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Mãos silenciadas

Queria ter mãos ausentes por alguns instantes. Um dia ou dois, no máximo. Não
mais do que isso. Não quero perder para sempre o meu ponto de contato com o
mundo nem a minha possibilidade de criar diálogos com o outro, mas gostaria de
poder desencaixá-las vez ou outra. E deixá-las em stand-by na superfície de um
móvel esquecido em algum canto. E achá-las — perdidas — no fundo de alguma
gaveta quando o desejo de me expressar estiver restabelecido. Seria uma forma
de aliviar os pensamentos. Uma maneira de parar de pensar, literalmente. Trago
toda essa angústia nos meus traços. 

Agora me vem a lembrança de brincar com lego. Imagino meu corpo feito de


encaixe e desencaixe. Eu me monto. Eu me desmonto. Eu me ergo. Eu me
desmorono. Sou leigo sobre o que sou ou posso me tornar. E se eu enfiasse o
braço esquerdo na mão direita… Será que eu escreveria breves palíndromos

até o poeta

reviver

esse

oco
?

E se eu pusesse a mão esquerda no braço direito… Será que eu desenharia um


firmamento torto? Tudo anda tão de cabeça para baixo há algum tempo. Talvez
por isso eu me sinta tonto por ainda acreditar que é possível endireitá-lo.

São horríveis, mas são minhas. Se elas tivessem outro corpo, outro dono, talvez
fossem mais bonitas. Mas são minhas. Ninguém além de mim pode dialogar com
elas. Não posso emprestar minhas mãos ao meu vizinho para chamar o elevador,
por exemplo. Seria heresia enviar minhas mãos para o papa e abençoar a
humanidade — sozinho — da praça São Pedro. Minhas mãos não poderiam
substituir os dedos de Nina Simone. Minhas mãos nunca tocariam piano. Pianistas
têm mãos bonitas; poetas, não… Don’t let me be misunderstood.

Se eu pegasse emprestadas as mãos de Drummond, saberia eu transcrever os


sentimentos do mundo? Se eu roubasse as mãos de Tarsila, teria eu encontrado
um outro Abaporu? Não, não, não e não. Mãos sozinhas são inúteis. Elas
precisam da biografia, do complemento de vida do corpo que as acompanha. São
necessários o cérebro, os órgãos, os óculos, a desilusão amorosa, os
acontecimentos. As mãos — sós — não se bastam. Mãos solitárias não criam. Não
sabem se escrevem, se ofendem, se afagam. Elas apenas gesticulam. O gesto
pode ser qualquer um. Eu queria ter sido as mãos de Beethoven no exato
momento em que deixaram escapar as primeiras notas da quinta sinfonia. 

Tan-tan-tan-tan!

 
Uma vez escrevi poeta não se cala, silencia as mãos. Ilustrei este verso num
guardanapo. Quando quero conversar comigo, o papel frágil é o primeiro
destinatário dos meus desassossegos. É meu divã, meu lugar de escuta. Uma
poltrona flexível, pequena, que se encaixa perfeitamente nas mãos. É onde quebro
a timidez. O recolhimento do artista não está na sua fala espaçada, na sua pouca
interação verbal ou na sua postura cabisbaixa. Tudo está em suas mãos. Quando
ele cerra os punhos, ele encerra qualquer possibilidade de expressão. É sua forma
de calar a boca. As mãos são a garganta dos poetas.

Quando meu avô morreu, eu cerrei tanto, mas tanto os meus punhos que tive a
sensação de quebrar todos os ossinhos dos meus dedos. Minhas mãos
renasceram para dentro. Como se fossem procurar as palavras mais difíceis de
pronunciar. Não existe um vocabulário dócil para explicar ou, ao menos, tentar
entender a morte de um avô. Seria preciso inventar uma nova linguagem. Às
vezes, penso ser fluente em saudade. 

(volta, 

vô,

volta!)

Você não voltou.

Só deus sabe o quanto eu senti vontade de socar a cara de Deus. Ele me


perdoaria? Eu me perdoaria? Nesse dia eu chorei, mas as lágrimas não saíram.
Elas ainda estão contidas nesses punhos fechados. Se eu abrir minhas mãos, o
mundo inteirinho se 

A.

(((fim)))

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