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Filosofia da Educação na

América Latina:
aproximações,
perspectivas e diálogos

ORGANIZADORES:

ANTÔNIO JOAQUIM SEVERINO


OFÉLIA MARIA MARCONDES

1ª edição

São Paulo, 2019


©2019 por Antônio Joaquim Severino e Ofélia Maria Marcondes
Todos os direitos desta edição são reservados à Cartago Editorial.
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São Paulo - SP CEP: 04617 - 014
Tel.: (11) 4237 6495
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Francisca Eleodora Santos Severino - Uninove
Geraldo Balduino Horn - Ufpr
José Eustáquio Romão - Uninove
Manuel Oriosvaldo de Moura - Feusp
Nereide Saviani – Fund. M. Grabois
Pedro Goergen - Unicamp
Roseli Fischman - Umesp
Samuel Mendonça – Puccamp
Valdir Heitor Barzotto - Feusp

Os textos dos entrevistados são de inteira responsabilidade dos autores que possuem
autorização expressa para publicação.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Filosofia da Educação na América Latina: aproximações, perspectivas e


diálogos / Antônio Joaquim Severino, Ofélia Maria Marcondes, (org.). -- 1. ed.
- São Paulo: Cartago Editorial, 2019.
ISBN: 000-00-0000-000-0
1. Educação - Filosofia 2. Ensino superior 3. Ética profissional 4. Filosofia -
Estudo e ensino 5. Professores - Formação profissional I. Título.
17-07137 CDD-370.71

Índices para catálogo sistemático:


1. Escola Municipal de Música de São Paulo: História 780.9
Sumário

7 Apresentação
18 Desafios para a Filosofia da Educação na America Latina
ANTONIO JOAQUIM SEVERINO

41 La filosofía de la educación en México: una perspectiva


RENATO HUARTE CUÉLLAR

70 La educación agropecuaria superior en Cuba: Tensiones


de concepciones filosóficas de ciencia y tecnología
ADOLFO RAMOS LAMAR Y
EDUARDO FREYRE

86 José Martí e a educação na nuestra América


EUGÊNIO REZENDE DE CARVALHO

112 Rodó y la educación


MAURICIO LANGON

139 Enrique Dussel e a pedagógica na filosofia da libertação


DANIEL PANSARELLI

154 Anibal Ponce no contexto da Filosofia da Educação


CLAUDIO DOMINGOS FERNANDES

169 Há uma filosofia latino-americana? A questão posta por


Salazar Bondy
OFÉLIA MARIA MARCONDES

190 “Filosofia” de povos ancestrais latino-americanos


J.E. ROMÃO
217 Decolonialidade e emancipação: o caráter interpelativo e
dialógico do pensamento andino
MANUEL TAVARES
SANDRA GOMES

246 Posições decolonizantes no pensamento filosófico-educa-


cional no Brasil
ANTÔNIO JOAQUIM SEVERINO
NATATCHA PRISCILLA ROMÃO

293 Sobre os autores


APRESENTAÇÃO

Apresentação

T
emos a imensa satisfação em trazer a público o presente vo-
lume com os primeiros resultados do trabalho de investigação
sobre a filosofia da educação na América Latina, trabalho que
vem sendo desenvolvido pelo GRUPEFE [Grupo de Pesquisa e Estudos
em Filosofia da Educação], junto à Linha de Pesquisa Educação, Filo-
sofia e Formação Humana [LIPEFH], que integra o Programa de Pós-
-Graduação em Educação, da Universidade Nove de Julho [UNINOVE],
de São Paulo. Com este volume, inaugura-se uma ambiciosa proposta
editorial que envolve a iniciativa de um trabalho conjunto e de inter-
câmbio entre vários grupos de estudo e pesquisa sobre a expressão
da Filosofia da Educação no contexto latino-americano: o já referido
GRUPEFE [Grupo de Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação], que
atua junto ao PPGE da Uninove, de São Paulo, o NESEF/PR [Nucleo de 7
Ensino de Filosofia], vinculado à Faculdade de Educação da UFPR, em
Curitiba; o NESEF/UNIPLAC, que integra o PPGE da Universidade do
Planalto Catarinense, de Lages-SC, bem como o Núcleo de Estudos da
Interculturalidade e pos-colonialismo da Unisinos, de São Leopoldo, e
do GPEI [Grupo de Pesquisa em Educação Intercultural] da Unilassa-
le, de Canoas, no Rio Grande do Sul. Todos estes grupos se irmanam
numa preocupação comum com a problemática da identidade do pen-
sar filosófico numa perspectiva de superação das consequências das
diferentes formas de colonização, particularmente naquelas ocorridas
nos territórios latino-americanos.

Sabe-se pouco, em nosso contexto brasileiro, sobre como a


educação tem sido pensada filosoficamente nos países latino-ameri-
canos e sobre a produção em Filosofia da Educação que disto decor-
re. Daí o objetivo desta proposta ser uma busca de aproximação das
expressões a reflexão filosófica sobre educação na América Latina,
sob as perspectivas ética, política, a estética, epistêmica e ontológica
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

e seus vínculos com as circunstâncias locais e regionais no enfrenta-


mento das experiências peculiares das diferentes sociedades.

Assim, este projeto pretende ser um diálogo e um intercâm-


bio entre educadores, pesquisadores, estudiosos dos diferentes paí-
ses e sobre os diferentes países que formam a América Latina e que
se dedicam à tarefa científico-crítica de conhecer o fenômeno edu-
cacional, seu acompanhamento, sua análise e sua interpretação para
melhor abordar suas propostas educacionais. É uma tentativa de
voltar o olhar brasileiro para o Pacífico, com vistas a estabelecer uma
frente comum para o embate com os graves desafios que se põem
para toda a comunidade latino-americana.

Prevê-se então, em termos editoriais, a criação duas séries


abertas, uma diretamente voltada para a identificação das expres-
sões da Filosofia da Educação nos diversos espaços geo-culturais da
América Latina, enquanto a outra voltada para a discussão da proble-
8 mática mais específica da decolonialidade do pensamento filosófico
latino-americano. Parte-se da convicção de que sem um redirecio-
namento onto-epistemológico profundo não haverá também como
reconstruir, no plano teórico, a filosofia da educação, nem como im-
plementar, no plano prático, uma educaçãoo emancipadora.

A primeira Série, designada Ensaios de Filosofia da Educa-


ção visa abrigar e divulgar os resultados de um diálogo que se busca
implementar entre filosofia e educação na América Latina como fru-
to de reflexões sistemáticas não hegemônicas sobre a prática históri-
ca humana e seus processos formativos. Espera-se com esse diálogo
intercultural identificar, desvelar, explicitar, esclarecer, compreen-
der, analisar e debater os aspectos epistemológicos, axiológicos e on-
tológicos das manifestações sócio-históricas das diferentes socieda-
des latino-americanas no sentido da construção de um quadro geral
sobre o pensamento filosófico-educacional numa perspectiva etno-
filosófica. Mas não se visa somente o conhecimento recíproco pela
APRESENTAÇÃO

divulgação das ideias que estão sendo desenvolvidas nos vários con-
textos mas também incentivar a busca, o avanço e o cultivo de novas
propostas para o compromisso emancipatório da educação no conti-
nente. Nesta Série, serão três linhas de desenvolvimento da temáti-
ca: A busca da identidade do fazer filosófico-educacional na América
Latina; o debate sobre a contribuição da Filosofia como recurso con-
ceitual para a compreensão do fazer educativo, nessas sociedades;
as temáticas predominantes no pensamento filosófico-educacional
de autores latino-americanos. Para tanto, o espaço de cada volume
será dividido em três núcleos temáticos: a expressão da Filosofia da
Educação nos países; o pensamento filosófico-educacional de auto-
res representativos; temas que se situam na interface da filosofia da
educação, tais como interculturalidade, pós-colonialidade, pós-mo-
dernidade e razão latino-americana e outros com a perspectiva geral
do pensamento filosófico-educacional.

Já a segunda Série, designada Ensaios de Epistemologia De-


colonial, buscar-se-á agregar contribuições ao debate sobre o poten- 9
cial emancipatório de um pensamento contra-hegemônico que se
gesta e vem emergindo no continente. A Série tem a intenção de
ser um diálogo e um intercâmbio entre pesquisadores, estudiosos
das manifestações filosóficas nos diferentes contextos da cultura
latino-americana, que vem se dedicando à tarefa epistemológica de
conhecer o fenômeno cultural dessa região, e que vem fazendo seu
acompanhamento, sua análise e sua interpretação mediante uma
hermenêutica crítica, baseada numa perspectiva etnoepistêmica e
descolonizante do pensamento. Quer então apresentar reflexões so-
bre a identidade própria do pensamento na cultura da América Lati-
na em diálogo com os debates sobre interculturalidade, descoloniali-
dade, pós-modernidade e razão latino-americana visando apreender
suas implicações práticas particularmente nos âmbitos da cultura,
em suas diversas esferas de manifestação: política, economia, direi-
to, arte, educação etc. Está em pauta contribuir para a desconstrução
epistemológica dos fundamentos que mantêm ainda atuante o poder
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

colonizador, questionando particularmente a hegemonia cultural do


ocidente europeu e norte-americano bem como para anunciar expe-
riências decoloniais e interculturais autóctones que estejam ocorren-
do nas sociedades latino-americanas. Assim, espera-se que os textos
da Série situar-se-ão na esfera dos esforços de prática de um pensa-
mento decolonial que não só se posicione criticamente em relação ao
pensamento colonial, ao eurocentrismo cultural e epistemológico,
mas que enfatize também as experiências emancipatórias nos diver-
sos campos da atividade humana, que tem mostrado a fecundidade
dessa postura decolonizante para a afirmação da identidade latino-
-americana. Esforço para se implementar práticas de racionalidades
silenciadas pela dominação epistemológica da filosofia do Ocidente
europeu e norte-americano.

Ao inaugurar a Série Ensaios de Filosofia da Educação, o


presente volume pretende ser um primeiro fruto desse trabalho. Foi
composto por integrantes do Grupefe e por alguns colegas de outros
10 países latino-americanos que acolheram nosso convite para partici-
parem do projeto, a quem pedimos para passar aos leitores brasilei-
ros informes e análises sobre a Filosofia da Educação em seus con-
textos. Visa então abrigar e divulgar os resultados de um diálogo que
se busca implementar entre filosofia e educação na América Latina
como resultados de reflexões sistemáticas não hegemônicas sobre a
prática histórica humana e seus processos formativos. Busca-se com
esse diálogo intercultural identificar, desvelar, explicitar, esclare-
cer, compreender, analisar e debater os aspectos epistemológicos,
axiológicos e ontológicos das manifestações sócio-históricas das di-
ferentes sociedades latino-americanas no sentido da construção de
um quadro geral sobre o pensamento filosófico-educacional numa
perspectiva etnofilosófica. São quatro os propósitos da investigação
e da divulgação desse filosofar nesta primeira Série: buscar a identi-
dade do fazer filosófico na América Latina; debater a contribuição da
Filosofia como recurso conceitual para a compreensão do fazer edu-
cativo, nessas sociedades; identificar as temáticas predominantes no
APRESENTAÇÃO

pensamento filosófico-educacional de autores latino-americanos; ca-


racterizar a expressão da Filosofia da Educação na América Latina.

O volume inaugura uma série voltada para estes objetivos, es-


perando cobrir todo o espaço geo-cultural do continente. Isso justifica a
estrutura dada a cada volume: ele se comporá de três partes relaciona-
das a três núcleos temáticos: o primeiro núcleo comporta capítulos que
abordam a expressão da Filosofia da Educação nos países latino-ame-
ricanos; o segundo agrega capítulos dedicados a expor o pensamento
filosófico-educacional de autores representativos enquanto o terceiro
abrigará capítulos com debates sobre temas que se situam na interface
da filosofia da educação, tais interculturalidade, pós-colonialidade, pós-
-modernidade e razão latino-americana e outros congêneres.

Assim, na primeira parte do volume, a expressão da Filosofia


da Educação se abre com um capítulo introdutório que versa sobre
os desafios postos para a Filosofia da Educação na América Latina,
de autoria de Antônio Joaquim Severino, membro do Grupefe. No 11
seu ensaio, o autor busca explicitar a perspectiva teórica que preside
toda proposta investigativa do Grupo e das séries editoriais que busca
divulgá-la. Delineia assim uma visão do sentido da Filosofia da Edu-
cação na América Latina como mediadora da compreensão da tarefa
que lhe cabe nesse contexto: realizar-se como etnofilosofia da educa-
ção, contribuindo assim para a decolonialidade do pensamento local
e para uma prática intercultural emancipatória.

Buscando mostrar a presençca da filosofia da educação no


México, Renato Huarte Cuellar, docente e pesquisador da UNAM,
segue dois caminhos: primeiramente, destaca três aspectos comple-
xos que legitimariam poder se falar da prática dessa área filosófica e
depois descreve cinco casos que expressariam o modo como se deu
concretamente essa prática no seio da tradição cultural do país. As-
sinala, assim, o sentido geral da filosofia, sua eventual existência
no contexto mexicano e a assumpção da temática educativa em seu
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

campo de reflexão. Levando em conta as contribuições de José Gaos e


de Carmen de Rovira, o autor mostra que o pensar filosófico mexica-
no está expresso em chave política, ética e com profundas aspirações
educativas, não se reduzindo a uma teorização puramente metafísi-
ca. Aporta em seguida os cinco casos que podem ser tomados como
exemplos de como se praticou a filosofia da no seio da cultura mexi-
cana: a filosofia nahuatl dos povos ancestrais do país; o trabalho teó-
rico, sob inspiração da filosofia analítica, desenvolvido por Fernando
Salmerón Roiz; a contibuição de Joaquin Xirau Palau, filósofo cata-
lão radicado no México que se tornou professor da UNAM bem como
a obra de Graciela Hierro Perez Castro que, partindo da problemática
de gênero, propõe uma filosofia da educação à luz de um modelo
de sociedade e de um ideal de indivíduo e o pensamento do ´Erma-
no Carlos´, na verdade linguista, teólogo e filósofo alemão, que se
tornou educador no México e que deu a seu pensar uma dimensão
intensamente pedagógica.

12 Já o pensamento filosófico-educacional no Panamá, nos é


apresentado por Abdiel Rodríguez Reyes, professor do Departamen-
to de Filosofia da Universidade do Panamá, cujo ensaio percorre três
passos que bem o expressam. Inicia problematizando a temática da,
em seu diagnóstico, a tendência à pedagogização escolarizada. Na
sequência, brinda-nos com a apresentação da vida e do pensamento
de Diego Dominguez Cabalero, que considera como a referência fun-
damental da filosofia da educação no país, tal a sua participação na
instauração e no cultivo dessa disciplina. Cabalero, atuando a partir
da Universidade do Panamá, tornou-se o grande formador de toda
uma geração de professores e de cultores da filosofia da educação
bem como o institucionalizador de sua prática na esfera acadêmica e
cultural. O terceiro ponto destacado são os conteúdos programáticos
das disciplinas de Filosofia e de Filosofia da Educação, tais como são
trabalhados na Universidade. Ao final, contextua esses três pontos
nas circunstâncias da realidade sócio-cultural atual do Panamá.
APRESENTAÇÃO

Tomando como objeto de sua reflexão a constituição his-


tórica da educação agropecuária superior, Adolfo Ramos Lamar e
Fíreire explicitam o embate epistemológico entre a ciência e a tec-
nologia subjacente ao planejamento e à implantação dessa área de
conhecimento. Esse embate suscitou reflexões sobre fins, valores e
conteúdos paradigmáticos relacionados à educação em geral, impli-
cando uma abordagem filosófico-educacional. Os autores apoiam-se
em resultados de suas longas experiências de docência e pesquisa
na Universidade Agrária de Havana bem como em universidades de
outros países do continente latino-americano. Mostram então como
o processo de modernização agrária em Cuba, ao buscar levar em
conta a demanda da perspectiva da sustentabilidade, com vistas a
resguardar a qualidade do meio ambiente, provocou um intenso de-
bate sobre a presença e a contribuição de uma abordagem filosófica
que interpela as dimensões sociais e pedagógicas, debate esse tarefa
específica da filosofia da educação, particularemente sob a perspec-
tiva epistemológica.
13
Abrindo a segunda parte da Coletãnea, dedicada à apresen-
tação de pensadores representativos do campo filosófico-educacio-
nal, Eugênio Rezende de Carvalho nos oferece uma circunstanciada
análise do pensamento educacional do renomado jornalista, litera-
to e político cubano, José Juliano Marti y Perez. Considerado uma
das principais referências teóricas e liderança política das lutas pela
emancipação de Cuba e mesmo de outros países latino-americanos,
desde jovem, Marti engajou-se numa luta sem tréguas pela indepen-
dência dos países do continente, de uma perspectiva intensamente
americanista. Segundo o autor, Marti fez um detido diagnóstico da
educação em Nuestra America e avançou uma proposta de como ela
deveria ser. Com sua concepção profundamente humanista e univer-
sal, insistia que à liberdade política devia preceder a liberdade espi-
ritual de cada pessoa. Não sem razão, defendia que educar é dar ao
ser humano as chaves do existir no mundo: independência e amor,
mas um amor que não dispensasse o cultivo da justiça. Marti criti-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cava, com contundência, a educação colonizadora, excessivamente


literária e totalmente distante e desvinculada da realidade dos povos.

Mauricio Langon, do Instituto de Profesores Artigas (IPES)


nos apresenta a contribuição filosófica do pensador uruguaio José
Enrique Rodó bem como sua rica personalidade, marcada pela alma
de um poeta, pelo gênio do literato e pelo vigor do profeta visioná-
rio, inflamado de esperança, para que os vislumbres do porvir sejam
prenhes de promessas. Para Rodó, nossa atividade educativa é nosso
modo presente de forjar o futuro, atividade da qual somos respon-
sáveis, embora não sejamos garantidores do futuro. Entende que o
educador, mais do que com normas e prescrições, educa com seu
exemplo, com seu modo de ser e de pensar, que é uma luta e um
triunfo mas primeiramente sobre si mesmo.

Daniel Pansarelli, da Universidade Federal do ABC, aborda


o pensamento de Enrique Dussel que considera como o maior expo-
14 ente da Filosofia da Libertação. Aborda sua pedagógica, como ele-
mento fundamental desse paradigma. Sem prejuízo de desvendar os
meandros de sua construção tal como realizada em suas obras semi-
nais, Pansarelli propõe caminhos para uma interpretação atualizada
da pedagógica no pensamento de Dussel, com base em seus escritos
mais recentes. Busca então situar a pedagógica na arquitetônica da
filosofia dusseliana, localizando-a em sua relação com a erótica/po-
lítica bem como apresentando-a como parte do método do filósofo,
desvendando assim a característica de práxis de sua filosofia.

A contribuição filosófico-educacional do historiador da


educação, o argentino Anibal Ponce, é o tema do texto de Cláudio
Domingos Fernandes, integrante do Grupefe. Após nos apresentar a
trajetória biográfica desse pensador, Cláudio destaca a marca de dois
momentos em sua produção teórica no campo da história da educa-
ção. O primeiro em que ainda prevaleciam os princípios liberais da
geração do final do século XIX e o segundo marcado pela ruptura
APRESENTAÇÃO

com a matriz positivista e com a assumpção da perspectiva paradig-


mática do materialismo histórico como ferramenta de análise histó-
rica da educação. Anibal Ponce reequaciona assim a necessária fun-
damentação filosófica do trabalho do historiador da educação e de
toda ação pedagógica. Mostra que para esse pensador, apoiado nos
fundamentos do marxismo, a educação é um processo de formação
coletiva do sujeito fundada em princípios e valores historicamente
construídos, formação do ser humano concreto e histórico, que se
constitui socialmente e que só superando a sociedade de classes, será
possível construir o homem novo.

Ofélia Maria Marcondes discorre sobre o filosofar na Amé-


rica Latina problematizando a temática a partir da questão colocada
por Salazar Bondy, em sua obra e da resposta à mesma dada por Le-
opoldo Zea, em seu livro . Assumindo a perspectiva de sua condição
de pensadora brasileira, se propõe então a suscitar um debate sobre
a possibilidade de um filosofar latino-americano, sem a pretensão
de fazer uma hermenêutica exaustiva dos textos desses dois autores. 15
Bondy concluira que caberia afirmar que há uma filosofia latino-a-
mericana autêntica, levando-se em conta os processos sociais e ideo-
lógicos da dominação imposta pela colonização. Zea retruca que não
se pode considerar pura e simplesmente inautênticas as expressões
teóricas dos pensadores latino-americanos, uma vez que elas nasce-
ram sim das circunstâncias histórico-culturais em que eles viviam.
Ainda que se preocupando com temas considerados universais, eles
não deixavam de levar em conta a relação concreta com a realidade
que os circundava. Não há como dispensar a circunstância envolven-
te no exercício do pensamento.

Alinhando-se com os críticos do ´eurocentrismo´ e inserin-


do-se no movimento que vem defendendo uma atitude epistêmica
decolonizante, José Eustáquio Romão, da Uninove, nos brinda com
o restage do rico e instingante das formas de pensamento dos povos
ancestrais que formaram as sociedades e culturas do sub-continente
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

latino-americano, mostrando a originalidade e fecundidade do mes-


mo, apesar de toda opressão e dominação que sofreu com a colo-
nização europeia e norte-americana. Após esclarecedora contextu-
ação histórico-antropológica da realidade social da região, o autor,
frente à multiplicidade dessas culturas ancestrais, opta por destacar
a perspectiva filosófico-educacional vivenciada na cultura tolteca e
expressa na língua nahuatl, cultura que envolveu muitos grupos ét-
nicos que habitavam a Mesoamérica antes de 1500. No entender do
autor, pode-se encontrar aí, nessa ´toltequidade´, uma proposta que
´equivaleria à paideía grega e à Bildung alemã, por conectar as ideias
de cultura e de educação de uma determinada formação social´. Re-
ferencia sua análise e interpretação, trabalhando a categoria de ´pro-
cesso´que considera a categoria fundamental dessa cultura.

Em seu capítulo, Manuel Tavares e Sandra Gomes, ambos do


Programa de Pós-Graduação em Educação da Uninove, tratam do po-
tencialidade do pensamento latino-americano na configuração de sua
16 emancipação e autonomia. Defendem a tese de que este pensamento,
apesar de todas as influências ocidentais que sofreu, se move, atual-
mente, no âmbito do desejo de libertação de um passado de domi-
nação colonial e neocolonial e, ao mesmo tempo, que se afirma pela
invenção e pela descoberta, resgatando culturas e saberes originários
que caracterizam as identidades dos povos latinoamericanos. Um pen-
samento novo contra todas as formas de dominação e de exclusão, um
pensamento aberto às múltiplas influências de outras culturas, eman-
cipatório e promotor da dignidade humana. Todo o pensamento se
caracteriza pela sua incompletude. Destacam as formas diversas de
resistência e insurgência dos povos latinoamericanos pelo reconhe-
cimento das suas culturas única via para a instauração de um diálogo
intercultural que, por sua vez, contribuirá para dissolver a pretensão
hegemónica do pensamento dominante e para dar visibilidade a for-
mas de pensamento mais holísticas e mais humanas. Para os autores,
a decolonização implica a dissolução dos processos de domuinação e
de subalternização cultural, tanto epistemológica quanto ontológica.
APRESENTAÇÃO

O volume se encerra com o ensaio assinado por Antonio


Joaquim Severino e Natatcha Priscilla Romão, ambos membros do
Grupefe, Uninove. O texto tem por objetivo explicitar contribuições
analíticas de alguns pensadores brasileiros concernentes à necessi-
dade e pertinência de uma perspectiva etnoepistêmica na construção
do conhecimento filosófico, participando assim, em nosso contexto
brasileiro, desse movimento de debate e de crítica acerca de uma
possível decolonialidade do pensamento, movimento que já tem sig-
nificativa expressão em países hispano-americanos. Entre esses pen-
sadores são destacados Paulo Freire, José Eustáquio Romão, Manoel
Tavares, Fernanda Frizzo Bragato e Luciana Ballestrin apresentando,
de forma sintética, suas contribuições teóricas a esse movimento de
crítica e de renovação epistemológica. Contextuando a proposta, fe-
z-se inicialmente uma breve nota sobre como vem se desenvolvendo
esta tendência no âmbito da cultura latino-americana, posiciona-
mento que tem tido papel germinal para o pensamento crítico bra-
sileiro, nessa perspectiva de pos-colonialidade. Feita a apresentação
das contribuições dos pensadores brasileiros, o ensaio se arremata 17
com algumas reflexões sobre as implicações dessa postura epistemo-
lógica para a constituição da Filosofia da Educação.

É com muita gratificação que entregamos a todos aqueles


que aspiram por uma integração maior entre as culturas latino-ame-
ricanas, integração que se realize mediante uma efetiva intercultu-
ralidade, feita de conhecimento, de reconhecimento e de respeito
mútuos. Sob essas condições, sem dúvida, intercambiando ideias e
ideais, todos podemos nos enriquecer. Por mais modesta que pos-
sa parecer esta iniciativa, ela traduz um esforço, um pequeno passo
para intensificar esse intercâmbio.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Desafios para a Filosofia da


Educação na America Latina

ANTONIO JOAQUIM SEVERINO

O
estreitamento das relações culturais, científicas e educa-
cionais entre instituições e pessoas dos países latinoameri-
canos, cujas relações têm se marcado pelo distanciamento
e desconhecimento recíprocos e pela ausência de um intercâm-
bio de idéias e de propostas comuns, constitui uma necessidade
e grande desafio. Necessidade porque uma interação cultural en-
tre todos os povos do continente latino-americano é condição im-
18 prescindível para a consolidação da unidade continental, o que,
por sua vez, é base para sua sobrevivência com soberania. Desafio
porque são incontáveis os obstáculos que se agigantam dificul-
tando, quando não inviabilizando, as iniciativas de aproximação
e de agregação. O panorama das relações, nas diferentes esferas
da cultura, entre nossos países demonstra uma grande precarie-
dade e insuficiência, prevalecendo um forte isolamento entre as
diversas instâncias dessas sociedades. Sem dúvida, a diferença da
língua tem destaque quando se trata de assinalar dificuldades de
comunicação e de intercâmbio, mas ela está longe de ser o úni-
co e o maior obstáculo... No que concerne à área educacional, o
intercâmbio entre os educadores desses países fica muito aquém
do necessário e do desejável. No que diz respeito particularmen-
te à Filosofia da Educação parece grande a desinformação recí-
proca sobre como a educação tem sido filosoficamente pensada
nos diversos países do continente. Pensar a América Latina, com
a afirmação do reconhecimento recíproco, é um meio julgado per-
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

tinente para o reconhecimento e a afirmação identitária de todos.


Causa impacto quando conferimos as referências bibliográficas
das obras do campo filosófico e educacional a marcante ausência
de autores brasileiros nos textos hispano-americanos e de auto-
res hispano-americanos nos textos brasileiros, o que bem revela
o parco diálogo que estabelecemos entre nós... Esse isolamento é
tão forte que chega a ser uma segregação, como nos mostra o per-
tinente comentário de Luciana Ballestrin, ao tratar do Grupo Mo-
dernidad/Colonialidad, que congrega pensadores que estão pen-
sando a cultura latino-americana numa perspectiva pos-colonial:

“Entretanto, uma questão importante que não povoa


o imaginário pós-colonial e decolonial do Grupo Modernidade/
Colonialidade é a discussão sobre e com o Brasil. Esse é um pon-
to problemático, já que a colonização portuguesa – a mais dura-
doura empreitada colonial europeia – trouxe especificidades ao
caso brasileiro em relação ao resto da América. O Brasil aparece
quase como uma realidade apartada da realidade latino-ameri-
19
cana. É significativo o fato de não haver um(a) pesquisador(a)
brasileiro(a) associado ao grupo, assim como nenhum cientista
político – brasileiro ou não” (BALLESTRIN, 2013, p.)

Pressupondo que o conhecimento recíproco é mediação


importante para o reconhecimento mútuo, o GRUPEFE vem de-
senvolvendo um projeto de investigação sobre as expressões do
pensamento filosófico-educacional na América Latina. Este breve
ensaio, se destina também a apresentar a perspectiva geral do re-
ferido trabalho investigativo do GRUPEFE bem como seus resulta-
dos a serem expressos nos textos que constituirão a série editorial,
que ora se inaugura. Para tanto, ele se dará articulando quatro
momentos argumentativos, todos pressupondo que a Filosofia da
Educação já tem presença marcante na cultura filosófica latino-
-americana. Daí a relevância e a necessidade de seu amplo conhe-
cimento e divulgação em todo o território do continente. Assim,
num primeiro momento, pleiteio que a abordagem filosófico-edu-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cacional é fundamental para que compreendamos o próprio papel


da educação no âmbito desta sociedade latino-americana. E este
papel será entendido como sendo a educação uma prática media-
dora da emancipação e da construção da autonomia dos sujeitos
humanos. Num segundo momento, trata-se de evidenciar que os
sujeitos históricos, nesta sociedade, encontram-se ainda submeti-
dos a uma condição real de opressão, frente ao poder heterôno-
mo, de alienação, frente a um saber que lhe é estranho e de degra-
dação de seu próprio ser. Tal condição é intrínseca e decorrente de
sua condição histórica de colonialidade. Por isso, num terceiro
passo, busco mostrar que a educação entre nós só se legitimará se
se der como tarefa contribuir para a decolonização de nossa exis-
tência histórica real, uma vez que essa emancipação é a base im-
prescindível para uma convivência intercultural à altura da plena
dignidade humana. Por isso, num momento conclusivo, argumen-
to que, frente a essa tarefa educativa, a filosofia da educação preci-
sa proceder como modalidade epistêmica de etnoconhecimento.
20

Da presença da filosofia da educação


no contexto latino-americano.
A presença e as características peculiares da expressão filo-
sófica no contexto da cultura latino-americana suscitam necessaria-
mente, para os estudiosos da área, indagações quanto a sua natureza,
autenticidade e autonomia à vista sobretudo de sua aparente depen-
dência radical em relação aos modelos estrangeiros de pensar, trans-
plantados de maneira artificial para nossa ambiência cultural. Daí a
necessidade e a importância de se estudar o pensamento filosófico
na América Latina, sobretudo em suas manifestações atuais, procu-
rando mais elementos para sua compreensão e avaliação. É esse âm-
bito de interrogação que se impõe às propostas direcionadas a esse
pensamento no sentido de se avaliar de que modo ele se constituiu
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

histórica e teoricamente como forma de expressão cultural, apta a


traduzir uma identidade própria no entrecruzamento das retomadas
de paradigmas externos e de seus esforços de criação interna. Deli-
neando seus perfis teóricos e suas temáticas privilegiadas, torna-se
possível fazer uma aproximação do significado mais específico da
experiência cultural de cunho filosófico.

Impõe-se, assim, um esforço sistematizado para identifi-


car, nas expressões mais significativas desse pensamento, as prin-
cipais inspirações que norteiam a reflexão filosófica entre nós.
Cabe aos trabalhos de investigação, que se impõem como tarefa
cientifica imprescindível e como responsabilidade política para
todos nós, abordar, analisar e avaliar o esforço filosófico latino-a-
mericano, buscando saber como ele se entende como prática do
teorein filosófico, quais as temáticas filosóficas que constituem as
preocupações fundamentais presentes nas obras de pensadores
mais expressivos do campo filosófico e por que são essas temáti-
cas privilegiadas em nossa cultura. 21

Sem dúvida, a prática atual da filosofia entre os latino-a-


mericanos, registrada na sua produção teórico-literária, acontece
intimamente vinculada à tradição filosófica ocidental, situação
que é um dado de realidade que traduz uma facticidade histórica
de filiação cultural que não cabe avaliar apressadamente apenas
sob o ângulo da dependência. Como dado histórico real, é fenô-
meno decorrente de múltiplas determinações, inalterável pelo
anátema da lamentação. O que se nos impõe, no entanto, como
tarefa científica e crítica, é o conhecimento do fenômeno, o seu
acompanhamento, a sua descrição, sua análise e interpretação.
Qualquer desejada criatividade pressupõe o desvendamento ana-
lítico-crítico de todas as coordenadas que tecem o fenômeno cul-
tural nas tramas das relações histórico-sociais (NAVARRO, 2011;
ZEA, 1991; SEVERINO, 2000, 2011; REGINA, 1999).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Assim, caberia reconhecer que, embora se filiando ainda


à tradição universal da reflexão filosófica da cultura ocidental, a
filosofia na América Latina já se expressa com crescente criati-
vidade e autonomia. Tanto mais criativa e autônoma se tornará,
tanto mais alcançará referências de universalidade, quanto mais
atenta se fizer à particularidade do mundo real em que se realize.
Sem dúvida, seu desafio maior encontra-se no estabelecimento
da dosagem exata de seus vínculos com a temporalidade histó-
rica e com a espacialidade social. De um lado, precisa recuperar
seu tempo histórico, retornar à atualidade, ou seja, recolocar sua
temática na verdadeira temporalidade, superando o historicismo
e o presentismo modista. O filosofar de um povo ou de um indiví-
duo não paira sobre o tempo, a filosofia precisa aceitar sua própria
historicidade. Aliás, só conseguirá submeter o tempo, submeten-
do-se a ele. Mas reconquistar sua temporalidade não significa per-
der seus vínculos com a história da cultura. A volta ao tempo pas-
sado e às suas origems é necessidade para se apreender a própria
22 historicidade de todas as nossas práticas e, consequentemente, de
toda a nossa existência. No âmbito do filosofar, este filiar-se às
tradições só se legitima quando se dá como um diálogo em busca
de soluções de problemas de relevância atual, estando sempre em
pauta a superação das soluções vencidas pelo conhecimento em
construção. Neste sentido, a filosofia não pode reduzir-se a sua
história, se esta for entendida como mera exposição dos diferen-
tes sistemas que se sucederam no tempo. Filosofar é, contradito-
riamente, também negar as filosofias passadas para se construir
novas filosofias.

Essa abordagem filosófica se especifica enquanto busca


de explicitação, esclarecimento e discussão dos aspectos episte-
mológicos, axiológicos e ontológicos das manifestações históri-
co-culturais nos diversos âmbitos da prática histórica humana.
Trata-se, pois, de trabalho teórico de instauração de sentido que
pode se dar seja sob o ângulo do processo de construção do co-
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

nhecimento nesses diversos campos, seja sob o ângulo do questio-


namento valorativo da prática, pessoal ou social, seja ainda sob o
ângulo das coordenadas existenciais dos sujeitos nela envolvidos.

O que cabe então aos que buscam conhecer a cultura filo-


sófico-educacional da América Latina, é realizar um trabalho ar-
ticulado, envolvendo estudiosos e produções de cada país, não no
sentido de elaborar uma teoria geral sobre o pensamento latino-a-
mericano, mas de obter um quadro abrangente da discussão sobre
a presença da filosofia, no seio da cultura local. Esta é uma exigên-
cia interna do processo, que encontra sua justificativa maior em
evitar generalizações e sobrevoos teóricos, e pensar esta presença a
partir de um esforço comum, plural e concomitante dos estudiosos.

A preocupação com a presença/ausência de um filosofar


intimamente entrelaçado com a realidade sócio-cultural do con-
texto latino-americano tem, certamente, a ver com o fato de que
os estudos revelam que “a grande maioria de nossos pensadores 23
desenvolve seu esforço teórico deixando-se guiar por algum mo-
delo filosófico já constituído.” (SEVERINO, 2011, p. 24). Mas ela
não se envolve com nacionalismos exacerbados quando a questão
é a originalidade ou a autonomia do pensar filosófico. Como bem
pondera Roberto Gomes, “a questão coloca-se a partir da nature-
za da própria filosofia e não da natureza da nação” (2001, p. 118).
O que está em pauta é a necessária referência da filosofia, como
qualquer outra atividade humana, ao tempo e lugar de sua expres-
são. A filosofia não pode ser a-temporal, a-histórica. Invenção e
contínua reinvenção do espírito humano, a filosofia é patrimônio
universal, mas necessariamente se expressando nos diferentes
espaços sociais e tempos históricos. O que deve estar em pauta
em nosso trabalho, o seu mote central, é a explicitação do como
a filosofia se faz presente e se constitui nos diversos contextos
culturais das sociedades latino-americanas, pressupondo-se uma
relativa identidade entre as experiências dessas sociedades. O en-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

foque fundamental é aquele da questão relacionada ao como a fi-


losofia praticada em cada uma dessas sociedades se autocompre-
ende, como se autodefine, como estabelece seu próprio estatuto.
Por outro lado, essa auto-definição pode ser apreendida também
pelas temáticas que a filosofia privilegia em sua prática efetiva,
pois, mediante essas opções ela está delineando não só sua pró-
pria constituição como também o papel que pretende exercer no
interior do conjunto cultural da sociedade local. Assim, ela pode
manifestar-se como reflexões regionais sobre o agir ético, sobre
o agir político, sobre a educação, sobre a cultura, sobre o direito,
sobre a linguagem, sobre a ciência etc.

A possibilidade de um filosofar sobre


a educação no contexto latinoamericano:
24 esboço de um respaldo teórico
Apesar das limitações, das lacunas e das ambiguidades
que envolvem o tratamento da questão, creio que, numa perspecti-
va geral, é possível identificar na expressão ‘Filosofia da Educação’,
uma referência comum, que pode servir de ponto de partida para
construção de um esquema de abordagem. Trata-se de seu óbvio
sentido como um refletir filosoficamente sobre a educação. Mas a
dificuldade está exatamente no entendimento do que vem a ser esse
“refletir filosoficamente” sobre um objeto. Sem aprofundar aqui esta
questão, uma vez que tal não é o objetivo do momento (SEVERINO,
2015), é possível tomar este refletir filosófico, de um ponto de vista
bem amplo, como a tentativa de se explicitar significações, median-
te um procedimento conceitual, dos dados da experiência humana
relacionada aos seus diversos objetos, atividade que se torna viável
graças ao equipamento subjetivo que se encontra à disposição dos
homens. Por mais diferentes que possam ser as concepções da ativi-
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

dade filosófica, um ponto em comum, presente em todas elas, é que


se trata de uma modalidade de conhecimento, uma forma de expe-
rienciar esse conhecimento, ao lado de outras formas de conhecer,
tais como a ciência e o senso comum.

Assim, para que se possa seguir a trajetória da Filosofia


da Educação na América Latina, o que é o nosso objetivo, pode-se
tomar como demarcador do sentido da Filosofia da Educação, o
exercício de um pensar sistemático sobre a educação, ou seja, de
um pensar a educação, procurando entendê-la na sua integrali-
dade fenomenal. Pressuponho, pois, que se possa pensar a edu-
cação e, consequentemente, que se possa pensá-la igualmente
sob um registro filosófico. Na discussão sobre o sentido da Filo-
sofia da Educação, costuma-se, muitas vezes, referir-se à ênfase
exagerada que se dá à Filosofia, em detrimento da educação, ou
então, à ênfase que se deveria dar à educação, em detrimento da
Filosofia. Mas, na verdade, no caso da modalidade filosófica do
conhecimento, é preciso ter bem presente que a Filosofia não tem 25
objetos que lhe sejam específicos: os seus são os objetos comuns a
qualquer outra forma de conhecimento. O que diferenciará os vá-
rios olhares epistêmicos é o modo de olhar e não o objeto olhado.
Por isso mesmo, no caso da Filosofia da Educação, o que está em
pauta é o exercício de um conhecimento da educação como objeto
possível do conhecimento humano.

Deste modo, pressupondo que o filosofar se dá mediante


uma reflexão sistemática sobre a realidade, de forma totalizante,
entendo a Filosofia da Educação como reflexão que discute e ques-
tiona o todo da educação. Muito embora esta reflexão possa ser feita
tomando em consideração aspectos parciais, formulando questões
setoriais, o objetivo é sempre o de se entender o todo da educação
no contexto da totalidade da existência real dos homens. Deste
modo, desenvolvem uma reflexão típica da Filosofia da Educação
aqueles pensadores, teóricos ou práticos, que para implementar
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

suas teorias ou ações, constituem um contexto reflexivo abrangen-


te, elaborando uma concepção da educação como um todo.

