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€ um artesfo ithado no meio da indéstria da informagdo. Os objetos que ele molda, aparentemente apenas como o fato fugaz também destinado fugacidade, na verdade sio feitos da ma- ‘éria de sua propria vida: a experiéncia carregada de substéncia pessoal, destinada, como tudo, a perecer, mas impregnada pelo desejo de ficar. Em contradicio com 0 meio, sobra a esse cro- ta aquela espécie de solidao marginal, o que, provavelmente, © toma tio reveptivo © disponivel para pereeber as coisas mit das ¢ também & margem, com que tende a identificarse. E com clas e, por assim dizer, com sua prépria substincia mortal que cle faz suas hist6rias. Num mundo como 0 nosso, jé bastante estandardizado, de relagoes reificadas, onde tudo pode virar ‘mercadoria e em si nada valer, 0 yelho Braga, em meio ao mais ‘efémero, nao apenas nos dé a impressio sdbita do momento de beleza fugitiva, mas a dignidade © a poesia do perectvel, quando tocado por um dedo humano. (1985) ws de Rubem Braga foram feitas conforme 0 texto de sua coletanea 200 crdnicas escolhidas, 4 ed., Rio dde Janeiro, Record, 1978. As citacdes de Manuel Bandcira foram retira- das do Itinerdrio de Pasirgada. In: M. Bandeira — Poesia e prosa, Rio de Janciro, José Aguilar, 1958, vol. I, pp. 1-112 ¢ de Andorinha, ando- rinka, Sel. © Coordenag#o de’ Carlos ‘Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, José Olympia, 1966. 2. A referencia a0 “cotidiano fisico, simbélico © i ‘mens que vivem no Brasil” pertence a Alfredo Bosi,citado ma adiante, In: Dermeval. Sa Filosofia da eduearto brasileira, Rio de Janeiro, Civiliza- ‘io Brasileira, 1985, pp. 135-176. © trecho transcrito se acha & p. 157. jo de Walter Benjamin referido diretamente no item final, mas muito presente todo © tempo € *O Natrador", In: W. Benjamin ¢ ‘outros, Textos escolhidos, Séo Paulo, Abril, 1980, pp. 57-74 (Col. “Os Pensadores”) 4. 0 presente ensaio retoma e desenvolye outro — “Onde andaré © velho Braga?” —, publicado om mou livro Ackados e perdidos, Sao Paulo, Poli, 1979, pp. 159-16. Aeereveei, Dauth Evicgne Boas) cy pats files Ses, FRAGMENTOS SOBRE A CRONICA O QUE SERA A CRONICA Esse género de literatura ligado ao jornal esta entre nés hé mais d> um século ¢ se aclimatou com tal naturalidade, que parece nosso. Despretensiosa, préxima da conversa e da vida de todo dia, a crénica tem sido, salvo alguma infidelidade metua, companheira quase que didria do leitor brasileiro. No entanto, apesar de aparentemente ficil quanto aos temas e A linguagem coloquial, € dificil de definir como tantas coisas simples. ‘Sio virios os significados da palavra crénica. Todos, porém, implicam a nogdo de tempo, presente no proprio termo, que procede do grego chronos. Um leitor atual pode nao se dar conta desse vinculo de origem que faz dela uma forma do tempo © da meméria, um meio de representayio temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada, Mas a crdnica sempre tece a continuidade do gesto humano na tela do tempo. Lembrar ¢ escrever: trata-se de um relato em permanente relagao com o tempo, de onde tira, como meméria escrita, sua matéris principal, 0 que fica do vivido — uma definigio que se poderia aplicar igualmente ao discurso da Hist6ria, a que um ja cla dew lugar. Assim, a principio ela foi crénica histérica, (4) Este ensaio nasceu de uma entrevista dada a Leio Serva, da Folha de §. Paulo, em 1985, Numa primeira versio, agora revista © ‘aumentada, apareceu na Tlustrada, em 5/10/85, p. 49. st errentiinis . Sos como a medieval: uma narragao de fatos hist6ricos segundo uma ordem cronoligica, conforme dizem os dicionérios, ¢ por essa vin se tomo uma precursora da historiografia moderna, Tal género supde uma sociedade para a qual importa a exper progressiva do tempo, um passado que se possa concatenar si nificativamente, a Historia, enfim, e nao apenas um tempo clico ou repetitivo, implicado noutra forma de narrative — o mito, Presa ao calendario dos feitos humanos ¢ nao as faganhas dos deuses, mas podendo envolver até conjungdo dos astros (0 cronista costumava fazer as vezes de astrnomo, dando no- ia do que ia pelo céu paralelamente sos