“Se vocé ainda quer ser um estudante sério..
Olavo de Carvalho
Diario do Comércio, 27 de fevereiro de 2006
“A tragédia do estudante sério no Brasil” resultou em tantas cartas, que acho
melhor completar, com algumas dicas baseadas na experiéncia pessoal, as indicagdes
de estudo que dei no final do artigo.
Comego com um exemplo casual.
Outro dia recebi de amigos a cépia de uma mensagem interessantissima,
postada em algum site da internet por uma senhorita, aparentemente culta e
universitdria, que, indecisa entre me admirar e me detestar, exigia uma explicacao
para o fato de eu acertar tantas previsdes ao longo de quase duas décadas, apostando
quase sempre no contrério do que anunciava a opiniao geral dos bem-pensantes. No
entender da remetente, bem como de outros participantes do debate, a hipétese mais
plausivel era a de eu ser um agente da CIA, conectado portanto a uma rede de
informantes secretos espalhados por toda parte.
Guardei a mensagem com 0 carinho historiografico que merece um elogiiente
sinal dos tempos.
Que época mais adoravel, esta, em que 0 sujeito nao é cobrado por seus erros,
mas por seus acertos! Se o normal é errar sempre, para que serviriam entio os milhares
de cientistas sociais, historiadores, jornalistas, economistas e doutores em filosofia
que as universidades, sustentadas pelo trabalho suado de milhdes de contribuintes
que jamais as freqiientaram, despejam anualmente no mercado da tagarelice nacional?
Resposta: nao servem para entender o mundo, mas para transformé-lo, Nao podendo,
porém, conhecé-lo, ja que nao acreditam em verdade objetiva, levam-no sempre num
rumo diferente do que pretendiam, sentindo-se — por isso mesmo, raios! — inocentes
dos resultados monstruosos que produzem e sempre merecedores de um redobrado
crédito de confianga para comegar tudo de novo e de novo e de novo. A revolugio,
afinal, no seria revolucionaria se nao revolucionasse a si mesma e & sua propria
histéria, mudando de identidade apés cada novo crime e cada novo fracasso e nio
tendo satisfagdes a prestar senio a um futuro que, quando chega, jé nao é mais futuro
e nao tem portanto qualquer autoridade para cobré-la do que quer que seja. Tal é,
brutalmente resumida mas nem um pouco deformada, a esséncia da mentalidade que
se pode adquirir em qualquer universidade deste pais e em muitas do exterior.
Equivale a um atestado de impecabilidade congénita, que confere o direito a estupidez
laureada, ao amor-préprio ilimitado e ao crime inocente. Nao espanta que tantos a
desejem, mesmo sabendo que a remuneragao dos oficios universitarios jé nao é 4 essas
coisas. Alids, ganhar abaixo do que desejam reforca ainda o seu sentimento de méritos
incalculveis e sua revolta contra a malvada sociedade capitalista que ndo recompensa
adequadamente as pessoas empenhadas em destrui-la.£ natural que, num ambiente assim formado, o sujeito acertar previsdes
politicas em série deva ser mesmo uma coisa muito esquisita, muito suspeita,
denotando poderes demoniacos ou no minimo algum truque sujo. Entendo mesmo
que, no desespero, alguns apelem até 4 suposicao “CIA”, sem ter em conta que essa
entidade, hd pelo menos quarenta anos, tem se especializado mais é em produzir
informagées erradas.
A hipétese de que exista uma realidade objetiva da vida politica, de que ela
possa ser conhecida, de que o individuo em questo tenha estudado muito com 0
objetivo de conhecéla e de que depois de quatro décadas de esforco ele tenha
conseguido montar um conjunto de critérios cientificos razodveis para fazer previsbes
acertadas dentro de um quadro definido de possibilidades, ah!, isso nao ocorre a
ninguém. £ absurdo demais. £ escandaloso. E repugnante. E impossivel.
E eu Ihes direi no entanto: foi precisamente isso 0 que aconteceu, patetas.