A trilha que se pode, pois, seguir prioritariamente para


a retomada e reconstituição da trajetória da Filosofia da Educa-
ção na América Latina, é aquela sinalizada pela presença de uma
referência explícita dessa modalidade de se pensar a educação,
ou seja, destacar os discursos que, de uma forma ou de outra, te-
matizaram a educação como objeto de uma reflexão sistemática,
ainda que nem sempre, necessariamente, de modo formalizado. A
medida será dada pelo maior índice de interpelação que o discur-
so em questão fizer às referências filosóficas. Privilegiando as ex-
pressões explícitas, não se poderá evitar, no entanto, referências
a situações em que o caráter implícito marca significativamente
o pensar a educação na cultura educacional do país pesquisado
nem se poderá desconhecer a força dos pressupostos no delinea-
mento de sua tradição.

26 Esta trama complexa de abordagem não deixa de se justi-


ficar pois é fato marcante de que o pensar filosoficamente a edu-
cação na sociedade, seja sob sua forma assumida e explícita, ou
seja sob o modo da pressuposição, está sempre relacionado com
algum paradigma filosófico universal, a algum modelo teórico
fundamental. Na verdade, o que se constata, no que diz respeito
à cultura latino-americana, é que, na grande maioria dos casos,
os pensamentos nacionais, sempre que alcançam uma dimensão
filosófica, eles o fazem numa espécie de simbiose com modelos
estrangeiros transplantados. Por outro lado, não se pode negar
igualmente que todo esforço reflexivo sobre a educação, que vem
se desenvolvendo entre nós, não deixa de se preocupar com a re-
alidade histórica de seus processos sociais e culturais. Desenrola-
-se sempre como tentativa de enfrentar e de superar os desafios
que são postos por essa realidade. E ao fazê-lo, busca apoiar-se
em acervos categoriais de fundo eminentemente filosóficos (CER-
RUTI GOLDBERG, 2000; CULLEN, 2004; HOYOS, 2008; MAGALLON
ANAYA, 1993, SEVERINO, 2011).
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

Da condição do existir colonizado


Tal situação expõe, em toda sua profundidade, a contra-
dição da própria condição da existência histórica concreta vivida
pela sociedade latino-americana. Existência que é marcada por
uma identidade ainda em processo de construção. Processo esse
constituído por um jogo de forças entremeado de muita violência
e agressão recíproca tanto físicas quanto culturais. Destino fatal
de toda colonização. Esta nunca realizou a experiência de um en-
contro compartilhador de conquistas sociais e culturais de povos
diferentes que entram em contato, mas, pelo contrário, sempre
mediante um processo político, econômico e cultural de domina-
ção opressiva e depredadora.

O colonizador europeu, ao conquistar os territórios ame-


ricanos, impôs aos nativos não só o seu domínio político e eco-
nômico, mas também sua matriz cultural, não mediante uma
proposta de troca mas mediante a destruição das matrizes locais. 27
Por isso, mesmo quando não ocorriam os genocídios físicos, pra-
ticava-se um explícito ou implícito epistemicídio étnico. A visão
assumida é que eram os conquistadores eram detentores de uma
expressão cultural, de alcance e valor universais, sendo, portan-
to, a única que deveria prevalecer, cabendo aos nativos adotá-la
para ressignificar e conduzir suas existências. Tratava-se de uma
perspectiva totalmente monoculturalista a ser imposta numa rea-
lidade social intensa e extensamente multicultural, composta que
era pela presença de múltiplas comunidades humanas, cada uma
com sua cultura própria (SEVERINO, 1986; WALSH, CANDAU,
2010; QUIJANO, MIGNOTO, ).

O conquistador não deixa o conquistado se manifestar. A


estratégia fundamental no processo de conquista, de um indivíduo,
grupo ou cultura [dominador] é manter o outro indivíduo, grupo
ou cultura [dominado] inferiorizado. Uma forma, muito eficaz, de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

manter um indivíduo, grupo ou cultura inferiorizados, é enfraque-


cer as raízes que dão força à cultura, removendo os vínculos his-
tóricos e a historicidade do dominado. Essa é a estratégia mais efi-
ciente para efetivar a conquista (D´AMBROSIO, 1990, p.149).

A independência política das nações colonizadas não re-


presentou, de fato, plena emancipação das suas populações, como
bem o expressa o Grupo Modernidade/Colonialidade:

El concepto ‘decolonialidad’, que presentamos en este li-


bro, resulta útil para trascender la suposición de ciertos discursos
académicos y políticos, según la cual, con el fin de las administracio-
nes coloniales y la formación de los Estados-nación en la periferia,
vivimos ahora en un mundo descolonizado y poscolonial. Nosotros
partimos, en cambio, del supuesto de que la division internacio-
nal del trabajo entre centros y periferias, así como la jerarquización
étnico-racial de las poblaciones, formada durante varios siglos de
28 expansion colonial europea, no se transformó significativamente
con el fin del colonialismo y la formación de los Estados-nación
en la periferia. Asistimos, más bien, a una transición del colonia-
lismo moderno a la colonialidad global , proceso que ciertamente
ha transformado las formas de dominación desplegadas por la mo-
dernidad, pero no la estructura de las relaciones centro-periferia a
escala mundial. (CASTRO-GÓMEZ , GROSFOGUEL, 2007).

Assim, o tecido da vida humana das diversas sociedades


colonizadas que se distribuem no planeta se configura como um
amplo espectro de uma multiplicidade polifônica de culturas di-
versas, não em condição de isonomia e igualdade mas sob fortes
laços de dominação de umas sobre outras, pois o processo de co-
lonização econômica sempre se fez acompanhar de igual domi-
nação cultural... O rescaldo da história da comunidade humana
mostra, de forma mais que pertinente, a alienação do colonizado
pelo colonizador com a perda de sua própria identidade. Mesmo
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

quando não ocorreu o genocídio físico, ocorreu um genocídio


epistemológico ou um epistemicídio.

Por isso, todo processo de decolonização1 que hoje se


busca, abrindo possibilidades de ascenção cultural para os subor-
dinados, para os marginalizados e para o excluídos, implica ne-
cessariamente no reconhecimento e no respeito da dignidade dos
indivíduos, reconhecendo e respeitando suas raízes.

Dadas essas premissas históricas e antropológicas, o en-


tendimento e a prática do conhecimento filosófico nas sociedades
que passaram por processos de colonização, implicam necessaria-
mente um compromisso com uma proposta de libertação, enten-
dida como emancipação humana. Para tanto, precisa se realizar
como etnofilosofia , a ser desenvolvida com base no reconheci-
mento da exigência de interculturalidade que precisa marcar o
tecido da realidade social quando caracterizada por uma situação
multicultural. Trata-se, para um filosofar autêntico, de assumir 29
um compromisso denso com a causa da emancipação, articulando
suas dimensões ética e política, não só no posicionamento prático
do filósofo como pessoa mas também no seu discurso teórico. A
abordagem etnofilosófica se compromete com a causa emancipa-

1 Neste ensaio, optei por usar as designações decolonial, decolonialidade, decolonização, com
o prefixo de preferência aquelas com o prefixo des-. Trata-se da terminologia proposta pe-
los pensadores do Grupo Modernidad/Colonialidad, criado e integrado por pensadores que
estão desenvolvendo uma abordagem pos-colonial no âmbito das ciências humanas, tais
como Immanuel Wallerstein, Anibal Quijano, Walter Mignolo, Santiago Castro-Gomez, Fer-
nando Caronil, Javier Sanjines, Cateherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Enrique Dussel,
Ramon Grosfoguel, Boaventura Santos, Arthur Escobar. “Com pouco mais de dez anos de exis-
tência, o grupo compartilha noções, raciocínios e conceitos que lhe conferem uma identida-
de e um vocabulário próprio, contribuindo para a renovação analítica e utópica das ciências
sociais latino-americanas do século XXI” (BALLESTRIN, 2013, p. 99).
Por etnofilosofia deve-se entender a prática do conhecimento que leva em conta, em sua
gênese e desenvolvimento, o seu enraizamento, sua imanência numa dada realidade his-
tórica sócio-cultural, assumindo-se como manifestação de uma cultura com sua configura-
ção singular, posicionando-se contra a hegemonia impositiva de uma pretensa abordagem
epistêmica universal. Não se trata de uma perspectiva etnocêntrica, mas de uma vinculação
à imanência existencial dos sujeitos cognoscentes. O conhecimento nasce da experiência
original de cada comunidade em seu contexto histórico.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

tória dos segmentos excluídos da humanidade, contribuindo as-


sim para a luta contra a opressão.

O cultivo da filosofia demanda a assumpção de um modo


de pensar que leve em conta a experiência vivida pelas diferen-
tes comunidades e suas diferentes culturas. No que concerne à
experiência latino-americana, a Filosofia da Libertação nasce do
reconhecimento, por parte dos pensadores desta região, da condi-
ção de dominação pelo colonizador metropolitano, condição que
incluiu a imposição também de um pensamento filosófico, funda-
do na logosfera europeia, que sufoca e desqualifica o pensamento
local, operando um verdadeiro epistemicídio do mesmo.

Para se libertar, os povos oprimidos precisam também liber-


tar seu pensamento das malhas do pensamento dos dominadores.
Precisam evitar todas as formas do epistemicídio que acompanhou
o processo da colonização. No caso latino-americano, impunha-se,
30 segundo esses pensadores, uma desconstrução crítica da filosofia eu-
rocêntrica, explicitando e denunciando sua tendência à dominação.
Ao mesmo tempo, se fazia necessário construir um outro modo de
pensar filosófico que pudesse se articular a um processo de liberta-
ção do outro oprimido (DUSSEL, MENDIETTA, BORHORQUEZ, 2008;
BOUFLEUR, 1991; WALSH, 2005a , 2005b, 2006a., 2010).

Por uma via intercultural para a


filosofia da educação.
Mas ao se reconhecer como o outro do opressor, o opri-
mido afirma a alteridade. Olhando de fora do cerco da domina-
ção, dá-se conta que se postam diante dele outros sujeitos, igual-
mente capazes de autonomia. Pois não se trata de considerar que
sua filosofia peculiar como uma nova única filosofia. Dá-se conta
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

então de que o mundo humano se configura como formado por


um número elevado de culturas peculiares, culturas específicas,
singulares, diferentes da sua. É o momento do multiculturalismo.
Mas essas múltiplas culturas se encontram necessariamente em
relações recíprocas, num relacionamento que se estreita cada vez
mais atualmente em decorrência do processo de globalização eco-
nômica e cultural (FREIRE, 1978).

Como bem pontua Candau

A construção dos estados nacionais no continente la-


tinoamericano supôs um processo de homogeneização cultural
em que a educação escolar exerceu um papel fundamental, ten-
do por função difundir e consolidar uma cultura comum de base
ocidental e eurocêntrica, silenciando e/ou inviabilizando vozes,
saberes, cores, crenças e sensibilidades. É neste universo parti-
cular de questões, conflitos e buscas que situamos a emergência
da perspectiva intercultural no continente. Um processo onde
31
redistribuição e justiça cultural são polos que se exigem mutu-
amente e que compõem bandeiras de luta na atual dinâmica
social e política da América Latina. (2010, p. 154)

Nesta complexa tessitura da sociedade multicultural da


América Latina, a via que se vislumbra é aquela de uma práxis
intercultural, ou seja, do compromisso da teoria e da prática com
um pensar e um agir que reconheçam a consistência, a autonomia
e a validade de todas as expressões culturais com presença efetiva
na realidade histórica, admitindo-se que podem entrar em relação
entre si, num processo de profícuo intercâmbio, sem impor, umas
às outras, qualquer ideia, prática ou norma heterônomas que não
sejam decorrência de decisão negociada entre iguais.

Esse diálogo horizontal, essa possível negociação, pressu-


põe, para os indivíduos e grupos, conhecimento e respeito mútu-
os, como reforça D’Ambrósio, ao falar da educação:
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

O encontro intercultural gera conflitos que só poderão


ser resolvidos a partir de uma ética que resulta do indivíduo
conhecer a sua cultura e respeitar a cultura do outro. O respei-
to virá do conhecimento. De outra maneira, o comportamento
revelará arrogância, superioridade e prepotência, o que resulta,
inevitavelmente, em confronto e violência (p. 151-152).

É verdade histórica que as relações dessas culturas entre


si nem sempre se dão de modo harmonioso, até em função da ten-
dência das culturas mais fortes se imporem sobre as mais frágeis,
a se configurar como cultura hegemônica, como se fosse uma cul-
tura superior, digna a ser respeitada como cultura universal, e,
portanto, única. De seu lado, muitas vezes, as culturas oprimidas,
para afirmarem sua identidade e autonomia, acabam se fechan-
do sobre si mesmas, assumindo uma perspectiva monoculturalis-
ta, questionando a possibilidade do diálogo sem dominação com
as outras culturas. Também a filosofia corre este risco quando se
32 quer praticar como etnofilosofia.

No caso mais específico do pensar filosófico, a postura in-


tercultural pressupõe a admissão de que o conhecimento humano
se enraíza em contextos histórico-sociais bem concretos das dife-
rentes culturas, não procedendo condoreiramente de um logos uni-
versal que dispensasse qualquer vinculação às culturas singulares.
Leio, nessa direção, as afirmações incisivas de Raul Fornet Betan-
court quando, ao tratar da prática da filosofia na América Latina,
fala em “superar o uso colonizado da razão, que continua cúmplice
da herança colonial” (idem, p. 13), que mantém “a vigência normati-
va do cânone estabelecido pela tradição acadêmica centro-europeia
na metodologia filosófica” (idem, p. 24), quando se desconhece o
que é pensado, falado e escrito nas línguas nativas.

Por isso mesmo, a Filosofia não pode se isolar na sua ilha


geográfica ou cultural. É preciso que ela se situe numa perspecti-
va intercultural, distinta tanto da perspectiva monocultural como
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

daquela puramente policultural. Trata-se então de praticar um uni-


versalismo crítico, segundo o qual cada cultura é vista e avaliada
em sua qualidade específica e em função da contribuição que pode
dar para a construção de uma cultura universal. Cada cultura parti-
cular consolida sua identidade na medida mesma em que pode con-
tribuir para o aprimoramento da cultura universal a ser construída
historicamente, pois esta não é ainda dada, portanto, na medida
em que participa da implementação de um projeto antropológico
de construção do humano, esta sim uma tarefa universal, pois se
trata do delineamento de caminhos de condução do destino de toda
a humanidade (SEVERINO, 2001; CARVALHO, 1992).

Assim, a Filosofia, ao se conceber e se praticar como et-


nofilosofia, não se confunde com uma postura etnocentrista, em
torno da cultura particular da qual parte e sobre a qual se sus-
tenta. Por isso, o filosofar compromissado com a emancipação e
com a construção da autonomia de todos os sujeitos precisa se
instaurar numa dupla perspectiva. Ele se quer como uma etnofilo- 33
sofia, na medida em que sua narrativa tem raízes em seu próprio
solo geográfico e cultural, mas, ao mesmo tempo e sob o mesmo
impulso, ela se expressa sob uma outra perspectiva mais comple-
xa, a da interculturalidade. Não se trata mais de se diluir numa
suposta filosofia universal que, na realidade ocidental, não passou
da imposição forçada de um filosofar eurocentrado, nem se isolar
num pensar autossuficiente e incomunicável, que não estabelece
pontes com outros pensamentos. Trata-se de um discurso dialo-
gante, que supõe a alteridade e com ela estabelece comunicação.
O diálogo filosófico se constitui no seio da matriz de um diálogo
intercultural… Inspiro-me, para sustentar esta posição, na con-
solidada obra de Raul Fornet-Betancourt. Para ele, intercultura-
lidade é “aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se
capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias
em relação com os chamados ‘outros’, quer dizer, compartindo-as
em convivência com eles. Daí que se trata de uma atitude que abre
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e


recolocação cultural e contextual. É uma atitude que, por nos ti-
rar de nossas seguranças teóricas e práticas, permite-nos perceber
o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpáveis quando
cremos que basta uma cultura, a ‘própria’, para ler e interpretar o
mundo.” (2004, p. 13).

Reencontra-se aqui o sentido da interculturalidade críti-


ca, de que fala Walsh (2012), quando a contrapõe à intercultu-
ralidade funcional. Essa autora agrega ao conceito um alcance
político mais radical, na medida em que pressupõe que se trate
sempre de uma proposta interventiva, desencadeada por pesso-
as e grupos que se encontrem submissos, com vistas a uma luta
por uma refundação radical da sociedade, num esforço de efetiva
decolonização, buscando-se superar o mundo vigente, no caso o
mundo do capitalismo neoliberal, e construir uma nova realidade
histórica e social. A decolonização é condição sine qua non para
34 uma autêntica interculturalidade, Por isso, o investimento educa-
tivo pressupõe um posicionamento crítico frente ao eurocentris-
mo, em todas as esferas da existência: do poder, do saber e do ser.
Por isso, a educação precisa envolver estratégias políticas, éticas
e epistêmicas, engajando-se numa luta sem trégua contra todas
as formas de ação colonizadoras, assumidas sob um pensamento
hegemônico ocidentalocêntrico monocultural, de pretensão uni-
versalista. Trata-se então de questionar e descartar as propostas
de ação intercultural de cunho funcionalizante, ou seja, aquela in-
terculturalidade funcional para o sistema hegemônico vigente, o
capitalismo neoliberal, no caso da América Latina. São propostas
de diálogo, de convivência, marcadas pela tolerância e pelo esfor-
ço em evitar conflitos. Tais processos são compatíveis com a lógica
do atual modelo neoliberal do capitalismo, ocultando as contradi-
ções que tecem a realidade social, diluindo as diferenças efetiva-
mente presentes na diversidade. Mas não passam de estratégias
para se manter a colonialidade de nossa existência histórica.
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

Conclusão
A destinação da Filosofia criticamente concebida e prati-
cada não pode ser outra se não a de contribuir para preparar as
novas gerações às quais cabe construir uma civilização mais feliz.
O que ela só poderá fazer se se compromissar com um processo
pedagógico e político de emancipação dos homens historicamen-
te situados. É o que se vislumbra pela utopia de uma nova reali-
dade social, de um outro mundo em que indivíduos, sociedades e
natureza se relacionem de modo a garantir um bem viver, que vêm
propondo os pensadores da decolonização.

Daí o compromisso da Filosofia de se engajar numa tare-


fa educacional e política consistente, compartilhando o projeto de
assumir a complexidade da condição humana, propondo a se prati-
car como sustentadora de uma modalidade de etnoconhecimento e
como uma abordagem intercultural do saber, do poder e do existir.
35
A concepção teórica e as experiências práticas da etnofi-
losofia suscitam uma intervenção epistêmica e pedagógica muito
mais abrangente do que o próprio campo do conhecimento cien-
tífico, demandando e envolvendo toda uma postura filosófica e
educacional. Põe em ação uma reflexão filosófica, que recorta as
esferas do epistemológico, do antropológico, do sociológico, do
político, do ético, em suma, de toda a esfera cultural.

Não há como não reconhecer, implícita nessa postura


filosófica, uma crítica à hegemonia da racionalidade ocidental e
a afirmação da necessidade de se implementar práticas de racio-
nalidades silenciadas pela dominação epistemológica da filosofia
do Ocidente europeu.

Trata-se de reconhecer e afirmar a existência de múlti-


plas culturas que se manifestam como expressões de logosferas
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

particulares, próprias de cada uma delas. Daí a necessária crítica


à pretensão de universalismo da epistemologia fundada na logos-
fera da tradição ocidental, pleiteando-se para a filosofia latino-a-
mericana uma perspectiva epistemológica fundada em sua expe-
riência, vivenciada e elaborada pela sua própria logosfera.

O que bem expressa Silva (2006), quando afirma a distin-


ção entre as perspectivas multicultural e intercultural:

Já na perspectiva da interculturalidade enquanto


proposta educativa, carregada de intencionalidade, o que se
observa é a existência de uma proposição que intervêm nessa
realidade multicultural, procurando a potencialização das in-
ter-relações entre os sujeitos portadores de diferentes expressões
culturais. Esse cruzamento/confronto exige um deslocamento de
lugar cultural, ou seja, exige a mobilidade do lugar em que o
sujeito se encontra para, a partir da acolhida do outro diferen-
te, ocorra o intercâmbio e o enriquecimento mútuo. No âmbito
36 da escola/educação, pensada principalmente a partir da consti-
tuição de espaços de aprendizagem e de produção de saberes, a
interculturalidade se revela potencialmente como um projeto de
intervenção a ser construído de forma intencional. É essa inten-
cionalidade que garante uma das distinções que se pode fazer
em relação a educação multicultural. Enquanto a perspectiva
multicultural advoga a existência da diversidade cultural como
um fato dado, a educação intercultural preconiza a intervenção
propositiva e desafiadora no trabalho com as diferenças cultu-
rais para além do reconhecimento. ( p. 145-146).
CAPÍTULO 1: DESAFIOS PARA A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA

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CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

La filosofía de la educación en
México: una perspectiva

RENATO HUARTE CUÉLL AR

Introducción

¿
Qué es la filosofía de la educación en México? Para poder con-
testar esta pregunta, muy sencilla en apariencia, es necesario
dar respuesta por lo menos a tres aspectos complejos de suyo.
La primera es, en el contexto de la pregunta general ¿qué es filoso- 41
fía?, ¿qué es la filosofía de la educación? Para poder dar respuesta,
es necesario que haya una congruencia mínima entre lo que se
considera filosófico con su aproximación a la educación en tan-
to fenómeno. Así, si se piensa que la filosofía es un sistema de
conceptos aplicados a cualquier aspecto, entonces la filosofía de
la educación será la aplicación de dicho sistema a eso que enten-
damos como educación, para definirlo y, a partir, de ello repensar
nuestras acciones y pensamientos en torno a ello. En cambio, si se
define de otras maneras, se esperaría que la filosofía de la educa-
ción cobrara matices y vertientes distintas.

Pero, ¿de qué depende esa definición? Hay quienes pue-


dan argüir que la forma de percibir o definir lo filosófico depende
de una forma de ver el mundo que depende de condiciones so-
ciales, políticas, económicas, etc. diferentes. En ese sentido, la
filosofía variaría de lugar en lugar, de región en región y, por tan-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

to, también variaría en el tiempo. ¿Hay una filosofía mexicana?


¿Ha cambiado a lo largo del tiempo? Éste es el segundo aspecto
en la dificultad de poder definir una filosofía de la educación en
México. No obstante, las ideas de la llamada “filosofía mexicana”,
¿son propias? O, ¿acaso sólo “importamos” formas de pensamiento
de otros lugares y los adaptamos? Hay quienes defenderán que
ha habido un desprecio por formas de pensamiento en torno a
lo educativo que necesariamente son distintas a las europeas o
de otras regiones pero que no son consideradas filosóficas por no
tener las características de las filosofías de otras latitudes o tradi-
ciones. No obstante, también en México se realizan lecturas de
autores “extranjeros” y, en ese acto mismo, se van apropiando, for-
mando parte de una tradición considerada “nuestra”.

A continuación abordaremos, en dos momentos, una bre-


ve aproximación a la problemática por definir la filosofía de la
educación en México. En un primer momento trataremos de defi-
42 nir lo que es la filosofía mexicana, para poder entonces, en un se-
gundo momento, determinar lo que es la filosofía de la educación
en México a partir de algunos ejemplos.

La educación en la filosofía mexicana: un problema


de antaño y de hogaño.
Antes que todo, existe la problemática de si existe una
filosofía propiamente mexicana o latinoamericana. Durante mu-
cho tiempo se pensó que la cuna de la filosofía había sido la Grecia
Antigua y que básicamente la historia de la filosofía había sido la
escrita en Europa o los Estados Unidos. La mayoría de las historias
de la filosofía presentaban más bien la historia del pensamiento
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

europeo que había llegado a diferentes partes del mundo1. Sirva


como ejemplo la denominación “Filosofía en México”, que asume
que hay una filosofía (generalmente europea) que llega a México y
en este territorio se desarrolla.

Tal vez el personaje que realizó una crítica a esta forma de


pensar la filosofía fuera José Gaos, autodefinido “transterrado”2 e
impulsor definitivo de que en México y en América Latina en ge-
neral, existe un pensamiento propio y no una mera apropiación de
ideas de otras latitudes. Gaos trabajó distintos temas en el ámbito
filosófico, además del problema de la filosofía en Hispanoamérica
que claramente se derivaba de la reflexión en torno al contexto y
origen social, cultural, político, lingüístico, etc. del pensamiento,
muy probablemente dado este contexto que explica Leopoldo Zea
sobre los españoles refugiados en otros países, incluido el nuestro,
a los que el propio Gaos llamaba “transterrados”3. Para Gaos, la
filosofía no es mera teorización, sino también puesta en marcha,
acción. Esto querría decir que el contexto que vivió Hispanoamé- 43
rica sería distinto por las características históricas específicas de
la región. En el ensayo El pensamiento hispanoamericano Gaos lo
expone de la siguiente manera:

E1 “pensamiento” es aquel pensamiento que no tiene


por fondo los objetos sistemáticos y transcendentes de la filosofía,
sino objetos inmanentes, humanos, que por la propia naturaleza
de las cosas, históricas, éstas, no se presentan como los eternos
temas posibles de un sistema, sino como problemas de circunstan-

1 Cfr. Copleston, Friedrick. Historia de la filosofía. Barcelona, Planeta, Ariel, 2011. En su versión
castellana es tal vez uno de los textos más consultados. Tiene 10 volúmenes en 5 tomos. Re-
sulta interesante que el título original es A History of Philosophy, título que podría haber sido
traducido como Una historia de la filosofía. De cualquier forma, los títulos de cada volumen
son representativos: t.1 Grecia y Roma - t.2. De San Agustín a Escoto - v.2. t.3. De Ockham a
Suárez - t.4. De Descartes a Leibniz - t.5. De Hobbes a Hume - v.3. t.6. De Wolff a Kant - t. 7. De
Fichte a Nietzsche - v.4. t.8. De Bentham a Russell - t.9. De Maine de Birán a Sartre
2 Cfr. Zea, Leopoldo. José Gaos: el transterrado. México, UNAM-CCyDEL, 2004
3 Ibidem. p. 11.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cias, es decir, de las de lugar y tiempo más inmediatas, y, por lo


mismo, como problemas de resolución urgente; […] 4

Por su parte, ya el XIII Congreso Internacional de Filoso-


fía organizado por la UNAM publicó en 19635 las ponencias pre-
sentadas por Mario de la Cueva, Miguel León Portilla, Edmundo
O’Gorman, José M. Gallegos Rocafull, Rafael Moreno, Luis Villoro,
Leopoldo Zea y Fernando Salmerón. Este recorrido trata de mos-
trar cómo desde el pensamiento prehispánico hasta algunos pen-
sadores del siglo XX existen grandes reflexiones en la región que
hoy llamamos México. Cada uno de los autores aborda un período
histórico desarrollo de este pensamiento. Lo que resulta intere-
sante es, en primer lugar, que muestre distintos estudios sobre
distintos personajes inclusive antes del México independiente, y,
por otro, que ya haya una intención de dar continuidad histórica
al fenómeno. El Congreso y, por ende, el libro buscan mostrar
distintos momentos de filosofía hecha en la región que hoy cono-
44 cemos como México, así haya tenido múltiples nombres antes de
la llegada de los españoles o fuera llamada la Nueva España por
tres siglos hasta 1810.

Las ideas expuestas en el trabajo de José Gaos tuvieron


eco en una serie de discípulos que o bien refutaron o matizaron
algunas de las tesis, por ejemplo Augusto Salazar Bondy – filóso-
fo peruano quien estudiaría en México –, o bien continuaron el
proyecto, como el caso de Ma. del Carmen Rovira, profesora de
la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM. El primero reto-
ma tres aspectos a tomar en cuenta con respecto al desarrollo del
pensamiento en Hispanoamérica, en especial en cada una de las
regiones que la componen, en especial en torno a tres aspectos:

4 Gaos, José. El pensamiento hispanoamericano. p. 11


5 Cfr. Mario de la Cueva et al. Estudios de historia de la filosofía en México. México, UNAM-Coor-
dinación de Humanidades, 1963.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

1. La cuestión, fundamentalmente descriptiva, de


cómo ha sido el pensamiento hispanoamericano y de si ha ha-
bido una filosofía original, genuina o peculiar en esta parte del
mundo. 2. La cuestión, más bien prospectiva y normativa, de
cómo debe ser la filosofía hispanoamericana si quiere lograr
autenticidad y asegurar su progreso futuro. 3. La cuestión de
si lo hispanoamericano (o lo peruano, lo mexicano, lo chileno,
etc.) debe o puede ser tema de nuestra reflexión filosófica, y la
de qué significación tiene tal tema para la constitución de una
filosofía propia.6

Salazar Bondy, en este último punto, matiza el pensa-


miento de Gaos al también usar el argumento de las condiciones
sociales, históricas y políticas de cada región para cuestionar si
existe tal homogeneidad de ideas en esta región que podemos lla-
mar Hispanoamérica.

En el caso de Ma. del Carmen Rovira, quien a lo largo


de varias décadas y en torno al Seminario Permanente de Filoso-
45
fía Mexicana de la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM ha
establecido un equipo de investigación muy prolífico, el proyec-
to ha consistido en dar cuenta cómo existe, según lo propuesto
por Gaos, un pensamiento propio en México. Sobre todo resal-
ta el trabajo realizado por la propia Rovira y el equipo de traba-
jo, en tesis, seminarios, congresos, etc. sobre el desarrollo de
las ideas filosóficas a lo largo del siglo XIX y principios del XX,
época fundamental del desarrollo del país. Baste citar una obra
básica para entender el pensamiento filosófico mexicano: Una
aproximación a la historia de las ideas filosóficas en México.

6 Salazar Bondy, Augusto. ¿Existe una filosofía de nuestra América? México, Siglo XXI, 1976.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Siglo XIX y principios del XX7, así como la antología de


algunos de los autores de este período8. Este proyecto, que a to-
das luces abrió un campo de identificación de pensadores que en
su gran mayoría eran desconocidos, busca dar cuenta de la filo-
sofía en una región determinada. Si bien en el grupo también se
incluyó a académicos como Rosa Elena Pérez de la Cruz, quien
aportó a la investigación del pensamiento filosófico en la Repúbli-
ca Dominicana9 y también a la filosofía mexicana, la idea central
es realizar algo que no se había hecho hasta ese momento: traba-
jar cuidadosamente a los pensadores mexicanos como autores en
una tradición propia. Sin embargo, la discusión de José Gaos y
Augusto Salazar Bondy incorporaba también la discusión del pen-
samiento filosófico en Hispanoamérica o bien, en clara alusión
a José Martí, “Nuestra América”. El proyecto de Rovira no abar-
ca el problema de la filosofía en la región sino que asume que es
preciso realizar en paralelo un estudio de los autores, corrientes,
temas, obras, etc. de cada país para después poder comparar con
46 los de otras regiones.

Por su parte, otros autores se han dedicado a la investi-


gación de la filosofía mexicana en el siglo XX. Tal es el caso de
Guillermo Hurtado o Carlos Pereda, por ejemplo. Hurtado sostie-
ne que para poder dar cuenta de la filosofía mexicana en el siglo
XX es necesario partir de lo que ha sido definido como propio en
la filosofía en Hispanoamérica y replantear el proyecto que se está
haciendo, entre un pasado representado por el búho de Atenea y
el aquí y el ahora terrenal representado metafóricamente por una

7 Cfr. Rovira Gaspar, Ma. del Carmen. (Coord.) Una aproximación a la historia de las ideas fi-
losóficas en México. Siglo XIX y principios del XX. 2ª ed. Querétaro, Universidad Autónoma
de Querétaro / Universidad de Guanajuato / Universidad Autónoma de Madrid / Universidad
Nacional Autónoma de México, 2010. 2 vols.
8 Cfr. Rovira Gaspar, Ma. del Carmen (Coord.) Pensamiento filosófico mexicano del siglo XIX y
primeros años del XX. México, UNAM, Coordinación de Humanidades, 1997. (Lecturas univer-
sitarias; 41)
9 Cfr. Pérez de la Cruz, Rosa Elena. Historia de las ideas filosóficas en Santo Domingo durante el
siglo XVIII. México, UNAM-DGAPA, 2000.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

serpiente10. Esta serie de ensayos permiten revisar el enfoque


de lo que se concibe como filosofía mexicana. Por un lado, la fi-
losofía mexicana habría tomado como propia la filosofía griega y
su interpretación en el período helenístico, mismo que será reto-
mado por el pensamiento europeo siglos más tarde. La serpiente
sería el pensamiento local, de las culturas autóctonas que, a pesar
de haber sucumbido militar y políticamente, a nivel del manejo de
las ideas, éstas han prevalecido de múltiples formas.

En el caso de Pereda, a través de ensayos, entrevistas y re-


flexiones en torno a vivencias propias, traza un entramado de re-
laciones que pueden explicar la filosofía mexicana a partir de sus
actores11. Así, explica Pereda, los pensadores mexicanos del siglo
XX se verán en un diálogo fructífero con los inmigrantes republi-
canos de la Guerra Civil Española en las décadas de los treinta y
cuarenta del siglo XX, así como con otros intelectuales, como él
mismo, que vinieron huyendo de las dictaduras latinoamericanas
en el último tercio del siglo de las dos guerras mundiales. En este 47
sentido tal vez el proyecto más importante es el que ha desarrolla-
do un grupo de académicos del Instituto de Investigaciones Filo-
sóficas de la UNAM quienes han editado una Bibliografía filosófica
mexicana del siglo XX12, así como la bibliografía y hemerografía
que lleva por nombre 50 años de filosofía en México. 1950-199913.
En ambos recursos quedan registradas más de 500 obras relacio-
nadas con pensadores mexicanos en el siglo XX.

Tal vez sólo a manera de ejemplo de un esfuerzo colectivo


muy importante haya que mencionar la obra editada por Enrique

10 Hurtado, Guillermo. El búho y la serpiente. Ensayos sobre la filosofía en México en el siglo XX.
p. 9-10
11 Cfr. Pereda, Carlos. La filosofía en México en el siglo XX: apuntes de un participante. México,
CONACULTA, 2013.
12 Cfr. Carmona, Verónica, Guillermo Hurtado y Cristina Roa. Bibliografía filosófica mexicana del
siglo XX. [recurso electrónico] México, UNAM- Instituto de Investigaciones Filosóficas, 2012.
13 Cfr. Hurtado, Guillermo (Coord.) 50 años de filosofía en México. 1950-1999 [recurso electróni-
co]. México, UNAM- Instituto de Investigaciones Filosóficas, 2008.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Dussel, Eduardo Mendieta y Carmen Bohórquez14 ya que es una


obra monumental que busca dar cuenta, desde distintos especia-
listas de toda América Latina de lo que se entiende por filosofía
en esta región que no sólo abarca los países de habla española
o portuguesa, sino que a la vez muestra que, en esta diversidad
de nombrar la filosofía en “la región”, implica distintas formas de
pensar la filosofía misma. Desde el pensamiento de los pueblos
originarios, hasta el “pensamiento latino” de los “latinoamerica-
nos” que radican en los Estados Unidos o Canadá, pasando por los
grupos de pensadores en las universidades de las principales ciu-
dades de América Latina y el Caribe, el libro ya da cuenta de una
variedad de enfoques, definiciones, modelos, asunciones, corrien-
tes, autores, obras, etc. que podrían ser equivalentes a lo que José
Gaos llamaba hace algunas décadas “filosofía hispanoamericana”.

Hasta aquí, hemos abordado algunos de los proyectos más


representativos que en los últimos años se han realizado con respecto
48 a abrir una línea de investigación importante sobre ya sea la filosofía
hispanoamericana o mexicana. No obstante, quedaría realizar ahora
un abordaje de qué sucede con la filosofía de la educación.

Debemos a la tradición anglosajona de filosofía el tér-


mino “filosofía de la educación”. Como bien explica Stella Maris
Vázquez15, para poder hablar de filosofía de cualquier asunto, es
preciso adscribirse primero a alguna corriente filosófica. No será
lo mismo entender la filosofía como una actividad especulativa
que como un principio normativo de la realidad. De cualquier ma-
nera, para hacer un estudio de la filosofía de la educación, Váz-
quez parte de un análisis epistemológico de las corrientes alema-

14 Cfr. Dussel, Enrique, Eduardo Mendieta y Carmen Bohórquez (Eds.) El Pensamiento filosófico
latinoamericano, del Caribe y “latino” (1300-2000): historia, corrientes, temas y filósofos. Mé-
xico, Siglo XXI, 2001.
15 Vázquez, Stella Maris. La filosofía de la educación. Estado de la cuestión y líneas esenciales. p.
19-30
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

na, francesa y anglosajona dentro de los estudios de pedagogía/


ciencias de la educación, que permiten identificar el origen de la
discusión filosófica en torno al fenómeno educativo.

En ese sentido, la escuela alemana de filosofía, basada so-


bre todo en Dilthey y Spranger a partir de lo que se fue articulando
en el siglo XIX sostendrán la pedagogía como ciencia cuyo objeto
de estudio será el fenómeno educativo16. Dilthey ubicará a la pe-
dagogía en las ciencias del espíritu como oposición a las ciencias
de la naturaleza. De ahí, según Vázquez, se desprende una idea de
la filosofía como fundamento de la explicación de los fenómenos
a partir de la hermenéutica. Por otro lado, la escuela francesa re-
toma del positivismo del siglo XIX negando la posibilidad de una
ciencia de la naturaleza que pretende la corriente alemana, sino
que más bien existirán diversas ciencias que podrán abordar la
educación como objeto de estudio. Vázquez ubica como personaje
principal a Emile Durkheim17 En contraparte, es la escuela anglo-
sajona tanto en su vertiente estadounidense con una predominan- 49
cia pragmatista, así como en Gran Bretaña y Australia, con una
predominancia de la filosofía analítica18, que han tenido una evo-
lución tanto a nivel disciplinario como gremial y explica la forma
en que las asociaciones en los distintos países se conforman, de
la John Dewey Society y su transición en a la Philosophy of Educa-
tion Society (PES) en el Reino Unido, así como las otras asociacio-
nes tanto en Estados Unidos como en Australia.

No es casualidad que a partir del libro más famosos de


John Dewey19 se hayan encauzado grandes esfuerzos académicos
para desarrollar el área que, desde distintas corrientes de filoso-

16 Ibidem. p. 7-8
17 Ibidem.p. 21-23.
18 Ibidem. p. 19-20
19 Recordemos que la “obra cumbre” de John Dewey se llama Democracia y educación pero que
lleva por subtítulo una introducción a la filosofía de la educación. En castellano la traducción
más empleada es la de Lorenzo Luzuriaga.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

fía, daban sustento a un estudio contextualizado de la educación,


la filosofía de la educación. Eso explicaría por qué un buen por-
centaje de los libros sobre el tema provengan de esa raigambre.
Muchas de las obras traducidas al castellano corresponden a auto-
res de la tradición anglosajona, sólo por el número de publicacio-
nes en esa lengua.

Pero, ¿habrá una filosofía de la educación propia en Méxi-


co? Para poder dar respuesta a esta pregunta, me gustaría retomar
las palabras de Ambrosio Velasco cuando refiere a la perspectiva
que Ma. del Carmen Rovira ha encontrado a lo largo de sus inves-
tigaciones en las últimas décadas:

Así pues, el enfoque metodológico de la obra [de Ma.


del Carmen Rovira] está basado en dos premisas básicas: prime-
ro, que el pensamiento filosófico surge y se desarrolla en relación
estrecha con la problemática social, política y cultural del mo-
50 mento y busca no sólo comprender esa realidad, sino también in-
tervenir en ella. Por ello con toda razón Carmen Rovira destaca la
relación, política, ética y educativa del pensamiento político me-
xicano. En este sentido, coincide con José Gaos, quien considera
que la filosofía hispanoamericana, lejos de reducirse a sistemas
teóricos, como en el caso de la filosofía alemana, se caracteriza
por ser ensayística, literaria, política y pedagógica. Pero Carmen
Rovira y su grupo de investigadores, la mayoría de ellos jóvenes
profesores que fueron sus alumnos, van más a fondo al ubicar
como un segundo principio metodológico, el carácter polémico de
la producción filosófica de cada autor en contextos intelectuales
y políticos más complejo, esto es, en los “discursos”. Se trata pues
de analizar el pensamiento filosófico en toda su intensidad vital,
atendiendo tanto a los argumentos racionales, como a los presu-
puestos y consecuencias ideológicas20.