acontecimentos ter- resttes), @ crdnica pode constituir © testemunho de uma vida, © documento de toda uma época ou um meio de se inscrever Hist6ria no texto, Além disso, a0 distanciar-se no passado, pode se transformar em fonte da imaginagGo: gestas romanticas e ou- tras formas literdrias nascerem dela, como o drama histérico clizabetano, de que Shakespeare deixou tio grandes exemplos. Nessa acepeio histérica, o cronista € um narrador da His- {éria, Como notou Benjamin, o historiador escreve os fatos, buscando-Thes uma explicagao, enquanto que o cronista, que 9 precedeu, se limitava a narré-los, de uma perspectiva religiosa, tomando-os como modelos da hist6ria do mundo e deixando toda explicagio na sombra da divindade, com seus designios insondéveis? Mas ao narrar os acontecimentos, assemelhava-se 40 seu duplo secular, o narrador popular de casos tradicionais que, pela meméria, resgata a experigncia vivida nas narratives que integram a tradigao oral e as vezes se incorporam também & chamada literatura culta, Como este, o eronista era um habil artesio da experitncia, transformador da matéria-prima do vivido fem narrago, mestre na arte de contar histérias. Hoje, porém, quando se fala em crénica, logo se pensa num géneto muito diferente da crénica histérica. Agora se trata sim- plesmente de um relato ou comentétio de fatos corriqueitos do diaa-dia, dos faits divers, fatos de atualidade que alimentam o (2) Ver Waltor Benjamin, *O Narrador”, Em seu: Magla ¢ técnica, arte ¢ politica. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. Sio Paulo, Brasiliense, 1985, p. 208. 92 noticiatio dos jornais desde que estes se tornaram instruments de informagio de grande tiragem, no século passado. A crdnica vvirou uma segao do jornal ou da revista. Para que se possa com- preendéla adequadamente, em seu modo de ser e significacao, deve ser penseda, sem divida, em relagao com a imprensa, a que esteve sempre vinculada sua produgdo. Mas seria injusto reduzi-la a um apéndice do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependsu na origem da influéncia européia, alcangando logo, porém, um desenvolvimento proprio extremamente signficativ. Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com dimensio estética € relativa autonomia, a ponto de constituir um género propriamente literério, muito préximo de certas modalidades da épica e as vezes também da rica, mas com uma histéria especifica ¢ bastante expressiva no conjunto da pro- -ducdo literéria brasileira, uma ver. que dela participaram grandes escritores, sem falar naqueles que ganharam fama sendo sobre tudo cronistas ‘Compreendida desse modo, a erOnica € ela propria umm fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imedia‘o, as inquietagdes de um desejo sempre insatisfeito, & rapida transformagio e a fugacidade da vida moderna, tal como esta se reproduz nas grandes metropoles do capitalismo indus- ‘© em seus espagos periféricos. A primei como parte de um veiculo como 0 jornal, ela parece destinada & pura con tingéncia, mas acaba travando com esta um arriscado duelo, de que, as vezes, por mérito literdrio intrinseco, sai vitoriosa. Nao aro ela adquire assim, entre nds, a espessura de texto lterério, tornando-se, pela elaboragéo da linguagem, pela complexidade interns, pela penetragdo psicol6gica ¢ social, pela forca postica ‘ou pelo humor, uma forma de conhecimento de meandros sutis de nossa realidade e de nossa historia. Entao, a uma s6 vez, cla pparece penetrar agudamente na substincia intima de seu tempo € esquivar-se da corrosio dos anos, como se nela se pudesse sem- pre renovar, aos olhos de um leitor atual, um teor de verdade intima, humana e hist6rica, impresgo na massa passagcira dos fatos esfarelando-se na diregao do passado. © cronista moderno, ¢ claro, est mais perto dos fatos do dia do que da tradigéo oral ou hist6rica, como comentarista qd 33 € dos acontecimentos do cotidiano; mas de vez em quando reto- ma, por assim dizer, a persona de seus ancestrais. E sabido o fraco que Machado de Assis tinha pela prosa do cronista medic- val portugués Fernao Lopes. E, & medida que a critica avanga no conhecimento de sua obra, vaise vendo o quanto