvão, cujo nome foi dado em homenagem ao santo
protetor dos transportes. Era também conhecida como “igreja dos ferroviários”.
Nesse instante começava a se escrever a história de um sacerdote capuchinho, na comunidade
ferroviária do bairro de Oficinas, num espaço temporal que duraria 34 anos. Frei Elias moldou seu caráter
apostólico ainda na Itália, em pleno apogeu da Segunda Guerra Mundial. A região, em que nasceu e onde iniciou
sua peregrinação como sacerdote, ficava entre as que mais sofreram os bombardeios dos aliados, por se
encontrar no Norte da Itália, quase divisa com a Alemanha.
Talvez como sacerdote tivesse visto horrores, vivenciado dores e chorado amarguras. A destruição de
vidas, de famílias e de gerações com certeza o tornou um homem desejoso de repor para o mundo essas almas
perdidas. Era um ser dotado de poder de oratória, altamente comunicativo e um líder nato, que tudo fazia para
manter a união entre as pessoas. Extremamente simpático e com seu sotaque italiano, de imediato aconteceu a
empatia necessária entre ele e a comunidade. E esse foi o ponto fundamental para tudo o que viria a acontecer
nos anos que se seguiram. E a história começou a ser escrita, passo a passo, cada acontecimento na hora certa,
sem atropelos. Uma história que parecia já estar previamente escrita em algum canto remoto de outro plano
espiritual.
Instalou-se primeiramente na Igreja Nossa Senhora da Conceição, a conhecida Igreja de Uvaranas. Lá
ele aprendeu os primeiros passos no conhecimento da língua portuguesa. Já sabia de seu destino. Iria para uma
igreja em construção no bairro de Oficinas. Mas enquanto aguardava, fazia visitas diárias a pessoas enfermas
internadas no Hospital 26 de Outubro. Uma dessas pessoas era um jovem de descendência italiana, pela qual
ele se afeiçoou, até pelos laços de nacionalidade. Numa dessas conversas, Frei Elias perguntou àquela pessoa
onde morava, obtendo a resposta de que morava no bairro de Oficinas, próximo a igreja dos ferroviários, ainda
em construção. Frei Elias precisava de uma pessoa que lhe desse apoio, e disse : “ Vou precisar do Sr. quando
for trabalhar naquela igreja”. Essa pessoa chamava-se Sebastião Airton Tulio, conhecido por Sr. Airton Tulio.
Passado o tempo, lá estava Frei Elias, sentado na varanda de sua casa, assistindo a multidão de ferroviários que
passavam vindo da labuta diária. Era muito tímido. Não se encorajava em abordá-los. Um dia ao passar o Sr.
Airton por sua casa o chamou. Disse-lhe que não conhecia ninguém e que precisava de sua ajuda para visitar
algumas famílias. Foi assim, pelas mãos do Sr. Airton que passaram a visitar duas a três famílias nos finais de
semana, consolidando sua liderança na comunidade.
Frei Elias teve também um suporte relevante na pessoa do Sr. Angelin Fornazzari. Morava exatamente
em frente à Igreja. Essa família bondosa e fraterna abrigou Frei Elias em sua casa por muitos e muitos anos,
dividindo com ele suas alegrias, suas tristezas, angústias e prazeres. Ali ele se alimentava e dormia; e deixava
todo testemunho de sua história, dos momentos passados. Naquele lar se perpetuaram as vozes das
recordações, para quem ousasse revistar os escaninhos das lembranças que ficaram no pó da distância.

PARTE IV

Com um pequeno grupo de leais companheiros, naquele ano de 1952, no mês de agosto, Frei Elias
programou a primeira Festa de São Cristóvão, com intuito de homenagear o santo padroeiro e trazer para a
igreja aquela comunidade carente de uma liderança espiritual.
E Frei Elias era um homem espiritualmente forte, pela fé que nutria por São José. E por isso, com
segurança, pode traçar seu caminho, num planejamento criterioso com vistas a propiciar um futuro melhor para
as crianças e jovens daquela comunidade. Sua primeira ação, para a resolução dos problemas que antevia, foi
agregar pessoas de confiança, que exerciam certa liderança entre os ferroviários. Ele sabia que sozinho nada
concretizaria. Precisava de um grupo de pessoas que fossem companheiros de toda hora, confidentes,
conselheiros; pessoas que fossem literalmente afinados com seus propósitos religiosos e sociais.
Assim, em primeiro de maio de 1955, foi fundada na Igreja São Cristóvão, a Ordem Terceira
Franciscana dos Ferroviários Paranaenses e Catarinenses, que tinha como sede e foro a cidade de Ponta
Grossa. Estava criado o alicerce para a realização de seus sonhos. E Frei Elias era antes de tudo um sonhador.
Mas tinha a convicção da importância dos sonhos. Sabia que era preciso sonhar, construir castelos no ar.
Construir castelos no ar tornava tudo mais fácil... bastava executar os alicerces e os sonhos tornavam-se
realidade.
Frei Elias, capelão da Rede Viação Paraná-Santa Catarina, recebeu delegação do seu Superior Regular
para receber a vestidura dos primeiros postulantes. A cerimônia de fundação da Ordem Terceira foi presidida
pelo Reverendo Padre Zacarias de São Mauro, Ministro Provincial dos Capuchinhos Vênetos e da Custódia dos
Estados do Paraná e Santa Catarina. Às 7:30 horas foi rezada Santa Missa e logo em seguida realizou-se a bela
cerimônia da vestidura de dez postulantes. Eram todos ferroviários, que se constituiram no braço forte do Frei
Elias por dezenas de anos. Eram êles: Alberto Hansen Júnior, Angelin Fornazzari, Antonio Augusto da Silva,
Antonio Tulio, Augusto Gayer, Francisco Tulio, João Maria Gonçalves, Marcos Tulio, Pedro Tulio e Reinaldo
Hansen. A estes homens trabalhadores e íntegros outros vieram se somar para o cumprimento de uma missão
estabelecida.