20 Velasco, Ambrosio. “Presentación” en Ma. del Carmen Rovira (Coord.) Una aproximación a la
historia de las ideas filosóficas en México… p. 12. Las negritas son mías.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

Como hemos visto, tal parecería que la filosofía no fue y


no es una actividad que esté lejos de los temas y problemas que los
mexicanos y probablemente los latinoamericanos vivimos día con
día. Si esto fuera cierto, entonces la forma de hacer filosofía de
la educación sería a la vez hacer filosofía política y a la vez hacer
filosofía de manera general. Lo que los pensadores han tratado de
resolver son las cuestiones que nos son más caras y próximas: pro-
blemas en torno a la resolución de problemas sociales, culturales,
políticos, todos ellos relacionados con lo educativo.

Se abre así un panorama que a la vez es interesante y com-


plejo. Lo primero, me atrevo a decir, ya que la misma filosofía me-
xicana parece estar escrita en clave política, ética y con profundas
aspiraciones educativas. En cuanto a temática, la filosofía mexica-
na no se hará preguntas por el “más allá” deviniendo en metafísica
u ontología que pretende estar desligada del aquí y del ahora. Más
bien, los problemas que representó ser una colonia española y luego
un país independiente mereció preguntarse por la forma de organi- 51
zarse y la forma de educar a los novohispanos o a los mexicanos. A
nivel de la forma de escritura, el tratado y las lecciones magistrales
parecen haber sido mucho menos usadas que las formas narradas
con anterioridad. El ensayo, el pasquín, el discurso e inclusive la
caricatura serán formas más ligadas al pensamiento y reflexión de
estas tierras dada la naturaleza y las formas de vida en lo que hoy
llamamos México. Si la tesis de Rovira es correcta, la tarea de la fi-
losofía política y de la filosofía de la educación mexicanas tendrían
que hacer una revisión minuciosa de todo lo que llamamos filosofía
mexicana. A partir de algunos ejemplos, pretendemos dar un pano-
rama de lo que esto puede implicar.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

La filosofía mexicana como filosofía de la


educación. Cinco ejemplos
Un estudiante o un profesor universitario podría fácil-
mente reconocer en Platón, Aristóteles, Kant, Hegel o inclusive
Nietzsche a un filósofo. Sin embargo, a pesar de haber nacido en
la misma tierra, no podría reconocer a Benito Díaz de Gamarra,
Antonio de la Veracruz o Francisco Severo Maldonado, sólo para
nombrar a algunos. Los pensadores mexicanos no son retomados
en el mismo sentido que otros filósofos europeos. Tampoco hay un
estudio de otros pensadores americanos, pensando sobre todo en
los de la región que llamamos América Latina.

Aunado a esta dificultad, está la dificultad de tener acce-


so a esos propios textos, si bien no hace falta la traducción de los
mismos, en la mayoría de los casos. Otro problema es si podemos
decir con tanta tranquilidad que existe “una” filosofía mexicana.
52
¿Qué características debería tener el pensamiento o la reflexión
para ser considerada filosofía?

Para efectos de la presente exposición, se tomará el tér-


mino filosofía en el marco más amplio posible en el entendido que
cada autor, grupo, corriente, momento y, en general, contexto de-
terminará su propio entendimiento. Claramente la palabra filoso-
fía, de origen griego, tiene una carga específica. No obstante, tam-
bién cada pensador europeo la fue cargando de significado según
fuera requerido por sus propios principios, estrategias y formas de
ver el mundo. Toda discusión posterior sería ya entrar en materia.

Como se vio en el apartado anterior, si en verdad toda la


filosofía hecha en este país tiene que atender primera y primor-
dialmente aspectos sociales, políticos y, por ende, educativos, la
labor de la filosofía de la educación estaría imbricada en el pen-
samiento filosófico mexicano de suyo. Esto vuelve la tarea aún
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

más ardua, ya que, ante el desconocimiento de la propia filosofía


mexicana, para estudiar sus aproximaciones hacia el fenómeno
educativo resulta indispensable conocer la tradición (o más bien
“las tradiciones” mismas).

Así, sólo a vuelo de pájaro, se podría estudiar, a partir


de registros en códices, esculturas o cualquier otro medio el pen-
samiento de los pueblos originarios de estas tierras. Pensar que
estos pueblos tenían y, en muchos casos, tienen una forma de
aproximarse al mundo a partir de un pensamiento propio es tanto
como afirmar que tienen una filosofía. Muchos de los pueblos
originarios de lo que hoy es México no sobrevivieron, como tales,
a la Conquista española. Sin embargo, muchos de los elementos
de su pensamiento, actuación, creencias, etc. siguen estando pre-
sente hasta hoy en día, en algunos casos de manera más patente,
en otros de manera más latente.

Toda vez que se consolida la Nueva España a partir de 53


1521, habría que estudiar la labor educativa que siempre estuvo
presente a la par de las reflexiones filosóficas de los evangelizado-
res como Bernardino de Sahagún, Bartolomé de las Casas o Alonso
de la Veracruz, sólo a manera de ejemplo. De distintas órdenes
religiosas, estos grandes pensadores tuvieron un desarrollo del
pensamiento sobre los principios educadores y su propia prácti-
ca en su contacto con los “naturales”, como se les llamaba en ese
tiempo, o ya fuera en la recién inaugurada Real Universidad de la
Nueva España en donde fray Alonso impartiría literalmente cáte-
dra en la Ciudad de México desde 1553. En todos los casos apli-
carían elementos de la escolástica traída desde el “viejo mundo”
para argumentar a favor de la humanidad del “indio” a partir de
la dialéctica y la retórica, para trabajar con ellos y para educar-
los, desde la perspectiva cristiana, pero también teniendo el “oído
fino” para escuchar a estos hombres y mujeres que les enseñarán
otras perspectivas de mundo, lo cual plasmaron en sus escritos.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Los siglos XVII y XVIII tendrá en la Nueva España un ca-


riz distinto por el influjo de ideas de modernidad también traídas
desde Europa. Así no puede ignorarse a intelectuales de la talla de
Carlos de Sigüenza y Góngora, Francisco Xavier Alegre, Francisco
Xavier Clavijero, Benito Jerónimo Feijóo, Francisco Javier Espejo
y la renombrada Juana Inés de Asbaje, mejor conocida como sor
Juana Inés de la Cruz. Estos hombres y mujeres quienes probaron
en cartas, discursos, exposiciones teológicas y, sobre todo, poe-
sía de la más novohispana tradición barroca, los lugares donde el
ingenio los podía llevar, tomando las formas de moda en España
pero a la vez innovando, cada uno a su estilo y en su propia genia-
lidad. Todos ellos harán una reflexión en torno a su papel como
intelectuales y el papel que la educación jugó en ellos. Este perí-
odo, además, debe ser visto a la luz de la visita de los jesuitas que,
en México, tuvieron un papel muy relevante hasta el XVIII con la
expulsión de los mismos. Estas ideas serán las que se retomarán
por los ilustrados en los siglos posteriores y que servirán, entre
54 otros factores políticos, económicos, sociales y culturales para la
Independencia de México en el período entre 1810 y 1821.

El siglo XIX se caracteriza por tener mayores registros


del pensamiento, tal vez porque había los medios impresos y las
condiciones políticas y sociales lo permitieron. La lista puede ser
muy grande y abarcar desde “el padre de la patria”, Miguel Hidalgo
y Costilla, quien fuera profesor de lógica y vinculara este cono-
cimiento con la estructura y forma de pensar de las sociedades,
Francisco Severo Maldonado, José María Morelos y Pavón, entre
otras figuras que son más recordadas por como los libros de his-
toria los han retratado que en una faceta de pensadores. También
están Lorenzo de Zavala, José Ma. Luis Mora, Lucas Alamán, Igna-
cio Ramírez, por citar a los más famosos disputantes entre el libe-
ralismo y el conservadurismo; Gabino Barreda, Francisco Bulnes,
Justo Sierra, José María Vigil, entre muchos otros que apoyaron
o discurrieron del positivismo en México. Menos conocidos son
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

los que abogaban por un discurso escolástico “tardío” como Javier


Aguilar Bustamante, Francisco Zavala o Ignacio Gamboa. Tambi-
én los hubo quienes prefirieron elaborar discursos cosmológicos
como Juan Nepomuceno Adorno, José Olvera o Jesús Ceballos Do-
samantes, entre otros más21.

A partir de la Revolución Mexicana en 1910 y tras treinta


años de gobierno de Porfirio Díaz, aparecieron distintas corrien-
tes filosóficas en el país hasta nuestros días. Hacer una lista de los
filósofos mexicanos del siglo XX puede ser una tarea sinuosa entre
más cercana sea al punto de vista de quien escribe y deja dentro a
algún autor y fuera a otro. No obstante, pensadores de la talla de
Ezequiel A. Chávez, José Vasconcelos, Antonio Caso, Vicente Lom-
bardo Toledano, Samuel Ramos, Francisco Larroyo, entre otros ve-
rán como parte indiscutible de su obra filosófica a la educación.
No es casualidad que su labor haya estado ligada a la Universidad
Nacional y al gobierno del país. También resalta la llegada de los
“transterrados” de la Guerra Civil Española, quienes se incorpo- 55
rarán de manera no exclusiva pero sí mayoritaria a México y sus
instituciones. Muchos de ellos, grandes humanistas de origen,
engrosarán las filas de la Universidad Nacional, además de crear
instituciones académicas y culturales. Nombres como José Gaos,
Eduardo Nicol, Adolfo Sánchez Vázquez, Joaquín Xirau, entre
otros llegarían a ser relativamente conocidos en América Latina
ya que su pensamiento, si bien originario de Europa, construirían,
cada uno a su manera, una filosofía propia que en todos los casos
estaría vinculado al quehacer y pensar en torno a la educación.

Cabe mencionar que la historia que he narrado, salvo en


honrosísimas excepciones, se desarrollaron en el centro de la dis-
cusión de las ideas filosóficas y educativas: la Ciudad de México y,

21 Para tener una visión más completa se sugiere revisar los libros coordinados o compilados por
María del Cármen Rovira Gaspar citados en las obras referidas.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

dentro de ella, en la Universidad Nacional Autónoma de México.


Es una labor complementaria y mucho más ardua reconstruir la
historia del pensamiento regional, sobre todo en un país que de
iure terminó por definirse como federalista y republicano pero
que de facto es muy centralista. Fuera de algunas universidades
en estados de la República Mexicana como Veracruz, Nuevo León,
Jalisco y Puebla, la universidad considerada como un proyecto na-
cional en 1910, meses antes de la Revolución, sería el espacio de
discusión de muchas ideas en el centro el país, la Ciudad de Méxi-
co. La creación de nuevas universidades tendría que esperar a la
década de los setenta, ochenta y noventa del siglo XX. ¿Cuál es la
filosofía de la educación en estas universidades? ¿Acaso hay filo-
sofía de la educación, aun con otro nombre, fuera de los ámbitos
universitarios? Esto aún queda abierto a debate.

Lo que pretendo hacer a continuación, habiendo hecho


todas estas salvedades, es seleccionar cinco casos que puedan
56 mostrar, aunque sea de manera indicativa, las formas de hacer
filosofía de la educación en México. Más allá de tratar de ejempli-
ficar con autores o corrientes un poco menos desconocidas, más
bien la intención será trabajar con cinco casos “en los lindes” de
la filosofía de la educación. Esto quiere decir que no son los au-
tores típicos, tampoco para efectos de los cursos de filosofía de
la educación en México, ni siquiera en la UNAM. Esta selección,
como todas, es arbitraria pero pretende mostrar, de manera muy
sintética, cuáles serían los lineamientos o la forma de entender la
filosofía y su aproximación a la educación. Como he tratado de
mostrar desde el comienzo de este trabajo, aún la labor es ardua.

a. La filosofía náhuatl y los agentes educadores

Tal vez una de las culturas prehispánicas más importan-


tes sea la náhuatl, también conocida como mexica o azteca, aun-
que estas dos últimas denominaciones no sean lo más precisas. El
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

famoso “Coloquio de los doce [franciscanos]” narra con posterio-


ridad (1564)22 que estos religiosos llegaron a la recién conquistada
Nueva España y preguntaron por los sabios o filósofos. La res-
puesta de los “naturales” fue que los tlamatinime, a quien Miguel
León Portilla presenta como “sabios o filósofos”23 ya habían muer-
to en la Conquista y que, ante la insistencia de los franciscanos
por realizar algunas preguntas, ellos intentarían responder de la
mejor manera. Gracias a estos relatos y los de otros intelectuales
hispanos llegados a tierras americanas tenemos noticia de algu-
nas de las formas de vida de los pueblos originarios del país.

A nivel filosófico, tal vez después de la época colonial,


parece casi haber desaparecido el estudio de los pobladores del
Lago de Tenochtitlan, origen de la Ciudad de México. Si bien Mi-
guel León Portilla no fue el primero en estudiar estos temas, su
tesis doctoral sería el primer intento por rescatar el pensamiento
náhuatl en sus propias fuentes. Su maestro de lengua náhuatl,
Pedro María Garibay, habría hecho especial énfasis en la forma 57
de la “lengua florida”, es decir, la forma de suyo poética de la pro-
pia lengua náhuatl que permitía generar cultura en un decir que
siempre procuraba darse de manera hermosa. Como se dijo líne-
as arriba, para León Portilla los “sabios o filósofos” eran figuras
importantes en Tenochtitlan ya que “dotaban de rostro y corazón”.
Rescata 21 formas de definir a los tlamatinime, todas ellas a nues-
tros ojos de manera metafórica. Dotar de rostro y corazón, según
León Portilla y sólo a manera de ejemplo, era dar personalidad y
sentido a los otros. Se le llama “espejo” o “tea ardiente” que guía
a las personas. Claramente, en un sentido amplio, estos sabios o
filósofos eran educadores de las sociedades nahuas.

22 Cfr. DUVERGER, Christian. La conversión de los indios de la Nueva España con el texto de los
Coloquios de los Doce de Bernardino de Sahagún.
23 LEÓN PORTILLA, Miguel. Los sabios o filósofos. In: La filosofía náhuatl estudiada en sus fuen-
tes con nuevo apéndice. p. 63-74.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Por su parte, Alfredo López Austin ha hecho traduc-


ciones, compilaciones y estudios sobre cómo era la educación
náhuatl. Además de los tlamatinime, se rescatan distintos espa-
cios educativos como pudieron ser los huehuehtlatolli o discursos
de ancianos. Tras hacer la selección, paleografía, traducción y no-
tas a estas transcripciones de códices del siglo XVI24, López Austin
muestra la importancia que tenían estos discursos musicalizados
que impartían los ancianos a las nuevas generaciones en momen-
tos emblemáticos de su propia formación. Estos discursos permi-
tían ver la función de los jóvenes en el ingreso al Telpochcalli, uno
de los sistemas “escolares” o bien la forma de hablar en torno a la
embriaguez de los jóvenes. En otro par de textos25, el propio López
Austin narra la forma de educar de los nahuas en las familias, en
los barrios o callpuli y en la ciudad de México-Tenochtitlan en su
conjunto. Muestra la forma de administrar castigos, como res-
pirar humo de chile o ser punzado con agujas de maguey si el
comportamiento no correspondía con lo esperado con las normas
58 morales del momento. Describe la educación femenina en el ho-
gar y la masculina en el antes mencionado Telpochcalli o bien el
ingreso de los nobles y sacerdotes al Calmecac, la otra “escuela”.

Otros autores que se han dedicado al estudio de las fuen-


tes nahuas han sido profesores como Patrick Johansson, quien ha
elaborado estudios en torno a la lengua náhuatl y su creación po-
ética. ¿Cómo entender la relación de la educación de los nahuas
con su forma de pensar? ¿Algo de lo que era vigente para los anti-
guos pobladores del Valle de México-Tenochtitlan seguirá siendo
vigente para la cultura mexicana? Seguramente estas preguntas y
otras siguen siendo vigentes.

24 López Austin, Alfredo. Educación mexica. p. 33-39.


25 López Austin. La educación de los antiguos nahuas. 2 vols.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

b. Fernando Salmerón y la filosofía de la educación

Fernando Salmerón Roiz (Córdoba, Veracruz 1925 – Ciu-


dad de México 1997) estudió la Licenciatura en Derecho en la Uni-
versidad Veracruzana y la maestría y el doctorado en filosofía en
la UNAM, ambas bajo la dirección de José Gaos. Estudió también
en la Universidad Albert Ludwig de Friburgo. A su regreso de Ale-
mania, fue profesor en ambas universidades, además de la Uni-
versidad Autónoma Metropolitana (UAM). Llegó a ser rector de la
Universidad Veracruzana entre 1961 y 1963 y de la UAM entre 1979
y 1981. Fue impulsor de varias revistas filosóficas, así como fun-
cionario académico en la UNAM. Fue parte de la Academia Me-
xicana de la Lengua y recibió múltiples condecoraciones en vida.

Trabajó desde 1964 en el Instituto de Investigaciones Fi-


losóficas de la UNAM, del cual también fue director. Desde esta
instancia universitaria realizó un trabajo intenso por desarrollar
diversos temas, entre los cuales destaca la filosofía moral y la filo- 59
sofía de la educación vinculada con la filosofía analítica, si bien
su obra no se limitó a ello. Según Juliana González:

Cuando Fernando Salmerón realiza sus primeros en-


sayos en el campo de la filosofía analítica de la educación in-
tenta -dice él mismo- cubrir el atraso de más de 40 años que la
filosofía analítica tenía en dicho campo, contrastando con los
desarrollos de ésta en la Ética o FilosofIa moral26.

La articulación de su postura filosófica parte de la idea


de que la filosofía debe, a través de un lenguaje propio, tener la
capacidad de realizar un análisis del fenómeno educativo. En este
sentido su conferencia sobre “El lenguaje de la educación”, publi-
cado en 1974, distingue un lenguaje que se usa en los salones de

26 González, Juliana. “Fernando Salmerón: Enseñanza y Filosofía” en Revista de la Universidad.


México, No. 495, 1992. p. 37.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

clase, lenguaje que busca ser general y descriptivo. Por su parte,


el lenguaje filosófico es el único propio para la filosofía de la edu-
cación pues vincula la idea de la educación del hombre desde un
lenguaje evaluativo y práctico que vincula con la filosofía moral.
Concluye Salmerón diciendo lo siguiente: “El lenguaje de la edu-
cación es el mismo lenguaje de la moralidad.27” Esta visión no fue
del todo aceptada por pedagogos y educadores ya que implicaría
que la filosofía de la educación, por las implicaciones de su len-
guaje determinado y vinculado a la filosofía moral, sólo podría ser
realizado por filósofos. Esta discusión sigue estando pendiente.

Las obras de Salmerón incluyen análisis sobre la obra de


José Gaos, el papel de la Universidad contemporánea, así como di-
versos temas de historia de la filosofía y análisis de filosofía moral
en términos generales. Para una perspectiva general se sugiere el
libro que reúne las ponencias presentadas en su homenaje28.

60 c. Joaquín Xirau: amor, educación y mundo

Joaquín Xirau Palau (Figueras, 1895 – Ciudad de México,


1946) fue un filósofo catalán que, debido a la Guerra Civil Españo-
la, dejaría ya muy tardíamente España en 1939 y cruzar la frontera
con Francia para tomar un barco, junto con su esposa y su hijo
Ramón, hacia Nueva York y finalmente hacia México. Gracias a
los contactos con otros refugiados españoles Joaquín Xirau se in-
corporará como profesor en la Facultad de Filosofía y Letras de la
UNAM. Ya en España había publicado varios libros en torno a la fi-
losofía moderna, en especial Rousseau, Leibniz y Descartes. Aun-
que ya había trabajado varias ideas en torno a la fenomenología,

27 Salmerón, Fernando. “El lenguaje de la educación” en Enseñanza y filosofía. México: El Cole-


gio Nacional. p. 36.
28 Olivé, León y Luis Villoro (Eds.) Homenaje a Fernando Salmerón. Filosofía moral, educación e
historia. México: UNAM, 1996.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

en 1940 se publica en México la que es considerada su obra más


importante Amor y mundo. En esta obra Xirau explica su idea de
amor, retomándola de autores como Llull, y su potencialidad vin-
culante. En una especie de respuesta a los fenomenólogos, trata
de argumentar a favor del vínculo amoroso en la construcción del
mundo en tanto creación fenoménica de los individuos a partir
de sus propios contextos y relaciones. En 1941 publicaría La fe-
nomenología de Husserl, en donde hará una exposición y a la vez
crítica del padre de la fenomenología europea. En 1942 traduce al
castellano el primer volumen de la famosa obra Paideia de Werner
Jaeger directamente del alemán dentro del proyecto editorial del
Fondo de Cultura Económica. El segundo volumen tendría que
ser traducido por Wenceslao Roces debido a la muerte prematura
de Xirau en un accidente fuera de la Facultad de Filosofía y Letras
de la UNAM.

Además de su trabajo filosófico que también versaría so-


bre Bergson, Lull, Spinoza, Goethe, entre otros resalta su trabajo 61
pedagógico desde y, en gran medida, sobre la Facultad de Filoso-
fía y Letras y Pedagogía de la Universidad de Barcelona, donde ha-
bía sido profesor durante varios años. A mi parecer, el ensayo que
permite vincular su parte filosófica con la pedagógica es “Filosofía
i educació29” de 1930 en donde realiza, en tan sólo cuatro hojas,
una vinculación que me permito explicar a partir del título. Para
Xirau, la filosofía no es necesariamente un sistema, sino fenome-
nológicamente una posibilidad de ir a las cosas mismas y explicar-
las a partir en la que el individuo pueda darle sentido al mundo.
La educación es un proceso multifactorial que parte de factores
físicos, biológicos, racionales y emocionales. En pocas palabras,
educar a un ser humano sería la posibilidad de darse sentido a
partir de estos factores. De esta manera, la filosofía no se impone

29 Xirau, Joaquín. “Filosofía i educación” en Obras completas. T. II. pp. 376 -380. Existe traducci-
ón al castellano en Carmina Galicia Fuentes. Filosofía y educación en Joaquín Xirau. México:
UNAM, 2010. pp. 85-89.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

como sistema ante la educación como un objeto de estudio, sino


que más bien se hace filosofía al entender que los fines y medios
de la educación deben ser establecidos por cada sujeto, dándose
sentido a sí mismo. No hay un deber ser a cumplirse y mucho
menos cuando esto viene dado por un principio deontológico. La
filosofía y la educación están vinculadas y no supeditadas como
supone una filosofía de la educación. Cada individuo, de manera
fenomenológica, podrá ir dándole sentido a su propio ser en con-
ciencia de los elementos que lo educan. Con este planteamiento,
las grandes pretensiones educativas de los Estados nacionales, las
escuelas o cualquier deber ser impuesto de manera colectiva y
uniforme cae ante este ejercicio filosófico.

Aún quedan por leer, trabajar, traducir, comentar, criti-


car, etc. varios tratados de un autor catalán que encontró en Méxi-
co el espacio para continuar su labor filosófica y pedagógica. Otro
campo que para nosotros se amplía para nuestra aproximación.
62
d. Graciela Hierro: la filósofa y la educación de las
mexicanas

El nombre de Graciela Hierro Perezcastro (Ciudad de Mé-


xico 1928 – 2003) estará siempre ligado a los estudios de género,
a la enseñanza de la ética y a la filosofía de la educación. Tal vez
el elemento interesante a rescatar es que Graciela Hierro utilizó
su propia vida como elemento filosófico ya que, como mujer, no
pudo estudiar inmediatamente después del bachillerato sino que
“debía casarse”. Fue hasta que pudo “liberarse” de los prejuicios
que implicaban ser mujer, un divorcio y después de haber teni-
do una hija, que estudió filosofía a nivel maestría y doctorado.
El total de cinco hijos hizo que su carrera académica durara diez
años. Muy pronto se vería atraída hacia los estudios de género,
que llevó a su máximo exponente en una época en donde estos
planteamientos no eran comunes. El género es una cuestión que
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

se construye y, por tanto, puede ser objeto de indagación sobre las


formas culturales en la que nos construimos hombres y mujeres.
Esto llevó a que en 1992 fuera la fundadora y directora hasta su
muerte del Programa Universitario de Estudios de Género en la
UNAM. Entre sus obras más famosas en este sentido están Ética
y feminismo de 1985 y su último libro, La ética del placer en 2001.
Con posturas distintas aborda la problemática de ser mujer y su
vinculación ética.

En lo que respecta a la filosofía de la educación, es deu-


dora de las ideas de Fernando Salmerón al respecto. No obstante
concibe otra forma de realizar filosofía de la educación, allende la
filosofía analítica. En sus propias palabras:

Sintetizando lo anterior, podemos concluir que dada


la problemática, se pueden dar dos niveles dentro de la [Filo-
sofía de la Educación]FE. Uno de tipo analítico que se limita
a explicitar el lenguaje educativo y que es común a todas las 63
FE.***30 El otro, el nivel normativo, va más allá del puro análi-
sis semántico y se arriesga a plantear proposiciones normativas,
de acuerdo con un modelo de sociedad y un ideal de individuo
definido por la perspectiva filosófica (ética o política) que se
maneje. (Sea a partir de una realidad histórica o propuesto utó-
picamente.) Pensamos que en la medida en que las personas pre-
ocupadas por la educación y que manejan la técnica filosófica,
cualquiera que sea su perspectiva ética o política, se aboquen a
la creación de una Filosofía de la Educación rigurosa, sin duda
ayudarán a que esta tarea vital e ineludible de los individuos
y las sociedades, adquiera una dimensión más racional y por
tanto más humana31.

30 En una nota, agrega lo siguiente que es, sin duda importante: “***El movimiento Analítico
dentro de la Filosofía es la corriente más importante en los Estados Unidos y en Inglater-
ra. Pocos de sus componentes se han ocupado de la FF [sic.], sin embargo, existen trabajos
importantes dentro de esta perspectiva. Esta corriente, en general sólo reconoce la función
analítica de la FE.”
31 Hierro, Graciela “Reflexiones acerca una filosofía de la educación” in Revista de la educación
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Esta experiencia de vida que pudo llevarla a desarrollar


varias ideas de filosofía de la educación. Tal vez dos obras de ella
son de especial relevancia. Por un lado, se encuentra una obra
en donde realiza un estudio de cómo la mujer mexicana pasó de
estar domesticada a la posibilidad de su educación32. En ella hace
una reflexión de cómo, en las distintas épocas, se construyó lo que
la mujer debía ser y la forma de lograr, a través de la educaci-
ón, realmente convertirse en mujeres. Otro libro importante, que
también abrió brecha en muchos sentidos fue su compilación de
trabajos en torno a la filosofía de la educación vinculada a la idea
de género33. Los textos de Graciela Hierro abren una posibilidad
de dar cuenta de la educación desde perspectivas filosóficas nue-
vas y que, como buena pensadora mexicana, aceptaban una mul-
tiplicidad de interpretaciones en torno a lo que la educación era
y debía ser, no una esperanza en ser educado por el otro sino un
acto, si se me permite, de “auto-educación”, siendo plenos y plenas
en nuestras formas de ser.
64
e. El ‘ermano Carlos: los que los tojolabales le enseñaron

Quien naciera como Karl Heinz Herman Lenkersdorf


Schmidt en Berlín en 1926 llegaría a ser el ‘ermano Carlos (m. Ciu-
dad de México, 2010), el lingüista, teólogo, filósofo y educador que
aprendió lo que los tojolabales, un grupo lingüístico y cultural de
la zona del sureste mexicano en el Estado de Chiapas. Tras una
difícil adolescencia en Alemania durante la Segunda Guerra Mun-
dial y estudiar teología en Marburgo, llegará en 1957 a México por
primera vez en donde se establecería definitivamente desde 1967
hasta su muerte. Es en 1971 cuando Samuel Ruiz lo invita a las

superior.México: ANUIES, VII (4), No. 28. octubre-diciembre 1978. Disponible en el URL: http://
resu.anuies.mx/archives/revistas/Revista28_S1A4ES.pdf
32 Hierro, Graciela. De la domesticación a la educación de las mexicanas. México: Fuego Nuevo,
1989.
33 Hierro, Graciela Filosofía de la educación y género. México: UNAM / Torres Editores, 1997.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

comunidades de habla mayense, en especial los tojolabales. De


ellos, junto con su esposa Gudrun, deciden aprender la lengua y
convivir con las distintas comunidades. Con el tiempo desarrolló
el diccionario tojolabal-castellano, además de hacer especial én-
fasis, ya como investigador del Centro de Estudios Mayas del Insti-
tuto de Investigaciones Filológicas, de que el pensamiento maya-
-tojolabal no era un pensamiento caduco de pueblos extintos, sino
más bien una filosofía ( ju’un: papel, libro, y por extensión pensa-
miento o filosofía) vívida, una forma de ver el mundo actual que
mucho podría enseñarnos a los occidentales.

La lengua tojolabal, según escribió Carlos Lenkersdorf,


como era mejor conocido, es una lengua ergativa que no distin-
gue entre sujetos y objetos. Todo tiene un papel activo. Además,
la partícula – tik al final de una palabra indica “nosotros34”. De
esta manera, en la lengua y cosmovisión tojolabales no existe el
“yo”. Esto tendrá implicaciones jurídicas, sociales, económicas,
políticas y de otras naturalezas; también educativas. Para Carlos 65
o, como le decían en tojolabal ‘el ‘ermano Carlos’, en la lengua está
la posibilidad de entender filosóficamente cualquier cosas, desde
cuestiones de tiempo y espacio en los números, la cosmogonía o
la noción de presente y pasado, así como las nociones de justicia,
libertad, entre muchos otros.

En el único artículo que dedica a la cuestión educativa35,


queda de manifiesto que esta noción “nosótrica” impactará las for-
mas en las que entienden la educación. En un ejemplo muy po-
pular, Lenkersdorf narra que cuando le preguntaron lo que era un
examen, él les explicó lo que se hacía en las escuelas occidentales.

34 Lenkersdorf, Carlos. La lengua tik in: Filosofar en clave tojolabal. México: Porrúa, 2002. pp. 23-
35.
35 Lenkersdorf, Carlos Aspectos de educación desde la perspectiva maya-tojolabal in: Reen-
cuentro, núm. 33, mayo, 2002, pp. 66-74 Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochi-
milco, México
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Cuando les planteó el problema, de manera instintiva se reunie-


ron entre todos a resolver el reto. Carlos les explicó que así no era
un examen sino cada quien por su cuenta. Ellos le reviraron que
eso no tenía sentido. El colectivo pensaba mejor que el individuo,
el colectivo tenía la sensibilidad para determinar qué opción re-
sultaba mejor. Así, una y otra vez, el ‘ermano Carlos aprendía de
sus maestros, los tojolabales.

Además de esto, es posible sostener que no sólo eran las


cuestiones “estrictamente” educativas en las que la filosofía tojo-
labal se podía entender. La propia definición de los tojolabales
implica una forma de entender al ser humano. Tojol quiere decir
“en su punto”, “justo”, “exacto”. Una tortilla recién hecha, en su
punto, aromática es tojol waj. ‘abal es la capacidad de escuchar.
Un tojolabal no nace así, se hace. Se llega a ser un tojolabal cuan-
do se está en el punto exacto de su ser y esto se logra escuchando.
Aprender a escuchar. Enseñanzas maya-tojolabales, publicado
66 en 2008, es un libro en donde deja ver todo lo que aún podemos
aprender de la cosmovisión y filosofía de uno de los pueblos origi-
narios que aún viven en nuestro país.
CAPÍTULO 2 : LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN EN MÉXICO: UNA PERSPECTIVA

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_____________ Amor y mundo.


FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

La educación agropecuaria
superior en Cuba: Tensiones
de concepciones filosóficas de
ciencia y tecnología

ADOLFO RAMOS L AMAR 1 Y


EDUARDO FREYRE 2

70 Introducción

S
i nos remontamos a la Educación Agropecuaria en Cuba du-
rante el periodo colonial (de 1878 a 1902) y neocolonial (de
1902 a 1959) encontraríamos tensiones entre las concepcio-
nes filosóficas de la ciencia y la tecnología de la Escolástica y la
Ilustración. Sin embargo, aquí no vamos tan lejos. El objetivo del
presente capítulo estriba en algunas tensiones relacionadas con la
Educación Superior Agropecuaria de Cuba.

1 Professor do Programa de Pósgraduação em Educação da Universidade Regional de Blume-


nau PPGEFURB), Blumenau, Santa Catarina, Brasil. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Filoso-
fia e Educação/Educogitans do PPGEFURB. Doutorado em Educação e mestrado em Política
Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas e pósdoutorado em Filoso-
fia da Educação pela Universidade de São Paulo (2007), Brasil e Licenciatura em Filosofia pela
Universidad de la Habana (1982)P.
2 Pesquisador colaborador do do Grupo de Pesquisa Filosofia e Educação/Educogitans do PP-
GEFURB. Doutor em Ciências Filosóficas e Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual
de Moscú, Rússia; Pósdoutor em Educação pela FE/UNICAMP.
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

Las tres fechas señaladas marcan contextos de reflexi-


ón sobre los fines, objetivos, y contenidos paradigmáticos de la
educación en general, y de la educación agropecuaria superior en
particular. En este contexto, la sucesión Planes y Programas de
Estudios y diseños curriculares de las carreras, disciplinas y asig-
naturas en las carreras agropecuarias acarrean consigo un replan-
teo de las concepciones filosóficas de la ciencia y la tecnología.

Además de la revisión bibliográfica pertinente, los auto-


res comparten aquí su experiencia del asunto siendo durante 27
años profesores e investigadores de Filosofía en la Universidad
Agraria de la Habana (UNAH), y en otras universidades de Cuba,
así como en Brasil, Bolivia, Ecuador, México y Venezuela.

Modernidad y Educación Superior Agropecuaria en


71
Cuba a partir de 1975
El sistema educacional cubano que emerge a partir de las
Tesis y Resoluciones del Primer Congreso del Partido Comunista
de Cuba (PCC) en 1975 pautó un ideal educativo en las carreras
agropecuarias orientado hacia la formación de un profesional ac-
tor protagonista del proyecto de la Revolución cubana y puntual-
mente de la política de los Ministerios de la Agricultura (MINA-
GRI) y de azúcar (MINAZ).

De ahí entonces que se demandara la formación de un


profesional que tributara a los planes de modernización en ambos
sectores, y a los planes quinquenales de producción agropecuaria y
desarrollo rural de los mencionados ministerios, pero con un acer-
vo de saber económico, político, social, filosófico y científico apor-
tado por los clásicos del Marxismo, y Lenin, y también por el Tercer
Mundo y de Cuba.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

La agenda de la Modernización Agrícola en diversas par-


tes del mundo promueve el monocultivo, los altos insumos, la es-
pecialización genética, la industrialización agrícola, el mercado
de productos agrícolas, la proletarización de los campesinos, y la
urbanización del campo. En Cuba se sustentó en la dependencia
externa de recursos, insumos, conocimientos, y asesoría técnica,
dado a que Cuba estuvo integrada al bloque económico socialista
europeo Consejo de Ayuda Económica CAME).

El peso de sus importaciones y exportaciones de insumos


y productos agrícolas recaía en los tratados bilaterales con la en-
tonces Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Gracias
a esas relaciones de solidaridad y colaboración Cuba adquirió
una fuere capacidad insumos y equipos agrícolas, hasta el punto
que llegó a utilizar mayor cantidad de fertilizantes, plaguicidas y
máquinas promedio por hectáreas que Estados Unidos, Canadá, y
América Latina en su conjunto (CHAN y FREYRE, 2011, p.77).
72
A diferencias de otros países de la región, la industriali-
zación de la agricultura y la urbanización de los campos asegura-
ron bienestar tanto en materia de salud, como de alimentación,
vivienda, educación, empleo, seguridad social, y equidad.

Los profesionales agropecuarios jugaron un papel deci-


sivo en estas conquistas, al estar altamente capacitados en de los
sistemas agrícola y ganadero de gran escala3. De 1960 hasta finales
de los 80s existe un sistema de formación agropecuaria que tribu-
ta precisamente al enfoque de Agricultura Convencional adoptado
por la política oficial, y fundamentalmente al entonces preponde-
rante sector agropecuario estatal.

3 Entre 1987 y 1992 este sector ocupa respectivamente el 70 % y el 82,2 % del fondo de tierras
cultivables del país, y cuyas extensiones de monocultivos de caña, arroz, papas, cítricos, ta-
bacos, ganado, etc, que en total promedian entre 13 a 31 mil hectáreas.
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

Tal enfoque se hace acompañar de acciones de capacita-


ciones verticalmente concebidas, en función de un especialista en
condiciones óptimas de transferir tecnologías o paquetes tecnoló-
gicos generados externamente en las instituciones de investigaci-
ón y desarrollo en los países socialistas y en Cuba.

Filosofía y Modernización en este contexto


Se conoce que ideal educativo de la Modernización Agrí-
cola no es neutral desde el punto de vista filosófico. A su favor se
invocan tesis filosóficas como el dualismo ontológico (lo mate-
rial y lo ideal, lo objetivo y lo subjetivo), el antropocentrismo, la
transformación de la naturaleza, pero sobre todo el culto al sa-
ber científico y técnico (cientificismo), la alta especialización en
la producción de conocimientos, y la idea del progreso histórico.
Fundamentos filosóficos de la modernización se documentan la 73
tradición filosófica ilustrada y positivista que va de Bacón a Comte
y James, pasando por Descartes y Kant.

Empero en Cuba la modernización descansó en la Filo-


sofía del Marxismo-Leninismo. Lo evidencia fehacientemente el
programa de Disciplina de Filosofía de formación general obli-
gatoria y su parte relacionada con la Ciencia y la Tecnología que
durante ese tiempo se impartía en la red de centros de Educación
Superior. La Filosofía se dividía en dos materias: Materialismo
Dialéctico (MD) y Materialismo Histórico (MH).

El MD se impartía como una especie de Filosofía general


o Filosofía de la naturaleza y Filosofía de la Ciencia e/o Epistemo-
logía. Mientras que MH como la aplicación del MD a la sociedad.
Ambas asignaturas tributan a una concepción evolucionista de la
realidad, tanto de la naturaleza como de la sociedad.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Contenidos filosóficos destacados es que la materia deter-


mina la conciencia (monismo dialéctico-materialista). La inten-
cionalidad pedagógica de la formación materialista encajaba muy
bien en el carácter laico de la política con respecto a la religión, y,
al mismo tiempo, a la idea de la necesidad del cambio de las con-
diciones materiales como requisito para el cambio de conciencia,
el desarrollo moral, y el activismo político.

A esto se suma otra tesis de amplio conocimiento de quie-


nes egresan de las universidades: la idea de la práctica como criterio
absoluto y relativo de la verdad, lo cual viene muy bien con la ex-
pectativa de una personalidad activa y práctica en todos los sentidos,
tanto en la transformación de la naturaleza como de la sociedad.

A la hora de explicar la ciencia y la técnica, la dinámica de


la sociedad sobresale la concepción de la sociedad como Formación
Económico Social, concepto que indica que a través de la evolución
74 social, la Base económica de la sociedad (relaciones sociales de pro-
ducción, propiedad, cambio y consumo, y las fuerzas productivas)
determina en última instancia la Superestructura Social y Jurídica
(formas de la conciencia social, relaciones sociales e instituciones
sociales). Queda así fundamentada filosóficamente la prioridad que
se le otorga a la formación científica especializada y al trabajo del
graduado universitario al servicio del progreso social y nacional y
su papel en la utilización del progreso científico técnico.

De ahí que uno de los contenidos de la asignatura de Filo-


sofía que oportunamente apuntala el ideal de la modernización es
la idea que el conocimiento científico es superior al conocimiento
cotidiano, común y corriente. Eso tributa muy bien a los planes
quinquenales de desarrollo agrícola y al liderazgo que se le otorgó
a los profesionales de la agricultura en la conducción de la política
científica y tecnológica del MINAZ y el MINAGRI. Bajo estas con-
diciones había poco chance de que el conocimiento campesino (la
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

tradición agrícola) tuviera alguna presencia en las universidades.


La formación no se ve en la continuidad con la tradición agríco-
la campesina, sino más bien con su ruptura. El reconocimiento
social privilegiado recae en el profesional, después en el técnico
agrícola de nivel medio, y en última instancia en el campesino.

