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ConslhoEtril ‘Alex Pio - UERGS Alvaro Nunes aragera~ UTP ‘Cala Rodrigues = PUCR) iro Marconds Fito — USP une Fea Gutielnd~ PUCRS Ea de As Carvel PUG SP rick Felino = UERI |. Roberto Whitaker Peateado~ SPM Toso Frei bo - UFR} Jaremir Machado da Svs ~ PUCRS Marcelo bin de Lina - UFRGS Masia mamas Vaso de Lopes - USP ‘Michel Maso Pars ‘Muniz Soré~ UFR] Pipe oon ~ Montpelier I Perle Quins ~ Grenoble Renato nine Ribeiro USP Rose de Nelo Rocha ESPN Sidra Mara Coraas~ UFRGS Sara Vila Rodrigues - UFRGS ‘ani Mara Gall ons - UFROS "iene Molina Neto -UFRGS NIETZSCHE PSICOLOGO: ACLINICA A LUZ DA FILOSOFIA TRAGICA, Oncaseean0n ‘Simone Mainieri Paulon Osa, 2088 Pre fin Dai Fern do iho Dada neo eCastopa ma aio (cp) ‘ibe ees Dens Mar Ande Sora CRB 10960 ‘esac Pade, hot Akpebana 4 cheer sn a he ann “Todos ot dros dena igo reservation 3 dora Mersional Lda [Av Osaldo Arana, 40 11 Cpe 90035190 Porto Alegre-RS ‘ot (0s 311-4082 Fax (51) 2264-4198 ww weoraslina contr smi sina edorslinacom be (ubro 2018) rss No BeasasPauen Be SUMARIO _Apresentago da coletines Scat Manns Pavon Preticio [Bouton Bezenea Joxion Nietzsche psicélogo Sobre side, doengae ressentimento Oswitbo Giacota Junin Nietesche © repetigfo: fentre a necessidade ea contingéncia Manso Furia Avulgaridade eo devirnobre da critica em Nitasche Dante Duraa Trooane Psicologia, clénca ¢ moral: uma reflexto nletzrcheans sobre a “vontade de verdade” na Psicologia Rave Kasse - © corpo: a grande razdo Crise Cixno ne Aza. Nietasehe ea ligice da suspeta rue Gaasatie. PIseNre, 29 9° n 31 un Preficio Bours Bezeaa Jeon "Nads mais na contramdo do cenério atual no campo dos saberes e pritiea psi do que uma discussto sobre os fundamen- tse @ horizonte da clinics com hase nas ideas de Nietzsche. E ‘exatamente por essa razo, para qualquer um que deseje interro ‘gar os impasses edesafiosfundamentais das construgseste6ricas « das priticas clinicas contemporineas,o livro que o letor tem ‘em mis neste momento € mais do que pertinente, é necessrio. As transformagbes pelasquais o campo da clinica tem pas- sado nas iltimas décadas sio visiveis, poucos discordario: pro- liferagio crescente de diagnésticos que semeiam patologias em experigncias inerentes& vida cotidiana; recurso eada vez maior ‘uma gramatica de nomeagio do mal-estar que tende a desereve -loem termos de desvio (que demanda regulacto), em detrimen- to da experiéncia de conflito ov enigma existencial (que exige entendimento ou ressignificago); uso crescente de reorientago ccomporiamental ou reajuste neuroguimico como estratépias te- ‘apeuticas;impregnagio, no imaginéro social, de uma ideologia cientifcista que faz das “evidéncias” empiricas o padrio-ouro de avaliagio de procedimentos clinicos; desprestigo de abordagens fenomenolégicas, psicodindmics ou socioculturais na elucida- 0 de procestos causadores de pathos; transformagdo da sade «em otimizasio do desempenho fisico e gestdo bem-sucedida de fngdes mentais, ¢ assim por diane, (© vetores dessas transformagbes so bastante conhecidos cede natureza bastante diverse, Dentre eles esto 0 surgimento da biologia como ciéneia do homem total, estimulando a inclinagio a conceder @ abordagens reducionistas um privilégio epistémico ‘na elucidagio dos fendmenos humanos; « emergéncia da indis- Iria e do mercado da sade, com a consolidagio da psicofarmaco- logia como um dos setores mais poderosos; o ocaso da cultura da intimidade psicoldgica eda intrioridade reflexiva, modificando processos de subjetivagio e construgio identitiria;expansdo do imaginirio do risco e da concomitante adesto a ideia de regula- ‘0 biotecnol6gica da vida; a fetichizaydo na cultura dos ideais de autonomia e saide © sua transformagio em imperativo inal- ‘eangvel de gozo pleno permanente. fil, diamte desse quadro, adotar uma perspectiva de anilise que ressalte seus efeitos politica e eticamente negativos: tum processo acelerado de medicalizaglo da