Ficava assim criado o Instituto da Ordem Terceira Franciscana dos Ferroviários Paranaenses e
Catarinenses, cuja finalidade era programar e realizar obras de cunho social, mais especificamente na área
educacional. Frei Elias, diretor espiritual do instituto, tinha excepcional visão de futuro. Preocupava-se com a
educação da juventude.
Foi assim que o Instituto, nos primeiros momentos de sua criação, traçou seu plano de
desenvolvimento físico, objetivando as metas pretendidas. Esse plano constava das seguintes implantações:
jardim de infância para 100 crianças, curso primário para 300 crianças, moradia das Irmãs para 20 religiosas,
escola doméstica para 60 moças e ainda um internato para 80 filhas de turmeiros. Este internato tinha por
objetivo formar filhas de turmeiros em trabalhos domésticos, para que no retorno às turmas, pudessem contribuir
com a formação das crianças e disseminar o aprendizado no local. Além dessas obras, previa-se a construção
de um auditório com capacidade para 400 pessoas.
Para a execução das metas previstas, Frei Elias contava com a participação de toda comunidade, o
apoio de seus superiores e também de toda diretoria da RVPSC que tinha interesse na realização das obras.
Além disso, já ganhara o respeito e consideração da classe política da época. Alguns políticos o ajudavam
incondicionalmente.
O terreno para as construções foi cedido em regime de comodato pela Rede Viação Paraná-Santa
Catarina. Em primeiro de abril de 1956, foi inaugurado a primeira obra, a qual mostrou a outra face desse
fantástico sacerdote. Era um apaixonado pela arte cinematográfica e também pelo teatro. Objetivando unir a
comunidade em torno de um lazer sadio, mantendo-a sempre perto de si, Frei Elias construiu um auditório com
capacidade para 400 pessoas. Até então, Frei Elias projetava filmes da época no salão da Associação
Recreativa Homens do Trabalho, no antigo prédio, carinhosamente chamado por muito tempo de “caixão”. As
sessões eram concorridas e tomadas de emoções indescritíveis a cada cena projetada, somente interrompidas
quando o operador Sr. Reynaldo Hansen necessitava trocar o carretel do filme. Era utilizado um projetor 35 mm.
O novo auditório, denominado Cine Teatro São Cristóvão passou a ser o centro cultural da região de
Oficinas. As sessões cinematográficas iniciavam com a projeção de um filme jornalístico, depois algum trailer, às
vezes algum desenho animado, que encantava a todos, e após o anunciado filme. Finalizava sempre com a
projeção de um capítulo de seriado, totalizando ao todo catorze capítulos. O local era pequeno, mas acolhedor.
Na bilheteria, o Sr. Marcos Tulio não deixava passar ninguém sem o respectivo ingresso. Frei Elias estava
sempre presente, gerenciando, fiscalizando e mantendo a ordem no recinto. Quando ocorria algum tipo de
perturbação, de desordem, ele interrompia a sessão para pedir silêncio e respeito no ambiente. Era assim toda
noite de quarta-feira, de sábado e de domingo. Isso sem falar nas matinês de domingo, onde os jovens se
reuniam numa alegre tarde, num folguedo saudável sem o tropel alucinado dos dias de hoje. As emoções das
paqueras que levantavam as cinzas da amargura e aumentavam o fogo da esperança, palmilhavam o caminho
dos jovens no retorno a suas casas. A pipoca em frente ao cinema, o sorvete de “seo” Candinho, a troca de
“gibis” e figurinhas, os ingressos ganhos pela assiduidade no “catecismo”, tudo ainda palpita inexorável na mente
de cada um que viveu aqueles belos momentos.
O afluxo de pessoas de toda região para essas poucas horas de lazer era sempre muito grande.
Freqüentemente as sessões de cinema eram substituídas por apresentação de peças teatrais. Periodicamente
também aconteciam os famosos festivais de teatro, onde se destacava o Grupo de Teatro Amador Tropical. O
Cine Teatro São Cristóvão era o lugar que Frei Elias reservava para reunir as crianças e adolescentes que
participavam das aulas de catequese, sempre aos domingos, às treze horas. E especialmente na Semana Santa,
quando contava a história da Paixão de Cristo, ilustrada por imagens projetadas em “slides”. Esse fato se repetia
ano após ano, como um poeta cantando as canções do tempo.
Mas era a carência de escola na região que preocupava Frei Elias. No início da década de 50, as
crianças da região eram atendidas por escolas isoladas, com no máximo três salas de aula de 1ª a 4ª séries.
Não existiam diretores nem pessoal administrativo. O equipamento existente se resumia em quadro de giz e
carteiras geralmente duplas. A água existente era de poço, colocada em baldes nas salas de aula ou
conservadas em potes de barro. Os sanitários eram de madeira e não se contava com banheiros ou vasos
sanitários. Essas escolas isoladas é que formaram a Escola Estadual Jesus Divino Operário.
A primeira referência existente sobre elas, data de 1946, com a Escola Isolada Capão do Cipó, sob a
regência da professora Maria do Carmo Magalhães. Também consta a Escola da Fazenda Experimental do
Trigo, em 1948, regida pela professora Aglaé Machado. Em 1954 estas duas escolas foram transferidas para a
Escola Reunida da Vila Maria Otília, situada na Rua Anchieta, próximo à Igreja São Vendelino, cuja regência
recaiu sobre a professora Maria do Rosário Knechtel, que foi também diretora da Escola Isolada Jesus Divino
Operário.
A preocupação com a educação das crianças numa região com relevante crescimento de moradores
não era somente de Frei Elias, mas também da própria direção da RVPSC, que resolveu construir um edifício de
alvenaria com três salas de aula e instalações sanitárias adequadas, incluindo todo mobiliário. Na verdade essa
edificação foi idealizada por Frei Elias que participou doando materiais de construção e auxiliando em sua
edificação. O Sr. Diretor Geral da RVPSC, Ângelo Lopes, fez a entrega do valor de Cr$ 69.630,00 (sessenta e
nove mil seiscentos e trinta cruzeiros) para aquisição de móveis e carteiras para as salas de aula.