havia de Penetracio histdrica numa simples crénica do velho bruxo, escrita com pena de ponta fina ¢ malignamente irénica como tantas de suas melhores paginas de ficcionista. Nas erdnicas de Carlos Drummond de Andrade, ¢ ccmum retornar um narrador rigo- 080 © preciso de fatos hist6ricos que faz Iembrat o antigo sig. nificado da palavra, como ja notou Antonio Candido? Outro caso parecido o de Manuel Bandeira, sobretudo 0 das Crdnicas da Provincia do Brasil, reunidas em livro em 1937. Ali o grande poeta se torna também um cronista & moda antiga, Comega pela fevocagio do passado colonial brasileiro numa longa erénica sobre Ouro Preto, como que levado pelo gosto de acompanhar © tracado arquiteténico das velhas casas intactas e dos sobradées de frontarias barrocas, preso a0 encanto da cidade que no mu- dou. Mas encomprida o relato como um narrador oral, pela suces- sio de historias antigas, nascidas de gestos simples dos homens que construiram aquele mundo parado no ar do passado. Como © caso do mulato anénimo que um belo dia desceu do serro do ‘Tripui a0 ribeirio hoje de Ouro Preto e, num gesto humilde de apanhar um pouco d'égua para matar a sede, deu com os ‘granitos negros que encobriam 0 ouro e 0 nove mundo das Minas. No fundo distante, o hist6rico e 0 ficcional se confundem, a0 ‘mesmo tempo que uma poesia inesperada espia através dos fatos ‘da meméria. £ ainda como narrador da Histéria que Bandeira prossegue, a0 longo do livro, no resgate desse passado hist6rico, aglutinando terras da Bahia, de Pernambuco, do Rio de Janeiro. No Rio se detém, abandonando o pano de fundo e 0 jeito de cronista antigo, para se fixar no cenério presente e préximo que era a capital carioca. Adota entao um tom coloquial de conversa amena ¢ bem humorada, escrita com grande naturalidade em prosa limpa ¢ enxuta, como se desenhasse a bicode-pena par- 3) Cf. Antonio Candido, “Drummond prosador: singularidade do ago", Revista do Brasil, Ano I, n° 2/84, p. 8 34 findo do natural, sem perder @ graga e a precisio dos detalhes, uum quadro vivo do Rio de seu tempo. Através de figuras singu lares de seu convivio, 0 cronista conta agora fragmentos de uma hist6ria menor, aquém dos. grandes acontecimentos, vivida no dia-a-dia da Cidade Maravilhosa: 0 Rio dos meninos pobres do morro do Curvelo, do mundo noturno do samba, das rodas boé- mias da Lapa, dos intelectuais modemnistas. A crOnica se situa bem berto do chao, no cotidiano da cidade modema, e escolhe linguagzm simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam 2 vida didria, onde as vezes encontra a mais alta poesia. F exata- ‘mente essa a situagdo preferida das crénicas de Rubem Braga, Braga, embora pocta bissexto e contista eventual, escreve eronicas desde a década de 30 € foi decerto quem deu 0 maior grau de autonomia estética a esse género entre nds, tormando-se, Por isso, um modelo de cronista. Forjou, na verdade, uma forma literdria nica, feita com a mescla de elementos variados, vindos até onde se pode perceber, da antiga tradigéo do narrador oral (no caso, do contador de causos do interior) e da bagagem do cronista moderno, associado & imprensa e experimentado na labuta das grandes cidades de nosso tempo. Com ele, a tensio tio caracieristica da crOnica, entre o cardter puramente. circuns: tancial e o propriamente literério, tende a se resolver, mais que nna maioria dos cronistas rotineiros, em proveito da literatura. Por isso, através dele, se nota mais 0 que & comum a todos: a relagdo ambigua com o fato que serve de referéncia a crénica. Muito préximo do evento mitido do cotidiano, o eronista deve de algum modo driblé-lo, se nao quiser naufragar agarrado ao efémero, Buscando uma saida literdria, as margens de sua terra firme sao bastante imprecisas: ele pode estender a ambi- gilidade i linguagem ¢ as fronteiras do género, sem perder © nivel de estilo adequado is pequenas coisas de que trata. Com isso, &s vezes a prosa da crénica se torna lirica, como se estivesse tomada pela subjetividade de um poeta do instantineo, que, mesmo sem abandonar 0 ar de conversa fiada, fosse capaz de ticar 0 dificil do simples, fazendo palavras banais algarem v6o. Outras vezes, a