existéncia, a hegemonia crescente de priticas normalizadoras e corretivas, & proliferagio de identidades socias caleadas em elassificagées Psiguidtricas, a emergéncia de uma neurocultura que, agora lastreada em nogdes de plasticidade entendida de modo redativo ‘como flexibilidade em frente a injungGes, renova os caminhos de submiss2o ideolégica dos individuos, e assim por diante, [No entanto, uma reflexdio que pretenda ir além da eriti- ca fii, e queira fugir tanto do colorido saudosista em relago 20 passado quanto de visdes apocalipticas em relago ao futuro, precisa dar dois passos iniciais. Primeito, reconhecer que toda teansformagio histérica acarreta efeitos complexos, perdas pre- visiveis e ganhos inesperados. Além disso, que & necessério um esforgo para discermir com clareza uns e outros ~ a exacerbada propaigagto da autonomia individual como valor principal nas culturas ocidentais & um exemplo interessante, Esse processo a0 ‘mesmo tempo tem papel central na transformago da depressio «em sintoma fundamental de nosse Epoca (a depressio como ex- perigncia de insuficiéncia ou impoténcia diante das expectativas de fuigtio maxima de uma existéncia auténoma e bem-sucedida) «ese transformou em peya-chave para a emergéncia de fendmenos sociais que se voltam contra a fetichizagao desse valor. Esse é 0 caso do movimento das deficigncias (disabilities), que lasteou seu campo inicial de agdo com base na premissa da avtonomia plena como trago humano universal (somente limitado por cons- trangimentos de ordem social), para em seguida reorientar seu horizonte teérico e pritico, apostando firmemente na defesa da diversidade de formas de vida humana ~ 0 que implica neces- sariamente aceitar a existéncia de diferentes niveis ¢ graus de aulonomia de individuos (algo que se manifesta de mancira per- suasiva no caso de deficitncias de ordem cognitiva). (0 segundo passo é procuar ir um pouco mais adiante ¢ entender o pano de fundo que sustenta o quadro no qual todos cesses processos tém lugar. Por que somos hoje to permes- veis a adogto de priticas de regulagio tecnolégica do nosso bbem-estar? Por que o discurso cientifico (ou melhor, que se apresenta como cientifico) detém esse privilégio crescente em relaglo a outras formas de saber sobre a vida, sobre n6s ‘mesmos, e 0 mundo que habitamos? Por gue essa modalida- de especifica de produgio de conhecimento se transformou ‘a tiniea que parece ter garantido 0 estatuto de produtora de vverdades acerca da existéncia humana? Por outro lado, 0 que permite comprecnder, por exemplo, que num contexta s6cio -historico usualmente caracterizado pelo desprestigio da ago politica, pela imposigo de uma normalidade institucionali- zada e pela patologizagio das minimas diferengas emerjam ‘com tanta forea novas formas de afirmagdo politica do valor da diversidade? O que torna possivel a coexisténcia de mo- dos padronizados de existéncia ao lado de tantos movimentos sacudindo as fronteiras tradicionais entre normalidade, dife- renga ¢ patologia, entre natural e artificial? Se vivemos um ‘momento de domesticagio generalizada da imaginaglo erii- «a, como entender o surgimento de atores coletivos antes invi- siveis e que hoje atraem nosso olhar para a poténcia normativa ‘presente em modalidades inéditas,insolitas ou atipicas da ex- periéncia humana? ‘Questées como essas so fundamentais para que possamos: nos sitar de uum modo efetivamente eriico diante dos impas- ses e desafios das priticas elinicas contemporineas. Em outras palavras, se quisermos sair do plano da denéincia ou do lamen- to em relagto a eles e se desejarmos abc perspectivas de a¢d0 inovadora, & preciso nfo spenas enxergar o que se encontra na superficie dos problemas que atingem o campo da clinica hoje, mas adentrar 0 terreno que subjaz a eles e explorar suas ralzes, procurando entender como elas se entranham em nosso modo ‘espontineo de pensar, sentir agi. E dessa perspectiva que a contibuiglo deste livro