Mais uma vez, o maestro sonhador e idealizador fez valer sua sabedoria rica de amor e pobre de poder.
Pensou talvez no valor futuro de suas realizações para a comunidade e no apreço que teriam por elas, se
participassem efetivamente das construções. Muito sabiamente, instituiu a “Campanha do Tijolo”. Com a ajuda
do povo e principalmente das crianças , eram vendidos talões que continham o “Vale um tijolo”, cujo valor era
simbólico, mas incutia em todos a sensação de comprometimento com suas obras e com sua manutenção futura.
Por outro lado seu exemplo como construtor fazia com que jovens e adultos somassem esforços na
árdua tarefa de construção. O depoimento do Sr. Sebastião Airton Tulio demonstra claramente o lado operário
desse sacerdote: “Frei Elias encontrava muitas barreiras em suas construções, só que ele encontrava saída para
tudo... e depois ele tinha muito apoio, porque as pessoas viam que ele não estava fazendo tapeação. Ele
mostrava trabalho e também pegava firme nas obras. Quantas vezes eu trabalhei com ele em cima dos telhados.
Ele tirava a batina e punha um macacão e ficava parecendo Fidel Castro lá em cima com aquela farda e a
grande barba que ele tinha.”
Em 18 de fevereiro de 1957 foi inaugurado o Jardim de Infância, onde funcionou provisoriamente o
curso primário com freqüência de 300 crianças em três períodos. E um ano depois, fevereiro de 1958, foi
inaugurado o prédio que foi oficializado com o nome de Grupo Escolar Jesus Divino Operário. O ato de
inauguração contou com a presença do Governador de Estado Moisés Lupion, do Vice Governador, Sr. Plínio
Costa e também do Secretário de Educação. Compareceram também membros da Ordem Terceira Secular que
administrava as obras. Nesse mesmo ano de 1958, foram executadas mais cinco salas de aula. Assumiu a
direção do Grupo Escolar Jesus Divino Operário a professora Marlene Benghi, que permaneceu no cargo por
dois anos.
Frei Elias era ainda muito jovem. Tinha 38 anos. Mal sabia que tinha que voltar à Itália. Não tinha
programado essa viagem. O cantor solitário estava prestes a declamar a trágica melodia do sofrimento. Em maio
de 1958, recebera uma carta de seu país natal. Sua mãe, Dna. Giovanna, estava enferma. Nesse mês de Maria,
de Nossa Senhora, Frei Elias pedia em seus sermões por orações à sua genitora. Mas a angústia o fez viajar à
Itália, onde permaneceu por quase dois meses. Retornou no final do mês de julho. Sua mãe falecera no dia 26 e,
na sua dor, talvez tenha vislumbrado sua pequenez humana no entendimento das últimas palavras de força,
amor e confiança de sua mãe no momento de sua partida ao Brasil. No seu retorno, para cumprir todo seu
destino, deve ter verificado haver nas necessidades a fortuna do orgulho que ainda caberia vencer, para que
pudesse novamente se enriquecer da paz.
Em agosto desse ano realizava-se a sexta edição da Festa de São Cristóvão, que já havia se tornado
um dos principais eventos da cidade. A diretoria da RVPSC sempre comparecia em sua totalidade. A festa se
iniciava com uma missa pela manhã, seguida de uma grande carreata pelas principais ruas da cidade. O primeiro
veículo transportava a imagem do Santo Padroeiro, acompanhado por um ensurdecedor buzinaço. No retorno,
uma grande churrascada, seguida de leilão e outras brincadeiras.
No ano de 1959, procedeu-se a assinatura da Escritura Pública de Doação por Comodato dos terrenos
já ocupados. Foi um passo importante conseguido pelo Instituto da Ordem Terceira. Pleiteava-se na seqüência a
vinda das Irmãs religiosas franciscanas que teriam sob sua responsabilidade o atendimento da parte educacional
e social do Instituto. Mais uma obra era necessária e lá estava Frei Elias a comandar seus liderados na
construção da escola doméstica e moradia das Irmãs. Mais uma vez a obra foi concluída com auxílio de
beneméritos que trabalharam junto com Frei Elias na cobertura da edificação. E as crianças, numa cascata de
alegria, passavam as telhas de mão em mão. Podia-se abraçar a alegria das crianças, que era tal qual o trinado
dos pássaros nos arvoredos. Através do trabalho, Frei Elias conseguia uma união forte entre as pessoas. As
amizades se fortificavam e frutificavam. Havia um objetivo. Todos viviam na canção mais expressiva, que é o
amor. Assim era o perfil de Frei Elias: sabia cativar as pessoas, aconselhava a quem precisasse, agradava
quando necessário, mas era enérgico quando a situação exigia.
Essa obra foi inaugurada em 1961, com um anexo: o internato para filhas de ferroviários do interior.
Entre 1960 e 1990, o Grupo Escolar Jesus Divino Operário passou a ser dirigido pelas Irmãs Franciscanas
Missionárias do Coração Imaculado de Maria, cuja congregação tem sede em Amparo, Estado de São Paulo.

PARTE V

Com menos de dez anos de muito trabalho, Frei Elias granjeava o respeito e admiração de toda
população de Ponta Grossa. A classe política passara a ajudá-lo com verbas importantes. Entre eles,
destacavam-se Moisés Lupion, Amadeu Pupi e Ciro Martins. Em 1960, o Governador Moisés Lupion fez uma
visita às instalações do Grupo Escolar Jesus Divino Operário e as obras de construção dos futuros cursos de
formação doméstica e moradia das religiosas. Ficou impressionado com o vulto das obras. Comprometeu-se a
auxiliar tanto o empreendimento em execução como os futuros.