tendéncia € para a prosa de ficgao, pela énfase ‘na objetivacao de um mundo recriado imaginariamente: ele pode 55 se confundir com 0 conto, a narrativa satitica, a confissio, Outras ainda, como om tantos casos conhecides, constitu um texto dificil de classificar: é. .. erdniea. Foi o que levou Fernan- do Sabino a repetit sobre eln a famosa piada de Mirio de Andrade a propésito do conto: tudo 0 que o autor chamar Em Rubem Braga, hi um pouco de tudo isso, o que permite petceber também em stias cronicas as fronteiras instiveis do género. Como ocorre de vez em quando com todo cronista roti- niciro, muitas yezes também para cle a matéria costuma ficar escassa ou faltar. Ha momentos em que a crdnica teima em néo sair, claramente por falta de assunto, gerandose no limite a iwwago embaracosa, literariamente tao moderna, do comentario ou relato diante da austncia do fato, como se a linguagem do cronista se visse obrigada a desgarrar-se necessariamente da circunstincia imediata, seu vinculo jornalistico mais ostensivo. Mas € quando o assunto se torna ténue, se esgarga ou falta intei- ramente, que Braga mostra melhor sua gatra de cronista, precisa- ‘mente agarrando-se a um “puxa-puxa”, como o chamou certa vez Manuel Bandeira, € imprimindo a0 género seu modo de set tao caracteristica, Nesses casos, a circunstancia corriqueira e efSmera de que 0 cronista se serve como gancho fica reduzida a0 mfnimo possivel, e a crOnica parece que se enrola em si mesma c 3¢ solta, voando como bolha de sabao, esfera leve e transiicida, irisada apenas pela luz interior do sujeito que a anima com o mais profundo de sua experiéncia humana. ‘Tornase entio um ‘modo especifico de apreender e exprimir certos valores, como se fosse s6 cla a forma tinica ¢ justa de dizélos. Para atingit tal grau de autonomia,’ sem projuizo de sua simplicidade sur- preendente de expresso, a erdnica teve de passar provavelmente ppor uma longa aprendizagem, que € a da sua hist6ria no Brasil, desde o século passado, NO PRINCIPIO, O FOLHETIM Quando aparece entre nés, na segunda metade do século XIX, a crénica jé lida com uma matéria muito mistureda: a 56 matéria do folhetim, pedago de pagina por onde a literatura penetrou fundo no jornal, tratando dos temas mais diversos, ‘mas com predominancia dos aspectos da vida moderna. O cronis- 1 € primeiro folhetinista, como o Alencar de Ao correr da pena, colaborador do Correia Mercantil do Rio, em 1854 © 1855. Ali © eseritor iniciante ja se sentia sob o signo de Proteu: a matéria mutivel € meio monstruosa obrigava o folhetinista a percorrer todo tipo de acontecimentos, com uma volubilidade de “colibri « esvoavar em ziguezague”. Alencar decerto fax graga roméntica, mas € que, desde 0 principio, a crdnica parece escolher uma Jinguagem Kidica e esvoacante para cobrit © espaco enorme entre os grandes © pequenos eventos com que se defronta. (E este modo de ser, como que volitil, ¢ caracteristico ainda do espi Tito do velho Braga: um dos jeitos de se falar de tudo, escon- dendo o jogo, como quem ndo quer nada.) Outros autores romén ticos aproveitaram & mesma deixa, como Joaquim Manuel de Macedo e Franga Jr., este capaz de trazer qualquer assunto, pelo reforgo do lastro de humor, para mais perto do cho, munido que estava de um senso agudo de observacd0 de nossos costu- mes, qualidade que ndo passou despercebida dos modernistas, como se nota pelo que disseram dele Pedro Dantas ¢ Manuel Bandera, Na maioria desses autores dos primeiros tempos, a erénica tem um ar de aprendizado de uma matéria literdria nova e com- plicada, pelo grau de heterogencidade © discrepancia de seus ‘componenies, exigindo também novos meios lingufsticos de pene- tragdo e organizacao artistica: é que nela afloravam em meio ao ‘material do passado, heranca persistente da sociedade tradicional, as novidades burguesas trazidas pelo processo de modernizacao do pais, de que o jornal era um dos instrumentos. O préprio ‘ronista estava assim metido num processo hist6rico cuja dimen- so geral era extremamente complexa dificil de apreender, tendendo a escapar-the, mas cujos resultados muitas vezes dis- cotdantes se impunham a sua observagio, pedindo tratamento