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“A tragédia do estudante sério no Brasil” Olavo de Carvalho Diario do Comércio, 12 de fevereiro de 2006 Toda semana, recebo dezenas de cartas deestudantes que, em busca de alguma formago intelectual, encontraram nas universidades que freqiientam apenas propaganda comunista rasteira, porca, subginasiana, Nao sio, como em geral imaginam, vitimas de puras circunstancias politicas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos & inteligéncia humana, que foram se acumulando no mundo, e nao s6 no Brasil, ao longo das tiltimas décadas. Se a primeira metade do século XX trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma devastagio geral como raramente se viu na Historia. A queda foi tio profunda que j4 nao se pode medi-la. Num panorama inteiramente dominado por charlaties caricatos como Noam Chomsky, Richard Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers, Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga, Arnold Toynbee - e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer - ja se tornou invisivel, inalcangével & imaginago dos nossos contemporaneos. Toda comparagao ¢ entre alguma coisa e alguma outra coisa, Nao se pode comparar tudo com nada. Isso nao quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado. Pensadores de grande envergadura - um Eric Voegelin, um Bernard Lonergan, um Xavier Zubiri = sobreviveram & debacle dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até 1985, 0 segundo até 1984, 0 terceiro até 1983. Mas seus ensinamentos sio ainda a posse exclusiva de circulos seletos. Nao entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussdes idiotas como vem acontecendo, gracas & ascensio politica de alguns de seus discipulos, com o infeliz. Leo Strauss. Pois a desgraca se deu justamente na “corrente geral”, © fim da Il Guerra Mundial trouxe uma prodigiosa reorganizago das bases sociais e econémicas da vida intelectual no mundo. Novas instituiges, novas redes de comunicagio, novos mecanismos de estocagem e distribuigio das informagées académicas, novos piblicos e, sobretudo, a ampliagao inaudita do apoio estatal e privado a cultura e a formacao dos grandes organismos internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com 0 descrédito do marxismo soviético e a profunda mutagao interna da militancia esquerdista internacional, a essa altura j4 plenamente imbuida das duas ligées aprendidas da Escola de Frankfurt e de Georg Lukacs (mas também, mais discretamente, de Martin Heidegger): (1) a luta essencial nao era propriamente contra © capitalismo, mas contra “a civilizacio ocidental”; (2) 0 agente principal do processo era a classe dos intelectuais. Nessas condigdes, o crescimento fabuloso dos meios de atuagao veio junto com oesforgo multilateral de apropriagao desses meios por parte de grupos militantes bem pouco interessados em “compreender 0 mundo” mas totalmente devotados a “transformélo”. A redugio drastica da atividade intelectual ao ativismo politico foi a conseqiiéncia desejada e planejada dessa operagio, realizada em escala mundial a partir dos anos 60. Nao que o fenémeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral j4 vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo menos, através das grandes fundagées “nao lucrativas” que descobriram seu poder de orientar e manipular a seu bel-prazer a atividade intelectual, cientifica e educacional mediante a simples selecio ideologicamente orientada dos destinatarios de suas verbas biliondrias. Em 1954, uma comissio de investigagdes do Congreso americano ja havia descoberto que fundagées como Rockefeller, Carnegie e Ford exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituigdes de pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente anti-americano, anticristio e até anticapitalista. (Nao me perguntem pela milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo. A explicagio esté resumida em tas Juuodesanahoorsmans/osasithim hi undecnalhoowtetosichare usp abi). Inevitavelmente, a influéncia exercida por essas organizagées nao consistiu sé em introduzir uma determinada cor politica na produgio cultural, mas em alteré-la e corrompé-la até as raizes, subordinando aos objetivos politicos e publicitarios visados todas as exigéncias de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa interferéncia, fraudes cabeludas como o Relatério Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se a0 meio académico e 4 midia cultural como produtos respeitaveis de uma atividade cientifica normal. A comissio foi alvo de ataques virulentos de todaa grande midia, e seu trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes de consulta sobre a instrumentalizagio politica da cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 - vocés podem comprélo pelo site wwww.bookfinder.com ), Na verdade, sem ele nao se pode compreender nada do que se passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriagao dos meios de aco cultural pelas organizacées militantes e o sacrificio integral da inteligéncia humana no altar da “vontade de poder” simplesmente se globalizaram. Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o progresso do conhecimento e a melhoria da condicao de vida da espécie humana foram assim desperdicados para sustentar a guerra geral da estupidez militante contra a “civilizagio ocidental” que havia gerado esses mesmos recursos. Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que 0 seu peso se fez sentir mais densamente em paises novos do Terceiro Mundo, onde as criagdes das épocas anteriores nio tinham sido assimiladas com muita profundidade e as raizes da civilizagao podiam ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbarie foram talvez mais répidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frageis, vinham dando alguns frutos promissores. A comparacio impossivel entre as duas Epocas, que mencionei acima, é ainda mais impossivel no caso brasileiro. Na década de 50, tinhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Alvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mario Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corgio, Nelson Rodrigues, Lticio Cardoso, Heitor Villa~ Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista nao acaba mais. Hoje, quem representa na midia a imagem da “cultura brasileira’? Paulo Coelho, Luis Fernando Verissimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Beto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristételes. £ o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadéncia, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhagada. E uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavelmente irris6ria. A inteligéncia, ao contrario do dinheiro ou da satide, tem esta peculiaridade: quanto mais vocé a perde, menos da pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu 0 pouco que entendia e ja nao tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam, que me levam ao éxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males econdmicos, politicos ¢ administrativos do Brasil, sem ligar a minima para a destruigao da cultura, como se a inteligéncia pratica subsistisse incdlume ao emburrecimento geral, como se inteligéncia fosse um adorno a seracrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como se a inépcia absoluta no fosse de maneira alguma um obstéculo conquista da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe € 0 sujeito ja nem sentir saudade da consciéncia que teve um dia. Mas nfo, a inteligéncia nacional nao acabou no dia em que os nossos estudantes tiraram o tiltimo lugar numa avaliag3o entre alunos do curso secundario de 32 paises: acabou logo em seguida, quando 0 ministro da Educacio disse que 0 resultado poderia ter sido pior. Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo. Na eleigo seguinte, o pafs colocou na presidéncia um carreirista enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado um simbolo da autenticidade popular. A imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida, quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas esquerdas como inteligéncia luminosa, sugeriu o nome do entio presidencidvel para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o tiltimo lugar num teste chegava a ser meritério, Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse s6 da situagao politica, haveria esperanga de sané-lo por meio da ago politica. Mas a agio politica é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas esto, nenhuma ago politica inteligente, ao menos em escala federal, € previsivel nas préximas duas ou trés geragdes. Nas préximas eleigdes, por exemplo, o pais terd de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no ventre da USP, a mie da esterilidade nacional, ou como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a “p... que no pariu”. Sim, a politica brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP, com o Partido Comunista de um lado, a Ago Popular de outro, num torneio de arrogincia, presungao, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada eestupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao poder, e ainda nao parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, vidos de mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruicdo est longe de haver-se completado. Da politica nada de bom se pode esperar num prazo humanamente suportével. Uma aco cultural de grande escala - a fundago de uma auténtica instituigao de ensino superior, para contrabalancar a desgraca uspiana - também nao é nada provavel, dada a omissio das chamadas “elites’, sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um pouco os pés da canalha petista ou apegar-se a0 primeiro zésserra que apareca. Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faga dela 0 objetivo de sua existéncia, restam dois caminhos: o exilio, que pode levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), ¢ 0 isolamento, que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que aquele em que se encontram. ‘A tinica solugio vidvel, que enxergo, é a formagio de pequenos grupos solidarios, firmemente decididos a obter uma formagio intelectual sdlida, de inicio sem nenhum reconhecimento oficial ou académico, mas forgando mais tarde a obtengio desse reconhecimento mediante prova de superioridade acachapante. Jando leciono no Brasil, mas a experiéncia mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, j4 esta pronto para dar de dez a zero, nao digo em alunos, mas em professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, 0 que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia. O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do estudo académico, dominar o trivium , aprender a escrever lendo ¢ imitando os classicos de trés idiomas pelo menos, estudar muito Aristételes, muito Platio, muito Toméds de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto possivel o legado da universidade alemi e austriaca da primeira metade do século XX, conhecer muito bem a histéria comparada de duas ou trés civilizagées, absorver os classicos da teologia e da mistica de pelo menos trés religides, e entio, s6 entio, ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime vocé ainda se impressionar com esses trés, é porque € burro mesmo e eu nada posso fazer por vocé. Mas o ambiente universitario brasileiro de hoje é tio baixo, to torpe, que sd de a gente apresentar essa lista - 0 minimo requerido para uma formagio séria de filésofo ou erudito -, o pessoal ja arregala os olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro nao lé nada, s6 resumo e orelha, além de Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que nao valem o resumo de uma orelha. E tudo farsa, chanchada, pose. Nao ha quem no saiba disso e nao ha quem nio acabe se acomodando a essa situacao como se fosse natural ¢ inevitavel. A abjeco intelectual deste pais é sem fim.

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