Mas Frei Elias nunca deixou de ser um sacerdote pobre e humilde. Invariavelmente vestia uma surrada
batina e sandálias franciscanas. Um pôster existente no Grupo Escolar Jesus Divino Operário mostra em seu
rosto o velho óculos de grossas lentes, quebrado, mas teimosamente equilibrado em vista de fitas adesivas que
uniam as partes. Frei Elias era assim! O testemunho do Sr. Iolando de Jesus de Lima traduz essa humildade e
preocupação para com seus paroquianos: “ Ele queria que todos vivessem como irmãos. Se ele soubesse de
duas pessoas que não se davam, não se olhavam, não conversavam, ele chamava primeiro um, depois
chamava outro e, por fim, chamava os dois juntos e fazia a reconciliação entre eles.” E ainda testemunhou o Sr.
Airton Tulio, a respeito da espiritualidade de Frei Elias: “ O melhor que Frei Elias fez pela comunidade foi a união
entre as pessoas, pois tudo que ele deixou de material foi bom, tanto que está servindo à comunidade até hoje,
mas o carinho com que ele lidava com o povo! Ele era muito amoroso, tinha um coração... Ele rezava pelos que
tinham problemas em casa, fazia penitência, dormia numa cama sem colchão, em cima de uma tábua... Deixava
de comer. Eu via, eu morava praticamente com ele. Ele dizia que estava fazendo penitência pra um irmão que
brigou com outro, ficava pálido, abatido... mas seu amor para com o próximo era tão grande que o mais
importante de tudo seria a paz e o bem entre seus irmãos.”
Crítico ferrenho da televisão, a qual atribuía um complô internacional para o desmembramento da
família, Frei Elias não se cansava de moldar o espírito dos paroquianos para uma vida cristã verdadeira e
formação de um mundo melhor. Seus sermões apregoavam a necessidade do católico comparecer à igreja não
apenas em eventos sociais, mas ser um zeloso praticante da religião e membro ativo da comunidade. O avanço
tecnológico o preocupava e o oprimia. Era preciso fazer alguma coisa para lutar contras as forças maléficas que
visavam destruir a união familiar e corromper os jovens. Insistia na necessidade de formar bons cidadãos que
não se deixassem conduzir pelo maligno efeito da tecnologia que tantos males traria à sociedade. Com esse
pensamento idealizou o projeto de um cinema para a comunidade. E no início de 1960, a RFFSA liberou uma
área de terras que seria destinada à construção do novo cinema, que se chamaria Cine Teatro PAX. As obras
tiveram início no ano de 1961.
A concretização do cinema tinha, para Frei Elias, dois objetivos. Um deles era auxiliar a formação da
juventude, com apresentação de filmes selecionados e instrutivos. Por outro lado pretendia angariar recursos
financeiros para continuidade de suas metas sociais, principalmente aquela que seria a maior delas, a de maior
significado para sua vida apostólica. Frei Elias pretendia recolher todos os meninos de rua, dando-lhes educação
escolar, alimentação, assistência médica, vestuários, etc. E tudo seria gratuito. O cancioneiro do silêncio
compunha sua obra prima, sua melodia mais gratificante, repleta de sons e paz; iria doar-se no socorro das
minorias abandonadas, qual ele próprio muitas vezes se sentia. A “Cidade dos Meninos”, emergiu do fundo do
seu coração, e já percorria de boca em boca, como que a convocar o exército de fiéis colaboradores para mais
essa batalha. A maior de todas!
Em 12 de setembro de 1964 foi inaugurado o Cine PAX com apresentação do filme “Viagem ao Centro
da Terra”, de Julio Verne, lançado nos EUA em 1959. A soleira da porta aberta para a esperança continuava a
fluir como o sopro de uma flauta de luz... Pois, nesse mesmo ano, o Instituto das Obras Assistenciais comprou
da RFFSA um terreno com dez alqueires, próximo à estação férrea do Cará-Cará. Olhando para o terreno, Frei
Elias conseguia vislumbrar a tão almejada “Cidade dos Meninos”. Era tudo o que mais queria! O Cine PAX dar-
lhe-ia o suporte para a execução das obras necessárias. Precisava esperar só mais um pouquinho!
Frei Elias continuava seu trabalho apostólico junto aos ferroviários. Como capelão e assistente social da
RVPSC, pertencia ao seu quadro de funcionários e efetuava trabalhos no percurso da linha que se ramifica pelos
dois estados vizinhos e na sede da Capelania. A diretoria da RFFSA dava importância muito grande ao trabalho
de Frei Elias, porque obtinha todas as informações necessárias sobre as dificuldades de seus operários,
podendo assim tomar as medidas para suprir as deficiências existentes. Por outro lado, a liderança exercida por
Frei Elias mantinha os ferroviários longe das influências dos sindicatos, criando assim menos problemas para a
direção da empresa. As visitas periódicas do Capelão eram sempre motivo de alegria aos moradores. Quando
chegava nas “turmas”, carregando sua tradicional mala, era recebido com festas. Fazia visitas domiciliares,
ministrava palestras com temas morais e de civismo, com temas especiais para crianças e também palestras
através de diversas emissoras de rádio. Frei Elias era um verdadeiro missionário. E em todos os lugares aonde
ia, levava consigo uma máquina fotográfica para registrar a história daqueles a quem servia.
Segundo estatísticas da época, as estações férreas sob a jurisdição da Capelania da RFFSA
alcançavam o total de 267 e as turmas ferroviárias, sem contar as famílias, chegavam a 315. Todos esses
grupamentos humanos se encontravam disseminados ao longo de 3.000 quilômetros da rede ferroviária, que Frei
Elias procurava visitar periodicamente.
Em 1965 a comunidade de São Cristóvão já contava com aproximadamente 700 famílias, sendo a
maioria formada por ferroviários. Surgiu a necessidade de transformar a Capelania em Paróquia. E assim, em 22
de agosto de 1965, às dez horas da manhã, procedeu-se a cerimônia da criação da nova Paróquia de São
Cristóvão e da tomada de posse de seu primeiro pároco, Frei Elias de Treviso. Foi muito grande o número de
fiéis que compareceram ao ato solene. O Sr. Onias Becher falou em nome dos paroquianos e em seguida o
Padre Martinho leu os decretos do Exmo. Sr. Bispo Diocesano Dom Geraldo Pellanda, criando a nova Paróquia,
que se desmembrava da Paróquia Santa Terezinha e da Paróquia do Divino Espírito Santo. Os decretos
nomeavam o Pároco e delimitavam a área da nova paróquia. Falou a seguir o Exmo. Sr. Bispo Diocesano e por
fim o Deputado Federal Pe. Godinho.