artistico novo. Chamado a se situar diante de fatos tio discre- antes, dé de inicio a impressio de tateio sobre a matéria mo- dena do jomnal, feita de novidades fugitivas, como se estivesse experimentando a mao. E de fato os escritores como que se pre- 57 an, aus Por esse meio, para um género maior e na aparéncia mais seguro por seu proprio inacabamento — o romance. Era cle @ poderosa forma modema de narrativa, a épica de ber Piety ule processo de ascensio social, econdmica e polf. {ica estivera intimamente unido, com seu estémago de avesteus faapetite onivoro, sempre aberto a0 novo e, por isso mesino, facilmente assimilivel 40 bojo do jornal. Os jovens escrito sprendiam a tratar com eventos de todo tipo: convulsdes de mitistéio © (ofocas de alcova, a grande © a pequena hist6ria, tudo de cambulheda, como se costumava dizer. E logo exes matéria mista e palpitante reaparecia trabalhada numa forma ova, sem cdnon preciso, dada a parédia e & autocritica, posta Gm continuo contato com o presente e flexivel a toda sorte de {fansformagées — uma forma agora nitidamente ficeionl, capaz de ressurgit muitas vezes na propria imprensa, metamorfosecda fem romance de folhetim, CORTE AGUDO DE MACHADO Como sempre, Machado de Assis entrou a fundo também ‘no material folhetinesco. Percebeu logo a liga do “itil e do ful” que fazia sua graga. E pds mios & obra, dedicandose « uma espécie de prética de relativizagao dos solavancos entre os altos e baixos do assunto; balanceando, com distanciamento ind, nico, 08 pesos ¢ contrapesos de toda questio. A cada momento Puxa a vida do espitito para baixo, para o cho material ¢, ao mesmo tempo, se entrega, com prazer perverso, a uma metafisien de quinquilharias. Todo grande acontecimento com ar usurpador pode ser despachado com um piparote em beneficio de uma “pobre ocorréncia de nada”. De uma penada se esvaziam linhas sgerdas de objetos indtcis, mas parece que hé sempre novas pra, tcleiras vazias no espitito, aguardando outros tantos. Tudo isso {feito minuciosamente, com capricho e fleuma, conforme tim venso ferino de humor, que tem também seu contrapeso de delirio, E assim que, diante do cadaver de um homem célebre, 0 Machado folhetinista se descobre “‘um triste escriba de coucas tmiiidas”, como se tivesse que ficar paralisado. Na verdade, dé 58. sam exigéncias formais intrinsecas & matéria misturada que tinha ‘nas miles: exigéncia de mobilidade do cronista, chamade, a toda He @ # qualquer prego, s variar de perspectiva; e exigen, ia de uma linguagem adequada aos niveis diferentes ¢ contrastantes da realidade envolvida. Com isto, parece noe dies Ave, se neste mundo “tudo pede certa elevagdo", no € menes certo que no se pode “sair do comum da vida e da semana” Para ostentar um “estilo solene e grave”, a primeira vista mais ondizente com um morto itustre. Machado se afina pelo tom ‘menor que serd, dai para frente, 0 da ctOnica brasileira, voltada Hara as miudezas do cotidiano, onde acha a graga espontinea do Povo, as fraturas expostas da vida social, a finura des pertic Psicolégicos, © quadro de costumes, o ridiculo de cada dia até Repeesia mais alta que ela chega aleangar, como em tantay de Rubem Braga, Quem Ié as crénicas machadianas de Historias de quinze dias até 4s de A Semana, nas duas dhimas décadas do sécule Passado, ndo pode deixar de expantar-se ainda hoje com aquele arte da desconversa: refinada, alusiva, muitas vezes maldesa ¢ fempre iresistivel, Ninguém escaparé a tanta movimentagao © fhumor, mesmo depois de todos esses anos do desaparecimente dos fatos que motivaram aquelas péginas extraordinarias, E seria imprudente concluir pela desimportancia dos eventos fugazes Pingados pelo olhar cortante do cronista, assim como nao se Pode tomé-los somente enquanto escadas para malabatismos ver. bais e hunoristicos, vigosos e cheios de graca apesar dos anos, Recertemente, John Gledson, critico sagaz © bem armado pelo conhecimento de nossa histéria, fez uma leitura alegori dias crénicas publicadas entre 1888 ¢ 1889 na Gazeta de Not. cias.