La impartición de los contenidos de la Filosofía no estu-


vo exenta de debates y controversias en los años que se indican
aquí. Lo cual es lógico por la experiencia que a finales de los 80 se
había alcanzado en estudios de pregrado y posgrado en la URSS
y otros países socialistas. Por otro lado, “no podemos olvidar que
la segunda mitad de la década estuvo fuertemente influida por la
conmoción que generó la Perestroika soviética y el posterior der-
rumbe del socialismo europeo” (Núñez et al, 2015, p.6).

Una de las cuestiones que siempre estaba en el paquete de


la discusión es que la utilidad de la enseñanza de la Filosofía ya no
sólo en lo ideológico y político, sino también lo técnico y práctico. 75
En términos de diseño curricular se trataba de ver en qué medida
las tesis filosóficas podrían adaptarse al perfil de las profesiones. Y,
por otra parte, si la formación agropecuaria podría prescindir de la
enseñanza filosófica.

Es el tiempo en que hay tensiones entre la Dirección de


Marxismo-Leninismo en del Ministerio de Educación Superior, y
las Comisiones de Carreras universitarias. Estas oscilaban entre
las que demandaban más vínculo de la Disciplina de Filosofía con
los perfiles profesionales, hasta las que años tras años utilizaban
el margen de autonomía para transformar el Plan de Estudio y
reducir la carga horaria de esta Disciplina, y dárselas a las Disci-
plinas de Formación Técnica Profesional. Decisiones de este tipo
limitaron el accionar de los profesores de Filosofía y alimentaron
la desmotivación de los estudiantes por su estudio.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Habría que tomar en cuenta también que a la altura de los


90 ingresan al claustro de las carreras agropecuarias profesores y
la administración institucional agropecuaria (agrónomos, veteri-
narios, pecuarios, mecanizadores agropecuarios y economistas
agropecuarios) que se formaron en esa Filosofía, y la concepción
de la ciencia y la tecnología.

Educación Agrícola y Agricultura Sostenible en Cuba


a partir de 1990
Ahora bien, partir del colapso del Sistema Socialista en
Europa Oriental, y sobre del soviético (1990), el paradigma de la
modernización agrícola comienza a ser más desafiado por el para-
digma de la Agricultura Sostenible en Cuba. A finales de los 80s,
el desarrollo agropecuario cubano es afectado por una crisis de
76
insumos agrícolas y alimentos. No hay más que ver que la produc-
ción agrícola y ganadera nacional drásticamente disminuye.

En tal coyuntura se introducen reajustes en la política


agropecuaria. Por ejemplo, se pone en marcha el proceso de redi-
mensionamiento de la tenencia de la tierra, del mercado agrope-
cuario, y la política de ciencia, tecnología y desarrollo. Decretos
oficiales refrendan la orientación de la política agraria hacia el pa-
radigma de Agricultura Sostenible4. Eso implico entre muchas co-
sas más, mayor participación de conocimiento local, diversifica-
ción agrícola, diálogos entre el saber científico y el saber popular
tradicional, así como la introducción a gran escala de tecnologías
agrícolas de bajos insumos y amigables con el medio ambiente.

4 Por ejemplo, los artículos 132, 133 y 134 del Capítulo IX de la Ley No. 81 de Medio Ambiente,
dictada por el Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente (CITMA). El Decreto No.
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

No es un secreto que las políticas que se implementaron


en el llamado Periodo Especial en tiempo de Paz permitieron que
el sistema agropecuario cubano no colapsara. Demostrándose las
potencialidades del paradigma de la Agricultura Sostenible y las
debilidades del paradigma de la Agricultura Convencional.

Cabe esperar en tal contexto transformaciones en la polí-


tica educacional de formación de profesionales para la agricultura.
El país necesita preparar, calificar y capacitar recursos humanos,
agricultores directos, profesionales, y técnicos medios, motivados y
en condiciones de encarar la reducción drástica de insumos exter-
nos, promover la diversificación agrícola y pecuaria, y contribuir a
la producción de alimentos para el consumo nacional.

En este sentido, se emprenden esfuerzos para formar


profesionales que gestionen la reconversión sostenible de los
agroecosistemas: del uso de tecnologías altos insumos al uso de
tecnologías de bajos insumos; de la monoproducción a la diversi- 77
ficación productiva de las fincas; del uso de agroquímicos al uso
de abonos orgánicos; de la superespecialización a la integración
de actividades agrícolas y ganaderas.

El propósito de gestionar agroecosistemas más óptimos,


resilientes, estables, y sostenibles, conocimientos, habilidades, y,
por supuesto, un cambio de mentalidad y filosofía. Este enfoque
de bajos insumos estableció bases para el desarrollo y escalona-
miento de estrategias agroecológicas de diversificación de fincas,
integración animal, reciclaje, control biológico, etc. que miles de
agricultores ya practican cotidianamente en Cuba.

259 de 2008 sobre entrega en usufructo de tierras ociosas estipula que los nuevos tenedores
están obligados a realizar prácticas de agricultura sostenible. Agréguese el Decreto de Edu-
cación Ambiental.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Como se dijo, el enfoque de agricultura convencional


se hace acompañar de acciones de capacitaciones verticalmente
concebidas, y en función de la transferencia de tecnologías o la
adopción de paquetes tecnológicos generados externamente en
las instituciones de investigación y desarrollo. Empero, el enfo-
que de Agricultura Sostenible llama a la transmisión horizontal
de conocimientos, y la promoción de tecnologías apropiadas a las
potencialidades locales y a cambiar algunas ideas filosóficas de la
ciencia y la tecnología que eran enseñadas.

Merece acotarse que la capacitación para la Agricultura


Sostenible se dirige no sólo a todos los actores de la agricultura.
Incluye a los que ingresan a las instituciones escolares agropecua-
rias como directivos de las entidades agrícolas estatales y no esta-
tales (cooperativas), y la población en comunidades tanto rurales
como urbanas.

78 En este contexto existió consenso en que las institucio-


nes de educación superior, y en especial, las universidades, deben
y pueden desempeñar un papel transcendental en la conversión
hacia una agricultura sostenible. En este sentido, desde 1991 la
Universidad Agraria de La Habana (UNAH, antes ISCAH) confor-
mó un Sistema Integral de postgrado de Agricultura Sostenible.
El cual incluye la capacitación agroecológica tanto de pregrado
como de posgrado, a través de la introducción de contenidos (co-
nocimientos, habilidades y valores) relacionadas con el desarrollo
sostenible de la agricultura. Se destacan en este sentido la Ma-
estría en Agroecologia y Agricultura Sostenible de la Facultad de
Agronomía, liderada por el Ingeniero Agrónomo Luis García, el
Diplomado de Extensión Agraria y Agricultura Sostenible de la Cá-
tedra Pablo Freire, organizada por la profesora economista Merce-
des Sablon, y los trabajos y actividades docentes de la Cátedra de
Pensamiento Agrario Cubano impulsados por los profesores Ma-
rio Suero y Alfredo Roque Vals. Estos programas vienen desde 2003
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

formando especialistas para la Agricultura Sostenible ya no solo a


todo lo ancho y largo de la Isla de Cuba, sino también en países de
América Latina como México, Bolivia, Ecuador y Venezuela.

Ahora bien, a raíz de la oportunidad que se abre hoy para


Cuba para producir e importar productos agroquímicos, la nos-
talgia por uso, se convierte en esperanza colocando en jaque las
conquistas del país en materia de Agricultura Sostenible y capa-
citación agroecológica. Teniendo en cuenta las conquistas de la
Agricultura Sostenible, este acontecimiento resulta, realmente
una paradoja (Altieri, 2009).

Un ejemplo claro es que Cuba viene incursionando en in-


vestigaciones sobre transgénicos desde finales de los 80. Esas inves-
tigaciones son patrocinadas por el gobierno, y lideradas por el Cen-
tro de Ingeniería Genética y Biotecnología (CIGB), una institución
científica del Consejo de Estado. Tanto las investigaciones, como la
siembra a campo abierto, así como la importación y consumo de 79
transgénicos, se refrenda en el Reglamento para el Otorgamiento de
Licencia de Actividades de Seguridad Biológica, Resolución 180/07
(CITMA, 2007), en correspondencia con el Decreto Ley No. 190 (De
la Seguridad Biológica), emitido el 28 de enero de 1999.

En 2008 se anuncia la obtención de un maíz transgéni-


co (FR-BT1), resistente al insecto palomilla (Spodoctora fruggi-
perda) y tolerante al herbicida Finalé, cuyo principio activo es la
molécula de glufosinato de amonio. Sus defensores prometen que
con este maíz se podrían obtener mayores rendimientos, menos
atenciones y labores al cultivo, menos uso de plaguicidas, y me-
nos costos. Se dice que en sabor, color y otras propiedades, este
producto es sustancialmente equivalente al normal, que no hace
daño a la salud ni al medio ambiente; y que es necesario para sus-
tituir importaciones, y aprovechar los dispositivos tecnológicos a
disposición del sector agropecuario.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Filosofía y Educación Agropecuaria: tendencias y


coordenadas
A la par y en el contexto de la transformación de los Pla-
nes y Programas de Estudios, se abre el debate – que de cierta
manera fue interrumpido en 1975- sobre la enseñanza del Marxis-
mo-Leninismo en las universidades cubanas. Es el momento en
que adquiere auge la idea de la des-dogmatización del Marxismo.
Una de las acciones académicas que comenzó a tener resonancia
fue la introducción en algunas carreras de contenidos de Historia
de Cuba, así como del conocimiento del pensamiento filosófico y
social cubano.

En este sentido se discute cómo incorporar ideas de las


obras de Martí, Varela, Caballero, Mella, Che Guevara y Martí. Con
ello se espera que el profesional tenga una formación no sólo uni-
versalista, sino también que aprecie, valore y se inspire en el pen-
80
samiento local y nacional.

Se derogó la división entre Materialismo Dialéctico y Ma-


terialismo histórico y se va más allá de la crítica al uso de la ciencia
y la tecnología en el capitalismo y la apología del socialismo, para
abrir la discusión sobre los problemas y errores de la construc-
ción del socialismo. Se llegó en tal contexto se edita y distribuye
un texto básico de Marxismo-Leninismo escrito por profesionales
cubanos, que complementaría los textos de factura soviética.

Por otro lado, se comenzó a trabajar intensamente en lo


que se conoce como la perfilización del Marxismo, es decir, el vín-
culo de sus contenidos con los de los diferentes perfiles de carreras.
Varias acciones apuntan en esta dirección.

Especial destaque merece la introducción cerrando el ci-


clo de Marxismo, la asignatura de Problemas Sociales de la Cien-
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

cia y la Tecnología (PSCT), que pone en primer plano la reflexión


sobre los condicionamientos e impactos sociales, económicos,
políticos, culturales y ecológicos de la Ciencia y la Tecnología, la
Innovación Tecnológica, y el Desarrollo Económico y Social.

Con ello viene la apertura al cuestionamiento de la ima-


gen clásica (moderna y positivista) de la ciencia y la tecnología, la
modernización tanto capitalista como socialista, y la Agricultura
Convencional o de Revolución Verde. En 1994 se editó y se distri-
buyó por las universidades el libro que funcionaría como libro de
texto de esta asignatura. Uno de los capítulos del libro escrito por
nosotros sienta pauta de PSCT en referencia a las Ciencias Agrope-
cuarias (Freyre Roach; Ramos Lamar, 1994). Después se publica una
versión más sistemática del tema de los PSCT (Nuñez Jover, 2002).

Por nuestra parte vendrían una serie de investigaciones


sobre las cuestiones de ética y epistemología en este grupo de
ciencias (Freyre, 2001). Hicimos trabajos que tributan a la discu- 81
sión filosófica sobre la Agricultura Sostenible (Freyre, 2002; Chan
and Freyre, 2012). Y en este contexto participamos activamente
en la discusión sobre los Organismos Genéticamente Modificados
(Funes Monzote; Freyre Roach, 2009). Esto es una apuesta a la for-
mación de un profesional que aprecia y valora el conocimiento
campesino y local, y dispuesto al diálogo de saberes.

La introducción de la asignatura PSCT es un acontecimien-


to filosófico importante también desde el punto de vista que da al
traste con la idea de que las ciencias y tecnologías son neutrales en
lo ideológico, político, social y filosófico. Ya no solo por los conte-
nidos de la asignaturas, sino porque se propició el encuentro inter-
-multiple-transdisciplinar entre profesionales de las ciencias natu-
rales, ingenieriles y sociales, y entre estas y la filosofía.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A la par vemos que profesores de Filosofía comienzan a


insertarse en los temas de investigación agropecuaria, ocupándo-
se específicamente de las cuestiones filosóficas, ético-profesiona-
les, económicas y políticas de la agricultura. Por otra parte, junto
con el hecho de que PSCT se instauró como asignatura obligatoria,
también pasó a ser un requisito de examen a rendir por los aspi-
rantes a Categorías Docentes, Categorías Científicas, y candidatos
al Título de Doctor en las diferentes especialidades. Este requisi-
to se extendió también a quienes están haciendo el Doctorado en
Ciencias de la Educación y en Pedagogía.

Por estudiar quedan pendientes los valiosos trabajos de


PSCT que fueron defendidos tanto por los profesionales de las
ciencias agropecuarias como de la Filosofía y las Ciencias Socia-
les. Hay también una literatura que viene sirviendo de orientación
en este sentido. La introducción de PSCT- una asignatura imparti-
da por filósofos- viene haciendo que el profesional de las ciencias
82 agropecuarias se más receptivo y activo respecto a la Filosofía y
las Ciencias Sociales, a una formación científica, cultural y cien-
tífica más integral.

A modo de Conclusión
Pues bien, la filosofía de la educación agropecuaria su-
perior en Cuba se ha venido desarrollando en el contexto de las
transformaciones de la política agraria y la política educacional
dadas las diferentes circunstancias históricas. Un aspecto crucial
ha sido el replanteo de las concepciones sobre ciencia y tecnolo-
gía. Si hasta 1990 el paradigma de la modernización era hegemó-
nico, después se observa su cuestionamiento, dado a la relevancia
del enfoque de la agricultura sostenible.
CAPÍTULO 3 : LA EDUCACIÓN AGROPECUARIA SUPERIOR EN CUBA: TENSIONES DE CONCEPCIONES
FILOSÓFICAS DE CIENCIA Y TECNOLOGÍA

No es difícil darse cuenta que las concepciones de ciencia


y tecnología repercuten en la cristalización de los fines y objeti-
vos de la educación agropecuaria. Por lo que sería un tema en la
agenda de discusión de los planes y programas de estudios de las
carreras agropecuarias. Papel fundamental en este sentido jugó
los cambios en la enseñanza de la Filosofía, y en especial, la intro-
ducción de la asignatura de Problemas Sociales de la Ciencia y la
Tecnología (PSCT).

83
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

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CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

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85
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

José Martí e a educação na


nuestra América

EUGÊNIO REZENDE DE CARVALHO

La educación ha de ir a donde va la vida. Es insensato


que la educación ocupe el único tiempo de preparación que tiene
el hombre, en no prepararlo. La educación ha de dar los medios
de resolver los problemas que la vida ha de presentar. Los gran-
des problemas humanos son: la conservación de la existencia,
- y el logro de los medios de hacerla grata y pacífica. José Martí
(OC, v. 22, p. 308)

E
86 sse capítulo tem como objetivo oferecer uma análise do
pensamento educacional de um dos mais destacados e in-
fluentes intelectuais hispano-americanos do século XIX, o
cubano José Julián Martí y Perez (1853-1895). Para tanto, antes de
tudo, cumpre introduzir aqui uma breve nota biográfica de apre-
sentação do nosso autor.

José Martí nasceu em Havana, num momento em que


essa ilha era, junto com Porto Rico, a última colônia espanhola
na América. Marcado por um profundo sentimento nacionalista
e anticolonialista, o adolescente Martí já escrevia seus primeiros
versos. Durante a guerra cubana contra a Espanha (1868-1878), em
1869, com apenas 16 anos, foi detido por sua propaganda indepen-
dentista e condenado a seis anos de prisão, sendo deportado, em
1871, para a Espanha, onde viveu de 1871 à 1874. Enquanto ganha-
va a vida dando aulas, Martí estudou, ainda que irregularmente, o
restante de seu colegial, Direito, Filosofia e Letras nas universida-
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

des de Madri e Saragoça. Em fins de 1874, conhece de passagem a


França e viaja para o México. Entre 1875 e 1881, viveu no México,
Guatemala e Venezuela – onde teve um contato profundo com as
raízes autóctones americanas –, com ocasionais estadas na Espa-
nha – para onde foi deportado novamente por conspiração (1879)
– em Nova York (1880) e mesmo em Cuba.

Uma vez fixado em Nova York, a partir de 1881, graças à


sua colaboração em jornais de língua espanhola, cresce sua fama
pela América espanhola: ao final dos anos oitenta, mais de vinte
jornais do Continente (entre os quais, La Nación, de Buenos Aires,
El Partido Liberal, do México, La Opinión Nacional, de Caracas,
La Opinión Pública, de Montevidéu) divulgavam seus trabalhos.
Embora seja mais conhecido pelas suas colaborações jornalísti-
cas, publicou também uma vasta obra poética, além de inúmeras
traduções. Desde 1887, foi cônsul do Uruguai em Nova York. Em
1888, foi nomeado representante da Associação de Imprensa de
Buenos Aires, nos Estados Unidos e Canadá. Participou em 1889- 87
1891 das duas Conferências Interamericanas de Washington – na
última como representante do governo do Uruguai –, nas quais
denunciou veementemente a política expansionista dos Estados
Unidos sobre o continente americano. Em fins de 1890, Martí foi
eleito cônsul em Nova York não só do Uruguai como também da
Argentina e do Paraguai, além de presidente da Sociedade Literá-
ria Hispano-Americana.

Nos anos noventa do século XX, favorecido pelo amadure-


cimento das condições internas em Cuba, Martí se dedicou inteira-
mente à tarefa revolucionária, buscando aglutinar e organizar forças
pela independência – quando então funda o Partido Revolucionário
Cubano. Nesses anos, intensificam-se suas viagens e contatos visan-
do à libertação de sua Cuba: Haiti, Jamaica, Flórida e a costa Atlântica
dos Estados Unidos, São Domingos, Costa Rica e México. Juntamente
com os generais Máximo Gomez e Antonio Maceo – ex-participantes
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

da Guerra de 1868-1878 – prepara a guerra de independência e de-


sembarcam em Cuba em 1895. Já em plena guerra, no dia 19 de maio
daquele ano, Martí foi surpreendido e caiu morto por uma coluna
espanhola, aos 42 anos de idade. Em sua curta e agitada vida, Martí
conseguiu produzir uma vasta obra, infelizmente pouco conhecida
no Brasil, de marcado conteúdo americanista, que o transformou,
indubitavelmente, numa das figuras mais proeminentes do pensa-
mento latino-americano de fins do século XIX.

Em um trabalho anterior1, a partir do estudo da extensa


obra de Martí, partindo da análise de seus próprios discursos e
levando em conta seu próprio vocabulário, propusemo-nos a ana-
lisar o seu discurso americanista, entendido aqui – mais do que
como o simples conjunto das suas reflexões que têm como objeto
a realidade sócio-histórica da América – como um discurso que
visou a definir ou reivindicar um campo de identidade americano
ou, mais especificamente, que visou a estabelecer elementos de-
88 marcatórios entre o que ele denominou de “nossa” América e a(s)
“outra(s)” América(s). (CARVALHO, 2003, p. 12)

Tendo como base e referência esse estudo anterior sobre


as ideias e o pensamento americanista de José Martí2, de caráter
mais amplo e profundo, nosso objetivo neste capítulo é extrair da-
quele, para fins de análise, o pensamento educacional martiano, o

1 CARVALHO, Eugênio Rezende de. América para a humanidade: o americanismo universalista de José
Martí. Goiânia: Editora UFG, 2003. Há uma versão em espanhol: América para la humanidad: el ame-
ricanismo universalista de José Martí. Traducción y revisión: Antonio Corbacho Quintela. Ciudad de
México, DF: UNAM, Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe (CIALC), 2012.
2 Nossa fonte básica de investigação constitui-se do conjunto dos escritos publicados nos 27
volumes das Obras Completas de José Martí, editadas em 1975 pela Editorial de Ciências So-
ciais de Havana, além de alguns outros textos inéditos publicados posteriormente, por meio
principalmente das sete edições do Anuario Martiano, publicadas pela Biblioteca Nacional de
Cuba de 1969 até o ano de 1977; e das edições do Anuario del Centro de Estudios Martianos,
que passou a ser editado a partir de 1977, com a fundação do Centro de Estudios Martia-
nos, em Havana-Cuba. Há que se ressaltar que José Martí não produziu nenhum tipo de livro
onde apresentasse sistematicamente suas ideias. Sua obra é constituída por um conjunto
de artigos, resenhas, ensaios para revistas e jornais, discursos, correspondências pessoais e
oficiais-diplomáticas, além dos escritos literários, com destaque para os artigos de imprensa,
os discursos e as cartas.
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

que inclui o seu diagnóstico e sua prescrição, ou seja, como era e


como deveria ser, em sua opinião, a educação, particularmente no
contexto do que Martí definiu como Nuestra América – uma espécie
de campo de identidade histórico-sócio-cultural estabelecido por
ele, que se diferenciaria de outra América, identificada basicamen-
te com os Estados Unidos, uma América, segundo ele, “distinta em
suas origens, formação histórica, caráter e valores morais”. Aborda-
remos aqui, portanto, o pensamento educacional de Martí a partir e
no contexto da análise de seu pensamento americanista.

Nesse trabalho anterior, vimos como o americanismo de


José Martí assumiu um viés universalista pela via do humanismo,
mantendo coerência com sua peculiar visão de mundo e do ser
humano, da natureza e da história e, sobretudo com sua axiologia;
um americanismo que logrou conciliar uma perspectiva de identi-
dade regional americana com determinados critérios de universa-
lidade; que visou um ponto de equilíbrio entre a individualidade
de cada nação e sua integração numa totalidade nuestramericana,
89
ou, em outro nível, entre uma individualidade nuestramericana
e uma totalidade universal. Nesse sentido, sua ética humanista
constituiu-se, simultaneamente, no fator diferenciador e univer-
salizante de seu americanismo. As virtudes morais acabaram tor-
nando-se o critério fundamental demarcador dos limites e frontei-
ras da nuestra América, ao determinarem as inclusões e exclusões
do campo de identidade americano por ele reivindicado como
uma projeção de futuro. (CARVALHO, 2003, p. 254-255)

Destacamos aqui alguns aspectos ou princípios de sua


cosmovisão, de interesse para refletir acerca de sua perspectiva
de educação. Um deles é a sua visão do processo histórico. Ao
apresentar a história como a luta entre o racional e o irracional,
Martí definiu como racional tudo aquilo que contribuísse, ou que
estivesse em consonância com o movimento ascensional em dire-
ção à harmonia e à perfectibilidade da natureza. Ao tratar da con-
flituosa relação entre homem e natureza, partiu do princípio de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

uma tendência evolutiva geral, associada à ideia de progresso, no


sentido da solução desses conflitos e da prevalência final da razão.
Obedecendo a tal critério, a história humana se resumia, em ter-
mos martianos, à trajetória do homem-fera ao homem-homem ou
homem-asa; o mundo progredia no sentido do caos e do aleatório
à harmonia e à ordem. (CARVALHO, 2003, p. 248)

Um segundo aspecto ou princípio a ser sublinhado na cos-


movisão martiana é o seu conceito de liberdade, que ele definiu
como “essência da vida”. Conforme analisamos, Martí situou a liber-
dade no plano das essências universais e a associou com tudo o que
fosse vital, natural e essencial para a vida humana. Considerou que
qualquer fator inibidor ou limitador da liberdade era anti-natural,
obra do irracional, um obstáculo à ascensão do ser humano em di-
reção ao ser absoluto3. A liberdade era o instrumento que alargava
a visão do mundo e conferia maior sentido à obra universal, e cons-
tituía-se num dos critérios fundamentais para a definição de seu
90 campo de identidade americano. (CARVALHO, 2003, p. 249)

A conquista da liberdade no plano individual tinha para


Martí a finalidade de garantir uma necessária independência pes-
soal, sobretudo a partir do exercício do conhecimento, do conta-
to com os ensinamentos da natureza, com os avanços das diversas
ciências. Tal independência pessoal passava também não somente
pela simples instrução, mas também por uma educação segundo
determinados princípios e valores éticos e morais. Portanto, para
ele, a ignorância era inimiga da liberdade. Esse conhecimento de
que fala Martí, além de outras vantagens, fortaleceria o decoro e a
dignidade própria do homem. Assim, concluía que “Ser culto es el

3 Para Martí, o único fator limitador possível, e mesmo necessário, à liberdade era a consciên-
cia, sobretudo a consciência do dever, que tinha a função de garantir o seguro e criterioso
exercício da vontade, direcionando-a a fim de assegurar a efetiva liberdade entre os seres hu-
manos. A consciência, como autoconhecimento, como “cidadania do universo”, permitia ao
homem uma posição de protagonismo na sua relação com a natureza, ao orientar as ações
humanas segundo determinados deveres morais.
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

único modo de ser libre”, ainda que reconhecesse, em outros mo-


mentos, que para ser “culto” também era necessário um mínimo
de liberdade. A propósito, em outro apontamento, escreveu: “Un
pueblo de hombres educados será siempre un pueblo de hombres
libres. - La educación es el único medio de salvarse de la esclavi-
tud”. (OC, v. 8, p. 289; v. 19, p. 376)4

Nessa perspectiva, mais importante que assegurar a liber-


dade a um povo era construir um povo em que a liberdade fosse
mantida, por meio da educação dos homens, segundo os valores
de independência e dignidade própria. Somente assim estaria ga-
rantida a independência e dignidade da coletividade ou a liberdade
pátria. Para merecer o título de independente, um povo precisava,
antes de mais nada, eliminar dentro de cada ser os vícios e os ger-
mes da servidão que comprometiam a própria dignidade. (OC, v.
6, p. 311) Em um caderno de apontamentos, escrito provavelmente
entre 1878 e 1880, encontramos o seguinte extrato martiano:
91
Hay un sistema de educación que consiste en conver-
tir a los hombres en mulos, en ovejas, - en deshombrarlos, en vez
de ahombrarlos más. Una buena educación, ni en corceles si-
quiera, en cebras ha de convertirlos. Vale más un rebelde que un
manso. Un río vale más que un lago muerto. (OC, v. 21, p. 142)

Em outro apontamento, de 1894, afirmou que não havia


espetáculo mais doloroso que “el de los hombres sumisos, por la

4 Ver CARVALHO, 2003, p. 57. É interessante, nesse ponto, observar como Martí abordava a liber-
dade dentro de sua visão da história, relacionando-a com a ciência. Num artigo para a revista La
América, de 1883, ele escreveu: “El siglo XVIII fundó la Libertad: el siglo XIX fundará la Ciencia. Así
no se ha roto el orden natural: y la Ciencia vino después de la Libertad, que es madre de todo”. Na
sequência evolutiva da história, segundo Martí, após a era da liberdade e da ciência, viria a era da
paz, a filha última não nascida da liberdade. Considerava que somente quando o homem, nasci-
do da Revolução Francesa passou a entender e exercitar a liberdade, começou efetivamente a ser
luminoso. Chegou a considerar que a “liberdade ilustrada” era um estado político que detinha o
monopólio de todas as virtudes. Assim, tendia a colocar os dois conceitos de ciência e de liberda-
de como as grandes conquistas históricas mais recentes da humanidade, que teriam introduzido
“alas a la ostra”, constituindo-se em chaves-mestras capazes de abrir as portas do mundo para um
novo e esperançoso futuro. (OC, v. 8, p. 347-348; v. 15, p. 396; v. 6, p. 24)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

ignorancia o la pasión, o el interés, a la voluntad ajena”. À liber-


dade política deveria preceder, de acordo com Martí, a “liberdade
espiritual”, como aquela que libertava os homens da vida ilusória
que as convenções colocavam sobre a verdadeira e essencial natu-
reza humana. (OC, v. 21, p. 380; v. 18, p. 290)5

A partir desses princípios, segundo Martí, ninguém na


face da terra teria o direito de frear ou de interromper o natu-
ral curso e desenvolvimento do que nasce livre. Qualquer ação
que privasse o homem do exercício livre de suas faculdades seria
contrária às próprias leis da natureza. Tampouco seria natural o
próprio homem não fazer uso de sua capacidade de raciocínio,
reflexão, discernimento e, sobretudo, de sua capacidade de criar.
E aqui chegamos a outro aspecto ou princípio que merece ser des-
tacado na cosmovisão martiana, por seu relevante vínculo com
a questão da educação, que poderíamos denominar de princípio
da autenticidade. Para Martí, pensar, e mais, pensar “por si pró-
92 prio” deveria ser o primeiro dever do homem, pois a fonte mais
pura de nossas ideias estaria em nós mesmos e provinha de nossas
experiências mais próximas e íntimas. O homem deveria educar
sua mente a aprender a ouvir, antes, aquelas vozes mais próximas,
sobretudo as quem vêm de si mesmo, do que as que vêm de fora.
(OC, v. 19, p. 381; v. 21, p. 238, 169)6

Já o conhecimento era o pré-requisito para a consciência:


o homem conhecia a si mesmo pelo conhecimento da natureza
da qual fazia parte. O conhecimento era o caminho para o ser hu-
mano, diante da imperfeição da vida, vislumbrar as harmonias
das leis que regiam a natureza e extrair delas as soluções aos seus
problemas. Ou seja, era necessário estudar as forças da natureza e
aprender a manejá-las e aplicá-las em benefício da humanidade.

5 Ver CARVALHO, 2003, p. 58.


6 Ver CARVALHO, 2003, p. 71.
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Martí tendeu ainda a execrar no âmbito da existência humana,


tudo o que fosse artificial e, em contrapartida, enfatizar tudo o
que fosse natural. Para ele, as convenções sociais criadas defor-
mavam a existência verdadeira e natural dos homens, que preci-
sava ser revelada com o fomento da autenticidade. Era preciso,
pois, conhecer a América para além das aparências e dos disfarces
que lhe impunham algumas leituras ou interpretações artificiais e
equivocadas, a fim de revelar sua própria natureza, sua própria es-
sência. A preservação de tal originalidade era vista, assim, como
um caminho à universalidade. (CARVALHO, 2003, p. 249)

Após passarmos rapidamente por alguns elementos da


visão de mundo de José Martí, bem como por alguns aspectos ou
princípios que compuseram a sua cosmovisão, abordaremos as
possíveis relações e vínculos entre seu pensamento educacional e
sua ética humanista. Na base do americanismo martiano, confe-
rindo-lhe um conteúdo universal, estava, seguramente, sua ética
humanista. As virtudes morais constituíam, portanto, a parte da 93
essência, a parcela universal do americanismo martiano. Para que
o homem vivesse em harmonia com a natureza – um dos fins úl-
timos da existência humana – era preciso que a conduta humana
fosse pautada pelo bem e pelo amor, superando a acidentalida-
de da maldade, do ódio e do egoísmo humanos. José Martí empe-
nhou-se em resgatar determinados valores humanos invariáveis
e universais que se situavam acima de todas as particularidades
típicas de uma realidade americana fragmentada e contraditória,
que formavam enfim uma nova pauta de convivência. (CARVA-
LHO, 2003, p. 250)

Dentro de sua ética humanista, Martí definiu o amor


como uma espécie de essência metafísica universal. Chamava a
sua atenção e muito o afligia a falta de afeto entre os homens,
bem como sua facilidade para odiar. Uma nova cruzada deveria
ser organizada, segundo ele, com o fim de deter o avanço do ódio
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

sobre a humanidade. Para tanto, a função primordial da educação


deveria ser “criar amor”. Martí chegou a afirmar, em um texto para
o La Nación, em 1889, que educar é dar ao ser humano o que ele
chamou de chaves do mundo: a independência e o amor. (OC, v.
22, p. 284; v. 12, p. 294). A propósito, em uma carta do diretor do
jornal El Partido Liberal, do México, de 1892, Martí escreveu:

Criar amor debiera ser la función de los colegios... (...)


Y este es punto grave, sobre si debe la educación afilarse el dien-
te al hombre, por la teoría que ve la vida como una mesa puesta,
donde gana el mejor puesto, quien sabe dar más dentelladas; o
si ha de tender la educación, reconociendo la suma de compe-
tencia que funge en el mundo junto con el poder de la unión,
a buscar la defensa contra la agresión en el aminoramiento de
esta por los hábitos fraternales de la cultura: sobre si se le fo-
menta la bestia al hombre, o se le reduce7.

Por outro lado, dentre algumas virtudes fundamentais do


94
ser humano, de acordo com Martí, encontrava-se ainda o cultivo
da justiça. Ele manifestou expressamente em vários momentos de
sua obra uma fé inabalável e uma confiança absoluta na superio-
ridade da justiça sobre a injustiça. Nesse sentido, caberia à edu-
cação outra importante tarefa: a de cultivar entre os homens esse
elevado conceito de justiça. (CARVALHO, 2003, p. 107)

Após essa breve abordagem de sua visão de mundo, trata-


remos agora da visão da América de Martí, começando pela análi-
se dos possíveis vínculos entre seu pensamento educacional e sua
ideia de pátria, conceito que ele definiu como “dever de humani-

7 MARTÍ, José. Anuario del Centro de Estudios Martianos. Centro de Estudios Martianos, N. 3. La
Habana, 1980, p. 44-49. Assim, a ética de Martí situou o bem e o amor como princípios funda-
mentais reguladores da conduta humana, tanto no plano individual quanto social, ao relevar
o altruísmo e a renúncia em favor do próximo. No geral, sua ética se revestiu de um arraigado
sentido humanista e/ou humanitário, na medida em que situou, condicionou e mensurou os
valores na sua relação de utilidade para a coletividade. O homem, ou melhor, a humanidade,
foi assim, para Martí, a medida de todas as coisas. (CARVALHO, 2003, p. 250)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

dade”, uma comunidade espiritual e de virtudes8. Tal ideia de pá-


tria, como um princípio espiritual, esteve presente ainda na obra
martiana quando ele abordou os diversos componentes étnicos
que compunham a nação. Escrevendo em 1884 para a revista nova-
-iorquina La América, referindo-se à América de uma maneira ge-
ral, Martí afirmou que os índios, se bem-educados, frutificariam
melhor no próprio país de origem e que poderiam integrar-se bem
ao espírito nacional. Porém, já os imigrantes, ainda que contribu-
íssem com seus braços úteis, poderiam influenciar mal a nação ao
conservarem um “espíritu ajeno”. (OC, v. 8, p. 384)

Já estabelecido no México, nos anos de 1875 e 1876, Martí


escreveu uma série de artigos para a Revista Universal, onde abor-
dou com frequência o tema da pátria, seja como objeto central de
sua análise ou como pano de fundo de outros temas. Percebe-se nes-
ses textos uma tendência a considerar, independentemente do tema
tratado – seja política, economia, educação, ciência ou literatura –,
a ênfase na relação ou vinculação desse tema, bem como sua utili-
dade, para com os ideais e valores pátrios, sobretudo, no caso espe- 95
cífico, quando se dirigia e se referia à pátria mexicana. Por exemplo,
quando tratava da educação, afirmava a imperiosidade de se educar
os homens, vistos como síntese do organismo nacional, segundo os
valores de independência e dignidade próprias, a fim de se garan-
tir a dignidade e independência da pátria9. Já em 1894, num artigo
para Patria, de Nova York, Martí definiu que a pátria não era mais

8 A afirmação do americanismo martiano não foi acompanhada por uma subestimação do fe-
nômeno patriótico e, especialmente, sua ideia de pátria não se desvinculou de uma perspec-
tiva americanista. Em Martí, ambos conceitos se complementavam. Ele apenas estendeu ao
âmbito continental o mesmo corpo de princípios que formavam a base de seu conceito de
pátria. Seu discurso assumiu, dessa forma, um nítido conteúdo supranacional, de forma que
seu projeto de atribuição de uma identidade americana vinculou-se ao reconhecimento da
existência de uma pátria para além das fronteiras impostas pelos estados nacionais do sub-
continente hispano-americano. Tal qual o seu patriotismo, seu americanismo se apoiou na
consciência do imperativo de se avançar no rumo de uma nova ordem social para a América,
sustentada em determinados princípios morais. Situado entre um nacionalismo extremado,
de viés regionalista, e um cosmopolitismo sem raízes, seu patriotismo manteve-se coerente
com sua visão do mundo e da humanidade, como o grande fomentador das virtudes huma-
nas, como um fator de consciência moral. (CARVALHO, 2003, p. 251)
9 Ver CARVALHO, 2003, p. 134-135.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

que a paixão pelo decoro e pela ventura do homem e, na sequência,


afirmou que a República não era mais que “el decoro ardiente, e irre-
prensible en las almas excelsas, de ver al hombre dichoso y libre”. Tal
reverência ardente à felicidade e liberdade do homem constituía des-
sa forma o grande ideal republicano em Martí. Um ideal que deveria
ser cultivado como um valor ético e moral, a ser propagado no seio
das sociedades americanas por meio da educação – “¡La República,
en los bancos del colegio!”, a fim de formar um conjunto de “cidadãos
da República”. (OC, v. 6, p. 209; v. 5, p. 452; v. 12, p. 305, 307)10

Ainda dentro do diagnóstico martiano da América e, em


particular da história americana, vimos que o americanismo de
José Martí se apoiou ainda em um determinado diagnóstico do pre-
sente e do passado da América, que foi um fator importante de dife-
renciação em relação a outros projetos de identidade continental.
Glorificando a época pré-colombiana, condenando o episódio da
conquista e colonização europeia e, por fim, ressaltando o passado
recente – pós-independência – em que a Hispano-América renas-
96 cia para a liberdade e buscava ocupar uma posição de protagonis-
mo no curso da história universal: tais eram as linhas mestras de
sua visão da história americana. Mas ele acreditava que o fardo da
herança colonial era bastante pesado e que a Hispano-América de
sua época padecia de inúmeros “males de origem”. Porém, as causas
atribuídas à enfermidade não estavam vinculadas a qualquer fator
étnico ou racial, como propuseram outros americanismos. Para
Martí, as causas eram, fundamentalmente, de conteúdo moral e de
natureza histórica e, não sendo congênitas, eram, portanto, ple-
namente curáveis11. (CARVALHO, 2003, p. 251-252)

10 Ver CARVALHO, 2003, p. 143.


11 Mas, para se garantir a recuperação e a cura efetiva e poder vislumbrar um futuro grandioso
para a Nuestra América, era preciso vencer toda uma onda de ofensas, calúnias e preconcei-
tos de cunho racista da qual era vítima, e que afetava a autoestima, a honra e a dignidade dos
diversos estratos étnicos e culturais que compunham os povos hispano-americanos. Por isso
Martí enalteceu o que chamou de desdenhada e virtuosa “raça hispano-americana”, mesti-
ça por excelência, livrando ao mesmo tempo o conceito de raça dos limites impostos pelos
critérios biológicos e ligando-o à ideia de comunidade cultural. Seu americanismo se desen-
volveu, assim, perante a imagem de uma Nuestra América enferma, difamada e desdenhada,
com a qual se identificou e buscou resgatar e relevar. (CARVALHO, 2003, p. 252)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Numa carta de 1877 ao amigo Manuel Mercado, Martí se


referia à “nuestra América enferma” como aquela carente das in-
teligências que lhe sobravam, mas que, por outro lado, encontra-
vam-se sem emprego. Num apontamento de 1877 sobre a América
Central, escrito originalmente em francês, Martí afirmou: “L`édu-
cation consistait malheureusement dans ces terres à briser dans
les âmes les forces qui nous font vivre: la dignité – la liberté – le
courage”12. Para ele, o que existia em termos de sistema educacio-
nal implantado pela colônia baseava-se numa instrução excessiva-
mente literária, totalmente desvinculada e distante da realidade e
dos problemas concretos dos povos americanos. A América pade-
cia do divórcio entre o conhecimento indireto e estéril dos livros
importados e um conhecimento direto e fecundo da natureza, dos
fatores reais do país em que se vivia. (OC, v. 20, p. 27; v. 19, p. 74)13