Silenciando seu canto por um lapso de tempo, Frei Elias se quedava a ouvir o som da voz perturbadora
da inquietação. A transformação da Capelania em Paróquia era importante para a comunidade. Mas por outro
lado preocupou-lhe a questão jurídica criada com o fato, já que todo terreno, onde se localizavam a igreja e as
dependências das edificações sociais, estava cedido por comodato ao Instituto das Obras Assistenciais da
Ordem Terceira Franciscana dos Ferroviários Paranaenses e Catarinenses. Esta entidade, conforme seus
estatutos, reconhecia e atribuía seus bens aos Padres Capuchinhos Missionários do Paraná. Foram várias as
tentativas para se conseguir a doação ou aquisição das áreas cedidas, porém eles se encontravam em litígio
com a Prefeitura Municipal. Era preciso esperar. Também, por estar agora vinculado com maior força à Diocese,
Frei Elias preocupava-se com sua missão como pregador a serviço da comunidade ferroviária. Essa questão foi
solucionada em reuniões com o Superior Provincial Frei Cassiano de Colombo e com o Exmo. Sr. Bispo
Diocesano, que liberaram o pároco de sua permanência integral na comunidade, podendo assim continuar suas
viagens em atendimento aos ferroviários.
Mais uma vez, Frei Elias ausentou-se da Paróquia, agora para uma viagem de descanso à Itália. Isso se
deu entre o fim do mês de abril a meados de julho de 1966. Como substituto ficou o Pe. Frei Zacarias de Rodeio.
Frei Elias continuava seu trabalho nos empreendimentos sociais e nas viagens apostólicas e precisava
de um ajudante. Por isso, no dia 7 de abril de 1968, um Domingo de Ramos, na presença do Exmo. Sr. Bispo
Diocesano, tomava posse o novo vigário Pe. Frei Zacarias Calixto Girardi, que era vigário coadjutor da Paróquia.
No ano de 1968, junto à edificação que abrigava o Grupo Escolar Jesus Divino Operário foi construída
mais uma ala do prédio,com três pavimentos, destinada à ampliação das obras do Instituto Educacional. Esta
obra fazia parte de um projeto da Capelania da RFFSA para a formação primária e profissional dos mais
desamparados da classe ferroviária. Este projeto, denominado “Cidade Ferroviária dos Meninos”, foi iniciado em
1959 pelo então diretor da empresa, Cel. José Machado Lopes, e objetivava solucionar seriamente o vasto e
urgente problema sócio-educacional da classe ferroviária.
Nesse mesmo ano, foi concedida, em caráter condicional pelo prazo de dois anos, através do Decreto
nº 13.490, de 14/12/1968, autorização, a partir de 1969 para o funcionamento do Ginásio PAX. Este seria uma
entidade particular tendo como mantenedora a Congregação das Irmãs Franciscanas do Coração Imaculado de
Maria. Na seqüência, através do Decreto Estadual nº 665, de 12/08/71, foi concedido o reconhecimento ao
Ginásio PAX, sendo a primeira turma composta por 29 alunos.
Além da preocupação com a legalidade dos terrenos e do patrimônio construído, Frei Elias começava a
sentir o peso da dificuldade em manter o Cine PAX conforme tinha idealizado. A concorrência com o grupo que
mantinha as outras salas de cinema no centro da cidade, dificultava o aluguel de bons filmes, principalmente
lançamentos. E Frei Elias não admitia a apresentação de filmes cujo conteúdo pudesse ir contra os princípios
cristãos que pregava aos jovens. Fatos estranhos começaram a acontecer, como por exemplo, reservar e alugar
um filme selecionado junto à distribuidora, e de repente este filme não estar à disposição. O desgaste era
grande, pois anunciava-se um filme e tinha que projetar outro.
Por outro lado, a espiritualidade e a devoção dos paroquianos aumentava dia a dia. As missas de
domingo ficavam lotadas de fiéis. A capela tornara-se pequena para a demanda de fiéis e por muitas vezes
houve necessidade de celebrar missas no pátio. Era preciso construir uma nova igreja. E em julho de 1969
realizou-se uma reunião importante. Foram convidadas 24 das pessoas mais influentes da paróquia,
independentemente de sua vivência religiosa, para discutir a construção da nova igreja matriz. Concluiu-se pela
necessidade da execução do projeto e também que a nova edificação deveria ser construída no mesmo local da
antiga.
Novamente o espírito do homem construtor e empreendedor se sobrepôs a outras tantas virtudes.
Almoços comunitários, rifas e outras promoções foram feitas para angariar recursos para aquisição de materiais
de construção. Porém, antes de tudo, havia necessidade da aprovação por seus superiores. No início do ano de
1970, Frei Elias escreveu ao Revmo. Padre Provincial relatando as dificuldades com a utilização do pequeno
espaço da igreja e pedindo autorização para edificar nova obra. A resposta não demorou a vir. Frei Elias tinha
que interromper os trabalhos realizados até então e aguardar até o cumprimento de todas as exigências legais.
Em 15 de julho de 1970, Frei Elias recebeu uma carta do Definitório Provincial autorizando-o a realizar
o projeto, com a condição de não interrupção das atividades religiosas. Como anteriormente, ele mesmo
rascunhou o projeto da nova obra. Sem perda de tempo, no mês de novembro de 1970 a antiga capela começou
a ser demolida, e a partir do dia 18 daquele mês, todas as funções religiosas passaram a acontecer no antigo
auditório do Cine São Cristóvão. Enquanto isso, o Sr. Alexandre Hass, construtor experiente, comandava a
execução do novo templo, onde daria o melhor de si para a concretização daquele local de orações.