* Trata-se da série conhecida pela expressio inicial de ““Bons diast”, formada por erénicas humoristicas, muitas vezes sarcds- ticas, sempre carregadas de pessimismo e abrigadas no anoni. mato, mas hoje reconhecidamente de Machado, depois do. tr balho de investigacio de Galante de Sousa. Através.delas, Gledson perscruta a aguda conscigncia historica do grande es, (#) Ver John Gledson, Fiegio ¢ Histér Rio de Tanciro, Par e Terra, 1986, cap. 5 trad. de Sénia Coutinho, 59 critor, demonstrando uma vez mais, na linha dos melhores estu- dos machadianos, © profundo interesse do autor pelas quesi6es sociais e politicas de seu tempo. Mas nao se limita a desfazer a velha opiniao sobre a suposta indiferenga de Machado com relacio a contexto hist6rico-social brasileiro, opiniao essa quase sempre contrabaluncada, alids, pela insisténcia na visio univer- salista do homem que teria o esctitor, pairando nas nuvens. Ao contratio, o critico rastreia minuciosamente, com pericia de de- tetive, 08 tragos da posigao machadiana diante de fatos histori- cos decisives como a Aboligo, procurando descobriclos sob & forma obliqua das crénicas, onde © comentério humorfstico dos acontecimentos mitidos do dia-eia parece aludir a uma pers pectiva geral do sentido histérico. Com isto, os pequenos fatos digrios das crénicas adquirem uma ressonancia alegérica que os resgata até certo ponto da pura contingéneia, transformando-os em indices de um processo mais amplo, como se fossem meios de se tatear sobre a verdade histérica Pela leitura de Gledson, fica logo evidente que a cronica constitui um género particularmente propicio 4 anélise macha- diana das efemérides da hist6ria politica. Mas, de seu ponto de vista, o género ganha, ainda dentro da obra machadiana, outta sig- nificag0. Como os romances, a que elas se ligam por varios lados, € provavelmente também como os contos, fazem parte de um projeto literdrio © histérico, mais vasto coerente, que Machado teria concebido, levado pela intengao realista de retratar a ne- tureza e 0 desenvolvimento da sociedade em que vivia. Sio, portant, um elo valioso nas relagdes entre hist6ria e fieg8o no Universo machadiano. Por isso a leitura do eritico busca desven- dar a coeréncia que se oculta sob a série de “Bons dias!” feite de cronicas dificeis pelo caréter alusivo e irdnico, mas onde se pode talvez descobrir a atitude de Machado quanto aos fatos decisivos do periodo que elas cobrem: a Aboligio, em 1888, € a formagao do gabinete liberal, em 1889. E realmente da andlise ctitica surge um Machado irénico © muitas vezes agressive para com 0 Ieitor, capaz. de aliar paixio ¢ pessimismo diante dos eventos que espia com olhar inquisitive. Sua atitude mais pro- funda e geral aparece, sob a capa do humor, sempre marcada pelo relativismo cético. Mas a propria postura relati 60 tanciada € obrigada a relativizar-se ao ter de enfrentar @ media a0 da particularidade histérica conereta, quando 0 cronista se debruca com paixao sobre faios diminutos, querendo compreen der os rumos Iatentes da hist6ria brasileira. Assim, por exem- plo, quando Machado, atento a0 cariter relativo da Aboligdo, retrata em tom de farsa (lembrando Martins Pena) a situagao do negro liberto, que saa do sistema opressivo e degradante da escravatura para servir, por seldrios miserdveis, ao mercado de trabalho livre, a nova cara da mesma opressio, F que a verve cOmica do cronista permitia representar no pormenor, 2 pri- meira visa insignificante, de forma obliqua e dissimulada, como ‘quem falasse de outra coisa, 0 caso exemplar. No entanto, por este trangparecia, com toda a intensidade, a manutengao da vio éncia inerente ao sistema de dominagio da velha oligarqu fazendo de tudo para se adaptar as novas mudangas_histérieas que trazim, com © avango do capitalismo ¢ a acentuacio da ependéncia’ ao sistema internacional, a Repiblica © 9s tempos modernos. A anilise de Gledson nio ilumina apenas 0 largo aprovei- tamento que Machado fez da HistGria do Brasil na tessitura de suas crOnicas. Por essa mesma via, sugere também a intima rela- 40 dessa forma jornalistica com 0 romance machadiano (no caso de “Bons dias!”, precisamente com Quincas Borba ¢ Esad ¢ Jacd). Neste sentido € que destaca a atitude do cronista, cuja postura

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