Sobre esse ponto, nos deteremos aqui um pouco mais, por


se constituir um dos tópicos relacionados diretamente à educação
que Martí mais ressaltou em toda a sua obra, que abarca tanto uma 97
crítica contundente ao modelo educacional vigente nos países da
Nuestra América, quanto uma prescrição de reforma educacio-
nal, do ensino básico ao universitário, segundo alguns princípios
específicos que passaremos a expor. Nesse sentido, o diagnóstico
de Martí é o de um desequilíbrio e inconformidade entre o que ele
denominou educação literária, “llena de teorías vagas y fórmulas
abstractas”, divorciada das “necessidades reais e urgentes do povo”,
de um lado, e educação científica e prática, de outro, destacando a
ineficiência daquela e a imperiosidade desta. (OC, v. 9, p. 410) Daí a
necessidade da substituição daquela por esta:

En América, pues, no hay más que repartir bien las


tierras, educar a los indios donde los haya, abrir caminos por las

12 “A educação consistia, desgraçadamente, nessas terras, em romper nas almas as forças que
nos fazem viver: a dignidade, a liberdade, a coragem”. (Tradução nossa)
13 Ver CARVALHO, 2003, p. 165.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

comarcas fértiles, sembrar mucho en sus cercanías, sustituir la


instrucción elemental literaria inútil, - y léase bien lo que decimos
altamente: la instrucción elemental literaria inútil, - con la ins-
trucción elemental científica, - y esperar a ver crecer los pueblos.
Van a dar gozo, por lo desinteresados y brillantes. (OC, v. 8, p. 439)

Assim, sua prescrição de uma reforma educacional, tanto


em nível do ensino fundamental quanto universitário, deveria se
pautar basicamente pela substituição, em suas palavras, do “es-
pírito literário” pelo “espírito científico”. Em um artigo publicado
em La América, de Nova York, intitulado Educación Científica,
Martí defendeu que o ensino fundamental fosse essencialmente
científico: “que en vez de la historia de Josué, se enseñe la de la
formación de la tierra”. (OC, v. 8, p. 300, 278) Igualmente, uma
necessária reforma universitária deveria levar em conta os seus
vínculos com o seu tempo:

Al mundo nuevo corresponde la Universidad nueva. A


98
nuevas ciencias que todo lo invaden, reforman y minan nuevas
cátedras. Es criminal el divorcio entra la educación que se reci-
be en una época, y la época. Educar es depositar en cada hom-
bre toda la obra humana que le ha antecedido: es hacer a cada
hombre resumen del mundo viviente, hasta el día en que vive: es
ponerlo a nivel de su tiempo, para que flote sobre él, y no dejarlo
debajo de su tiempo, con lo que no podrá salir a flote; es preparar
al hombre para la vida. En tiempos teológicos, universidad teoló-
gica. En tiempos científicos, universidad científica. Y no está la
reforma completa en añadir cursos aislados de enseñanza cien-
tífica a las universidades literarias; sino en crear universidades
científicas, sin derribar por eso jamás las literarias; en llevar el
amor a lo útil, y la abominación de lo inútil, a las escuelas de le-
tras; (...) La literatura de nuestros tiempos es ineficaz, porque no
es la expresión de nuestros tiempos. (OC, v. 8, p. 281-282)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Era preciso, conforme Martí, nos campos e nas cidades14,


substituir o conhecimento “indireto e estéril dos livros” pelo co-
nhecimento “direto e fecundo da natureza”. Nessa perspectiva, a
permanência de uma educação exclusivamente literária em terras
americanas estaria criando nas inteligências elementos mórbidos
e povoando as mentes de entidades falsas, entrando em choque
com o que ele denominava de “livro da natureza”, com as “forças
práticas de um povo”, inviabilizando o “governo frutífero”. Para
Martí, de nada valeria uma educação meramente formal, que não
preparasse o ser humano para a vida concreta: mais do que esco-
las, deveriam ser chamadas de “oficinas”. (OC, v. 8, p. 292; v. 19, p.
160; v. 13, p. 53) Chama a atenção, nesse ponto, o princípio prag-
mático e utilitário que marca o seu pensamento educacional, não
obstante ele não tenha defendido uma educação exclusivamente
prática. Em um artigo sobre educação pública, publicado em 1888,
em El Economista Americano, de Nova York, Martí afirmou: “A los
hombres se les ha de dar a la vez a leer a Darwin y a Plutarco”15.
99
Em sua crítica ao sistema educacional vigente na Nuestra
América, Martí abordou de forma reiterada em seus textos uma
questão específica, qual seja, o ensino do grego e do latim. Não
obstante considerasse positivamente “poseer luces de griego y la-
tín, en lo que tienen de lenguas raizales y primitivas, y sirven para
mostrar de dónde arrancan las palabras que hablamos…”, em um
texto de 1884 em que tratou da reforma das universidades ameri-
canas, ele questionou: deve-se empregar a maior e mais útil par-
te da época de colégio na aprendizagem de duas línguas antigas
que apenas contribuem, ainda quando contribuem, em fixar as
raízes da nossa língua? Em torno dessa discussão sobre a questão

14 Outro equívoco apontado por Martí no sistema de educação da Nuestra América, ligado ao que já
foi dito sobre a educação puramente literária, seria a existência de uma educação voltada exclu-
sivamente à vida urbana, que não preparava os homens para a vida camponesa, para os ofícios
específicos do campo e da agricultura. (OC, v. 8, p. 369)
15 Anuario del Centro de Estudios Martianos. Centro de Estudios Martianos, N. 2. La Habana,
1979, p. 19-20.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

do ensino do grego e do latim estaria, segundo Martí, se confron-


tando não apenas dois sistemas de ensino, mas duas épocas, uma
que estava morrendo – de uma educação baseada em culturas que
não haviam nascido em solo americano, exclusivamente literária,
antiga, fictícia, falsa, estéril, ornamental, floreada, metafísica, de
poemas gregos e livros latinos, de historias de Lívio e Suetônio – e
outra florescendo – de uma educação em sintonia e comprometi-
da com os problemas da realidade concreta em que se vive, uma
educação científica, prática. Para ele, toda educação teria um de-
ver iniludível para com o ser humano e com sua época e, nesse
momento, o grego e o latim já não lhes serviam16. (OC, v. 9, p. 446;
v. 8, p. 429-430, 21)

E assim seguia Martí em sua crítica à essa educação ex-


clusivamente literária, destacando que a literatura, embora im-
portante enquanto entretenimento, não deveria ser nossa ocupa-
ção favorita e exclusiva – mas sim “o estudo de nossas condições
100 peculiares de vida” –, sendo necessário sacar a literatura escolásti-
ca da base da educação pública nas repúblicas americanas, subs-
tituindo-a pelas ciências e artes práticas. (OC, v. 10, p. 260-261) Na
apresentação do programa de La Edad de Oro, revista editada por
Martí e destinada ao público infantil, ele afirmou a necessidade de

reemplazar la poesía enfermiza y retórica que está


aún en boga, con aquella otra sana y útil que nace del conoci-
miento del mundo; a estudiar de preferencia las leyes, agentes
e historia de la tierra donde ha de trabajar por la gloria de su
nombre y las necesidades del sustento. (OC, v. 18, p. 296)

16 A propósito, em uma carta a La Nación, de Buenos Aires, de 1885, Martí enalteceu a decisão
da Universidade estadunidense de Harvard de ir aproximando a educação universitária da
vida concreta, ao colocar seus alunos comuns mais próximos do alemão e do francês que do
latim e do grego. (OC, v. 10, p. 236)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Ainda em um artigo de 1894, tratando da revolução no


ensino de Nova York, Martí disse haver tanta coisa útil por apren-
der que não se deveria ensinar às crianças uma só palavra ou dado
inútil, mas ensinar, a essas crianças que vivem na terra, sobre a
terra e a vida. O ensino industrial às crianças, como o de algum
ofício, deveria se sobrepor diante da ineficácia do mero ensino de
letras17. Em outro artigo de 1894, para La América, de Nova York,
intitulado Mente Latina, ele propugnou uma verdadeira campa-
nha pela acomodação do homem à terra em que há de viver:

¡Oh! ¡si a estas inteligencias nuestras se las pusiese a


nivel de su tiempo; si no se las educase para golillas y doctos de
birrete de los tiempos de audiencias y gobernadores; si no se les
dejase, en su anhelo de saber, nutrirse de vaga y galvánica lite-
ratura de pueblos extranjeros medio muertos; sí se hiciese el con-
sorcio venturoso de la inteligencia que ha de aplicarse a un país
y el país a que ha de aplicarse; si se preparase a los sudamerica-
nos, no para vivir en Francia, cuando no son franceses, ni en los
101
Estados Unidos, que es la más fecunda de estas modas malas,
cuando no son norteamericanos, ni en los tiempos coloniales,
cuando están viviendo ya fuera de lo colonia, en competencia
con pueblos activos, creadores, vivos, libres, sino para vivir en
la América del Sur!... (OC, v. 6, p. 25-26)

Por fim, retomando o diagnóstico martiano da América,


vemos que ele se completava com sua peculiar visão dos Estados
Unidos. Seu estudo e experiência direta com a realidade estaduni-
dense lhe possibilitou a consciência de que havia, efetivamente,
uma outra América, distinta em suas origens, formação históri-
ca, caráter e valores morais. Exercendo uma crítica daquela so-
ciedade a partir de seu referencial ético e moral, o americanismo

17 Anuario del Centro de Estudios Martianos. Centro de Estudios Martianos, N. 8. La Habana,


1985, p. 14-19. Esse artigo apareceu também nas páginas 53-57 do número de janeiro de 1894
da Revista pedagógica mensual La Nueva enseñanza, publicada em San Salvador, República
de El Salvador.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

martiano se pautou pela negação dos Estados Unidos enquanto


paradigma sócio-cultural a ser espelhado por todo o continente,
e procurou oferecer uma alternativa a tal modelo. (CARVALHO,
2003, p. 252) Particularmente no que diz respeito à educação, em
um artigo para La Nación, de Buenos Aires, de 1887, Martí taxou
a educação pública de “falsa e dura na prática” e “rudimentar e
errada na letra”, bem como o modo de vida putrificado por um
“egoísmo odioso”. (OC, v. 11, p. 155)

Quanto à Hispano-América, o diagnóstico de Martí foi


o de uma realidade caótica, fragmentada e conflituosa, que, em
seu esforço por atribuir-lhe uma identidade, seu discurso pro-
curou ordenar e unir. Porém, mais importante do que as unida-
des políticas e formais no âmbito do continente americano era
a unidade de alma e espírito, uma unidade em torno dos mes-
mos valores universais e que respeitasse as diferenças, segundo
ele, úteis à liberdade. Em seu exercício ordenador, Martí buscou
102 identificar e sobrepor os elementos de união aos de fragmenta-
ção, colocando em relevo, sobre a aparência caótica, a essência
unitária e harmônica da Nuestra América. Para tanto, um prin-
cípio espiritual transformava-se no lastro fundamental do sen-
timento de co-pertencimento ou de comunidade no âmbito do
subcontinente, compartilhado por aqueles que se identificavam
com a “alma americana”, que congregava a todos na realização
da grande missão universal, do grande dever de humanidade.
Para além dos fatores geográficos, históricos, culturais, étnicos,
linguísticos, que tradicionalmente definiam as fronteiras demar-
catórias de um campo de identidade, Martí sobrepôs os valores
morais18. (CARVALHO, 2003, p. 252-253)

18 Tanto que a principal exclusão de seu campo de identidade, a da outra América, se deu exatamen-
te por critérios de ordem ética. Para Martí, a sociedade estadunidense, se não estava mesmo dian-
te de um processo de degeneração moral, tendia a uma visão limitada em relação a determinados
valores e virtudes, que muitas vezes eram bem aceitos no âmbito das fronteiras nacionais mas
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Em seu esforço por estabelecer um campo identitário


para a Nuestra América, Martí se deparou ainda com a necessida-
de de superação do contraponto entre civilização e barbárie, bas-
tante recorrente nas diversas interpretações da realidade hispa-
no-americana de sua época19. Ao desenvolver a ideia de uma nova
civilização americana, resultante do trágico e violento processo da
conquista e colonização europeia do continente, sua visão dessa
América era a de uma realidade na qual predominavam os ele-
mentos naturais em detrimento dos elementos civilizadores, por
ser ainda constituída de povos “jovens em história” e pouco afor-
tunados em matéria de educação20:

Yo conozco a Europa, y he estudiado su espíritu; co-


nozca a América y sé el suyo. Tenemos más elementos naturales,
en estas nuestras tierras, desde donde corre el Bravo fiero hasta
donde acabe el digno Chile, que en tierra alguna del Universo;
pero tenemos menos elementos civilizadores, porque somos mu-
chos más jóvenes en historia, no contamos seculares precedentes 103
y hemos sido, nosotros los latinoamericanos, menos afortuna-
dos en educación que pueblo alguno; tristes memorias históri-
cas, - secretos de muchas desdichas - que no es el caso traer a la
luz... (OC, v. 7, p. 104)

A realidade americana comportava, assim, o que Martí


definiu num artigo para a Revista Universal, do México, em 1876,
como uma “caótica mescla” daqueles que falavam corretamente
e aqueles que “balbuceavan”, de homens “pansofos” e homens
“bestias”, de paixões “primitivas” e paixões “refinadas”. (OC, v.

negados para além delas - ou ainda negados internamente para determinados estratos sociais
menos favorecidos e/ou discriminados. (CARVALHO, 2003, p. 253)
19 Dentre essas interpretações da realidade hispano-americana que situavam as raízes de seus ma-
les no confronto entre civilização e barbárie e que, mais do que isso, propugnavam uma negação
completa das raízes culturais e históricas do passado colonial, pela incorporação do paradigma
europeu e norte-americano de civilização, com um viés nitidamente liberal, destacam-se as teses
do político e escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), bastante recorrentes e
influentes nos meios intelectuais à época de Martí. (CARVALHO, 2003, P. 224)
20 Ver CARVALHO, 2003, p. 227.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

6, p. 457). Interessa-nos analisar aqui, ainda que rapidamente, a


imagem martiana de um dos elementos dessa mescla, represen-
tado pelas “raças virgens” da América. Se levamos em conta que
o próprio termo bárbaro, etimologicamente, está ligado à pessoa
que “fala mal um determinado idioma”, que “balbucia”, é bastante
significativa a utilização martiana desse termo, ao lado da desig-
nação de “bestial”, para se referir à parcela “primitiva” dos povos
americanos. Percebe-se, desde já, uma nítida diferenciação entre
esses índios a ele contemporâneos, degradados pela conquista, e
seus antepassados que chegaram a constituir uma gloriosa civili-
zação. Em seu esforço por transformar esses “homens-fera” em ci-
dadãos, Martí atribuiu um papel decisivo à educação do elemento
indígena americano.

Vejamos algumas passagens de seu folheto Guatemala,


escrito em 1878, quando ele, ao narrar como aquelas inteligên-
cias poderiam atingir facilmente a maturidade, afastando-se do
104 seu estado de “fera”, descreveu tal processo como uma verdadeira
metamorfose indígena21:

Aindiados, descalzos, huraños, hoscos, bruscos, llegan


de las soledades interiores niños y gañanes, y de pronto, por ín-
tima revelación y obra maravillosa del contacto con la distinción
y con el libro, el melenudo cabello se asienta, el pie encorvado se
adelgaza, la mano dura se perfila, el aspecto mohíno se ennoble-
ce, la doblada espalda se alza, la mirada esquiva se despierta: la
miserable larva se ha hecho hombre. (OC, v. 7, p. 154-1555)

Nesse mesmo texto, comentou ainda, com nítida aprova-


ção e orgulho, o fato de na região da Antigua, na Guatemala, haver
um “governador indígena” que lia periódicos, sabia francês, criava
e mantinha escolas e que, com o exemplo e a palavra, ensinava

21 Ver CARVALHO, 2003, p. 227-228.


CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

virtudes. Tal era o exemplo que colocava a educação dos índios


como uma tarefa imprescindível, mesmo diante de sua resistên-
cia, para que eles passassem da condição de rêmora a alavanca
das jovens nações americanas22. Ainda nesse mesmo folheto Gua-
temala, após ressaltar a importância da educação popular23, que,
para Martí, teria salvado a França, Suíça e Alemanha, ele defen-
deu a fundação de uma Escola Normal de Índios a fim de desper-
tar as suas virtudes “dormidas” – “todo despierta al amanecer, y el
indio duerme” –, a fim de garantir que a liberdade e a inteligência
fossem a atmosfera natural do homem. (OC, v. 7, p. 140, 156-158)

Nessa mesma linha, ele defendeu de forma veemente a


criação, nos países hispano-americanos, de uma espécie de esco-
las ambulantes24 formadas por professores missionários e práticos,
a fim de remediar a ignorância camponesa e indígena. Defendeu
ainda, num artigo de 1890 para El Partido Liberal que, assim como
se recruta soldados para o exército se deveria recrutar professores
para os pobres, ou seja, que o serviço de professores e mestres 105
deveria ser obrigatório, de pelo menos um ano. Um patriotismo
ativo deveria, assim, substituir um patriotismo meramente lite-
rário. Respondendo, em outros apontamentos, ao que redimiria
esses homens “dormidos”, Martí afirma que, primeiro lugar, seria

22 Ver CARVALHO, 2003, p. 228.


23 Nesse ponto é interessante observar alguns juízos numerados deixados por Martí, em seus
Cadernos de Apontamentos, especificamente sobre educação popular: “I.- Instrucción no es
lo mismo que educación: aquélla se refiere al pensamiento ésta principalmente a los senti-
mientos. Sin embargo, no hay buena educación sin instrucción. Las cualidades morales su-
ben de precio cuando están realzadas por las cualidades inteligentes. II.- Educación popular
no quiere decir exclusivamente educación de la clase pobre; sino que todas las clases de la
nación, que es lo mismo que el pueblo, sean bien educadas. (...) III.- el que sabe más, vale
más. Saber es tener. (...) Un hombre instruido vive de su ciencia, y como la lleva en sí, no se le
pierde, y su existencia es fácil y segura. IV.- El pueblo más feliz es el que tenga mejor educa-
dos a sus hijos, en la instrucción del pensamiento, y en la dirección de los sentimientos. Un
pueblo instruido ama el trabajo y sabe sacar provecho de él. (...) V.- Al venir a la tierra, todo
hombre tiene derecho a que se le eduque, y después, en pago, el deber de contribuir a la
educación de los demás. VI.- A un pueblo ignorante puede engañársele con la superstición, y
hacérsele servil. Un pueblo instruido será siempre fuerte y libre”. (OC, v. 19, p. 375)
24 Martí afirmou, certa vez, que bibliotecas e escolas seriam a contrassenha da nova cidadela.
(OC, v. 7, p. 326)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

o ensino obrigatório. (OC, v. 8, p. 290-292; v. 12, p. 415; v. 6, p. 327-


328) Em um artigo de 1875, sobre Instrução Pública, ele escreveu:

Toda idea se sanciona por sus buenos resultados.


Cuando todos los hombres sepan leer, todos los hombres sabrán
votar, y, como la ignorancia es la garantía de los extravíos polí-
ticos, la conciencia propia y el orgullo de la independencia ga-
rantizan el buen ejercicio de la libertad. Un indio que sabe leer
puede ser Benito Juárez; un indio que no ha ido a la escuela,
llevará perpetuamente en cuerpo raquítico un espíritu inútil y
dormido. Hasta estas palabras me parecen inútiles: tan invul-
nerable y tan útil es para mí la enseñanza obligatoria. Los ar-
tículos de la fe no han desaparecido: han cambiado de forma.
A los del dogma católico han sustituido las enseñanzas de la
razón. La enseñanza obligatoria es un artículo de fe del nuevo
dogma. (OC, v. 6, p. 351-352)

Num apontamento de 1878, ao apresentar um longo rela-


106 to do “problema indígena” na América, Martí disse que a grande
revolução americana se daria com “escolas e arados”, despertando
nos índios “nobres ambições”. Somente assim eles poderiam cons-
tituir-se no mais potente apoio da civilização, da qual eram então
o mais pesado fardo. Era, portanto, necessário garantir aos índios
seus direitos de “homens”, já que os direitos de nações livres já
lhes tinham sido roubados, educando-os em conformidade com
suas necessidades e alcances. Ainda sobre a necessária e impres-
cindível educação dos índios, Martí considerou, em outro artigo
para La Nación, de Buenos Aires, em 1886, que, uma vez educa-
dos, poder-se-ia conciliar a vida de sua raça e a “vida civilizada” e,
com a “elevação da mente instruída”, o índio poderia apresentar-se
como um “elemento útil, original e pitoresco do povo que inter-
rompeu o curso de sua civilização e lhe arrebatou seu território”.
E, por fim, concluía, afirmando que “Es indispensable alimentar
la luz, y achicar la bestia”. (OC, v. 7, p. 163, 165; v. 10, p. 375)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Elevar o índio, por meio da educação, à categoria de


cidadão : essa seria, portanto, a tarefa urgente dos gover-
25

nos americanos, pois a ignorância sempre teria sido, segundo


ele, escola de bárbaros26. Para Martí, as revoluções em solo ame-
ricano seriam estéreis se não levassem em conta a educação dos
índios, o que poderia ainda trazer enormes benefícios para o cam-
po e a agricultura, colocando-se como uma alternativa às pers-
pectivas equivocadas, segundo ele, de políticas de imigração que
pudessem trazer “espíritus ajenos” que poderiam chocar com o
“espíritu del país”. Assim, concluía que um dos grandes desafios
da América era repartir bem as terras e educar os índios. (OC, v. 7,
p. 166-168; v. 8, p. 439)

Quanto ao elemento negro, ainda que Martí tenha escri-


to muito pouco sobre ele, destacamos aqui um importante artigo
escrito para o jornal portenho La Nación, de 1886, no qual res-
saltou seus dramas e virtudes. Sublinhou, entre outros aspectos, 107
sua íntima comunhão com a natureza, bem como sua extrema
capacidade de adaptação. Considerava que nem o martírio da
escravidão a que foi submetido conseguia obscurecer sua bravu-
ra e bondade nativas. Sua imagem era a de uma raça que, ator-
mentada pelo crime da servidão, resistia bravamente e buscava
apagar as nefastas heranças de um triste passado e que já dava
os primeiros sinais por toda a América de sua capacidade de dis-
putar um lugar seguro e de destaque na rica mescla da qual se
formava a nova civilização americana. Para tanto, também era
fundamental que os negros fossem educados e preparados para

25 A propósito, num artigo de 1885, publicado em La Nación, de Buenos Aires, ao tratar do tema
indígena nos Estados Unidos, Martí escreveu: “Que se eduque al indio con conformidad con
sus necesidades y alcances; y se le convenza, y donde sea menester se le compela a aprender
y a trabajar, a lo que acaso, envilecido por su actual género de vida de pupilo ocioso, se resis-
ta. Que el indio vuelva a su alma clara y suba a ciudadano”. (OC, v. 10, p. 326)
26 Ver CARVALHO, 2003, p. 229.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

se integrarem a uma nova vida de liberdade, para o pleno exercí-


cio de sua cidadania. (OC, v. 11, p. 73)27

Por outro lado, consoante a perspectiva de Martí, a nova


civilização americana, surgida do choque entre os extremos da ci-
vilização, apresentava-se com uma composição dual. De um lado,
os elementos naturais e autóctones, resultantes dos diversos apor-
tes culturais americanos, e, de outro, aqueles que ele considerou
como “letrados artificiales” ou “redentores bibliógenos”, que viam
a salvação do continente no livro importado, sem levar em conta
um conhecimento direto da realidade americana. Nesse sentido,
a América era o cenário de um confronto entre essas duas forças
contraditórias. No seu artigo Nuestra América, de 1889, Martí afir-
mou que “el libro importado ha sido vencido en América por el
hombre natural. Los hombres naturales han vencido a los letrados
artificiales. El mestizo autóctono ha vencido al criollo exótico”.
(OC, v. 6, p. 17) Nesse confronto, portanto, evidenciava-se a vitória
108 das forças naturais e autóctones americanas. (CARVALHO, 2003,
p. 231) Nesse sentido, Martí definiu assim tal “educação natural”:

Esta educación directa y sana; esta aplicación de la


inteligencia que inquiere a la naturaleza que responde; este
empleo despreocupado y sereno de la mente en la investigación
de todo lo que salta a ella, la estimula y le da modos de vida;
este pleno y equilibrado ejercicio del hombre, de manera que sea
como de sí mismo puede ser, y no como los demás ya fueron; esta
educación natural, quisiéramos para todos los países nuevos de
la América. (OC, v. 8, p. 287)

27 Em 1892, num artigo para Patria, de Nova York, Martí considerou que não haveria razão para
a deplorável e contínua alusão positiva aos brancos e pejorativa aos negros. Para referir-se às
virtudes dos negros – mais difíceis neles por terem vivido mais próximos da servidão –, eles
deveriam ser chamados apenas de negros, como um fato natural. (OC, v. 1, p. 338) Ver ainda
CARVALHO, 2003, p. 229-230.
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Mais adiante, no mesmo artigo acima citado, Martí con-


cluiu que “No hay batalla entre la civilización y la barbarie, sino
entre la falsa erudición y la naturaleza”. Dessa forma, como vimos,
a luta que efetivamente se travava era entre a “falsa erudição” e
a “natureza americana”. Uma falsa erudição que não levava em
conta a natureza americana que, na sua ignorância impaciente,
na sua ânsia de crescimento, no desejo de romper com um modelo
que comprimia as possibilidades de desenvolvimento da Hispa-
no-América, tendia a uma imitação confusa e a uma “aceitação
ligeira” de novos modelos e fórmulas extraídas de civilizações
distintas, sobretudo franceses e norte-americanos, como solução
para os males que afetavam a vida do subcontinente hispano-ame-
ricano. (OC, v. 6, p. 17)28

Tais letrados queriam a redenção da Hispano-América,


mas, ao mesmo tempo, desdenhavam a necessidade de se conhecer
sua história e suas especificidades, governando-a conforme esse co-
nhecimento. Para Martí, era imprescindível um estudo profundo
tanto das potencialidades das virtudes americanas – para não su- 109
bestimá-las nem desconfiar delas mais do que o justo e necessário
–, quanto das causas de seus defeitos, a fim de minorá-los gradual-
mente com a eliminação de suas causas. Mais sensíveis aos defeitos
do que às virtudes americanas, os “falsos eruditos” desatendiam à
necessidade de se levar em conta a “alma da terra” para governar
com ela e não contra ela. O fato de seus mandatários terem constan-
temente negado o direito desse novo homem natural ao gozo pacífi-
co da liberdade e da razão constituía um dos grandes descaminhos
e extravios na evolução da civilização hispano-americana29. Não a

28 Ver CARVALHO, 2003, p. 232-233.


29 A propósito, Martí conclui assim um de seus ensaios mais importantes, Nuestra América: “Vie-
ne el hombre natural, indignado y fuerte, y derriba la justicia acumulada de los libros, porque
no se la administra en acuerdo con las necesidades patentes del país. Conocer es resolver.
Conocer el país, y gobernarlo conforme al conocimiento, es el único modo de librarlo de tira-
nías. La universidad europea ha de ceder a la universidad americana. La historia de América,
de los incas acá, ha de enseñarse al dedillo, aunque no se enseñe la de los arcontes de Grecia.
Nuestra Grecia es preferible a la Grecia que no es nuestra. No es más necesaria. Los políti-
cos nacionales han de reemplazar a los políticos exóticos. Injértese en nuestras repúblicas el
mundo; pero el tronco ha de ser el de nuestras repúblicas”. (OC, v. 6, p. 18)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

razão universitária, de uma inteligência da classe senhorial, ofus-


cada pelo livro importado, mas a razão de todos, incluindo a razão
de uma inteligência “aún burda y más turbada por ayudada por el
libro incompleto” (OC, v. 1, p. 389) que, se bem exercitada, possibi-
litaria a congregação, o assentamento e ordenação equilibrada de
seus heterogêneos elementos, razão essa que possibilitaria, enfim,
a união frutífera numa nova civilização, culta, distinta e original,
em relação tanto aos aportes étnicos e culturais, individualmente
considerados, que lhe deram origem, quanto em relação aos mode-
los europeu e norte-americano30. (CARVALHO, 2003, p. 233)

Tais foram algumas das bases fundamentais do pensa-


mento americanista de José Martí e, articulado com ele, do seu
pensamento educacional em particular. Tal foi, em síntese, o diag-
nóstico crítico martiano da situação da educação na Nuestra Amé-
rica de sua época, bem como as suas prescrições em termos de
reforma educacional, do ensino fundamental ao universitário. Co-
nhecer e compreender tudo isso, em seu tempo e historicidade es-
110
pecíficos, permite abrir, certamente, um promissor caminho para
se aproximar do pensamento filosófico-educacional latino-ameri-
cano de final do século XIX e, assim, para compreender melhor a
própria realidade histórica, política, social e cultural da nossa e
da(s) outra(s) América(s), seja de outrora ou de hoje.

30 Uma nova civilização americana que, depurada das nefastas heranças coloniais que retarda-
vam seu progresso e dos falsos conceitos de americanismo que comprometiam a liberdade
de outros povos do continente, buscava, enfim, entre erros e tropeços, trilhar seu próprio
caminho, contando apenas com suas próprias forças, com suas próprias mesclas. É nesse
sentido que entendemos que o discurso martiano tendeu a extrapolar e superar os estreitos
limites impostos pelas análises da realidade americana pautadas no contraponto civilização
e barbárie. (CARVALHO, 2003, p. 233)
CAPÍTULO 4 : JOSÉ MARTÍ E A EDUCAÇÃO NA NUESTRA AMÉRICA

Referencias Bibliográficas
ANUARIO DEL CENTRO DE ESTUDIOS MARTIANOS. La Habana: Centro
de Estudios Martianos, a partir de 1977.

ANUARIO MARTIANO. La Habana, Sala Martí de la Biblioteca Nacional


de Cuba, 1969-1977 (7 vols.).

CARVALHO, Eugênio Rezende de. América para a humanidade: o ame-


ricanismo universalista de José Martí. Goiânia: Editora UFG, 2003.

111
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Rodó y la educación

MAURICIO L ANGON

Introducción

R
odó escribió “Ariel” en 1900. Ese escrito impactó en toda
nuestra América. Sacudió las aguas estancadas en que flo-
taban tantos hombres de letras, conmovió conciencias y
movió a la acción. Ahora -fuera de grupos especializados o im-
pactos renovados de su obra en algunas personas- se lo lee muy
112 poco. Sin embargo, el hecho de que se hayan cumplido este año
cien años de su muerte, ha motivado la realización de eventos
académicos que, entre otros méritos, tuvieron la virtud promo-
ver un diálogo interdisciplinario desde Rodó. Mi intención aquí es
presentar algunos puntos en debate entre Rodó y la problemática
educativa actual.

No intentaré explicar el impacto de “Ariel” en “Latinoamé-


rica”. Sólo convocaré la fuerte imagen de dos “águilas guerreras”1,
lanzadas al mismo tiempo al choque inevitable. Desde el Norte, la
“sajona” movida por lo material, pesado, terrestre, pedestre, en-
carnada en Calibán. Desde el Sur el águila “latina”, espiritual, leve,

1 “Alta en el cielo un águila guerrera, audaz se eleva en vuelo triunfal”, son los primeros versos
de la canción u oración a la bandera argentina, que se canta en todas las escuelas del país.
Es un aria de la ópera “Aurora” de Héctor Panizza, con la cual se inauguró el Teatro Colón de
Buenos Aires, en 1908. La letra sigue la orientación rodoniana, pero asumida como bandera
de un país.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

aérea, voladora simbolizada por “Ariel”2. Dos enemigos. Una guer-


ra. Hay que luchar por el triunfo nuestra parte, la “buena”, por
más que se reconozcan los méritos que fundan la fuerza de la otra.

Rodó es un literato. No cualquiera. Uno capaz de darle


fuerza de arenga productora de efectos reales (tanto “espirituales”
como “materiales”) a un discurso escrito en lenguaje y simbologí-
as cultas, de cuidado estilo y prolijidad de detalle.

Esos efectos, seguramente no rozaron siquiera la fibra de


nuestra américa profunda y analfabeta. Pero sí tocó las almas le-
tradas. A las que hoy -mucho más “calibánicas”- también les resul-
ta pesado, desgastado, pasado, obsoleto.

Ya esperaba Rodó esa dinámica:

Por nuestros labios3, los grandes hombres de las letras


solían pasar con inflexiones de ironía o displicencia; vulgariza- 113
dos, empequeñecidos, (...) por el enfriamiento del gran don de
admirar, don que es juventud y fuerza de alma; empequeñeci-
dos, no sólo por esa nuestra decadencia de corazón, sino tambi-
én por nuestro conocimiento de las mil pequeñeces de realidad
humana que la observación, hecha de cerca, descubre, necesa-
riamente, en la persona y la vida de los grandes; empequeñeci-
dos en fin, por la desvalorización forzosa de la obra con el tiem-
po, con el análisis constante, con las modificaciones del gusto4.

A inicios de los ‘70 señalaba Silva Censio que la bibliografía


sobre la vida y obra de Rodó ya era “torrencial”, pero que “uno de
los aspectos de su quehacer vital menos frecuentado ha sido el de

2 Calibán y Ariel, así como Própero, son personajes de la tragedia de Shakespeare La Tempes-
tad utilizados por Rodó.
3 Es decir, leído hoy: por los nuestros. En el texto el “nosotros” es un grupo de veteranos profe-
sionales de las letras que ha perdido el entusiasmo por los antiguos que tuvo en su juventud.
4 “Albatros”, En Rodó, J.E.: Los últimos motivos de Proteo, Montevideo, Serrano; Buenos Aires,
Menéndez, 1932. Prólogo de Dardo Regules.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

su actividad política y parlamentaria”. De ahí la publicación de su


monumental (e insuficiente) recopilación5. Menos frecuentado aún
ha sido su pensamiento educacional, sin embargo de presencia pre-
ponderante en las más publicadas y concurridas páginas de su obra.

No intentaré siquiera esbozar la contribución de José


Enrique Rodó al pensamiento filosófico-educacional en América
Latina, urgando lo se entendiera en su vasta obra para descubrir
ideas educacionales, sistematizarlas, exponerlas, interpretarlas o
valorarlas6. Me conformaré con revisitar alguno de sus más cé-
lebres escritos, desde nuestros problemas educativos actuales. Y
con repensar esos problemas desde esos escritos.

Ponernos en diálogo con Rodó para nosotros, “intelectu-


ales” uruguayos, es un diálogo interno, intracultural. Porque él
es uno de los nos han formado y ya forman parte de nosotros;
de nuestros modos de pensar y actuar, de nuestros problemas y
114 modos de enfrentarlos7. Pero es un diálogo externo, intercultural,
traer a la discusión educativa actual, aspectos que perspectivas
homogeneizadoras no permiten ni ver, ni pensar, ni debatir, ni
decidir, tanto en los niveles macro político-educativos, como en
los “meso” de las instituciones educativas, o en los “micro” de cada
aula y cada espacio educativo no escolarizado.

Al presentar su obra “Motivos de Proteo” (1909), Rodó nos dice:

Nunca PROTEO se publicará de otro modo que éste:


es decir: nunca le daré “arquitectura” concreta ni término for-
zoso: siempre podrá seguir desenvolviéndose, “viviendo”. La ín-

5 Silva Censio, Jorge A. : “Introducción” en Uruguay. Cámara de Senadores: José Enrique Rodó;
actuación parlamentaria. Montevideo, 1972.
6 No digo que no haya que hacer ese tipo de cosas. Digo que está fuera de mis posibilidades.
7 Mabel Quintela solía decir - respecto a ideas de Vaz Ferreira - que forman parte de nuestra
uruguayez. Lo mismo, quizás, podría decirse en referencia a Rodó; y a no muchos más Maes-
tros.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

dole del libro (si tal puede llamársele) consiente, en torno de un


pensamiento capital, tan vasta ramificación de ideas y motivos,
que nada se opone a que haga de él lo que quiero que sea: un
libro en perpetuo “devenir”, un libro abierto sobre una perspec-
tiva indefinida (RODÓ, 1930).

Invito a releer algunas páginas. De modo que pueda se-


guir “viviendo”, “abierto sobre una perspectiva indefinida”, pero
no ya “en torno de un pensamiento capital”.

El que vendrá
Finalizando el siglo XIX nuestro autor lo juzga: “El desper-
tar del siglo fue en la historia de las ideas una aurora, y su ocaso en
el tiempo, es, también, un ocaso en la realidad” (RODÓ, 1896).
115
Se ubica en la realidad con metáforas que analogizan
(o identifican) periodizaciones convencionales a procesos natu-
rales. Desde antiguo y en todas partes sigue presente esa ilusoria
tentación de dar sentido a los acontecimientos atribuyendo pode-
res mágicos a notaciones temporales artificiales, pensando así las
historias, culturas y la humanidad en su conjunto como si fuera
regida por ciclos cósmicos reiterativos (diarios, anuales) o biológi-
cos (vida, muerte; juventud, madurez, senectud).

Dentro de la notación cristiana (o echando mano de otras


tradiciones) los fenómenos milenaristas han dado lugar a senti-
mientos y realizaciones prácticas (más o menos insensatas) basa-
das en la convicción en esas creencias y profecías. Pareciera que
eso tiene efectos menores cuando se trata de “cambios de siglo”
o de “generaciones”. No es así. La reflexión sobre el siglo pasado,
presente o futuro, o sobre el día de ayer, hoy o mañana -que los
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

ordena en recta o curva marcadas por puntos ascendentes, estan-


cados, descendentes o repetitivos; esa búsqueda de sentido que
sólo puede encontrarlo fuera de la realidad humana conviviente
en espacio y tiempo- es tentación cotidiana permanente.

El joven Rodó mira sus presentes ya son pasados, los que


ahora están y los que están por venir de un modo particular. Nos
propone ver el tiempo así. Con momentos aurorales, originales,
creativos, juveniles; que llegarán a su mediodía solar, triunfal,
glorioso; y luego vendrá el ocaso, decadentes, desengañado, viejo,
oscuro. Subiendo, llegando a la cima, bajando, cayendo. Pero fijos
en su ciclo ineluctable8.

El viejo siglo XIX empolla la aurora pujante que desatará


las nuevas “cruzadas libertadoras” del siglo XX, necesariamente
optimistas en la espera del mediodía triunfal, glorioso, que del
ideal hará dogma para poder ejercer su imperio, y con eso comen-
116 zará su decadencia, generando herejes en su ocaso, cosa que el sol
pueda volver a salir. Como es “su” ocaso, el de ese siglo (sea el XIX,
o el XX), no “el” ocaso “definitivo”, el optimismo de Rodó consistirá
en esperar el amanecer.

Rodó también se pelea con el círculo, en la medida en que


capta la ilusión de óptica que hace a los hombres ver su contem-
poraneidad como peor, cuando sus posteriores pueden verla como
mejor. Su crítica no alcanza, sin embargo, a la mirada de estos
últimos. Es decir: no incluye autocrítica.

Habla de escritores franceses, que medio siglo antes, se


quejaban de su época «crepuscular», y de «soledad del alma»9, “en
días que hoy (cuando todo, a nuestro alrededor, palidece y se es-

8 Ver más abajo la tensión de estas ideas con la de dos “Humanidades” convivientes lado a
lado, pero alejadas.
9 Citas respectivamente de Hugo y de Vigny.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

fuma), nos parecen triunfales”. Y señala que más y mejor “los que
llevan la voz del pensamiento contemporáneo podrían llorar, en
nuestro ambiente, privado casi de calor y de luz”.

Y, claro, a nosotros se nos hace fácilmente “triunfal” y


“glorioso” el Montevideo que inicia el siglo XX Rodó, con Vaz Fer-
reira, con... cuando caemos en ese modo de conceptualizar que
esquiva los presentes al ligarlos a pasados ajenos e idealizados y
los proyecta al futuros. Presentes en tránsito, mirando atrás o ade-
lante, mientras ese mientras se reduce a paréntesis provisorio de
inestabilidad que clama por inmovilidad.