Finalmente, no ano de 1971, o Instituto das Obras Assistenciais adquiriu o direito da posse dos terrenos
que estavam em litígio. A área ocupada pela escola e dependências foi passada através do Instituto para as
Irmãs, através de documento lavrado em cartório, sendo que elas pagaram o valor referente à propriedade,
ficando a escritura definitiva a ser firmada após a legalização dos terrenos com a Prefeitura Municipal. Esse fato
provocou uma quebra nas reservas financeiras para a construção da nova igreja. Mas as obras continuaram com
todas as dificuldades inerentes aos problemas financeiros, sempre enfrentados com coragem por Frei Elias, que
confiava sempre na Providência Divina.

PARTE VI

Enquanto isso, as atividades no Cine PAX continuavam em queda. Estrategicamente Frei Elias tentou
uma última ação. Aliou-se ao grupo que administrava a rede de cinemas da cidade e, através de um acordo, o
Cine PAX passou a integrar o sistema de salas cinematográficas, passando a projetar os mesmos filmes
lançados no centro da cidade. Mas talvez fosse tarde demais... Frei Elias estava perdendo o lume da
caminhada. A “Cidade dos Meninos” já não era uma certeza. Os recursos financeiros se esgotavam na
construção da nova igreja. Seu canto começava a tornar-se débil, fazendo-se forte no torvelinho das
tempestades da vida. Já não podia mais exercer o controle dos filmes conforme era seu desejo como
responsável por uma comunidade cristã.
Como um guerreiro foi adiante, confiando sempre nas forças superiores que nunca o tinham
abandonado. A nova matriz que ele concebera, bela, num estilo arquitetônico simples, porém que vibrava na
presença dominadora do Criador, ficara pronta. Era 30 de abril de 1972 quando foi inaugurada. Um dia de festa.
No auditório onde por anos e anos foram vividas emoções das mais variadas, espíritos mais sensíveis podiam
ainda sentir a melodia simples das amizades e amores compartilhados, e o perfume do gargalhar das flores em
abundância em cada palmo daquele chão. Ali foi rezada a última missa, às 6:30 horas daquele dia histórico. Era
grande o contentamento. Estavam presentes todos os religiosos que exerceram algum tipo de atividade na
Capelania e na Paróquia de São Cristóvão, bem como os membros da diretoria do Instituto de Obras Sociais. Em
procissão, com Frei Elias à frente, o povo dirigiu-se à matriz, para a celebração da missa inaugural, com a
presença do Exmo. Sr. Bispo Diocesano, que homenageou a todos os que trabalharam na construção.
Com os recursos financeiros escassos, Frei Elias se fez de operário novamente e com ajuda de fiéis
colaboradores, complementou as benfeitorias externas e as instalações secundárias. Esses trabalhos se
desenvolveram até abril de 1973. Logo após, em 27 de abril, viajou novamente à Itália rever os parentes e
recompor as forças para mais um embate.
Voltando no mês de junho, retomou os trabalhos religiosos na comunidade. Com a igreja nova, os fiéis
redobraram o fervor religioso. Estavam mais entusiasmados. Almejavam organizar o clube da Paróquia. E mais
uma vez, juntamente com o Frei Elias, concretizaram mais esse sonho. Logo as obras foram iniciadas, com os
paroquianos colaborando como nunca. No início de janeiro de 1975, foi executada a cobertura do salão e em 5
de janeiro realizou-se uma festa em Ação de Graças, com missa celebrada às 10 horas com a participação do
Coral São Cristóvão. Após a missa, Frei Elias dirigiu-se, liderando o povo, para a bênção das dependências. O
clube recebeu o sugestivo nome de “Cristóforos Clube”.
Todas as metas definidas quando de sua vinda para Ponta Grossa, Frei Elias e seus companheiros da
Ordem Terceira, estavam concretizadas plenamente, exceto uma, a Cidade dos Meninos. O terreno estava
pronto para ser trabalhado, porém as possibilidades de obtenção de recursos financeiros diminuíram
consideravelmente. O sacerdote operário receava as trevas que se aproximavam rapidamente. Mais uma vez ele
pedia luz para que pudesse vislumbrar mais uma partitura e assim destravar a voz de sua garganta na última
musicalidade. O Cine PAX já não atraía grandes públicos, mesmo porque a empresa, que administrava os
cinemas localizados no centro, não tinha nem um interesse em que isso ocorresse. Essa batalha não estava
ainda perdida. Era preciso apenas esperar mais um pouco. Tomar um fôlego, retomar as energias, redirecionar
as ações. Pagar as contas atrasadas, refazer o caixa, as economias e quem sabe elaborar o projeto construtivo
da nova obra. Talvez a festa de São Cristóvão a ser realizada no ano de 1976 pudesse ser o marco inicial da
concretização dessa última etapa.
Voltado para as atividades espirituais junto à comunidade de São Cristóvão, Frei Elias viu passar os
primeiros meses do ano de 1976. Sempre resguardado das tristezas, ouvia o trovão a gargalhar nas abundantes
chuvas de junho. Sem ambição, com o coração repleto de amor, esperava o momento de sua maior conquista,
quando não mais veria as crianças carentes sem uma educação digna e sem esperanças de futuro. O cansaço
da espera antecipava uma sonolência incontrolável nos seus olhos. Sonolência essa que naquela noite de 17 de
julho o colocou em alerta. As chamas que rapidamente se propagavam corroíam também suas esperanças. Isso
porque tinham um significado especial. Não era um simples incêndio, pois isto não abalaria a fortaleza que
abrigava dentro de si.
Naquela madrugada se iniciava a caminhada de Frei Elias para o plano divino, como uma melodia
fluindo inspiradoramente. Hospitalizado, retornou ao seu rebanho apenas para despedir-se, pois na manhã de 14
de agosto de 1976, com 56 anos de idade, no Hospital 26 de Outubro, seu coração deixava de pulsar. Era a
última cena de um grandioso e belíssimo filme, que retratava a vida de um líder fantástico. Naquela manhã a
notícia correu célere pela cidade. A comoção foi muito grande. Era difícil acreditar. Ponta Grossa chorou
perplexa.
