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Queria ter mãos ausentes por alguns instantes. Um dia ou dois, no máximo. Não
mais do que isso. Não quero perder para sempre o meu ponto de contato com o
mundo nem a minha possibilidade de criar diálogos com o outro, mas gostaria de
poder desencaixá-las vez ou outra. E deixá-las em stand-by na superfície de um
móvel esquecido em algum canto. E achá-las — perdidas — no fundo de alguma
gaveta quando o desejo de me expressar estiver restabelecido. Seria uma forma
de aliviar os pensamentos. Uma maneira de parar de pensar, literalmente. Trago
toda essa angústia nos meus traços.
até o poeta
reviver
esse
oco
?
São horríveis, mas são minhas. Se elas tivessem outro corpo, outro dono, talvez
fossem mais bonitas. Mas são minhas. Ninguém além de mim pode dialogar com
elas. Não posso emprestar minhas mãos ao meu vizinho para chamar o elevador,
por exemplo. Seria heresia enviar minhas mãos para o papa e abençoar a
humanidade — sozinho — da praça São Pedro. Minhas mãos não poderiam
substituir os dedos de Nina Simone. Minhas mãos nunca tocariam piano. Pianistas
têm mãos bonitas; poetas, não… Don’t let me be misunderstood.
Tan-tan-tan-tan!
Uma vez escrevi poeta não se cala, silencia as mãos. Ilustrei este verso num
guardanapo. Quando quero conversar comigo, o papel frágil é o primeiro
destinatário dos meus desassossegos. É meu divã, meu lugar de escuta. Uma
poltrona flexível, pequena, que se encaixa perfeitamente nas mãos. É onde quebro
a timidez. O recolhimento do artista não está na sua fala espaçada, na sua pouca
interação verbal ou na sua postura cabisbaixa. Tudo está em suas mãos. Quando
ele cerra os punhos, ele encerra qualquer possibilidade de expressão. É sua forma
de calar a boca. As mãos são a garganta dos poetas.
Quando meu avô morreu, eu cerrei tanto, mas tanto os meus punhos que tive a
sensação de quebrar todos os ossinhos dos meus dedos. Minhas mãos
renasceram para dentro. Como se fossem procurar as palavras mais difíceis de
pronunciar. Não existe um vocabulário dócil para explicar ou, ao menos, tentar
entender a morte de um avô. Seria preciso inventar uma nova linguagem. Às
vezes, penso ser fluente em saudade.
(volta,
vô,
volta!)
A.
(((fim)))