Pero Rodó no es tan simple. Por el contrario, pasa rigu-


rosa revista a los fracasos artísticos que buscaron certezas. Con-
dena a quien buscó “la fórmula de paz, proscribiendo (...) todos
los angustiosos pensamientos, todas las dudas, todas las ideas in-
quietantes (...) y fue impasible mientras las llamas de la pasión
devoraban (...) las almas y las multitudes”, porque “olvidó que no 117
era posible desterrar del alma de los hombres (...) «la fatal manía
de pensar»”. Denuncia a esa “multitud de profetas” opuestos entre
sí, pues “ninguno de ellos encontró la paz, ni la convicción defini-
tiva, ni el reposo, ni ante su mirada, el cielo alentador y sereno, ni
bajo sus pies el suelo estable y seguro”.

De esa “ansiedad de algo más grande, más humano, más


puro” surge el rodoniano afirmarse en esperanzadas y promisorias
convicciones de futuro:

Sólo la esperanza mesiánica, la fe en el que ha de ve-


nir, porque tiene por cáliz el alma de todos los tiempos en que
recrudecen el dolor y la duda, hace vibrar misteriosamente
nuestro espíritu. (...) El ambiente espiritual que respiramos está
lleno de presagios, y los vislumbres con que se nos anuncia el
porvenir están llenos de promesas...
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

El que vendrá, será uno: “¡Revelador!” Entre signos de


admiración que lo anuncian, lo llaman y lo proclaman. “¡Profe-
ta!”. Decididamente humano. Y ya se esboza el esfuerzo por adi-
vinarlo, por distinguirlo “en las multitudes”, por inventarlo para
seguirlo y obedecerlo:

¿Sobre qué cuna se reposa tu frente, que irradiará


mañana el destello vivificador y luminoso; o sobre qué pensati-
va cerviz de adolescente bate las alas el pensamiento que ha de
levantar el vuelo hasta ocupar la soledad de la cumbre; o bien,
¿cuál es la idea entre las que iluminan nuestro horizonte como
estrellas temblorosas y pálidas, la que ha de transfigurarse en
el credo que caliente y alumbre como el astro del día, de cuál
cerebro entre los de los hacedores de obras buenas ha de surgir
la obra genial?

Salir a buscar una cuna, un joven. Una idea que tendrá


que hacerse dogma. Para encontrar el cerebro del que surgirá “la
118 obra genial”, ya tenemos un universo más reducido, un pajar me-
nos inmenso: “entre los de los hacedores de obras buenas”.

“Y no digo más, porque nadie


encontrará
la llave que nadie ha perdido”
(Chihuailaf, 2014, 38)

Reza Rodó ante la imagen futura que se le presenta “como


un airado y sublime vengador”, con “espada” y “fuego”, con “nube
que a un tiempo llora y fulmina”. O si no, “como un apóstol dulce
y afectuoso”, con notas de “amor” y de “esperanza”. “Yo no tengo
de ti sino una imagen vaga y misteriosa (...) pero sé que vendrás.”

Del tuteo al divino de la oración íntima del yo, pasa rápi-


do al plural de un carente nosotros indefinido o multitudinario:
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

El vacío de nuestras almas sólo puede ser llenado por


un grande amor, por un grande entusiasmo; y este entusiasmo
y ese amor sólo pueden serles inspirados por la virtud de una
palabra nueva (...)

En medio de su soledad, nuestras almas se sienten dó-


ciles, se sienten dispuestas a ser guiadas. (...) «¿Quién ha de
pronunciar la palabra de porvenir y de fecundo trabajo que ne-
cesitamos para dar comienzo a nuestra obra? ¿Quién nos devol-
verá la divina virtud de la alegría en el esfuerzo y de la esperan-
za en la lucha?» Pero sólo contesta el eco triste de nuestra voz...
Nuestra actitud es como la del viajero abandonado que pone a
cada instante el oído en el suelo del desierto por si el rumor de
los que han de venir le trae un rayo de esperanza. Nuestro cora-
zón y nuestro pensamiento están llenos de ansiosa incertidum-
bre... ¡Revelador! ¡Revelador! ¡La hora ha llegado!...

¿Decepcionante? Sin duda. Además me quedan reservas


con eso de: “los vislumbres con que se nos anuncia el porvenir 119
están llenos de promesas...”

Pero en este texto está el germen de Ariel.

El porvenir en formas vivas.


Rodó educa. En tanto educador -quizás como todos noso-
tros- proyecta el porvenir que avizora en su presente entendién-
dolo en función de ese futuro imaginado, deseado, previsto, pre-
dicho, prospectado. Ya que está por venir, queremos traerlo para
nuestras finalidades presentes. Lo cito in extenso porque entrar
en Rodó exige también absorber el modo de fluir de sus palabras:
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

El porvenir que vemos alborear en nuestro ocaso ten-


drá, como el presente, su resplandor de almas pensadoras; su
fragancia de almas capaces de engendrar belleza; su magnetis-
mo de almas destinadas a la autoridad, al apostolado y a la
acción. De entre las nuevas, oscuras muchedumbres, surgirán
los infaltables electos; y con ellos vendrán al Mundo nueva ver-
dad y hermosura, nuevo heroísmo, nueva fe. ¡Qué irresistible y
melancólico anhelo se apodera de nuestro corazón, anticipando
con el pensamiento ese brote ideal que no será para nosotros!...
Pero la esperanza tiene, en la realidad que nos rodea, formas
más vivas, determinaciones más seguras, que los espectros de
nuestra imaginación; y volviendo a esa viva realidad de la es-
peranza los ojos, la melancolía del anhelo pierde toda acritud y
se vuelve aún más suave que el halago del soñar egoístico... Al
lado de la Humanidad que lucha y se esfuerza, y sabe del dolor,
y ha doblegado su pensamiento a la voluntad, a la culpa, y mira
acaso el día de mañana con la melancólica idea de la sombra
final y la decepción definitiva, hay otra Humanidad graciosa y
120 dulce, que ignora todo eso, cuya alma está toda tejida de espe-
ranza, de contento, de amor; hay una Humanidad que vive aún
en la paz del Paraíso, sin el presentimiento de la tentación y del
destierro; sagrada para el Odio, inaccesible para el Desengaño...
A nuestro lado, y al propio tiempo lejos de nosotros, juegan y
ríen los niños, sólo a medias sumergidos en la realidad; almas
leves, suspendidas por una hebra de luz en un mundo de ilusión
y de sueño. Y en esas frentes serenas, en esos inmaculados co-
razones, en esos débiles brazos, duerme y espera el provenir; el
desconocido porvenir que ha de trocarse, año tras año, en reali-
dad, ensombreciendo esas frentes, afanando esos brazos, expri-
miendo esos corazones. La vida necesitará hacer el sacrificio de
tanta dicha y candor, para propiciarse los hados del porvenir. Y
el porvenir significará la transformación, en utilidad y fuerza,
de la belleza de aquellos seres frágiles, cuya sola y noble utilidad
actual consiste en mantener vivas en nosotros las más benéficas
fuentes del sentimiento, obligándonos, por la contemplación de
su debilidad, a una continua efusión de benevolencia.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

Todas las energías del futuro saldrán de tan preciada


debilidad. En esas encarnaciones transitorias están los que han
de levantar y agitar desconocidas banderas a la luz de auroras
que no hemos de ver; los que han de resolver las dudas sobre las
cuales en vano hemos torturado nuestro pensamiento; los que
han de presenciar la ruina de muchas cosas que consideramos
seguras e inmutables; los que han de rectificar los errores en que
creemos y deshacer las injusticias que dejemos en pie; los que
han de condenarnos o absolvernos, los que han de pronunciar
el fallo definitivo sobre nuestra obra y decidir del olvido o la
consagración de nuestros nombres; los que han de ver, acaso,
lo que nosotros tenemos por sueño y compadecernos por lo que
nosotros imaginamos una superioridad...

Iluminado de esta suerte, un pensamiento, de otra


manera, exánime por su indeterminación y vaguedad: el de un
porvenir que no veremos, adquiere forma y color de cosa viva;
toma contornos y colores capaces de provocar nuestra emoción y
vincularnos con el grito de las entrañas. Es el reinado del Delfín
de la Humanidad presente: es el reinado que el viejo rey, a quien 121
abruma ya el peso de su manto, se complace en imaginar como
el resultado glorioso de sus batallas, fructificando en la apoteo-
sis de su estirpe alrededor de una altiva figura juvenil.

Pero si el futuro misterioso vive y avanza en esa Hu-


manidad toda contento y amor, ¿dónde están, dentro de ella,
los que en su día han de señalar a los demás el rumbo y perso-
nificarlos en la gloria? ¿Cuáles son los que llevan en su brazo la
fibra del esfuerzo viril, y en el fondo de sus ojos la chispa de la
llama sagrada? ¿Dónde están los cachorros del león Héroe, los
polluelos del águila genial: dónde están, para levantarlos sobre
nuestras cabezas, y honrar, unánimes, la elección de los dioses,
antes que se le crucen al paso contradicción, recelo y envidia?
(RODÓ, 1930, 112-115)10

10 Reproduzco el “motivo” XLIII íntegro, incluso en su uso de mayúsculas. El autor desarrolla


estas ideas en los siguientes.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Rodó piensa o imagina un porvenir básicamente igual a


su presente. Igualmente desiguales tanto su actualidad como su fu-
turo: hay y habrá “oscuras muchedumbres” e “infaltables electos”.

Éstos tendrán “almas” de los mismos tipos que admira o


ama el autor en su presente: pensadores, creadores de belleza, lí-
deres, santos, hombres de acción...

Traerán más y mejor de lo mismo: aunque repita “nue-


vos”, traerán verdad, hermosura, heroísmo, fe...

De modo que el “anhelo”, el “ideal”, la “esperanza” Rodó


(que es también su “soñar egoístico”) se proyecta hacia un deter-
minado futuro que está por venir. Pues, por más “misterioso” que
sea, se concretará y medirá en mayores grados de verdad, hermo-
sura, heroísmo y fe.

122 El reiterado uso del plural, del “nosotros” y lo “nuestro”,


se dirige a sus lectores, busca conmover a los hombres de su tiem-
po. Pero lo releemos hoy otros lectores, otro nosotros para él im-
-pre-visible, en otro tiempo, en otro espacio, en otra realidad. A
nuestro nosotros -al menos a mí- ¿no nos dice nada? Porque -para-
dos en otro lugar y tiempo- seguramente, no nos convencerá. Sin
embargo: ¿en qué medida siguen presentes modos de educación
preventivos de males, amoldadores de futuros? ¿en qué medida
persisten las ideas de predeterminación de destinos, profecías au-
torrealizadas, incluso negativas? ¿en qué medida los educadores
seguimos buscando el filón de oro en el interior de cada alumno,
o descartándolo por su presunta incapacidad u origen social? ¿en
qué medida seguimos condenando a futuro y seleccionando las
“almas adecuadas”, haciendo superfluo al docente mismo?

En este texto rodoniano ese “nosotros” de destinatarios


con los que se identifica, no está entendido como agente, como
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

“hacedor” libre y responsable; sino como decadente, anciano, im-


potente, casi muerto: “en nuestro ocaso” . Se trata de un “nosotros”
inmutable e inactivo, que se da por terminado, presente pero ya
pasado, que ya ha renunciado a “levantar y agitar banderas”, “re-
solver dudas”, arruinar seguridades e inmutabilidades, “enmendar
errores”, “deshacer injusticias”... Y que espera quien lo continúe,
lo mejore, alcance “sus” metas, y le dé, así, sentido retroactivo a su
vida: un Delfín.

Ese futuro que avizora “no será para nosotros”; tampoco


hecho por “nosotros”. Pero sí es nuestro, de “nosotros”; es nuestro
anhelo y esperanza. Las ansias de Rodó pluralizado en “nosotros”.

Pero nosotros, hoy ¿Qué futuro esperamos? ¿Uno que nos


siga, que nos continúe que se atenga nuestro orden, a nuestras
órdenes, que haga las tareas que les encomendamos, que haga
lo que “nosotros” no podemos, pero queremos? ¿Esperamos que
nuestros descencentes se sometan a nuestros deseos e ilusiones; 123
que sean nuestros jueces en un “juicio final”: que nos salve o nos
condene? Y Rodó no concibe tampoco ni un presente ni un futuro
social, colectivo, común. Es sobre cada uno como individuo que
“han de pronunciar el fallo definitivo sobre nuestra obra y decidir
del olvido o la consagración de nuestros nombres”. Serán nuestros
dioses, los dioses que nos hacemos. Que, claro, harán justicia.

Rodó quiere ver no sólo en sueños ese futuro, sino en la


realidad. Entonces mira a los niños. Reitera en otro plano la visi-
ón dicotómica entre dos Humanidades en el presente y en todo
porvenir. La “Humanidad” de la senectud y la “Humanidad” de
la niñez. El porvenir esperado y soñado será igual a la realidad
actual: dos “Humanidades” juntas (y distantes) una viviendo en
pacífico sueño feliz; otra en dolor, desengaño y pesimismo. Tan
desconectados adultos y niños, como “multitudes” y “electos”. Tan
iguales, porque desiguales, pasado, presente y futuro.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Una “Humanidad” cargada de lacras presentes. Otra, que


consiste en los anhelos y esperanzas de la primera, pero ya en-
carnada en un presente paralelo, de “formas más vivas”, “deter-
minaciones más seguras”, en “los niños”. Ambas se contraponen
punto a punto: una es “ocaso”, otra “alborear”; una lucha, esfuer-
zo, pensamiento “doblegado a la voluntad y la culpa”, la otra gra-
ciosa, dulce, ignorante, pura esperanza, contento, amor, en paz;
a salvo del “Odio” y del “Desengaño”; una sospechando la “sombra
final”, la “decepción definitiva”, otra “luz en un mundo de ilusión
y de sueño”. En los niños, bellos y frágiles, “duerme y espera el
porvenir”. Que los apagará... La “vida” que los “sacrificará”, trans-
formando en utilidad y fuerza” a esos niños “cuya sola y noble uti-
lidad actual” consiste en mantener “vivas en nosotros” la sensibi-
lidad y la “benevolencia”... “por la contemplación de su debilidad”.
Los niños hoy, son útiles porque nos enternecemos por su vulne-
rabilidad. En el porvenir, su debilidad y fragilidad transformadas
en energía y fuerza adulta tendrán otras utilidades: solucionarán
124 todos los problemas de los adultos “presentes” ...

La tensión que vemos en Rodó proviene de su inserción


en el ideal de un orden predeterminado que necesariamente pro-
gresa que lo lleva a ver al futuro como necesariamente mejor, más
próximo al ideal, pero que -en cierto sentido- ya está dinámica y
concretamente presente: “el futuro misterioso vive y avanza en esa
Humanidad toda contento y amor”; y, en otro sentido, requiere
para realizarse la fuerza y esfuerzo de los “infaltables electos”...
Que, como los viejos de hoy, ya convivirán con sus nietos en los
que depositarán sus ilusiones de futuro..

Ahí surge la tarea “educativa” de las “viejas generaciones”:


hurgar entre los niños para preguntarse ¿”dónde están” los que se-
rán líderes, héroes o genios? Rápido: “antes que se le crucen al paso
contradicción, recelo y envidia”. Y, entonces: “levantarlos sobre
nuestras cabezas, y honrar, unánimes, la elección de los dioses”.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

De contestar hoy la pregunta en relación a los niños a que


se refería Rodó, habría que hacerlo diciendo que seguramente
están bajo tierra (algunos desde su infancia, otros recientemen-
te, quizás alguno sobreviviendo más que centenario). De nuevo
sumidos (como debe ser) los “infaltables electos” en las “oscuras
muchedumbres”. Habiendo vivido unos y otros, y habiendo deja-
do huellas reales, concretas, indelebles en sus futuros. Es decir,
con más o menos gloria, reconocimiento u olvido, pero habiendo
vivido y habiendo engendrado; como Rodó.

También podría uno cuestionarse sobre la vigencia esa


visión idílica de la niñez, mirada desde las “minoridades” actu-
ales. Desde ésos cuyo presente está en el hambre y su porvenir lo
repite en la miseria inveterada, en la muerte pronta, en la cárcel o
en la migración constante. Mirando la realidad actual de los niños
de nuestros cantegriles, esos “seres frágiles” que en ocasiones lle-
gan todavía (mientras son niños pequeños) a revolver bolsillos
para darles una moneda. O también conmueven sensibilidades y 125
“tocan el corazón”, particularmente cuando se los ve en foto, en vi-
deo, en cine. Aunque cuando uno se tropieza con ellos en la calle,
más bien despiertan sentimientos de repulsión y rechazo que, en
cuanto crecen un poco, se hacen miedo y odio.

Los adultos educadores, expertos en indicadores o cifras,


se mueven para ayudarlos “pensándoles” educaciones específicas.
Más o menos las mismas para las “oscuras muchedumbres” de
todo el mundo, esperando que puedan conseguir algún trabajo,
que sean mansos, que aprendan a sobrevivir con escasos recursos
y sin drogas, que respeten la autoridad. Y previendo más eficaces
medidas represivas que les aseguren encierros que garanticen la
seguridad de los “infaltables electos”. En todo caso, es difícil se-
guir hablando hoy de los educandos desde “la belleza de aquellos
seres frágiles, cuya sola y noble utilidad actual consiste en mante-
ner vivas en nosotros las más benéficas fuentes del sentimiento”.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Más bien deberíamos ocuparnos de su realidad actual


que cotidianamente condiciona o determina sus futuros, que de
sus efectos actuales o futuros “en nosotros”. Ocuparnos de la rea-
lidad conflictiva, problemática. Que exige cortar los mecanismos
de su reproducción. Pero que, entre tanto, eduque tanto para cam-
biarla, como para que cada uno y todos sean capaces de convivir
entre humanos en lo que venga...

Desde otro punto de vista “nosotros”, los futuros de Rodó;


hijos o tataranietos de los niños de entonces. Nosotros, que se-
guramente decepcionamos sus expectativas (y con ello las refu-
tamos), somos nuestra realidad. No la realización de los (miopes)
sueños de otros, pasados, que nos atan a sus problemas, sus ilu-
siones, sus ideologías. Bastante con que estemos atados al mundo
que nos dejaron en herencia.

Así que, si algo aprendimos, es a no esperar de los niños


126 de hoy, del futuro, nuestra propia continuidad y superación sino,
por un lado, la realización de su vida propia, ojalá que en su má-
xima potencia, que de todos modos incluirá junto con sus logros,
decepciones y retrocesos. Aprendimos también a no ver en los
niños presentes promesas a ser cumplidas o incumplidas, sino a
valorarlos por sí mismos en su realidad actual. Es decir, valorar
lo presente como distinto de nosotros (lo que incluye lo positivo y
lo negativo) y liberar lo porvenir (que, de todos modos, es libre...)

También sería interesante una mirada inversa: reflexionar


sobre aquello que ocurrió, pero no fue previsto. Pensar la educaci-
ón teniendo en cuenta lo imprevisible de los acontecimientos y de
sus efectos, no sólo para las generaciones anteriores, también para
quienes los vivieron, y hasta para quienes fueros sus protagonistas.

No me refiero sólo, a sucesos puntuales, a accidentes im-


pactantes que también rompen estrategias, profecías, prospecti-
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

vas o planes y “cambian el rumbo de la historia” (un holocausto,


unas bombas atómicas, unas torres, un tsunami, unas dictadu-
ras...) Me refiero también a sucesos sociales de amplio alcance,
imperceptibles incluso para sus protagonistas, que sólo alcanza-
mos a advertir por sus efectos después que han pasado y ya son
irreversibles (las migraciones, sustitución de cines por iglesias
y estacionamientos, los encierros en barrios ricos y pobres, los
impactos de múltiples TICs, la caída de esperanzas, ilusiones,
grandes relatos, la explosión demográfica, el hambre y la riqueza
extremas, la pérdida de seguridades y puntos de referencia, la re-
clusión en las casas, la desaparición de los espacios públicos, del
diálogo, la representación política como sustitución del pueblo...)

Lo im-pre-visible para Rodó, pero también para nosotros.


Educar en la incertidumbre, en la duda, en problemas, en aporías.
No “para” las fes ocultas que pretenden educar “para” un margen
de variaciones prospectable, predecible, reducido al avance ace-
lerado, pero tranquilo, lineal, de la ciencia y la tecnología, con su 127
orden de sosegado de metodologías o normas técnicas, ilusorio
productor necesario de siempre creciente y ampliable bienestar y
tranquilidad. Cuando al mismo tiempo produce acontecimientos
y efectos laterales que ponen de manifiesto sus propias aporías,
justamente porque son “nueva verdad y hermosura, nuevo heroís-
mo, nueva fe”. Nuevos fanatismos.

En otros términos, hay que educar de otros modos.

No puedo dejar de esbozar un diálogo con Zygmunt Bau-


man (1925-2017), para quien -en esta cita- todo gira a su alrededor
y acorta el futuro al de su cuerpo anciano. ¿Qué espacio de activi-
dad queda, fuera del observador inmóvil? ¿Qué lugar para educar?:

(...) sólo durante mi estancia en el Reino Unido he vivido


en cuatro sociedades completamente distintas y eso sin moverme
del mismo lugar: eran las cosas a mi alrededor las que cambiaban.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

(...) Así, pues, yo soy el elemento más imperecedero


de mi biografía. A este fenómeno lo denomino la crisis del largo
plazo: el único largo plazo es uno mismo, el resto es el corto pla-
zo” (BAUMAN, 2004).

Se trata de abrirse al porvenir. No a “utopías” pensadas


ahora, que quizás desorientan.

No se trata de decidir, imponer o sugerir el futuro de


otros, sino de decidirse por liberar futuros, por abrirse al porve-
nir. No mirar al futuro como objetivo. Eso puede incluso encegue-
cernos, hacernos perder también la referencia a al presente a las
“topías”. También las que llamaría eutópicas, ésas que felizmente
han tenido y tienen lugar, fueron y son parte (escondida, sin duda)
de nuestros presentes. Que son buenas: no exentas de conflicto, ni
impecables, ni perfectas, ni imperecederas.11

Tampoco me convence preguntarnos “Para qué futuro


128 educamos” (REYES, 1987). No está en nuestras manos el futuro;
no sabemos cómo será. Me parece un modo inadecuado de rela-
cionarnos con el futuro, un intento de dominarlo, de pretender
hacerlo ser como queremos que sea, de adaptarlo y someterlo a
nuestros deseos actuales. Formando, por ejemplo, el tipo de ciu-
dadanos que nosotros queremos (aunque lo escondamos tras: “que
el país necesita”). Es la antigua tentación de querer con-formar a
las nuevas a imagen y semejanza, de las viejas; para perpetuarse
y cumplirse en ellas. Ilusorio modo de querer descansar en paz
imaginando un mundo sin después de nosotros.

De hecho, educamos en nuestros presenten para cual-


quier futuro. Incluso para que siga habiendo futuros. Nuestra acti-
vidad educativa es nuestro modo presente de forjar futuro. De esa
actividad somos responsables. No somos garantes de porvenires.

11 Este punto puede confrontarse con mi análisis de un pasaje de El Quijote. (LANGON, 2017,
22-28)
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

Veamos el asunto de otro modo. Somos los futuros de


Rodó y de Reina Reyes. Nuestro hoy, nuestra educación actual,
nuestras ideas, son el futuro que los pasados presentes contri-
buyeron a hacer. Que se parece y difiere de lo que hubieran queri-
do lograr. Escribieron, de hecho para este futuro que hoy es real,
en el que podemos entrar en diálogo con ellos. También somos
futuro de presentes mucho más antiguos. Somos los futuros de
Platón que no podría habernos imaginado siquiera, que tal vez
nos pensara imposibles -solía decir Valentín Cricco-; pero que, al
escribir, había decidido dialogar con nosotros, con cualquiera de
sus futuros impensables. De ahí su fecundidad imperecederamen-
te abierta. (LANGON, 2005)12

Educamos -nos guste o no- “para” todos los futuros que


lleguen a ser reales, aun los que no podemos ni imaginar; aun los
contrarios a nuestros deseos y sueños. Educamos para los futuros
que, a su vez, tendrán futuro. Del mismo modo educamos en el
presente que nos toca y para nuestro presente, es decir, para nues- 129
tros jóvenes de hoy, para los que sobrevivan.

Las palabras y acciones de quienes actuaron en el pasado


adquieren sentido en cada momento en que las recordamos. Para
todo futuro están educando. Y nosotros aprendimos que hay que
educar para cualquier porvenir.

Pero la educación no debería pensarse en la modalidad


de un sujeto que se pone a sí mismo como agente para actuar so-
bre otros y moldear el futuro. Tiene que tomarse en serio la liber-
tad. Incluso la del discípulo respecto al maestro.

Reina Reyes nos dice también que, si entendemos por re-


volucionario “no al rebelde en el campo político sino al que es

12 Intento ahí una interpretación del final del Fedro, de Platón.


FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

capaz de independizarse de las formas de vida que le ofrece el


medio en que nació para poder juzgarlas, creemos que la educa-
ción puede ser revolucionaria antes de toda revolución política”
(REYES, 1987, 3). Sí, si revolucionándose ella misma, la educación
llega a ser capaz de proveer elementos liberadores para que los
jóvenes puedan aprender a ser revolucionarios en ese sentido. Si,
en vez de educar para un futuro determinado, educa para que sea
posible “independizarse” en y de cualquier “medio”, en cualquier
futuro contingente.

La despedida de Gorgias
Rodó trabaja en varias partes de su obra la relación ma-
estro-discípulo. En este punto, creo, están sus mejores aportes a
la educación. El texto que seleccioné es el célebre brindis de Gor-
130 gias, “inmortalizado” en bronce en el Parque Rodó de Montevideo:
“Por quien me venza con honor en vosotros”,

Gorgias, “que ha enseñado en la ciudad que fue su cuna,


nueva filosofía. La delación, la suspicacia, han hecho que ella
ofenda y alarme a los poderosos”: él ha escogido la muerte de Só-
crates. Está a la mesa compartiendo sus últimas horas con sus
discípulos entre flores y vino. Dice: “Mi vida es una guirnalda a la
que vamos a ajustar la última rosa”.

Entre sus discípulos se alzan fervientes voces devotas:

- Maestro -dijo uno-, nunca podrá haber olvido en no-


sotros, para ti ni para tu doctrina. -Otro añadió-: - Antes morir
que negar cosa salida de tus labios. -Y cundiendo este sentimien-
to hubo un tercero (Lucio) que propuso: - Jurémosle ser fieles a
cada una de sus palabras, a cuanto esté virtualmente contenido
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

en cada una de sus palabras fieles ante los hombres y en la inti-


midad de nuestra conciencia; siempre e invariablemente fieles!...
(...) siento firme el fundamento de nuestra convicción, y no dudo
de que debamos consolar tu última hora con la promesa que más
dulce puede ser a tu alma” (RODÓ, 1930, CXXVII, 374).

Gorgias responde en una parábola. Cuando era chico, la


madre repetía: “ ‘¡Cuánto diera yo porque nunca dejases de ser
niño!’ Se anticipaba a llorar la pérdida de mi dulce felicidad (...) de
aquel amor único, merced al cual sólo ella existía en el tierra para
mí.” La madre soñó que una hechicera le enseñaba cómo lograr
mantenerlo niño aplicándole un tratamiento diario; y así llegaba
ella a una vejez extrema y él invariablemente niño. Hasta que un
día faltaron los materiales necesarios al rito y él se convirtió de
golpe en un viejo que la maldecía: “’Me has negado la vida por
egoísmo feroz! (...) Me has sacrificado a un necio antojo. Me has
privado de la acción que ennoblece; del pensamiento que ilumi-
na; del amor que fecunda: ¡Vuélveme lo que me has quitado!”. Tras 131
ese sueño ella “dejó de deplorar la fugacidad de mi niñez”.

“Si yo aceptara el juramento que propones, ¡oh, Lu-


cio!, olvidaría la moral de mi parábola, que va contra el abso-
lutismo del dogma revelado de una vez para siempre; contra la
fe que no admite vuelo interior al horizonte que desde el primer
instante nos muestra. Mi filosofía no es religión que tome al
hombre en el albor de la niñez, y con la fe que le infunde, aspire
a adueñarse de su vida, eternizando en él la condición de la
infancia(...) Yo os fui maestro de amor : yo he procurado daros
el amor de la verdad; no la verdad, que es infinita. Seguid bus-
cándola y renovándola vosotros (...) Mi filosofía ha sido ma-
dre para vuestra conciencia, madre para vuestra razón. Ella no
cierra el círculo de vuestro pensamiento. (...) Mi doctrina no la
améis sino mientras no se haya inventado para la verdad fanal
más diáfano. Las ideas llegan a ser cárcel, también, como la
letra” (id. 377-378).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Gorgias pregunta al discípulo dilecto (Leucipo) por quién


será el último brindis, y éste propone:

Será por quien, desde el primer sol que nos ha de ver,


nos dé la verdad, la luz, el camino; por quien desvanezca las du-
das que dejas en la sombra; por quien ponga el pie delante de tu
última huella, y la frente aun más en lo claro y espacioso que tú;
por tus discípulos, si alcanzamos a tanto, o alguno de nosotros,
o un ajeno mentor que nos seduzca con libro, plática o ejemplo.
Y si mostrarnos el error que hayas mezclado a la verdad, si hacer
sonar en falso una palabra tuya, si ver donde no viste, hemos
de entender que sea vencerte: Maestro, ¡por quien te venza, con
honor, en nosotros!”

Y Gorgias brinda: “-¡Por ése! (...) ¡Por quien me venza con


honor en vosotros!”.

El brindis tiene fuerza por sí solo y quizás hubiera bas-


132 tado citarlo. Pero me pareció que glosar con más detalle el texto
sería interesante.

Sola, la idea de “vencer” empobrece y quizás deforma la


propuesta del discípulo, que implica que toda doctrina -aun la
más “perfecta”- viene mezclada de error, mentira, ceguera; que es
limitada. Que la “victoria” misma está destinada a ser vencida por
otra provisoriedad.

Tensiones y dudas respecto a esto se hacen manifiestas


cuando Gorgias concibe la “verdad” como “infinita”, como algo a
“buscar” y a “renovar”, no como algo a cuestionar. O cuando Rodó
agrega, sin fundamentar, en la propuesta del discípulo y en la res-
puesta de Gorgias, la limitación del brindis al grupo de discípulos,
con ese “en vosotros”, que pone en evidencia que todo “ajeno” sólo
vale en la medida en que “nos seduzca”. O sea: que el camino es
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

uno solo, que la “comunidad” de condiscípulos13 (entre los cuales,


por otra parte, hay jerarquías) está por encima de toda otra y que
el grupo en cuestión no da valor en sí misma a la alteridad. Es de-
cir, a los demás humanos.

Por eso cité las iniciales voces de discípulos, seguidores


incondicionales. Porque ahí se está mostrando el poder crítico del
texto contra todo dogma. Y porque, de algún modo, son tentacio-
nes que no sólo siguen presentes, sino que son hoy más poderosas.

La referencia expresa a Sócrates, habilita otras conside-


raciones para traer al diálogo actual con este texto convergencia y
diferencia con el Fedón (PLATÓN).

El discípulo que se queda sin Maestro (Platón en la muer-


te de Sócrates, “Leucipo” en la de “Gorgias”), para poder a su vez
ser Maestro (y no mero repetidor) “, tiene que haber roto con su
Maestro, tiene que desembarazarse de él, como el niño del anda- 133
dor, o el árbol del tutor. Lo primero que tiene que hacer el maestro
“recién recIbid..o” es agarrar toda su sabiduría interior, todo su
conocimiento, toda su admiración por su Sócrates o su “Gorgias”,
todo su ser fiel discípulo, y decirse algo así como:

Me quedé sin maestro, dejé de ser discípulo. Mi pri-


mera palabra como maestro es poner en cuestión a mi maestro.
Para que mi última palabra como maestro sea brindar por el
que me supere. Cuestionar al maestro es serle fiel. Traición sería
repetirlo. Parto de los límites del maestro, que no son “dudas”
cognitivas irresueltas, sino problemas vitales. Aquellos que lle-
varon al maestro a su condena a su muerte. Quedé huérfano de
Maestro... No puede ser mi movimiento quedarme en el mismo

13 Sí; la “comunidad científica”: con sus pares, sus profesores, sus investigadores, sus escritores
de papers, sus aprendices, con reglas que garantizan (al modo de las normas técnicas) una
producción de verdad indiscutible (quizás llamada conocimiento), una acumulación de bie-
nes, una aproximación al conocimiento absoluto, un avance, un progreso ilimitados.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

problema, eligiendo la filosofía y la vida de mi Maestro, que


conduce a elegir su misma muerte. El movimiento que aprendí
de mi maestro es otro: explorar tierras ignotas; romper seguri-
dades, inventar nuevos caminos, mundos, vidas.

Justamente porque aprendió que no hay sabiduría defini-


tiva, que hay que querer saber; que no hay perfecta vida personal
en perfecta polis, sino el constante esfuerzo de querer vivir juntos,
de pasar los peligros juntos, es que el movimiento filosófico y edu-
cativo que el discípulo tiene voluntad de iniciar es seguir viviendo,
seguir filosofando, después de la muerte del maestro: sabiendo
que hay peligro de muerte. Pero es la voluntad de seguir vivo14
pese y gracias al espanto de la muerte del maestro, lo que impide
seguir siendo menor, alumno “tutorizado”, discípulo, seguidor; y,
por eso, también le conmina a no ser prosélito de otro. Es lo que
le obliga a pasar a ser Maestro. Un Maestro que aprendió a que-
darse sin maestro y por eso sabe que debe generar ruptura en el
134 interior de su discípulo. Un Maestro que eligió seguir vivo después
de la muerte del suyo, y por tanto, eligió liberar a sus discípulos
de sus propios dogmas. No cuando esté muerto, sino también y
principalmente mientras esté vivo. Un Maestro que eligió seguir
conviviendo con sus contemporáneos: discutiendo en dia-logos (a
través de distintos lenguajes y razones) como modo de vivir y con-
vivir todos desde el presupuesto de una igualdad, que implica di-
versidad. Cuando escribe, entonces, sigue siendo Maestro mucho
después de muerto, leído y discutido, entrando en un diálogo con
grupos y seres humanos (con “humanidades”) de otros espacios y
otros tiempos.

Después que uno se sacudió hasta las raíces con el im-


pacto del Maestro muerto, puede empezar un movimiento de cre-

14 Voluntad rechazada por Sócrates, que no aparece expresamente en el Gorgias de Rodó. Si el


primero pudo elegir vivir (en ciertas condiciones), el segundo estaba obligado a elegir entre
modos de morir.
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

ación, de invención, que tiene dimensiones críticas y creativas


fuertemente marcadas por una decisión vital; y que no se podría
dar sin un primer golpe de espanto, de problema, de aporía, de
desgarro interior, de ruptura.

Un movimiento desmesurado, que no quiere dejarse me-


dir y no se detiene, no se simplifica, no se encauza, no se da por
terminado... Un proceso imperecedero, pero no lineal, ni conti-
nuo, ni ordenado. Del cual los Maestros muertos, y los vivos, nos
dejan a todos responsables de nuestra vida.

En el texto de Rodó queda, todavía, la selección de dis-


cípulos, el grupo cerrado, privado; no la enseñanza al aire libre,
pública; abierta a todo y todos. Su “Gorgias”, además, elige su
“Leucipo”, lo selecciona como “alma apropiada”15 (¿quizás para
apropiarse del alma de su discípulo?).

La educación es para cualquiera, para todos, el acto edu- 135


cativo no debe permanecer en el secreto, en la privacidad de un
grupo. Es una propuesta relativa a toda educación: que no se dé
por satisfecha con ningún saber (que sea filosófica), que no sea
para un grupo reducido (que sea pública); que desarrolle el poder
de cada uno y de todos (que sea democrática).

Pero el brindis propuesto por Leucipo cuestiona la elec-


ción de Gorgias. No es al maestro que corresponde elegir por qui-
én será el brindis. El maestro aprende en seguida del discípulo, y
hace suyo el brindis.

15 El Fedro puede leerse como una crítica a la inclusión en la definición de un discurso


“legítimo”, que atribuye a Sócrates, de la noción de elección del “alma apropiada” para
sembrar su discurso.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A modo de inconclusión
¿Rodó educador?

“Ofrezco a los demás la manera cómo triunfo de mí mis-


mo en la lucha” (RODÓ, Bosquejos de los Nuevos Motivos de Pro-
teo, III, 47). Ofrece a los demás; una manera; una manera de triun-
far; de triunfar de sí mismo. Los demás, agradecemos el don. No
como modelo copiar, sino como su manera. Que considera una
lucha y como triunfo (ambos están estrechamente ligados). Pero
es lucha consigo mismo y triunfo de sí mismo. Los demás sabrán
(o no) aprovechar su don para su propia lucha y triunfo. Que nun-
ca será definitivo ni estará garantizado. Hay que hacer como los
marinos en la tempestad “animarnos unos a otros” y, figurándose
náufrago, dirá:

Sofoqué para los demás el grito de mi cobardía hasta


136 encaramarme otra vez en la roca y allí, de nuevo, lanzar el grito
de triunfo y el saludo al sol, irguiéndome en toda mi talla para
que los otros náufragos que luchan me viesen...
CAPÍTULO 5: RODÓ Y LA EDUCACIÓN

Referencias Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. “Es tiempo de precariedad”. Entrevista a Zygmunt
Bauman de Daniel Gamper. Portal de filosofía internáutica. 14/05/04.

CHIHUIALAF, E., citada por Mellado, S. La morada incómoda, Gral.


Roca, Publifadecs.

LANGON, Mauricio: “Futuro” (2004)

LANGON, Mauricio: “Sur, paredón y después” (2005)

LANGON, Mauricio. “El impacto de la realidad en aulas con adolescen-


tes”. Voces, Montevideo, año IX nº 19, julio de 2005.

LANGON, Mauricio. A puertas abiertas, Madrid, Bubok, 2006. https://


www.bubok.es/libros/234/A-puertas-abiertas

También disponible en: https://es.scribd.com/document/237459355/ 137


Puertas-Abiertas-Mauricio-Langon

LANGON, Mauricio. “El férreo presente y la edad dorada”. Contextos nº


13. Montevideo. Asociación Filosófica del Uruguay, 2017. Disponible
en https://drive.google.com/file/d/0B481idvDvuSdTEVJT3VQcUJDeXc/
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PLATÓN, Fedro

PLATÓN, Fedón

REYES, Reina, Para qué futuro educamos, Montevideo, Banda Oriental,


1987, 4ª edición revisada.

RODÓ, José Enrique. Motivos de Proteo. 6ª ed. Barcelona, Cervantes,


1930 (1ª ed. 1909)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

RODÓ, José Enrique. El que vendrá, (1896) accesible en: http://www.


cervantesvirtual.com/obra-visor/el-que-vendra--0/html/fefccfe2-82b-
1-11df-acc7-002185ce6064_1.htm#2 (consultado 02/05/2017).

RODÓ, José Enrique. Bosquejos para los nuevos motivos de Proteo, 1927

RODÓ, José Enrique. Los últimos motivos de Proteo, Montevideo, Ser-


rano, 1932.

RODÓ, José Enrique. Amor y mundo. Madrid, Fundación E. Mounier, 2008.

138
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

Enrique Dussel e a pedagógica


na filosofia da libertação

DANIEL PANSARELLI 1

Introdução

S
ão muitas as expressões contemporâneas da filosofia latino-
-americana2, assim como o são as da própria filosofia brasi-
leira3. No território hispano-americano, todavia, já não resta
dúvidas quanto ao destacado papel que ocupa a Filosofia da Li- 139
bertação no contexto filosófico. Ao lado – para não dizer “antece-
dendo” – movimentos que ganham agora contornos mais claros e
mais destacados, tais como o Pensamento Decolonial e a Filosofia
Intercultural, a Filosofia da Libertação tem presença firmada em
diversos países do continente, destacando-se pelas associações de
pesquisadores4, pela vasta produção teórica e pelo diálogo direto
com movimentos sociais representativos5.