A igreja matriz de São Cristóvão projetada e construída por suas mãos, preparava-se para recebê-lo
pela última vez. Missas eram rezadas quase sem intervalo por vários sacerdotes que se alternavam nas
celebrações. Durante o dia e à noite de sábado, registrou-se a presença de vários líderes do município, como
Luiz Gonzaga Pinto, Ciro Martins, o Prefeito Amadeu Puppi e tantos outros. Permanentemente estavam no local
os clérigos estudantes capuchinhos.
As missas continuaram no domingo, de hora em hora. Às oito horas foi celebrada uma missa, pelo
Bispo Diocesano Dom Geraldo Pellanda, e às dez horas pelo Superior Provincial Frei Clemente Vendramin,
acompanhado por inúmeros sacerdotes capuchinhos e do clero de Ponta Grossa. O coral Uirapuru, tão elogiado
por Frei Elias, cantou o Pai Nosso durante a missa, o que fez a emoção tomar conta de todos os presentes na
última homenagem. Após a missa, uma procissão acompanhou o corpo em volta da praça, sendo conduzido a
seguir para a sepultura final.
Como costume, os freis capuchinhos quando faleciam eram enterrados em um cemitério particular em
Butiatuba, no município de Almirante Tamandaré, porém, atendendo o clamor dos paroquianos, com aprovação
do superior provincial e também do Prefeito Municipal Sr. Amadeu Puppi, o corpo de Frei Elias foi enterrado
dentro da igreja, no lado direito do saguão de entrada. Logo após o silêncio tomou conta daquele lugar e aos
poucos as notas da sublime melodia deixaram de ser ouvidas. O grande maestro já não existia mais. Sobre a
lápide a célebre foto. Nem precisava... aquela imagem jamais sairia da mente daqueles que conheceram Frei
Elias. Era preciso reaprender a viver e tirar o gosto da morte da boca dos que ficaram. Anos mais tarde
o corpo de Frei Elias foi transladado para o cemitério em Butiatuba, para o descanso eterno.
Morreu o homem... morreu o sonho. Se pudesse, teria feito um último pedido: o de que sua sonata
terminasse bonita e em paz. Como toda morte, foi única no universo, porque a morte de uma pessoa é um
acontecimento único... como uma estrela que se apaga. Apaga-se para não testemunhar a dor da segunda
morte. O açoite do frio e o silêncio da noite que não terminam... para quem amou demais... e amor que não se
esquece. Amor que não deveria se esquecer... verso inacabado na história que não se tem! O sal das lágrimas
começam a manchar os rabiscos que ficaram na memória de quem ousou esquecer. Frei Elias não vai morrer
uma segunda vez.....
Esse grito saiu do fundo da garganta de uma poetisa e cronista que conheceu esse ser extraordinário e
com sua súplica se recusa a assistir uma segunda morte: Rosicler Antoniácomi Alves Gomes. Numa seqüência
de contos, denominados “Frei Elias em crônicas: pequenas doses contra o esquecimento”, Rosicler apresenta de
forma sutil, carregada de emoções e muito senso crítico, o cenário de uma comunidade que se abateu
profundamente com a ausência de seu líder. Muito obrigado pelo despertar de tantas emoções, pelo apoio
imediato e por não esquecer.
No ano de 2000, Marli Gabre de Lima concluía seu curso de especialização em História, na
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Com sua monografia intitulada “A ação pastoral de Frei Elias Zullian na
Paróquia de São Cristóvão – 1952/1976”, Marli pesquisou obras e principalmente documentos importantes, como
o Livro de Ata e o Livro Tombo da Paróquia São Cristóvão e registrou depoimentos importantes de pessoas da
comunidade sobre o período considerado. Também a ela os sinceros agradecimentos pelos registros das
informações que auxiliaram na composição deste trabalho... e por não permitir a segunda morte de Frei Elias.
A maior herança deixada por Frei Elias foi a atual Escola Estadual Jesus Divino Operário. Um projeto de
pesquisa organizado pelas Professoras Adriane Inês Burgardt e Cirlei Ramos, no ano de 1998, intitulado “Ontem
e Hoje: Resgatando a História da Escola”, culminou com um valioso documento que perpetuará aquele
educandário nos registros da cidade de Ponta Grossa. Através de entrevistas a ex-alunos, ex-professores e ex-
diretores, consulta a leis, decretos, regulamentos e demais registros, resgatou-se a memória da escola para que
cada aluno que por ali passe conheça a fundo sua história e a comunidade em que vivem. Ali também está
registrado de forma resumida a vida de seu fundador, Frei Elias Zulian. O penhor de gratidão aos professores,
funcionários e alunos da escola através de seu diretor Prof. Sérgio Luiz Ditzel, pela gentil acolhida e cessão de
uma cópia do documento acima citado, e que mantém na sala da diretoria um quadro com uma foto de Frei Elias
(a mesma que consta deste relato) e se demonstra preocupado com as marcas que o tempo já deixou em sua
moldura.
Vale ressaltar também o respeito e a homenagem a todos que não esqueceram Frei Elias. A todos que
seguiram seus passos e o ajudaram na sublime missão... a todos que o ajudaram a suportar a dor da ausência
de seus familiares e da pátria querida. Homenageie-se a todos através daquele que primeiro atendeu seu
chamado, o Sr. Airton Tulio. Seus olhos ainda brilham quando relembra tantos momentos inesquecíveis, a cada
vez que se fala o nome de Frei Elias. Airton, muito obrigado pela ajuda, pelas informações prestadas e pela
confiança demonstrada. Muita coisa ainda há que se relembrar... que se registrar. Quem sabe... seja o início!