Enquanto vocés enchiam sua cabeca de cocd universitario, tentando menos buscar
conhecimento do que imitar trejeitos verbais para parecer bons meninos no ambiente
ideolégico em torno (v. meu artigo “O imbecil juvenil’), preferi ficar em casa
estudando, por achar que assim faria melhor uso das horas que 0 pessoal uspiano
gastava em condu¢io, papo furado, assembléias, greves, festinhas de embalo e surubas
gerais no CRUSP, totalizando essas varias ocupages aproximadamente noventae oito
por cento da vida académica titil. Preservando minha inteligéncia dessa centrifugagio
mortifera e da influéncia corruptora de orientadores ignorantes, estudei para saber,
para aplacar minhas diividas, sem nenhuma esperanca fiitil de glérias escolares
provincianas. Nao nego que ganhei algo além do puro conhecimento. Ganhei o prazer
de poder chamar os fulanos deburros sem nenhuma intengio insultuosae com estrito
realismo cientifico. Enquanto eles se intoxicavam de Eduardo Galeano, Noam
Chomsky, Foucault, Derrida, e na melhor das hipdteses Nietzsche e Heidegger,
brilhantes professores de confustio mental, coloquei para mim mesmo as questées
fundamentais da filosofia politica ~ que é ao mesmo tempo filosofia da Historia - e
busquei respondé-las com toda a seriedade, cercando-me ainda de toda a ajuda
disponivel em livros de varias épocas, revistas cientificas e contatos pessoais com
estudiosos de varios paises.
Os resultados foram sendo apresentados, aqui ¢ ali, sob a forma de aulas e
apostilas, sem a menor preocupagio de publicé-los em livros. Livros para que? No
Brasil de hoje, quanto mais sério o livro, maior a certeza de que ser totalmente
ignorado exceto pelo circulo de estudiosos que jd o conheciam pela audigio direta do
autor. Numa época em que a literatura é personificada pelo st. Luis Fernando
Verissimo, a filosofia por dona Marilena e a ciéncia politica pelo dr. Emir Sader,
qualquer esforco cientifico mais sério fica um pouco constrangido de se mostrar em
piblico. Voltamos & era da difusio oral. Todo conhecimento efetivo tornow-se
esotérico. O essencial do que aprendi e ensinei sobre a filosofia politica esta nas
gravacdes dos meus cursos dados na PUC do Parana, bem como nas apostilas “Ser
Poder”, “Que é a Psique?” e “O Método nas Ciéncias Humanas”. Quem teve acesso a
esse material ~ que publicarei quando os afazeres jornalisticos me derem um descanso
para poder edité-lo -, sabe que existem meios para descrever objetivamente uma
situagio politico-social qualquer e prever com grande margem de acerto suas
possibilidades de desenvolvimento. £ isso, e nada mais, o mistério por tras das minhas
previsdes. Quanto aos erros alheios, no me cabe explicé-los.Das questdes a que me referi acima, algumas das mais importantes para a
andlise das situagdes politicas eram as seguintes:
1. Qual é a natureza do poder, nao sé na politica mas em todas as relagdes
humanas, e qual a diferenca especifica entre 0 poder politico e as demais formas de
poder?
2. Que é propriamente a “ago” em escala histérica? Em que condigées a
expressio “histéria disto” ou “histéria daquilo” se refere a uma entidade real, capaz de
ac4o continua aolongo do tempo, e quando se refere apenas, metonimicamente, a um
sujeito ideal, sem unidade de acao prépria, como por exemplo quando se fala em
“Historia do Brasil”, ou *histéria da burguesia"? Em suma: quem € 0 sujeito da
Historia?
3- Qual a relacdo entre as “intengdes” subjetivas dos agentes histéricos e os
efeitos reais de suas agdes? Qual a equagio que se forma entre o conhecimento
objetivo dos dados da situagio, as decisées tomadas, a execucdo, os resultados
especificos e sua diluigo num quadro maior onde outros fatores entram em jogo?
Existe uma acio histérica eficiente, na qual os efeitos reproduzam mais ou menos
fielmente as intengdes? Ou, ao contrério, a Historia humana estard sempre condenada
a ser, como dizia Weber, “o conjunto das conseqiiéncias impremeditadas das nossas
ages”?
4.Dando por pressuposto que ninguém pode se colocar fora do quadro comum
da vida humana para observé-lo “de cima”, e que portanto toda observacio é uma
forma de participacao, nao é possivel isolar totalmente observacao e confissio. Qual a
relagio entre autoconhecimento e conhecimento histérico? Em que medida o
conhecimento da histéria pode e deve ser um meio de integracao da consciéncia
pessoal do estudioso, e em que medida esta se reflete na veracidade da descri¢a0
histérica obtida? Em que medida toda histéria é autobiografia e, portanto, toda
descrig&o de uma situagio politica, social e cultural determinada é uma confissio
pessoal?