1 Filósofo, Doutor em Educação pela USP. Professor na Universidade Federal do ABC (UFABC).
2 Um panorama dessa diversidade é apresentado por Euclides Mance em Uma introdução con-
ceitual às filosofias de libertação (2016).
3 Permanece bastante atual o levantamento feito por Antônio Joaquim Severino em A filosofia
contemporânea no Brasil (1999).
4 Dentre outras entidades, considere-se a Asociación de Filosofía y Liberación (AFyL), presente
em diversos países do continente latino-americano. No Brasil, também dentre outras, veja-se
o Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL) e, mais recentemente, o Grupo de Trabalho “Filo-
sofia Latino-americana, Filosofia da Libertação e Pensamento Descolonial’, da ANPOF.
5 A título de exemplificação, veja-se de Enrique Dussel a Carta a los indignados (2011).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A expressão mais atual da Filosofia da Libertação vem


se construindo desde os anos 1960. Talvez seu momento inicial
mais marcante seja a célebre controversa entre Augusto Salazar
Bondy e Leopoldo Zea6. O primeiro, em 1968, questiona em sua
obra se Existe uma filosofia de nuestra América?, chegando a um
resultado pouco otimista, crítico, e pró-vocativo ao surgimento de
uma geração filosófica latino-americana. O segundo, em resposta,
publica no ano seguinte um genuíno exercício filosófico, contra-
dizendo Salazar não só histórica, mas também filosoficamente. Ao
escrever sua Filosofia americana como filosofia sem mais, Zea traz
a público uma manifestação especialmente forte acerca do senti-
do da filosofia, ressignifica os conceitos de originalidade e auten-
ticidade, rompendo com o movimento histórico-reprodutivista da
filosofia, criticado pelo seu interlocutor.

A partir desta controversa, a Filosofia da Libertação está


posta em sua forma mais atual. E não há dúvidas que o maior ex-
140 poente contemporâneo do movimento seja o filósofo mexicano
Enrique Dussel. Autor de vasta obra, cujo cerne filosófico vem se
desenvolvendo também desde o final da década de 1960, Dussel
perpassa momentos distintos na maturação de sua produção, que
começa com o estabelecimento dos pressupostos teórico-filosófi-
cos que serviriam de base para a construção de sua obra mais ma-
dura7. É nesse campo, dos pressupostos teórico-filosóficos, que o
autor crava o conceito que apresentarei nesse capítulo: a pedagó-
gica, como veremos, fundamental a toda a Filosofia da Libertação.

6 Uma síntese da controversa foi registrada por Jesus Eurico Regina, em seu artigo Filosofía
latinoamericana (2000).
7 Entendo que a produção madura de Dussel compreende as obras do campo da ética e da
política produzidas a partir de 1492 – O encobrimento do outro. Entendo, ainda, que não haja
algum tipo de ruptura entre as fases do pensamento dusseliano. Antes, parece que as obras
iniciais oferecem os subsídios para sua construção mais recente, como procurei demonstrar
em Filosofia latino-americana: a partir de Enrique Dussel (PANSARELLI, 2015).
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

É importante ressaltar que a pedagógica é apresentada


por Dussel em um conjunto de obras propedêuticas, publicadas na
década de 1970. Depois disso, o autor trouxe a público reedições
daquele material inicial, com ampliações pontuais, eventualmente
conjunturais, mas não voltou ao debate mais teórico e aprofundado
sobre o conceito. Por isso o leitor observará, sobretudo na parte ini-
cial do capítulo, uma linguagem que já não é mais familiar ao pen-
samento mais maduro de Dussel. Procurarei, todavia, no desfecho
do capítulo, propor caminhos para uma interpretação atualizada do
tema, em relação com a produção dusseliana mais recente.

O texto a seguir partirá de uma abordagem conceitual da


pedagógica, buscando apresentá-la de forma objetiva, dieta. A in-
tenção deste momento será situar a pedagógica na arquitetônica
da filosofia dusseliana, localizá-la em suas relações com a políti-
ca, com a erótica. A segunda e última parte tratará da pedagógica
como parte do método dusseliano. Será momento de apresentar
como a característica práxica desta filosofia – característica im- 141
prescindível ao movimento concreto de libertação – depende da
pedagógica para realizar-se.

A pedagógica na arquitetônica da filosofia


da libertação
As bases da filosofia da libertação, tal como elaborada por
Enrique Dussel, são cuidadosamente plantadas pelo autor ao lon-
go da década de 1970. É verdade que desde suas primeiras refle-
xões sobre O humanismo semita e O humanismo helênico, escri-
tos a partir de 1964 e publicados na virada da década, já se podia
observar um traço não eurocêntrico. Precisamente ao buscar uma
visão semita de mundo, como alternativa à leitura hegemonica-
mente feita, a partir do helenismo, o filósofo emite claros sinais
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

em favor de outras formas, diversas, de compreensão da realidade.


Em suas próprias palavras, essa pré-disposição à alteridade ganha
significativa potencialidade “quando, em um grupo de filósofos,
descobrimos a obra de Emanuel Lévinas, Totalidade e infinito: en-
saio sobre a exterioridade” (DUSSEL, 1998, p. 20).

A descoberta da exterioridade, a partir de Lévinas, ocorre


em 1969, quando o Dussel redigia o primeiro dos cinco volumes de
sua obra Para uma ética da libertação8. Trata-se justamente de um
conjunto de obras em que o autor apresenta pela primeira vez os ele-
mentos estruturantes de seu projeto filosófico, lançando assim as ba-
ses para que, após a década de 1980 e suas leituras aprofundadas de
Marx, chegasse à formulação mais madura de sua filosofia da liber-
tação. Ao longo de seus volumes, após apresentar o “acesso ao ponto
de partida” (v. I) e discutir “eticidade e moralidade” (v. II), chega aos
três elementos-chave no processo de libertação: “erótica e pedagó-
gica” (v. III) e, depois a “política” (v. IV), concluindo com um volume
142 sobre sua forma original de compreender o “antifetichismo”. Obser-
ve-se que aparece aqui, pela primeira vez com significativo destaque,
a pedagógica, não por acaso entre a erótica e a política.

Após sofrer um atentado a bomba na Argentina, que o


levou ao autoexílio, Dussel publica em 1977 uma obra atípica, pu-
ramente esquemática, em que apresenta uma espécie de sumário
de seu ambicioso projeto filosófico de libertação. Sua Filosofia da
liberação é um texto “curto, sem bibliografia” e “escrito na dor do
exílio”, que “quer ser sentencioso, quase oracular”, ou “um marco
teórico filosófico provisório” (DUSSEL, 1980, p. 10). Aqui está apre-
sentada a primeira versão do que posteriormente viria a ser, ape-
nas parcialmente alterada, a arquitetônica da filosofia dusseliana,
o conjunto esquemático de todos os seus elementos estruturantes.

8 Coleção publicada a partir de 1973. A partir do terceiro volume, passou a receber o título de
Filosofía ética latinoamericana.
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

Essa arquitetônica reflete uma vez mais aquilo que estava sendo
plantado nas bases Para uma ética da libertação: após tratar de
diversos níveis de reflexão no capítulo inicial, em percurso que vai
“da fenomenologia à libertação”, o autor localiza política, erótica
e pedagógica no segundo capítulo, rumo ao antifetichismo, num
caminho que “ganha assim em complexidade e nos permite ascen-
der à realidade de uma maneira mais concreta” (p. 87).

O primeiro esforço, aqui, será o de situar a pedagógica


em sua relação com a erótica e a política, oferecendo elementos
para compreender sua dimensão intrinsecamente ética na filo-
sofia da libertação.

Com efeito, a filosofia da libertação de Enrique Dussel


tem por característica fundamental a substituição da ontologia
pela ética como metafísica, ou como filosofia primeira9. A ética
deve servir como fundamento máximo para todas as demais cons-
truções inerentes à filosofia. É este o movimento que o autor ex- 143
pressa ao demonstrar a razão ética, em sua obra Ética da liberta-
ção na idade da globalização e da exclusão (p. 380). Para ser ética,
a filosofia da libertação não pode se fechar (fetichizar) em teorias.
Precisa se realizar e realizar a libertação. Precisa ser práxis.

Justamente nesta necessidade de ser práxica a filosofia


dusseliana relaciona diretamente, por vezes chega a confundir,
ética e pedagógica. De fato, a filosofia da libertação, para ser ética,
precisa colocar-se como pedagógica em relação a outras formas de
expressão cultural, buscando a transformação práxica da realida-
de opressiva, em favor do processo de libertação.

9 Tratei de forma mais aprofundada deste assunto em Da ontologia à política: a questão da


exterioridade (PANSARELLI, 2016).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Convergência entre a erótica e a política


O âmbito da erótica, na filosofia dusseliana, deve ser
compreendido em dois aspectos complementares. Em sentido es-
trito, refere-se às relações eróticas tal como as compreendemos
usualmente: relações afetivas, sensuais e sexuais, com toda a in-
tensidade que a noção de corpo, de carnalidade carrega em uma
filosofia que se pretende práxis. Mas, em sentido amplo, a erótica
remete a todos os tipos de relações intersubjetivas não massifi-
cadas. Relações interpessoais, em que as pessoas se reconhecem
como tal. Em que o rosto do outro – dois conceitos-chave que Dus-
sel empresta de Lévinas – se faz reconhecer.

Como se poderia esperar, então, na dimensão erótica a


pedagógica deve ser observada a partir das relações pessoais di-
retas, a partir do face-a-face. O foco das atenções da pedagógi-
ca, neste âmbito, é “a proximidade pai-filhos, mestre-discípulo”
144 (DUSSEL, 1980, p. 109). Ao abordar este aspecto do pensamento
dusseliano, José Luiz Ames trata essa pedagógica erótica por do-
méstica, buscando tanto refletir de forma mais ampla o campo
das relações interpessoais, quanto deixar clara sua distinção em
relação ao âmbito massivo, próprio da política.

Em sua obra Liberdade e libertação na ética de Dussel,


Ames explicita o entendimento que

o sistema pedagógico doméstico é a relação casal-fi-


lhos ou mestre-discípulo, que pode ser vivida na justiça (quando
os pais ou mestres deixam que o filho ou o discípulo seja o Ou-
tro, com a sua história) ou na injustiça (onde os pais ou mestres
querem que o filho ou discípulo seja o mesmo que eles já foram)
(AMES, 1992, p. 99).
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

Talvez já não seja necessário ressaltar a importância des-


te âmbito, das relações microssociais, uma vez que são incontá-
veis as ocasiões em que nele se dá a própria formação do sujeito.
Tais relações – microfísicas, em linguagem foucaultiana – ocor-
rem cotidianamente e por longos períodos na vida das pessoas, o
que lhes dá substancial força formativa ou deformativa do outro.
É espaço de constituição da identidade alterativa ou da interiori-
zação pelo outro de sua própria negação, caminho para que ele se
adapte a ser o mesmo – o oprimido que hospeda em si o opressor,
se quisermos recuperar a formulação de Paulo Freire.

Essa liberdade do outro em sua alteridade, é constante-


mente ameaçada, no lar falocrata, pelo filicídio (DUSSEL, 1980,
p. 113): o filho que é negado em sua alteridade, condenado a ser
mera continuidade de seus pais bem-sucedidos ou ainda conde-
nado a ser bem-sucedido na realização dos sonhos que lhes são
estranhos, por serem sonhos não realizados pelos seus progenito-
res. Em oposição a esta postura, a radicalidade ética no reconheci- 145
mento da absoluta alteridade do outro faz entender que

os pro-genitores, os que geram alguém ‘diante’, quan-


do decidem dar o ser ao filho, abrem-se diante do futuro histó-
rico propriamente dito. [...] O ‘ser’ do filho é realidade além do
‘ser’ da Ontologia. O filho é o outro que não os pro-genitores;
desde sempre ‘outro’ (AMES, 1992, p. 98).

Esta mesma característica desejada da relação pai/mãe-fi-


lho/filha respeitosa à alteridade, deve ser estendida ao âmbito dos
encontros entre docente-estudante e tantos outros vivenciados co-
tidianamente na sociedade, em que se estabelece algum tipo de
hierarquia com base em relações de poder. Em todos estes casos,
a filosofia da libertação considera que

a pedagógica é essencialmente esta bipolaridade meta-


física do face-a-face daquele que é anterior ao Outro (pai, mestre,
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cultura) diante daquele que lhe é posterior sempre (filho, discí-


pulo, povo). Entre ambos existe, pois, uma ‘diacronia’ que fará
com que a transmissão do legado humano às novas gerações não
se faça pela simples repetição, imitação ou recordação. Antes, é
contínua re-criação, invenção (AMES, 1992, p. 98).

Se no âmbito erótico a pedagógica se exerce no face-a-fa-


ce entre sujeitos distintos, Dussel também trabalha em seus textos
a pedagógica como política. Neste sentido, a pedagógica abrange
um leque amplo de relações, nas quais os sujeitos envolvidos não
são devem ser confundidos com categorias: permanecem sendo
sujeitos com seus rostos. Neste âmbito, como expressão anterior
à política, coloca-se em questão a cultura. O próprio texto dus-
seliano explicita a cultura como princípio da pedagógica política
latino-americana:

Chegou àquele mundo cultural amerindiano a con-


quista do europeu. O homem conquistador se transformou em
146
pai opressor, em mestre dominador [...]. As mulheres índias se-
rão as mães violentadas do filho: órfão índio ou mestiço. [...]
Objeto da dominação pedagógica. Se o processo erótico latino-a-
mericano se origina pela dominação que o conquistador exerce
sobre a índia, ou o processo político pelas matanças ou a do-
minação do espanhol sobre o índio, a dominação pedagógica
propriamente dita começa pelo adoutrinamento que antecede
ou segue a conquista (DUSSEL, 1977, pp. 159-60).

Nestas linhas, o filósofo expõe a gênese da pedagógica da


dominação latino-americana, que os povos vêm sofrendo desde
o início da colonização. Claro está, o processo de dominação não
representou a aceitação do outro, do filho-povo recém “descober-
to” como outro. Quando os conquistadores europeus chegaram à
América, não respeitaram aqueles que aqui estavam, como sen-
do “desde sempre ‘outro’” (AMES, 1992, p. 104), até mesmo pelo
simples fato de terem chegado ao nosso Continente na condição
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

autointitulada de conquistadores. É nesse contexto que interessa


perceber a origem e o papel da pedagógica no âmbito político da
filosofia da libertação latino-americana.

Sobre sua origem, ainda, podemos explicitar que a peda-


gógica propriamente latino-americana começa justamente na or-
fandade do “filho-discípulo-juventude-povo” (AMES, 1992, p. 102)
que teve seu pai escravizado ou assassinado (se é que há diferen-
ça) pelo conquistador, que violentou sua mãe, gerando-o. Esta é a
origem da pedagógica em questão, caracterizando-se como “domi-
nação ideológica em nome dos mais sublimes projetos abençoa-
dos por bulas pontifícias e reis católicos” (DUSSEL, 1977, p. 161).

A agressão histórica da pedagógica latino-americana em


seu âmbito político, aspecto que chamo de negativo ou opressor,
é constatada pela filosofia dusseliana. Esta filosofia, que propôs
a superação da ontologia totalitária pela razão ética, igualmente
aponta caminhos para uma pedagógica política livre, ou da liber- 147
tação. Este talvez seja a constatação mais fundamental da pedagó-
gica em questão: reconhecer que o fruto desta dominação colonial
sobre a América Latina é o mestiço que “vai criando uma cultura
nova; cultura, todavia, deixada só diante da outra cultura; cultura
que se ignora a si mesma como dis-tinta, já que ainda não foi des-
coberta” (DUSSEL, 1977, p. 161).

Temos aqui indicados os rumos necessários à consolida-


ção da filosofia da libertação, quais sejam, aqueles que apontam a
partir do (e com o) povo mestiço, caminhos para a descoberta de
sua própria cultura.

Conhecidos os âmbitos erótico e político da pedagógica,


e sinteticamente apresentadas as principais características desta
em ambos os momentos, podemos passar agora à compreensão
da pedagógica como ponto de convergência. Nas palavras do au-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

tor, a pedagógica é o ponto “onde converge a política e a erótica.


A criança que nasce no lar é educada para fazer parte da comu-
nidade política; e a criança que nasce numa cultura cresce para
formar um lar. É por isso que o discurso pedagógico é sempre du-
plo” (DUSSEL, 1980, pp. 93-4), isto é, erótico e político, associados
enquanto convergentes.

Considerando que a cultura ou aspecto político da pedagó-


gica não diz respeito a categorizações, mas a rostos e corpos vivos e
oprimidos, à carnalidade da vida, podemos claramente concluir que
erótica ou politicamente, a pedagógica é uma e a mesma, referindo-
-se a sujeitos respeitados como outros, seja na esfera de suas relações
familiares, educacionais ou culturais. Neste sentido, a cultura é, an-
tes de qualquer coisa, mas realização de um povo, de pessoas que se
inter-relacionam. A consciência desta cultura é a própria pedagógica
política da libertação, que buscará no sujeito da realização cultural
(o filho-povo), através da mesma pedagógica erótica, o face-a-face, o
148 rosto – que é a origem da cultura e da pedagógica.

Ora, da construção dessa leitura procedida pela filosofia


dusseliana, resulta que o mestiço, o filho-povo latino-americano
precisa ‘descobrir’ sua própria cultura, como meio de sua liberta-
ção política e, concomitantemente, erótica. É papel da pedagógica
auxiliá-lo neste caminho. Cuidar para que “o filho ou a filha nasci-
dos na família [sejam] educados para serem um dia pai e mãe e ao
mesmo tempo cidadãos adultos [...], parte responsável da cidade”
(DUSSEL, 1977, pp. 154), sem perder de vista que este educar deve
ser, sobretudo, ético – o que cremos constituir-se no maior dos
desafios internos desta ética da libertação. Em outras palavras, se
é natural a qualquer pedagógica conduzir, a pedagógica da liberta-
ção, para sê-lo, deve conduzir no caminho para a liberdade, para o
sujeito libertar-se e, neste sentido, ser livre.
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

Pedagógica no método dusseliano: analética ou


dialogicidade
Em sua produção mais recente, Dussel não retomou de
forma mais densa a questão da pedagógica. Mas traz o tema de
modo transversal, em momentos da elaboração de sua ética e de
sua política. Não raro, ele o faz remetendo diretamente ao pen-
samento freireano10. Nesse esforço final do presente capítulo, de
demonstrar a pertinência da pedagógica no conjunto da obra ma-
dura de Dussel, partirei justamente do educador brasileiro.

Quando se propõe a justificar sua ambiciosa Pedagogia


do oprimido, o educador Paulo Freire afirma categoricamente que
a luta a ser travada pelos oprimidos é o caminho da libertação.
Segundo ele, é esta

a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos


– libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram
149
e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder,
a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o po-
der que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente
forte para libertar a ambos (FREIRE, 1987, pp. 30-1).

Em sua obra, quando fala em opressores, Freire trata não


somente do europeu ou do norte-americano, que oprimem os paí-
ses em “desenvolvimento” – nova designação, moralmente melho-
rada, imposta aos países do terceiro mundo. Ele inclui nesta ca-
tegoria os latino-americano-europeizados, que Dussel chamou de
imitadores e inautênticos (DUSSEL, 1974, pp. 190). Este ser euro-
peizado, segundo Freire, hospeda o opressor em si (FREIRE, 1987,
pp. 32). Para ele, afirma o educador, o homem livre, o fruto da li-
bertação erótica e política, “não é o homem a nascer da superação

10 Em especial, ver o §5.2 da Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão.


FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

da contradição [opressor-oprimido ...]. Para eles, o novo homem


são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão
do homem novo é uma visão individualista” (FREIRE, 1987, p. 33).

A visão individualista dos sujeitos não encontra respaldo


nas obras de Freire e de Dussel. Em ambos os autores, a concep-
ção antropológica reconhece no humano um ser que é comuni-
tário, desde sempre. A característica comunitária não é acidente,
mas sim substância humana. Esse, aliás, é precisamente o aspecto
mais avançado da obra freireana reconhecido por Dussel (2002,
pp. 430-9). Seja na dimensão erótica, seja na dimensão política, o
ser só é humano em sociedade.

Essa concepção antropológica11 é o que permite, antes,


obriga a reconhecer a ética como anterior à ontologia. Nós só po-
demos nos reconhecer como ser, porque convivemos, vivemos
com os outros. E a dialogicidade da educação libertadora freirea-
150 na vai, assim, tornar-se elemento imprescindível à prática pedagó-
gica da libertação. Não é possível estudar o ser, sem antes ouvi-lo,
sem com ele estabelecer uma relação que seja ética, e ocorre pelo
diálogo. Ponto central do método filosófico dusseliano, o autor
chamou de analético esse movimento. A superação de uma falsa
dialética, em que se irrompe os limites ontológicos do si-mesmo
em direção à auscultação efetiva do outro. Em direção ao respeito
do outro em sua alteridade.

Se, ao descobrir Lévinas, Dussel se apropriou das noções


de alteridade e exterioridade, em Freire ele encontra o aporte
acerca de como alcançar eticamente este outro, que agora eu reco-
nheço. E, ao final de seu Método para uma filosofia da libertação,
chega a afirmar categoricamente que

11 Sobre a concepção antropológica dusseliana, ver A vida humana e seu modo de realidade:
corporabilidade em comunidade (PANSARELLI, LIMA, 2017).
CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

A filosofia assim entendida [como pensar libertador]


não é uma erótica, nem uma política, embora tenha função li-
bertadora para o eros e para a política, mas é estrita e priorita-
riamente uma pedagógica: relação mestre-discípulo. [...] O filó-
sofo para ser o futuro mestre deve começar por ser o discípulo
atual do futuro discípulo. Tudo depende disso. Por isso, essa
pedagógica analética (não somente dialética da totalidade on-
tológica) é da libertação (DUSSEL, 1974, pp. 209-10).

Cabe, portanto, compreender a pedagógica dusseliana


em dois sentidos inter-relacionados, no conjunto da obra do autor:
primeiro, como apontado nas obras da década de 1970, a pedagó-
gica como categoria filosófica, entrelaçando a erótica e a política,
no processo de libertação. Mas, ainda, a pedagógica como método
que perpassa toda a produção do autor, desde os esboços iniciais
Para uma ética da libertação até a sua produção mais recente e ro-
busta, no campo da ética e da política. A pedagógica está lá, como
prática analética ou dialógica (freireana), possibilitando o ouvir a
151
voz do outro, o ouvir sua própria palavra. Este é o princípio mais
fundamental da filosofia dusseliana de libertação.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

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_____; LIMA, B. R. A vida humana e seu modo de realidade: corpora-


lidade em comunidade. Revista Natureza Humana, v. 19, n. 2. São
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CAPÍTULO 6: ENRIQUE DUSSEL E A PEDAGÓGICA NA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO

REGINA, J. E. Filosofía latino-americana. Revista Libertação-Liberaci-


ón, v. 1, n. 1. Curitiba: IFiL, 2000.

SEVERINO, A. J. A filosofia contemporânea no Brasil. 2.ed. Petrópolis:


Vozes, 1999.

153
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Anibal Ponce no contexto da


Filosofia da Educação

CL AUDIO DOMINGOS FERNANDES

Todo projeto educacional será necessariamente um pro-


jeto político e não há como evitá-lo. Antonio Joaquim Severino.

N
ão é de hoje que se discute o papel da Filosofia da Edu-
cação na formação do professor, visando um profissional
comprometido com uma prática libertadora “em direção à
utopia da liberdade humana”. No entanto, junto a esta preocupa-
ção: de o que oferecer ao professor em seu processo de formação,
154
a Filosofia da Educação vê se diante do risco de supressão deste
agente social, pois,

as profundas mudanças que estão processando na so-


ciedade dão a impressão de que eles são dispensáveis e podem
ser substituídos por computadores e outros equipamentos tecno-
lógicos, por meio dos quais o educando adquire conhecimento.
(GASPARIN, 2012, 1)

Diante, então, do risco de desconstrução do papel social


do professor e da desqualificação de sua formação, partimos da
compreensão de que a Educação é um processo de interação hu-
mana, intencionalizado sob mediações histórico-sociais, em que
o professor assume relevância inquestionável na construção do
homem e da sociedade que se deseja alcançar.
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Neste sentido, já em 1986, o professor Antonio Joaquim


Severino apontava um desafio, que segundo ele é radical, aos edu-
cadores brasileiros, o desafio de

um ingente esforço para a articulação de um proje-


to histórico-civilizatório para a sociedade brasileira como um
todo, mas isto pressupõe que se discutam, com rigor e profundi-
dade, questões fundamentais concernentes à condição humana.
(SEVERINO, 1986, XV).

E segundo este autor, o educador não pode realizar sua


tarefa e dar sua contribuição histórica se o seu projeto de trabalho
não estiver lastreado por uma visão da totalidade humana, “visão
de totalidade que articula o destino das pessoas com o destino da
comunidade humana” (IBID). Cabe, então, à filosofia da educação
colaborar para que esta visão seja construída durante o processo
de sua formação sob uma tríplice dimensão: “formação cientifica,
formação política e formação filosófica” (IBID). 155
Estendendo a perspectiva do professor, restrita ao educador
brasileiro, inserindo-o no contexto latino americano, diríamos que
cabe à Filosofia da Educação “explicitar o sentido possível da existên-
cia do homem latino americano como pessoa situada em sua comu-
nidade, de tais contornos sociais e em tal momento histórico” (IBID).

Neste sentido, recuperar a figura de Anibal Ponce e sua


produção intelectual ganha grande relevo para se estabelecer ca-
minhos de reflexão que nos ajude a compreender que todo projeto
educacional é necessariamente um projeto político, delimitado
por determinadas ideologias e que “o educador precisa, então, en-
tender-se como membro de uma sociedade envolvida num proces-
so histórico” (idem, XIV).

Assim, é com o intuito de apontar uma perspectiva teóri-


ca para a formação de professores, que os auxiliem no processo de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

formação pessoal comprometida com a transformação da socie-


dade, que traçamos um breve perfil de Anibal Ponce, resaltando a
importância de sua produção intelectual para a formação do pen-
samento latino americano, com marcada influência na Filosofia
da Educação, que apresentamos o presente artigo.

I
Anibal Noberto Ponce Speratti nasceu em Buenos Aires
em 6 de junho de 1898 no seio de uma família portenha de classe
média (seu pai era escrivão e sua mãe professora) e viveu sua ju-
ventude e adolescência na pequena cidade de Dolores, onde fez
seus estudos elementares. Transferiu-se, para os estudos secun-
dários, ao Colégio Nacional Central da capital argentina, ingres-
sando em seguida na Faculdade de Medicina, que abandonou no
156 3º ano, sem completar o curso. Seus primeiros passos nas letras
deu-se ainda criança de forma autodidática, primeiramente como
ensaísta e depois como filósofo, historiador e cientista. Em 1917,
colabora na revista Nosotros, dirigida por Alfredo Bianchi. Em
1920, Ponce conhece Jose Ingenieros, que o influenciou profun-
damente, moldando sua mentalidade liberal-positivista. Com a
morte de Ingenieros em meados dos anos 20, Ponce aproxima-se
do materialismo dialético que abraça como ferramenta de analise
histórica, após visita à então União Soviética.

Em sua trajetória intelectual, Anibal Ponce

Ocupou a cátedra de psicologia no Instituto Nacional


do Professorado. Em 1923 colabora com a Revista Renovação
e produziu o “Boletim mensal de ideias, livros e revistas da
America Latina”, cuja declaração inicial - firmada por Gabriel
Moreau, Julio Barreda Lynch (José Ingenieros) e Luís Campos
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Aguirre (o próprio Anibal Ponce) - expressava o propósito de


vincular as gerações novas do continente a fim de alcançar
progressivamente ideais de união, solidariedade e federação
continental. Esteve junto a Ingenieros, Alfredo Palacios e Ma-
nuel Ugarte na fundação do Colégio livre de Estudos Superiores
(1930). Se interessou pelos textos de Marx e Engels, em particu-
lar o Manifesto comunista. Após sua visita à União Soviética
(1935), aderiu aos princípios do materialismo histórico como
ferramenta interpretativa dos processos sociais. Fundou O gru-
po de Intelectuais, Artistas, Periodistas e Escritores (AIAPE)
que editou o periódico mensal Unidad. Em 1936 se auto exilou
no México, onde lecionou psicologia, ética, sociologia e dialéti-
ca em distintas universidades, ao mesmo tempo que participou
da vida política deste país. Morreu por causa de um acidente
automobilístico. (ARPINI, SD, 1)

É possível, segundo Arpini, diferenciar dois momentos


na produção de Anibal Ponce, sem que eles signifiquem uma rup-
tura acentuada entre ambos. O primeiro momento constitui seus 157
escritos produzidos até 1932, marcados pelos princípios liberais
da geração de 1880, mesmo já se advertindo uma progressiva in-
corporação de motivos socialistas.

Este momento em seu pensamento é o único que se


pode delimitar com clareza, posto que ao conhecer a José Inge-
nieros em 1920, os ideias políticos liberais de sua juventude co-
meçarão a ser questionados... Desde a perspectiva liberal, Pon-
ce combate a intelectuais como Ricardo Rojas, Manuel Gálves,
José Herandez y Leopoldo Lugores que subordinavam a tradição
europeia à identidade nacional. (FARACE, p. 1)

O segundo momento se dá após sua estada na Europa,


principalmente em Paris. De tal modo

Os textos produzidos por Ponce posteriores a 1932, em


particular Humanismo burguês y humanismo proletário (1935) e
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Educação e luta de classes (1937), mesmo revelando a existência


de uma matriz positivista, se faz evidente a adoção do materia-
lismo dialético como ferramenta de analise histórica. (ARPINI)

Para Emilio Troise, em introdução à Educacion y lucha de


Classes, editado por Editorial Cartago,

A primeira obra em que o método marxista – o ma-


terialismo dialético – aparece com toda nitidez é Educacion y
lucha de classes, livro que resume o curso ditado por Ponce em
1934, no Colégio Livre de Estudos Superiores. (p. 9)

E segundo Rafael Farace, a obra que melhor evidencia


o uso maduro do pensamento marxista é Humanismo burgués y
humanismo proletario, editado em 1938, de conferencias ditadas
em 1935 no Colegio Libre. Nesta obra, o humanismo, surgido em
circunstâncias históricas caracterizadas pela luta da burguesia em
sua ascensão ao poder durante os séculos XV e XVI é, pois,
158
considerado por Aníbal Ponce como um produto his-
tórico que possui consequências concretas para a historia. Por
esta razão tanto na forma que adquire sob a orientação da
burguesia como aquela que toma com o proletariado revolu-
cionário, se define por sobre todas as coisas como una filosofia
prática. A profundidade desta afirmação só pode ser percebida
partindo da caracterização inicial de una ruptura com o pen-
samento liberal e a firme incorporação do marxismo em suas
reflexiones. (FARACE, 8)

Neste breve artigo, interessa-nos, particularmente Educa-


ção e Luta de Classe,

una historia de la educación en clave materialista, a


través de los distintos momentos de las sociedades y de la evolu-
ción de la organización del trabajo, la producción y la tecnolo-
gía; la manera en que cada clase social hegemónica, se educó a
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

sí misma y educó – o intento formar – para su proyecto econó-


mico y político, – con que herramientas – a las clases subalter-
nas (FALCO, 12)

Além do mais, a leitura de Ponce coloca-nos diante do


desafio de refletir sobre o lugar da Filosofia da Educação e a im-
portância de sua tarefa na formação de professores comprometi-
dos com uma pratica solidaria com os desvalidos de nossos dias e
com a transformação da sociedade, suprimindo as estruturas de
exploração do trabalho e da dignidade de milhares de homens e
mulheres de todo o continente latino americano.

II
“Lo que caracteriza a Educaciòn y lucha de clases es
la rigurosa y metódica exposición del medio en que el hombre se 159
educa e instruye.” (TROISE, 9).

Educação e luta de classes compõem-se de uma série de


conferencias ditadas por Ponce, no Colégio Libre de Estudios Su-
periores, em 1934.

La primera edición del año 1937, lleva la marca de


una costumbre ponceana: la publicación del curso, incorporan-
do el resultado de las discusiones con sus alunos. Seijas, «Pró-
logo». También es preciso señalar que estos años que van de los
veinte a principio de los cuarenta, son los de mayor desarrollo y
crecimiento del Partido Comunista en el seno de la clase obrera
argentina, coadyuvando en la organización sindical y política
de ésta y en la conformación de los aún esporádicos sindicatos
por rama, fundamentalmente em el sector industrial manu-
facturero que viene creciendo de manera sostenida desde me-
diados de los veinte, o en sectores más tradicionales como la
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

carne. Todo, en un contexto de adversidad y represión para la


militancia de izquierda, como el de los años treinta. Por ende,
no es un hecho aleatorio la edición del texto ponceano en este
año de 1937, leído como un artefacto de refinada construcción,
pero también como una herramienta para la formación política
revolucionaria de la militancia bolchevique. (FALCO, 12)

Partindo da origem pré-historica de grupos tribais, pas-


sando pela Grécia e Roma, atingindo o regime feudal e o surgi-
mento da burguesia capitalista e do proletariado, Ponce procura
analisar a educação e suas finalidades sob base materialista, e visa
demonstrar a forma como os homens se organizam e definem a
propriedade dos meios de produção e como as estruturas sociais
divididas em classe são determinantes na configuração histórica
do processo educativo.

É tese de fundo da obra ponceana a defesa de que o grau


160 de domínio que o homem exerce sobre a natureza, alcançado pelo
estágio de desenvolvimento das forças produtivas, e a organização
econômica estreitamente vinculada a esse domínio é que confe-
rem as marcas históricas do ideal pedagógico que traz explicita ou
não uma concepção de homem e de mundo, a qual expressa, de
certa forma, esse domínio e essa organização econômica.

Centrando-se na “luta de Classes” - categoria chave da


teoria marxista - Anibal Ponce elege a dialética materialista
como eixo orientador para compreender o papel social e político
da educação em cada formação social, marcada por um modo de
produção específico.

Ponce aceita como dado que a produção social material


e intelectual em seu desenvolvimento histórico passa de proprie-
dade comum à propriedade privada, tornando-se patrimônio de
uma classe privilegiada que obtém, por esse meio, a hegemonia
política e a liderança intelectual. E segundo Ponce, a supremacia
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

econômica que concentra-se nas classes dominantes determina a


circulação e a distribuição do conhecimento, e, consequentemen-
te, o ideal pedagógico de sua classe e das classes sub-julgadas.

Em síntese,

La aparición de las clases es el resultado de un largo


proceso histórico, condicionado por modificaciones derivadas
del progreso instrumental en el trabajo y en la producción. A
la primitiva división del trabajo, elemental y natural, deriva-
das del sexo y la edad, se acopla la diferenciación lenta en los
modos de trabajar, en que el instrumento o elemento de produc-
ción, el utensilio, permite acrecer el resultado del esfuerzo mus-
cular humano... Hay uma relación evidente entre crecimiento
de la producción, consecuencia de una técnica avanzada, y el
aumento de los que, sin realizar trabajo material, ejecutan, no
obstante, tareas complejas que llevan a esa técnica avanzada.
Pero esos tecnócratas que planifican, inventan, crean, no son
dueños de su propia actividad. Muy bien pagados, están al ser- 161
vicio del dueño de los medios de producción y contribuyen a la
superexplotación del proletariado, aun sin quererlo o proponér-
selo... Cada uno de los productores, aligerado un poco de traba-
jo, se dio a producir no sólo para sí, sino también para cambiar
con las tribos vecinas. La posibilidad del ocio apareció por vez
primera; ocio fecundo, henchido de consecuencias remotísimas,
que no sólo permitió fabricar otros instrumentos, buscar nuevas
materias primas, sino reflexionar, además, sobre esas técnicas;
es decir crear los rudimentos más groseros de lo que se llamará
después, ciencia, cultura, ideologías.” (TROISE,8-9)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

III
O conhecimento tem sempre um caráter de classe, é
sempre um conhecimento de classe. Por isso, ele tem na posição
de classe do sujeito que conhece uma condição necessária (mas
não suficiente) da verdade. (CUNHA, 1977, p. 17)

Educação é o processo de formação coletiva do ser fun-


dada sob princípios e valores historicamente construídos. E o pa-
pel e a função que a educação desempenha visam o ser humano,
considerando-o como ser concreto e histórico, que em sociedade
inter-relaciona-se, constituindo-se socialmente.

Para Marx a história de todas as sociedades, desde o apa-


recimento da propriedade privada, tem sido a história da luta de
classes. E segundo Ponce, antes de tal surgimento,

162 los fines de la educación derivan de la estructura ho-


mogênea del ambiente social, se identifican com lós interesses
comunes al grupo y se realizam igualitariamente em todos sus
miembros de manera espontânea e integral: espontânea em
cuanto no existe ninguna instrución destinada a inculcarlos;
integral em cuanto cada miembro incorpora más o menos bien
todo lo que em dicha comunidad es possible recibir y elaborar.
(PONCE, 1975, p. 13-14)

Com o aparecimento das classes sociais, que, para Pon-


ce, “teve provavelmente uma dupla origem: o escasso rendimen-
to do trabalho humano e a substituição da propriedade comum
pela propriedade privada”, a educação e com ela a escola formal
tornou-se um dos instrumentos de que lançaram mão os sucessi-
vos grupos que ocuparam o poder para promover e preservar seu
status quo e manter a dependência, através da exclusão pura e
simples, por meio de um ensino de submissão.
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Para Ponce, então,

Ligada estrechamente a la estrutura econômica de


las clases sociales, la educación no puede ser em cada momento
histórico sino um reflejo necessário y fatal de los interesses y
aspiraciones de esas clases. (idem, 173)

Os ideais pedagógicos, para Ponce, “não são criações ar-


tificiais que um pensador elabora em isolamento e procura tornar
realidade porque acredita que são justas.” Pois, “la clase que do-
mina materialmente es la que domina también con su moral, su
educación y su ideas.”

De tal forma,

Niguna reforma pedagógica fundamental puede im-


ponerse com anterioridad al triunfo de la clase revolucionaria
que la reclama, y si alguma vez parece que no es así es porque la
palabra de lós teóricos oculta, a sabiendas o no, las exigências
163
de la clase que representan. (Ibid, itálicos do autor)

Destarte, em conclusão, Anibal Ponce reforça:

Em manos de la burguesia sabemos qué significan “la


libertad del niño”, la “formación del hombre”, “lós derechos del
espíritu”. La imagen del hombre nuevo que nos prometia es la
vieja imagem que nos es bien conocida: la de una clase opressora
que monopoliza la riqueza y la cultura frente a uma clase opri-
mida, para la cual solo alcanza la supertición y el saber bien
dosado. (Idem, 176-177)

Nesta perspectiva, com relação à formação e o papel


dos professores

A la burguesia le conviene fomentar em lós maestros


la ilusión desdichada de que son apóstolos o misioneros a quie-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

nes entrega sin condición la ensenñanza de sus hijos. “Todo


educador puede considerarse como sacerdote”, escribe Jorge
kerschensteiner... El verdadero educador – continúa después –
debe tener además “una fe viva en lo divino de lós principios
fundamentales de la conciencia”... Un “apostol” sufrido y “can-
doroso” que soporte tranquilo la miséria y el hambre, porque
cuanto más hambre y miséria más diáfano será el apóstol, he
ahí um ideal que la burguesia tiene particular interes em difun-
dir. (idem, 186)

Se sob a escola, então, e os professores, pairam, para Pon-


ce, uma certa desconfiança, por estar a serviço das classes domi-
nantes, que solução ele nos aponta?

Para ele apenas superando a sociedade dividida em clas-


ses se poderá de fato produzir um homem novo. De tal modo, Pon-
ce via na implantação do socialismo a possibilidade de superação
da divisão de classes.
164

IV
Acreditamos, como o professor Antonio Joaquim Severi-
no que a formação do professor deve considerar qual o sentido do
homem em sua comunidade em seu momento histórico. E que

A educação pode, pois, ser definida como esforço para


se conferir ao social, no desdobramento do histórico, um sentido
intencionalizado, como esforço para a instauração de um projeto
de efetiva humanização, feita através da consolidação das me-
diações da existência real dos homens. (SEVERINO, 1990, 21a)
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Neste sentido, além de um projeto formativo, cabe, pen-


so, à Filosofia da Educação, ensaiar um propósito educacional,
considerando premente pensar:

“uma educação que possibilite ao homem a discussão


corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta proble-
mática. Que o coloque em dialogo constante com o outro. Que
o predisponha a constantes revisões. À análise crítica de seus
achados. A uma certa rebeldia no sentido mais humano da ex-
pressão. Que o identifique com métodos e processos científicos.
(FREIRE, 1959, p.33)

Destarte, as circunstâncias atuais de reforma política e de-


bate em torno de projetos de lei que desqualificam e cerceiam a
atividade docente, a leitura da obra de Anibal Ponce ganha grande
importância, tendo em vista a necessidade de transformações pro-
fundas nas bases sócio-políticas e econômicas de nossa sociedade.
165
Cabe ressaltar que Ponce, considerando o socialismo
como única alternativa à transformação social, desconsidera a
participação ativa da escola e da educação nesse processo. É que
para Ponce a escola é vista como meio de transmissão e reprodu-
ção de valores do ideário de vida burguês, sendo instrumentos da
burguesia contra o proletariado. E numa sociedade, como a nossa,
divida em classes, a escola e o corpo docente estarão a serviço da
exploração do proletário em defesa do Estado.