Em 2006 a Universidade Estadual de Ponta Grossa recebeu por doação o patrimônio do Cine PAX, com
objetivo de recuperá-lo e devolvê-lo à comunidade da forma como ela merece. E da forma como Frei Elias
sonhou... disseminando a cultura e o conhecimento de forma geral. A UEPG herdou o patrimônio físico, mas
herdou também um espaço impregnado por tanta dedicação em prol da população. Impregnado pelos sonhos de
um homem apaixonado pela arte cinematográfica e pelo teatro. Frei Elias não deve morrer pela segunda vez.
Em 9 de fevereiro de 2007, o Magnífico Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, Prof. João
Carlos Gomes, foi entrevistado pelo jornalista Adail Lemos Inglês, no Programa Verdade em Pauta, da TVM.
Naquela ocasião, quando se debatia o assunto dos planos que a UEPG tinha para a área cultural, mais
especificamente sobre o Cine PAX, este autor, que se orgulha em servir a Universidade por longos 32 anos, foi
desafiado a escrever um artigo sobre o saudoso Frei Elias.
Quem não fez parte da história desse sacerdote recusava-se a esquecê-lo. Que dizer deste e tantos
outros que seguiram os passos daquele homem, e não cultuam sua memória? William Lima Lial, empresário e
poeta, em seu poema “As duas mortes” assim afirma em alguns trechos: “Morreste hoje. Esquecido, poderás
morrer, novamente amanhã. Que nem sempre a morte é uma só..... Morrerás a morte no corpo; morrerás a
morte na ausência da lembrança; morrerás a morte nos olhos dos que não mais o verão; morrerás a morte com
a névoa da memória.,.. morrerás a morte através da falta de escrúpulo..... do esquecimento póstumo.”
Frei Elias Zulian não vai ter a segunda morte por esquecimento enquanto existirem pessoas que contem
histórias, fatos e momentos a filhos e netos e que gravem na memória do tempo a bela história de um benfeitor
que nada trouxe e nada levou, mas deixou uma herança valiosa a este povo que tanto amou. Sabem
exatamente do que se fala, quem busca lembrar doidamente o que se esqueceu... como olvidar quem:
- Assistiu, sentado em cadeiras simples de madeira ou nos bancos dispostos à frente da tela, os
velhos filmes projetados no salão da Associação Recreativa dos Homens do Trabalho;
- assistiu calado e concentrado, na pequena igrejinha de São Cristóvão, as missas em latim, homens
de um lado e mulheres de outro, mulheres solteiras com véu branco, casadas com véu preto;
- ouvia e comentava os longos sermões do Frei Elias nas missas, apregoando a desestabilização da
família e dos males da televisão, e os perigos do comunismo;
- emocionava-se com as antigas músicas cantadas nas missas e nas novenas, o “Tantum Ergum”,
canções dedicadas à Virgem Maria nos meses de maio e tantas outras;
- foi coroinha e disputou a batina nº 3, que milagrosamente vestia perfeitamente em todos; quem
tocava o sininho, quem manipulava o incenso;
- curtiu as velhas festas de São Cristóvão, tantos amores marcados apenas pelos olhares; músicas
dedicadas “a alguém por alguém e ninguém tem nada com isso”... “à moça de blusa amarela por
um admirador”... (foi numa destas festas, em 13 de agosto de 1967, que este autor cruzou os
olhares com uma garota linda pela qual se apaixonou e casou sete anos depois, tendo a
celebração do casamento feita por Frei Elias);
- participava das procissões das festas sobre as carrocerias dos caminhões apinhados de fiéis;
- comprou sorvetes do “seo” Candinho no seu velho carrinho; quando tinha um dinheirinho extra
comprava sorvete “esquimó”; se não tinha contentava-se com “picolé” ou “dolé” mesmo:
- cursou “catecismo” sentado numa pilha de madeira armazenado numa sala aos fundos da igreja,
tendo como “professor de catecismo” “seo” Airton (Airton Tulio), “seo” Pedrinho (Pedro Tulio), “seo”
Arlindo e tantos outros;
- assistiu filmes no Cine São Cristóvão, nas noites de quarta, sábado ou domingo, e para isso
percorria os longos trajetos da casa ao cinema por ruas de terra em noites escuras, às vezes
portando lanterna;
- ou assistiu belas peças teatrais, dramas, romances e comédias, que faziam rir e chorar;
- trocou “gibis” nas tardes de domingo, nas matinês;
- ouviu a voz grave de Frei Elias interrompendo a sessão de cinema, dizendo :” eila, eila, gurizada...
vamos parar de bagunça!!!!” ... e o silêncio se fazia presente;
- participou da Juventude Franciscana – JUFRA, da Cruzada Eucarística, Congregado Mariano ou
outro grupo religioso;
- ouvia diariamente, às seis horas da tarde, a oração da Ave-Maria, entoada por alto falante na torre
da igreja e depois do alto do Cine PAX, sempre na voz pausada e solene do amigo Nestor José
Ferreira dos Santos, por muito tempo secretário do Frei Elias;
- chegou a vender os famosos tíquetes de “tijolinho” para ajudar nas construções... e quem pegou no
pesado ajudando nos serviços de transporte de telhas, tijolos, prestando sua colaboração para o
futuro das crianças e jovens;
- no final do mês recebia como prêmio ingressos para o Cine São Cristóvão das próprias mãos de
Frei Elias... quem não tinha nenhuma falta no “catecismo”, dois ingressos.... uma falta... um
ingresso;
- assistiu a projeção e explicação da Paixão de Cristo nas Semanas Santas, sempre em slides, que
a gente chamava de “cinema parado”.

POR TUDO ISSO... POR TANTA LEMBRANÇA... POR TODOS QUE


ESQUECERAM... POR MUITOS QUE SE RECUSAM A ESQUECER... POR TANTOS
QUE JÁ SE FORAM E DEIXARAM SUA CONTRIBUIÇÃO ÀS CRIANÇAS E JOVENS
DE SÃO CRISTÓVÃO.... É QUE FREI ELIAS EUGENIO ZULIAN VIVE AINDA ENTRE
NÓS!

Jairo Amado Amim

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