5. Em que medida, portanto, o estudo das ciéncias humanas é uma pratica
“ascética” de autoconhecimento, e em que medida as disciplinas ascéticas e misticas
desenvolvidas pelas religides tradicionais, bem como as técnicas modernas de
psicoterapia e auto-ajuda, podem desempenhar nesse estudo uma fungao essencial?
6. Como é a psicologia do conhecimento na Histéria e nas ciéncias humanas
em geral? Da percepgio dos dados sensiveis (documentos, monumentos, agdes
observadas) até as sinteses interpretativas gerais, qual o trajeto psicoldgico percorrido
e como dirigi-lo para diminuir a possibilidade de erros?
Os filésofos que mais estudei para encontrar as respostas (e ficam ai como
sugestdes para os interessados) foram Platio, Aristételes, Sto. Agostinho, Sto. Tomés,
S. Boaventura, Duns Scotus, Leibniz, Schelling, Husserl, Scheler, Lavelle, Croce,
Ortega, Zubiri, Marias, Voegelin, Lonergan, 0 nosso Mario Ferreira dos Santos 0
Albert Camus de L’Homme Révolté. Os grandes historiadores da filosofia, como
Gomperz, Ueberweg ¢ Zeller, devem ser lidos com devocao. Outros autoresda area deciéncias humanas que muito me ajudaram foram Ibn Khaldun, Vico, Ranke, Taine,
Huizinga, Weber, Béhm-Bawerk, von Mises, Sorokin, Victor Frankl, Paul Diel, Eugen
Rosenstock-Huessy, Franz Rosenzweig, Lipot Szondi, Maurice Pradines, Alois Dempf,
Max Dvorak, Rudolf Arnheim, Erwin Panofsky, A. D. Sertillanges, Mortimer J. Adler,
Oliveira Martins, Gilberto Freyre e Otto Maria Carpeaux. Apesar de inumeraveis erros
de informagio, a Life of Napoleonde Walter Scott também foi de muito proveito pela
acuidade da sua psicologia histérica. O maior historiador vivo hoje em dia é Modris
Eksteins (sabe 0 que significa “tem de ler”2). Dos poetas e ficcionistas, aqueles que
produziram verdadeiras descrig6es cientificas da condi¢Zo humana, muito titeis nos
meus estudos, foram Séfocles, Dante, Shakespeare, Camées, Cervantes, Goethe,
Dostoivski, Alessandro Manzoni, Pio Baroja, T. S. Eliot, W. B. Yeats, Antonio
Machado, Thomas Mann, Jacob Wasserman, Robert Musil, Hermann Broch,
Heimito von Doderer, Julien Green, Georges Bernanos e Frangois Mauriac. A Biblia
tem de ser relida o tempo todo (nao leia o Evangelho em busca de “religido”: leia como
narrativa de alguma coisa que realmente aconteceu; atengio especial para Mateus 11:1-
6, onde o préprio Jesus ensina o critério para vocé tirar as duividas a respeito d’Ele;
penso nisso o tempo todo). O Corio, os Vedas, o Tao-Te-King e o I-Ching, assim como
os escritos de Confticio, Shankara e Ibn’Arabi, merecem consultas periédicas. Dos
conselhos pessoais que recebi de mestres generosos, a quem incomodei por meio de
cartas, telefonemas e visitas, falarei outro dia.
O importante é vocé nao estudar por estudar, para “adquirir cultura” ou seguir
carreira universitdria, mas para encontrar respostas a questdes determinadas, que
tenham importancia existencial para vocé, para sua formagao de ser humano e nao s6
de estudioso. £ claro que as questdes vao se definindo aos poucos, no curso das leituras
mesmas, mas & medida que isso acontece elas vio definindo melhor o rumo dos
estudos. E é essencial que, na ansia de ler, vocé nao deixe sua acumulagio de
conhecimento ultrapassar o seu nivel de autoconsciéncia, de maturidade, de
responsabilidade pessoal em todos os dominios da vida. Se vocé nio é capaz de tirar
de um livro conseqiiéncias validas parasua orientagio moral no mundo, vocé nao est
pronto para ler esse livro. Nao esquega nunca o conselho de Goethe: “O talento se
aprimora na solidao, o carater na agitagao do mundo.”