era torno ‘de Nietzsche se toma mais clara, pois as discussBes promovidas pelos autores giram em tomo de perguntas fundamentais como: (O que €e para que serve a ciéncia, ual o seu papel na existéncia humana? Qual o lgar da verdade dentre os valores que norteiam ‘8 agdo humana no mundo? Que papel a psicologia pode exercer no exame critico das priticas cientficas? Eneadeando 0s trtamentos dados a essas € outras ques tWes, encontram-se alguns elementos eruciais do pensamento nietzsehiano, que poderiamos sintetizar em trés pontos: a) a critiea& cincia de sua época, tomada como um projet inac bado, coartado em sua realizaco plena por sua adesio incons- ciente a valores culturais dominantes (fundamentalmente, 20 ideal ascético © 8 moralidade) e w exortagdo & constituigdo de ‘uma cigneia reformulada; b) a diseussdo da psicologia como peea-chave nessa reformulagdo por sua capacidade de reve lar, de trazer & tona os valores inscritos em toda ago humana (incluida ai a ciéncia); ©) a adogao do perspectivismo como estratégin epistemologica fundamental. Sobre esses pontos valeria a pena trazer um ou dois comentirios. Para compreender otratamento que Nietzsche dé a cién- cia e a seu papel na existéncia humana ¢ preciso atentar para a ‘maneira peculiar com que ele aborda o tema. Nietzsche € co- hecido por seus ésperos ataques & ciéneia, ou melhor, o Iu ‘garde destague e primazia quase absolutos que a cigncia ocu- ‘pana sociedade moderna. Como cle diz em A Gala Ciencia, a interpretaglo cientfica do mundo e da vida pode ser wma das interpretagdes mais estipidas produzidas pela mente humana, pois veiculadora de preconceitos e produtora do maior de to- dos os males humanos, 0 niilisme. Por outro lado, ao tratar de psicologia, ele a considera uma cifncia fundamental — nas suas palavras,“arainha das eiéncias”. Como se pode entender essa aparente contradigdo entre uma posigto detratorae outra Jaudatria em relagdo a ciéncia? E por que a psicologia seria, 1a seus olhos, a rainha das cigncias? [Em primeiro lugar, € preciso lembrar que Nietrsche usa ‘ termo “cigncia” em duas aceppbes distintas: quando adota uma attude eritca, ele se refere& cigncia corrente em seu tempo, & cincia entendida como um projeto de decifragio objetivista © quantitaivista do mundo que considera que a tinea interpreta- ‘lo correta do mundo 6 aquela capaz de “conta, calcula, pesar, ver, dominar, ¢ nada mais”. Para ele, esse & um projeto falido porque “um mundo essenciaimente mecanistico seria um mun- do essencialmente sem sentido”, Mas nem sempre a posigao de [Nietrsche em relago a citncia ¢ tio cide. Afinal, ele descreve a si mesmo ema lém do Bem e do Mal como “um homem cient 0", © em varias ocasides se refere & cincia que ele vé como um objetivo a ser aleaneado — uma cigncia renovada, transformada, despida de seus vicios e reformulada em termos dos valores que organizam sua prtica. E nessa transformagdo que ele enxerga uum papel erucial para a psicologia ‘Desse modo, sé verdade que Nietzsche ergue uma critica feroz is pretensbes da cigncia de sua época, que visa ilegitima- ‘mente um lugar privilegiado no mundo humano, &verdade tam- ‘bém que feequentemente se refer &ciéncia como uma espécie de projeto desviado de seu rumo, & espera de uma “terapeutica” propiciada pela psicologia que a Ievaria sua plenarealizago. ‘© eixo principal de sua andlise da cincia esti na critica 00 ‘rvilégio absoluto concedide 20 valor da verdade, ou mais preci ‘samen, ao privilégio eoncedido ao esforgo de buscar a verdade a too custo, evidénca maior do “elastin”, vinculado& mora dade, queacootanina equ eleva no apenas como uma isto, ‘nas como algo host ao laescimento de vida em suas mihiplas expresses Por que host vid? Porque a busca da verdad a quale «quer pepo idea de que nada é mais necessrio e importante que 4 verdade (Sendo to o mas secdro), se ope consatagzo do «que a vida implica essencialmente deriva, equivoco, engano, ape enc, tubulcia, neato, inceteza, eo ~que“a vida", como Aizia Clarice Lispecto,"ultapass too entendimento™ ‘Ao afar, portant, o valor de verdade como aboluto en ‘elagio aos demas, a cignia acaba pornosarrastar sub-repticimen- te para um mundo diferente daguele que habitamos, um mundo asedtico depurado das itensidades david. Ao privilegia a con- templagio do mundo em detriment da ago nee, aciénca ten- deria anos trmarexistencilmenteimpotentse nilsticamente incapazes de afirmar outos valores que nfo aguees que somos levados a aderi. Por essa azo & to necesira, para Netsche, a ctitca& ciéneia, Nao para negé-l ou desta, mas para re constui-la com base numa comprecasio mas elara de seus fun- damentos e de seu alcance ~ exatamente a contribuigdo que ele enxergava que a psicologia poder he oferecer F preciso lembrar que alm da critica ao privilégio ab- soluto concedido ao valor de verdade por parte da ciénc Nietzsche éesenvolve uma outa linha de contest cia de sua época, que se dirige nko & adesto incondicional & verdade, mas 4 dificuldade de a cigncia efetivamentealcan- ¢araguilo que ela mesma designa como verdade. Isso porque, Segundo ele, a cincia,longe de ser um empreendimentora- cionaldesinteressado que buscaiasimplesmenteespethar na mente arealidade do mundo, é de ato, uma atividede atraves- sada inevitavelmente por intresses (dos quis éinconsciente) ue norteiam o modo como constr e configura suas imagens di realidade. A cincia é fundada em premissas metafisicas acerca do que constitu: a reaidade que ela explora, produz cconhecimento nao pelo desvelamento de uma realidade supos- tamente existente antes da investigagdo, pelo polimento pro- _gressivo do espelho da natureza (para usar a expressto rortya- nna), mas por meio de aproximagies metaféricas e construgdes muitas vezes extraidas de outros campos (como a ideia de “leis naturais”), Esses procedimentos sio inevitiveis ¢ tteis ‘para muitos propésitos, mas € preciso recordar que a investi- ago cientfica se volta para a descrigio e o conhecimento de {quantidades, sendo incapaz de apreencler qualidades — € esse E que € o cere de toda experiéncia de mundo. Por conta de todas essas criticas, Nietzsche & frequentemente interpretado ‘como se posicionando de forma radical contra a cigncia e sua busca da verdade. Mas ele deixa clara sua aposta numa eiéncia refundada e aponta o papel decisive desempenhado pela psi- cologia nessa aposta. (0 que exatamente Nietsche entende por essa psivologia? A psicologia explica nosso comporiamento evidenciando as razbes elas quais agimos como agimos, ao analisr os valores subjacentes ‘04 inseritos em nossa ago. Nessa defnicio se encontra um ponto ‘central de toda a interpreiagio nitzschiana do humano: para ee, toda e qualquer aividade,sejateérica ou pita, um pensamento ‘90 uma ago, implica valorapko, aqui entendida num sentido muito ‘mais amplo do que aatibuigao consciente de um valor positive ou negativo a qualquer fato ou expergncia, ou a simples adesto a um valor dado. Vlora significa algo prévio & avaiago, ou valori- zag, Valoar, para além da conscignca, & um aslo da propria vida. Citando uma conhecida frase de corte nitzschiano de Georges Canguilhem, ofilésfo autor do clissico O normale o patolégico, “a vida é posi inconsciente de valor" ‘A psicologia convocada por Nietasche para a renovagao da igncia, portanto, € uma pritica cujo objetivo & 0 revelar, tomar ‘isis, razese valores determinantes das agbes e dos abjtivos dos humanos ~ razies e valores normalmente mantidos & ms gem da nossa consciéncia, Esses determinantes, no entanto, nfo ‘ames conta a vida, Nese estado, dfendemo-os com amar- ‘gua conta todo pessimismo, para que ele no nos aparega como fonsequéncia de norso estado, e nos humilhe com aos venci- os. Do mesmo modo, nunca € maior do que agora 0 estimulo para exerer a jstiga do juizo, pois agora ¢ um triunfo sobre ‘se sobre o mais excitinte de todos of estados que tomaria

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