A importância que Ponce assume é que, segundo o prof.


Paulo Ghiraldelli, através de sua leitura pode-se aprofundar numa
historiografia captadora das relações mais sofisticadas entre os fi-
lósofos da educação e os compromissos de classe, colocando em
evidência as reais determinações do discurso científico e filosófi-
co a respeito da educação; aprofundar a relação entre educação e
modo de produção e a consciência de classes e suas ligações com
a política educacional.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Ponce não chega a recusar taxativamente a educação pú-


blica, mas, ele não guarda qualquer ilusão quanto a seu papel na
sociedade capitalista: Ditar os valores das classes dominantes,
mantendo a grande massa de homens e mulheres, proletariados
espoliados, iludidos de participarem em igualdade de direitos da
sociedade.

Nesta perspectiva educacional, o educador que se eviden-


cia em Ponce se compara ao papel que ele reclama ao intelectual:

sujeito imerso nas contradições de sua própria épo-


ca, mesmo assim, é capaz de conjugar disciplina, laboriosidade
e esforço na conquista de sua própria personalidade interior,
através do amor e da valentia na tarefa de servir a verdade, em
um trabalho cotidiano e sempre renovado de problematizar o
dado, o sabido o aceitado como forma de poder, o tido por ver-
dadeiro. Trabalho amoroso do pensamento ao cuidado amoroso
da verdade, que comove – transgride – as próprias seguranças
166
e é, por ele, conquista de si, da própria autonomia e ao mesmo
tempo é compromisso com os demais. (ARPINI)

Concluindo, para Anibal Ponce, apenas superando a so-


ciedade dividida em classes se poderá de fato produzir um homem
novo. E ele via no socialismo e sua implantação esta possibilida-
de de superação da divisão de classes. Para tal “o educador preci-
sa entender-se como membro de uma sociedade envolvida num
processo histórico” (SEVERINO, 1986, P., XIV). Penso, possa ser
essa uma das tarefas da Filosofia da Educação: contribuir nesta
compreensão “mediante adequada conscientização crítica dos as-
pectos políticos, econômicos e sociais da realidade histórica em
que se desenvolvem os processos educacionais nos quais atuará o
futuro educador” (IBID.)
CAPÍTULO 7: ANIBAL PONCE NO CONTEXTO DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Referencias Bibliográficas
ARPINI, Adriana. El humanismo en los ensayos de Anibal ponce: alcan-
ces y limitaciones. El pensamiento latinoamericano del siglo XX ante
la condición humana: Argentina. in: http://www.ensayistas.org/criti-
ca/generales/C-H/argentina/ponce.htm - Último acesso 07/09/2014

CUNHA, Luiz Antonio. Diretrizes para o estudo histórico do ensino su-


perior no Brasil, in Fórum Educacional da Fundação Getulio Vargas.
FGV, Rio de Janeiro, jan./mar. 1977.

FALCO, Alejandro. Ponceanos: los intelectuales y la formación del sen-


tido común. http://edicionesimagomundi.com/ wp-content/ uploads/
2013/ 06/ WEB_interior_Ponce.pdf. Último acesso 05/09/2014

FARACE, RAfael. Aníbal Ponce: El Rol del Intelectual Humanista. http://


perio.unlp.edu.ar/ojs/index.php/question/article/viewFile/943/877 -
último acesso em 07/09/2014
167
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. Tese de concurso para
a cadeira de história e filosofia da educação na Escola de Belas-Artes
de Pernambuco. Recife, 1959.

PONCE, Aníbal. Educacion Y Lucha de Classes. Buenos Aires: Cartago.


1975

SEVERINO, Antonio Joaquim. A contribuição da Filosofia para a Educa-


ção. Brasília.1990.http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/
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__________ Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU.


1986

TROISE, Emilio. Ponce Marxista. Educación y lucha de clases (introdução).


http://inabima.gob.do/descargas/bibliotecaFAIL/Pedagogia/Ponce,%20
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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Claudio Domingos Fernandes é formado em Filosofia


pelo Instituto de Filosofia e Teologia Paulo VI. É Mestrando em
Filosofia da Educação na Universidade de São Paulo (USP) e Parti-
cipa do Grupo de pesquisa em Filosofia da Educação (Grupefe), na
Universidade Uninove.

168
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

Há uma filosofia latino-


americana? A questão posta por
Salazar Bondy

OFÉLIA MARIA MARCONDES


¿Existe una filosofía de nuestra América?”, pergunta Augusto
Salazar Bondy ao que responde Leopoldo Zea

Filosofia que aspira a realizar o mundo que a filoso-


fia que a antecedeu tornou clara como necessidade. Uma nova
atitude que irá cumprir, também, sua função, como a que a pre-
169
cedeu cumpriu a sua. Não só uma filosofia da nossa América e
para nossa América, mas uma filosofia sem mais, do homem e
para o homem, onde quer que esteja (ZEA, 2010, p. 119).

À questão “¿Existe una filosofía de nuestra América?”


que Salazar Bondy propõe ao publicar o livro com este mesmo
título em 1968, Zea responde publicando o livro La filosofía ame-
ricana como filosofía sin más, publicado em 1969. É a partir des-
ta pergunta que esta reflexão se desenvolve e não se pretende ser
uma hermenêutica dos textos dos autores, mas uma reflexão a
partir deles na razão de ser o pontapé inicial de um debate sobre
a filosofia latino-americana do meu ponto de vista, o de uma
filósofa brasileira.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

I
Salazar Bondy problematiza o pensamento qualificado
pelo próprio autor como hispano-americano e levanta três ques-
tões: 1. houve um pensamento hispano-americano1 e, tendo havi-
do, essa filosofia pode ser reconhecida como uma filosofia original,
genuína ou peculiar?; 2. considerando-se uma resposta negativa,
quais são as condições para que a filosofia hispano-americana se
torne autêntica e original?; 3. como o hispano-americano pode ser
um problema filosófico e qual o seu papel na construção de uma
filosofia própria de Nuestra América?

Para buscar as resposta, Salazar Bondy define o que é a


filosofia:

uma filosofia é várias coisas: é análise, é iluminação,


é unificação da experiência do mundo e da vida; entre estas coi-
170 sas é também – e certamente não pode deixar de ser – a manifes-
tação da consciência racional de um homem e da comunidade
em que vive, a concepção que expressa como os agrupamentos
históricos reagem a toda a realidade e o curso de sua existên-
cia, sua maneira peculiar de iluminar e interpretar o ser em que
estão instalados [...] A filosofia tem a ver com a verdade, mas
com a verdade total da existência racionalmente esclarecida,
que apela à total lucidez do homem, para um esforço total de
sua capacidade de compreensão, em suma, para algo que não
pode deixar de responder ao mais adequado de sua substância
(SALAZAR BONDY, 1968, p. 112-113).

É possível considerar que, para Salazar Bondy, a filosofia


exige esclarecimento, lucidez para que seja possível a unificação da

1 Salazar Bondy, na Introdução do livro ¿Existe una filosofía de nuestra América? afirma incluir
na categoria hispano-americano, para efeito de suas reflexões, o Brasil e o conjunto dos ou-
tros países da América Latina que não foram colonizados pela Espanha.
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

experiência do mundo e da vida e a compreensão de sua realidade.


Ora, para este filósofo, o hispano-americano vive numa condição
ideológica tal que a imagem de si mesmo e do mundo é construí-
da com bases na ilusão de autonomia e independência que resulta
numa filosofia inautêntica, numa representação que mistura o pen-
samento do colonizador e a realidade de seu mundo. São ideias e
valores alheios a sua realidade que interpenetram sua compreensão
de mundo e, alheios, contribuem para uma consciência alienada.
Nas palavras de Salazar Bondy, os hispano-americanos se definem
“como ocidentais, latinos, modernos, católicos e democratas” (SA-
LAZAR BONDY, 1968, p. 118), definição que não passa de uma ilusão
própria de uma consciência coletiva colonizada, subdesenvolvida,
dependente e dominada que é conduzida por interesses alheios, di-
rigindo o processo político-econômico-culutral do Terceiro Mundo
(Cf SALAZAR BONDY, 1968, p. 120). Para este filósofo, os povos da
América Latina passaram das mãos da Espanha (Portugal, no caso
do Brasil), para as mãos da Inglaterra e, mais recentemente, para
as mãos dos Estados Unidos, países que, para Salazar Bondy, sus- 171
tentam uma cultura de dominação. Assim, não é possível uma filo-
sofia autêntica dada a condição de dependência e sujeição. Salazar
Bondy conclui que “a constituição de um pensamento genuíno e
original e seu desenvolvimento normal não podem ser alcançados
sem que se produza uma decisiva transformação de nossa socieda-
de mediante o cancelamento do desenvolvimento e da dominação”
(SALAZAR BONDY, 1968, p. 131).

As bases de uma filosofia original e autêntica são aquelas


históricas e materiais que contribuem para a construção da existên-
cia humana e nisto consiste a crítica do autor: a filosofia latino-ame-
ricana é condicionada por uma cultura de dominação que a mantém
alienada e dependente tanto do ponto de vista econômico como do
ponto de vista social e político, o que mascara ideologicamente o
próprio pensamento sobre o mundo e a realidade na qual o latino-a-
mericano se encontra. Mantendo-se a alienação como estratégia de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

dominação o que se tem como resultado é o embotamento de uma


filosofia que possa ser qualificada como original e autêntica.

A filosofia, deste ponto de vista, está diretamente relacio-


nada à construção ideológica que sustenta uma relação de depen-
dência e, portanto de alienação. Uma produção da existência que é
alienada produz uma filosofia alienada e alienante. Salazar Bondy
apresenta um jogo dialético ao considerar que somente operando
uma mudança econômica e social seria possível se produzir uma
filosofia autêntica que, por sua vez, contribuiria com os processos
de libertação. Nas palavras do filósofo:

O problema da nossa filosofia é a inautenticidade.


A inautenticidade está enraizada em nossa condição de pa-
íses subdesenvolvidos e dominados. A superação da filosofia
está, portanto, intimamente ligada à superação do subdesen-
volvimento e da dominação, de tal forma que, se houver uma
172 filosofia autêntica, deve ser o fruto dessa mudança histórica
transcendental. Mas ela não precisa esperar; não precisa ser
apenas um pensamento que sancione e coroe o fato consumado.
Ela pode ganhar sua autenticidade como parte do movimento
para superar a negatividade histórica, assumindo e buscando
cancelar suas raízes.

A filosofia tem, portanto, na Hispano-América, a


possibilidade de ser autêntica em meio à inautenticidade que a
envolve e afeta: tornar-se a consciência lúcida de nossa condi-
ção deprimida como povos e no pensamento capaz de desenca-
dear e promover o processo de superação dessa condição (SALA-
ZAR BONDY, 1968, p. 125-126).

Considerando o que Salazar Bondy define como filosofia


e como o autor a coloca numa relação direta com os processos
ideológicos de dominação, seria mesmo possível afirmar que não
há uma filosofia latino-americana autêntica, ao que Leopoldo Zea
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

discordou e tem seus argumentos apresentados na obra La filoso-


fía latinoamericana como filosofía sin más, de 1969.

Zea coloca que o perguntar sobre a existência e sobre o


mundo é o papel do filósofo independentemente de lugar e época.
Afirmar que isto é filosofia ou isto não é filosofia é uma imposição
de um certo modelo histórico-cultural. Pergunta Zea:

Que tipo de homens somos, incapazes de originar um


filósofo que se assemelhe a um dos tantos que foram e são fun-
damentais para a história da filosofia? Que tipo de homens so-
mos nós? Nesta questão está o centro do problema, o porquê de
perguntar sobre o nosso suposto direito a uma pergunta especial
(ZEA, 2010, p. 11).

Temos direito às perguntas sobre o ser, a ordem, o caos, a


realidade, o mundo, a vida, a morte porque pura e simplesmente
filosofamos, independentemente da época e do lugar. A origina-
173
lidade de qualquer filosofia e consequentemente da filosofia lati-
no-americana está na possibilidade de se enfrentar a realidade ou
circunstância por meio da tomada de consciência dos problemas
e da busca de soluções, ou seja, pensar o ser humano e seus temas
abstratos a partir da circunstância na qual surgem estes proble-
mas e para a qual as soluções são adequadas.

Zea compreende que há temas recorrentes em todas as cul-


turas e que as respostas encontradas pelo ser humano concreto são
sempre respostas originadas, ligadas, decorrentes das circunstan-
ciais histórico-culturais em que estes seres humanos estão inseri-
dos e das quais participam. O argumento filosófico de temas abs-
tratos e respostas concretas sustenta a ideia de que o ser humano
olha para seu entorno a partir do próprio entorno. Através deste
raciocínio, Zea nos conduz a um único tema: o ser humano como
uma circunstância individual ou pessoal presente na circunstância
humanidade e nisto reside a autenticidade da filosofia latino-ame-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

ricana: “A autenticidade deve acompanhar o enfrentamento que o


filósofo faz com sua circunstância” (ZEA, 1955, p. 205).

A filosofia latino-americana se preocupa com o que


chamam de temas universais da filosofia; mas sem esquecer
o outro aspecto que nos tem caracterizado: o de nossa relação
concreta com a realidade que nos circunda. Nossa preocupação
seguirá tendo como eixo o homem. Esse homem que sabemos
somos cada um de nós; esse homem que nos faz semelhantes a
outros homens e faz de nossos problemas e os de nossos seme-
lhantes, problemas comuns (ZEA, 1955, p. 255-256).

Se de um lado existe o desejo da filosofia de dar respostas


universais, eternas, aos problemas do ser humano, de outro, há a
impossibilidade de alcançar verdades eternas, universais, porque
não há nada fora das circunstâncias. Então como fazer filosofia
latino-americana sem que seja apenas uma filosofia nacional ou
local tendo consciência de que as respostas por ela encontradas
174
não serão eternas, mas absolutas em relação à realidade absoluta
à qual responde? Zea diz que o método para a investigação filosó-
fica é o método histórico desde que se insira na história o ser hu-
mano e suas circunstâncias, tornando a história uma história da
consciência de seres humanos. Assumindo a história e adaptando
as experiências anteriores às exigências de nossas circunstâncias
é que se faz filosofia. Zea tem claro que sua filosofia não constrói,
como toda e qualquer filosofia igualmente está impossibilitada de
construir, verdades eternas, mas recorre às próprias reflexões di-
recionadas a partir de Nuestra América para construir um argu-
mento que valide sua filosofia. Entre estes argumentos está a uni-
versalidade do ser humano diante da circunstância humanidade.

Como validar uma filosofia circunstancial que inclua


também um caráter universal? Como dizer para a América do Nor-
te, a Europa, a Ásia, a África que a filosofia latino-americana é tão
filosofia quanto as outras? Zea afirma que
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

Esta filosofia resultará de nosso esforço para resolver


os problemas vitais que nos são apresentados dentro de nossa
circunstância. Temos dito também que esta nossa filosofia, se
queremos que seja filosofia, terá que preocupar-se com os pro-
blemas de caráter universal, entendendo como tais aqueles que
são comuns a todos os homens pelo puro e simples fato de serem
homens. Temos também dito que nossa circunstância não é, de
maneira nenhuma, limitação alguma para dar uma solução a
tais problemas, posto que dentro de nossa circunstância está o
fato primário de sermos homens (ZEA, 1972, p.117).

Uma das tarefas da filosofia latino-americana é a de tornar


claro quais são as necessidades e os limites do latino-americano
na construção de sua cultura a partir da consciência histórica de
sua situação e de sua circunstância, além de definir-se como sujei-
to ligado a estas circunstâncias e não às circunstâncias que lhe são
alheias. A filosofia latino-americana é uma realidade e não apenas
uma possibilidade. O ser humano concreto, de carne e osso, é o
tema central da filosofia latino-americana, mas em que medida
175
essa filosofia pode ser uma filosofia concreta? E a resposta está no
fato de que este pensamento filosófico serve para uma ação, para
o enfrentamento dos problemas das circunstâncias. Uma filosofia
circunstancial só pode ser útil se for para atender às necessidades
circunstanciais deste ser humano em situação concreta.

A preocupação da filosofia latino-americana é compre-


ender o que há de universal no sujeito latino-americano em sua
expressão histórica e cultural, sabendo-se que o que é essência no
ser humano é ser mutável, há um ser humano em cada época e em
cada lugar, aceitando-se a circunstancialidade do filosofar.

A filosofia latino-americana é autêntica pelo simples


fato de ser instrumento para que o ser humano concreto, o lati-
no-americano, solucione os problemas que se apresentam em sua
circunstância, em sua situação concreta. Este mesmo enfrenta-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

mento com suas circunstâncias faz com que a filosofia se torne


autenticamente latino-americana, permitindo o surgimento de
diversas formas de pensamento, mas não um simples pensamen-
to. É um pensamento que está longe de toda possível abstração,
pensamento filosófico engaggé, comprometido, como se diz em
nossos dias. Pensamento sempre combativo, servindo a um tipo
de ação. Pensamento dentro do qual se entrecruzam múltiplos
problemas, dificilmente delindados: problemas políticos, econô-
micos, sociais, culturais (ZEA, 1991, p. 234, grifo do autor).

Segundo Zea, é possível fazermos uma filosofia autênti-


ca e original na América Latina, pura e simplesmente porque já
filosofamos no momento exato em que nos preocupamos e nos
dedicamos a compreender o outro e o mundo, de maneira siste-
mática, para que esta filosofia seja ação diante das circunstâncias.
A filosofia latino-americana de Zea é, na verdade, um diálogo com
o mundo, uma maneira de pensar a América Latina em conexão
com este mundo.
176
No Tomo II de La Filosofía en México, obra publicada
em 1955, Zea apresenta o capítulo intitulado “¿Es posible una fi-
losofía americana?”, o que é muito anterior à pergunta de Salazar
Bondy. A resposta de Zea faz eco aos ensinamentos de seu mestre
hispânico, Gaos:

Quanto à América, a resposta que pode ser dada à


questão sobre as possibilidades de uma filosofia própria é óbvia.
“Americana – afirma Gaos – será a filosofia de que os america-
nos, ou seja, os homens no meio da circunstância americana,
enraizados nela, fazem em suas circunstâncias, fazem sobre a
América”. O tema da filosofia americana será encontrado pelo
americano não em suas circunstâncias [atuais], [mas] dentro
dela, em seu próprio passado, em sua história, esse conheci-
mento dependente de outra cultura, herdeiro de outras filosofías
(ZEA, 1955, p. 205).
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

Leopoldo Zea afirma categoricamente: “A filosofia, ao fi-


nal das contas, é uma filosofia das circunstâncias, daí a originali-
dade de toda a filosofia, daí também a originalidade da filosofia
que os americanos fazem, independentemente das pretensões
que sustentam” (ZEA, 1955, p. 204).

Na década de 70, as discussões sobre a responsabilidade,


a tomada de consciência histórica pelos latino-americanos, sobre
a possibilidade ou realidade de uma filosofia latino-americana
original e da consequente superação das relações de dependência
foram a base para a Filosofia da Libertação. O objetivo inicial des-
ta corrente de pensamento foi o de construir e dar bases a uma re-
flexão própria da América Latina sobre os problemas do ser huma-
no, tendo em vista a emancipação social do povo latino-americano
através da tomada de consciência de sua condição de dependência
e de sua identidade de povo mestiço. Esta filosofia latino-ameri-
cana passou a buscar a articulação da filosofia com os processos
reais com os quais vivem os seres humanos. 177

Para Ortiz, Zuñiga, Galindo e Melchor, ao tratarem dos


antecedentes da Filosofia da Libertação, compreendida como
uma corrente filosófica latino-americana, afirmam:

De fato, exatamente o que estava acontecendo foi o


cumprimento da condição exigida por Salazar Bondy para uma
autêntica filosofia latino-americana: que as pessoas, a cultura,
a América Latina deixaram de ser dependentes, dominadas e
acima de tudo, por sua própria atitude intersubjetiva à existên-
cia” (DUSSEL; MENDIETA; BOHÓRQUEZ, 2009, p. 402).

Uma filosofia de e em Nuestra América reside na reflexão


sobre a identidade cultural do latino-americano, sobre a possibili-
dade e necessidade de sua emancipação, considerando o ser huma-
no em seus aspectos axiológicos e antropológicos, sua identidade e
sua relação de circunstância no mundo, assim como de pertinência
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

a um dado local. Como diz Zea: “O importante é filosofar, pura e


simplesmente filosofar. Isto é, enfrentar racionalmente os proble-
mas que a realidade nos propõe, buscando para esses problemas a
solução mais abrangente e apropriada” (ZEA, 2010, p. 45).

Se de um lado Salazar Bondy não considera que há uma


filosofia autenticamente latino-americana dadas as condições de
dependência e de subdesenvolvimento da América Latina, também
não nega sua possibilidade de existência futura desde que se promo-
va uma emancipação política das forças ideológicas de dominação.
Já Leopoldo Zea afirma que basta filosofarmos sobre os problemas
da América Latina e apartir do ponto de vista do próprio latino-a-
mericano para que esta seja uma filosofia original e autêntica.

II
178
A colonização, nas palavras de Saviani (2010, p. 26), sig-
nifica que não apenas as terras são ocupadas, mas também seus
habitantes são tomados, subjugados, submetidos ao trabalho, ou
seja, tomados como mão de obra e no sentido da aculturação. O
processo de colonização ou aculturação opera no sentido da su-
jeição desses sujeitos históricos, resultando em seu silenciamen-
to. A expansão europeia, principalmente pelas ações das coroas
espanhola e portuguesa, que marca os séculos XV e XVI alinha
interesses tanto da nobreza quanto da burguesia, além de ampliar
os domínios da própria igreja católica. A Europa torna-se modelo
de processo civilizatório às custas da violência, da educação, da
catequese. A formação estava nas mãos dos jesuítas com fito à “su-
jeição dos gentios, sua conversão à religião católica e sua confor-
mação disciplinar e intelectual à nova situação” (SAVIANI, 2010, p.
44) de colonizados. Começava a “vida civilizada” no Mundo Novo e
também, um epistemicídio.
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

O colonialismo, para além de todas as dominações


por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológi-
ca, uma relação extremamente desigual entre saberes que con-
duziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos
e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um
espaço de subalternidade (SANTOS; MENESES, 2010, p.11).

Considero a discussão sobre o epistemicídio uma atua-


lização da discussão sobre a existência ou não de uma filosofia
latino-americana.

A filosofia como o enfrentamento dos problemas pos-


tos pelo meio existe, e sempre existiu, pelo simples fato de nos
auxiliar no atendimento da necessidade de produção das signi-
ficações, através da busca incessante por respostas às questões
fundamentais, [...] no necessário aprendizado de se colocar sob
o crivo da reflexão crítica as significações que estão presentes
na cultura e que são utilizadas para orientar e justificar manei-
ras de ser, de agir e de pensar (LORIERI, 2016, p. 172). 179

Concepções filosóficas ou “filosofias” podem ser con-


sideradas como sistemas teóricos que procuram apresentar en-
tendimentos, produzidos de certa maneira sobre: o que é a rea-
lidade ou o mundo; o ser humano; o conhecimento; a verdade;
o processo de valoração; o bem; o belo; a sociedade, o poder, a
liberdade; a história; a linguagem; a educação, etc. Sua produ-
ção se dá, sempre, no interior de situações históricas concretas
com todos os condicionamentos sociais, econômicos e políticos
ali presentes (LORIERI, 2010, p. 5, grifo do autor).

Considerando as reflexões de Lorieri sobre o que é filoso-


fia, nosso debate deixa de ser se há ou não uma filosofia latino-
-americana para tornar-se uma questão sobre o silenciamento do
pensamento, da palavra, do logos dos povos originários das Améri-
cas, em outros termos, um epistemicídio. A supressão dos saberes e
do diálogo entre esses saberes que não os do cânone europeu. Uma
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

filosofia não se resume a um sistema filosófico no sentido de um


conjunto de ideias organizadas de tal modo que seu encadeamen-
to torne uma ideia anterior fundamental em sua manutenção e na
constituição de um todo, de uma unidade. A filosofia eurocêntrica
que se expandiu nas Américas se tornou um espaço de subalterni-
dade dos saberes resultantes dos enfrentamentos das questões pos-
tas pela produção da existência humana e pelas circunstâncias dos
homens e mulheres latino-americanas.

Salazar Bondy e Leopoldo Zea identificaram essa relação


de dominação e alienação do pensamento em Nuestra América que
eliminou a possibilidade de uma reflexão contextualizada que con-
siderasse as questões culturais, as relações políticas e econômicas,
a produção do conhecimento. Sim, não há uma filosofia autêntica
na América Latina se considerarmos o modelo hegemônico do pen-
samento europeu.

180 O pensamento latino-americano é fruto do encontro das


diferenças culturais do mundo moderno, ocidental, cristão com a
força da colonização e a imposição do capitalismo sobre o modo
de produção da vida dos habitantes das terras ameríndias. A colo-
nização traduzida como epistemicídio, nas palavras de Boaventura
de S. Santos, “suprimiu todas as práticas sociais de conhecimento
[...] Nisso consistiu o epistemicídio, ou seja, a supressão dos co-
nhecimentos locais perpetrada por um conhecimento alienígena”
(SANTOS; MENESES, 2010, p.16). A imposição de um modelo euro-
cêntrico, masculino, cristão, branco, capitalista de filosofia silen-
ciou, sufocou, embotou, dizimou as alternativas epistemológicas.

Essa dominação epistemológica nos fez crer que não hou-


vesse ou que não tenha havido uma filosofia em Nuestra América
e essa ideia de inexistência é a expressão de uma relação desigual
entre o pensamento eurocêntrico e os saberes dos povos coloni-
zados, suprimidos em sua expressão dos problemas mais locais e
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

de suas concepções de ser humano, de mundo, de vida. Não só foi


operado um silenciamento, mas também uma ocultação do outro
que sempre esteve presente nas relações de dominação. Nas pala-
vras de Boaventura de S. Santos, “Inexistência significa não existir
sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível” (SANTOS;
MENESES, 2010, p. 32). A dominação – cultural, epistemológica,
política, econômica – realizou um profundo apagamento da filoso-
fia dos povos dominados por torná-la irrelevante ou incompreen-
sível e invisível já que o modelo eurocêntrico, cristão não poderia
aceitar a presença de um sistema de pensamento que colocasse
em risco essa hegemonia que se constituía. Neste sentido, é que
considero que a filosofia latino-americana foi “produzida” como
inexistente, excluindo-se qualquer epistemologia diversa daquela
importada pelos colonizadores na condução das ações, das nor-
mas, das ideias dos colonizados. A desqualificação do pensamen-
to dos povos originários passa por sua qualificação como crença,
opinião, magia. Já colonizada, as Américas produzem uma filoso-
fia que, nas palavras de Zea, não passavam de meras cópias, más 181
cópias de um sistema filosófico qualificado como relevante.

Em outras palavras, não fizemos filosofia “europeia”. Fize-


mos filosofia em outras bases, as de povos silenciados, marginali-
zados, oprimidos, dizimados. Graças aos esfoços de estudiosos e
estudiosas de filosofia e graças à mudança de paradigmas no que se
refere ao entendimento do que é filosofia, já é possível encontrar-
mos discussões sobre o pensamento dos povos de língua náhuatl
que viveram na região central do México, sobre a filosofia maia e a
filosofia dos povos quícuas, dentre outros. A filosofia latino-ame-
ricana tem sua expressão no pensamento de filósofos como Simón
Rodríguez (1769-1853), Juan Bautista Alberdi (1810-1884), Gabino
Barreda (1818-1881), José Martí (1853-1895), José Carlos Mariátegui
(1894-1930), Samuel Ramos (1897-1959), Aníbal Ponce (1898-1938),
João Cruz Costa (1904-1978), Caio Prado Jr. (1907-1990), Leopoldo
Zea (1912-2004), Paulo Freire (1921-1997), Augusto Salazar Bondy
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

(1925-1974), e mais recentemente Adolfo Sánchez Vázquez (1915-


2011), Enrique Dussel (1934-), Marilena de Souza Chauí (1941-),
Antônio Joaquim Severino (1941-), Walter Mignolo (1941-), Carmen
Bohórquez (1946-), invisíveis aos olhos de quem busca um sistema
filosófico que corresponda ao cânone europeu. A filosofia euro-
cêntrica tem seu papel, mas sua relevância não pode silenciar a
produção filosófica daqueles que pensam a América Latina a par-
tir da América Latina, em outras palavras, essa ocultação da filo-
sofia latino-americana torna-se “uma vasta gama de experiências
desperdiçadas, tornadas invisíveis, tal como seus autores, e sem
uma localização territorial fixa” (SANTOS; MENESES, 2010, p. 33).

Da mesma maneira que a Europa e a América Latina não


dialogam no sentido da diversidade de epistemologias, Severino
assinala, no Capítulo I desta obra, que:

O panorama das relações, nas diferentes esferas da


182 cultura, entre nossos países [Brasil e países de língua espanho-
la] demonstra uma grande precariedade e insuficiência, preva-
lecendo um forte isolamento entre as diversas instâncias dessas
sociedades. Sem dúvida, a diferença da língua tem destaque
quando se trata de assinalar dificuldades de comunicação e de
intercâmbio, mas ela está longe de ser o único e o maior obstá-
culo (SEVERINO, 2017).

O discurso filosófico pode não ser autônomo como preten-


dia Salazar Bondy, mas original e autêntico no sentido da expres-
são de um pensamento sistemático e crítico das questões culturais,
políticas, sociais, econômicas, educacionais ligadas diretamente às
necessidades de homens e mulheres latino-americanas.

González, ao tratar das origens da filosofia latino-


-americana, afirma que seja por meio dos chamados discursos
universalistas aprendidos pela tradição helênica universal, ou
por meio da postulação de novos discursos que pretendem pen-
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

sar peculiarmente a América Latina, a capacidade de pensar a


nossa realidade em cada momento de uma maneira autêntica,
reflexiva e crítica foi e será o que garante a possibilidade e a
existência de uma filosofia latino-americana.

Além de todo o fundamentalismo, os fundamentos


da filosofia latino-americana nos revelam que não é uma ques-
tão de enunciar princípios que abraçam a essência da América
Latina de maneiras exclusivas, mas de exercer razão nas suas
múltiplas dimensões intelectual, emocional e estética, a fim de
compreender de forma pluralista o nosso múltiplo mundo cul-
tural e histórico, e de lá avançar para uma relação construtiva
com outras civilizações (GONZÁLEZ In: DUSSEL; MENDIETA;
BOHÓRQUEZ, 2009, p. 261).

III 183
É possível estender e ao mesmo tempo especificar a per-
gunta: há uma filosofia brasileira?

Partindo-se da ideia de que a formação da filósofa ou do


filósofo pode se dar em cursos de graduação, o que se tem, grosso
modo, é uma sólida formação em história da filosofia. Na página
da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, ao ser apresen-
tado o curso de Filosofia, encontra-se a seguinte afirmação: “Para
ser considerado como um estudioso da filosofia, quem sabe um
filósofo original, não basta possuir o diploma de bacharel ou li-
cenciado. O profissional da Filosofia deve publicar o resultado das
suas investigações e reflexões em forma de artigos e livros, bem
como participar de congressos”2. O filósofo se constitui na medida

2 Visita à página da Universidade federal de Santa Catarina: http://vestibular2017.ufsc.br/filo-


sofia/, acesso em agosto de 2017.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

em que vai fazendo filosofia e, sem dúvida, o curso de graduação


não dá conta de formar um filósofo; mas o que mais chama a aten-
ção é a expressão um filósofo original. Não é papel da graduação
formar o filósofo e muito menos formar um filósofo original. Par-
tindo-se do pressuposto de que todos nós sabemos o que é ser um
filósofo original e considerando a formação basicamente histórica
dos cursos de filosofia só seremos originais se comparados a um
Aristóteles, a um Santo Agostinho, a um Descartes, a um Kant, a
um Nietzsche e a nenhum pensador de Nuestra América. Seria
original aquele filósofo que não reproduz nenhum modelo exis-
tente e que, portanto tem, por assim dizer, um caráter próprio? Se
considerarmos que somos sujeitos históricos e que a manutenção
do fluxo da vida se dá por meio da reconstrução das experiências,
poderíamos dizer que nenhum de nós seria um filósofo original,
mas um filósofo que se constitui historicamente?

Ainda apresentando outro exemplo. Na apresentação


184 do curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG encontramos a seguinte afirmação: “Ensinar Filosofia é fa-
zer um convite ao pensamento reflexivo, à busca de uma forma de
vida mais cidadã, instigando o prazer em constituir a si mesmo
como um ser consciente de seu enraizamento na História, ten-
do em vista as várias possibilidades de construção de um mundo
mais rico, mais humano e, portanto, livre”, palavras do professor
Marcelo Marques3. O exercício do pensamento reflexivo como fer-
ramenta para a construção de um mundo livre está no centro da
formação do filosófo que se divide em disciplinas históricas e te-
máticas sendo que nenhuma delas apresenta a produção filosófica
do Brasil e dos demais países da América Latina.

3 Página do curso de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG: https://filoso-


fia.fafich.ufmg.br/graduacao/apresentacao-2/, acesso em agosto de 2017.
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

A Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC - SP,


em sua página, apresenta a seguinte afirmação: “a Filosofia deve
retomar o seu rumo no sentido de trazer à tona aquilo que tem sido
a sua tarefa, isto é, ser a memória da história humana, de suas es-
peranças e valores”4, a Filosofia como memória e não como pro-
cesso de construção de uma reflexão crítica e sistemática sobre os
problemas postos pelas circunstâncias. Memória como repositório?
Memória como perpetuação da produção filosófica? Memória como
a reconstrução do ausente? De qualquer modo não me parece que a
filosofia possa ser resumida em memória da história humana.

O curso de Filosofia na Universidade de São Paulo – USP


não foge à regra que parece dominar a formação em Filosofia no
Brasil: a forte presença de uma formação histórica. Na página do
Departamento de Filosofia encontra-se qual é o objetivo formativo
do curso: “A graduação em Filosofia visa a uma formação técnica
e crítica do estudante, por meio do estudo aprofundado da Histó-
ria da Filosofia e dos temas que são os eixos da reflexão filosófica, 185
tanto os legados pela tradição, quanto os vinculados às questões
contemporâneas”5. Formação técnica e crítica. Se de um lado a
UFSC entende que não contribui para a formação de um filósofo
original, por outro, a USP forma um filósofo técnico porque “Privi-
legia-se o estudo analítico de temas e autores” (FFLCH-USP), sem
mencionar, nas ementas do curso, qualquer referência a autores
latino-americanos e brasileiros.

Somente recentemente alguns filósofos brasileiros, prin-


cipalmente a partir das pesquisas empreendidas por Severino,
começaram a mobilizar esforços no sentido da compreensão do
caráter e do fazer filosofia na América Latina e no Brasil, que re-

4 Página do curso de Filosofia da PUC-SP: http://www.pucsp.br/graduacao/filosofia, acesso em


agosto de 2017.
5 Departamento de Filosofia – FFLCH-USP: http://filosofia.fflch.usp.br/departamento/projetoa-
cademico, acesso em agosto de 2017.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

verbera já em alterações nos cursos de filosofia como é o caso do


Bacharelado em Filosofia da Universidade Federal do ABC – UFA-
BC. Seu Projeto Pedagógico de Curso faz uma crítica à formação
baseada no comentário e na exegese de autores consagrados e res-
salta que o “curso de Bacharelado em Filosofia da UFABC, por con-
traste, se coloca como um curso organizado, fundamentalmente,
em termos de constelações de temas e problemas filosóficos, e
procura apresentar o estado da arte nas frentes de investigação
contemporâneas. O resultado é uma imagem de Filosofia como
um campo do saber em constante renovação”6. Dentre as disci-
plinas ofertadas encontram-se: “Filosofia no Brasil e na América
Latina”, “Filosofia Brasileira: História e Problemas” e “Filosofia La-
tino-Americana: História e Problemas”.

A Universidade Metodista de São Paulo é mais um exem-


plo de que os estudos filosóficos sobre o pensamento latino-ame-
ricano estão se ampliando. O curso de Licenciatura em Filosofia
186 traz no rol de disciplinas uma bem específica: “Filosofia Latinoa-
mericana” que procura oferecer condições para um debate sobre
a produção filosófica da América Latina e do Brasil e “Perpassa
esse tema a questão da existência de uma filosofia latino-ameri-
cana e de uma filosofia brasileira que será respondida a partir da
Filosofia da Libertação de Augusto Salazar Bondy, Leopoldo Zea
e Enrique Dussel, mostrando os desdobramentos desta questão e
de um pensamento original (e/ou legítimo) como condição de pos-
sibilidade de novos filosofares latino-americanos e brasileiros”7.

Reconheço que há um fazer filosófico, uma filosofia lati-


no-americana, que, mesmo nos moldes eurocêntricos do mundo

6 Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC. Bacharelado em


Filosofia. http://ccnh.ufabc.edu.br/ensino/graduacao/bacharelado-em-filosofia#2-2-projeto-
-pedagógico-e-grade-curricular, acesso em agosto de 2017.
7 Curso de Licenciatura em Filosofia da Universidade Metodista de São Paulo: http://portal.
metodista.br/filosofia/modulos/modulos-curriculo-2, acesso em agosto de 2017.
CAPÍTULO 8: HÁ UMA FILOSOFIA LATINO-AMERICANA? A QUESTÃO POSTA POR SALAZAR BONDY

ocidental, branco, masculino, cristão, vem buscando se compre-


ender como original, autêntica e autônoma, mas ainda exigindo
de nós um esforço de diálogo e de pesquisa que faça girar nossa
cabeça “brasileira”, deixando de olhar apenas para o Atlântico e
passe a olhar em direção ao Pacífico, ao Mar do Caribe, ao Golfo
do México, mais do que geografia, mudar a direção do olhar é ir ao
encontro do outro da e na filosofia.

187
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

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189
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

“Filosofia” de povos ancestrais


latino-americanos

J.E. ROMÃO 1

1. Introdução

N
o convite para tratar do pensamento filosófico dos povos
que habitavam a América Latina antes do século XV da era
cristã, eles foram qualificados de “povos originários”. Des-
culpando-me com os organizadores da coletânea e já introduzindo
a discussão que constitui o cerne desse capítulo, que é o resgate
190 de conhecimentos alternativos (no sentido de diferentes), que se
perderam em um passado remoto e que devem ser recuperados
para a solução de problemas da humanidade ainda não resolvidos,
gostaria de apresentar três justificativas por ter alterado os objeti-
vos e as denominações propostas.

Primeiramente, toda adjetivação é arbitrária. Assim, evitar


a expressão mais usada na historiografia para denominar os povos
que viveram no subcontinente americano constituído majoritaria-
mente pela parte centro-sul das Américas, que é “povos pré-colom-
bianos”, tem por objetivo não tomar os europeus como referência
histórica, alinhando-me com os críticos do “eurocentrismo”. Assim,
a meu ver, a denominação mais adequada para abranger os povos
que viveram nesta parte do mundo, desde os primórdios da huma-

1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP); Diretor Fundador do Instituto
Paulo Freire do Brasil; Presidente do Conselho Mundial dos Institutos Paulo Freire, Diretor
e Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho
(PPGE-Uninove) de São Paulo. E-mail: jer@terra.com.br.
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

nidade seria, “povos ancestrais”. É bom destacar que alguns deles


nem são antepassados dos atuais “latino-americanos”, nem foram
os primeiros habitantes do subcontinente, como é o caso dos me-
xicas, que, vindos do norte, ainda “bárbaros”2, dominaram povos
mais antigos que habitavam o Planalto de Anahuac.

Várias têm sido as denominações que se dão aos povos


mais antigos do subcontinente chamado de “América Latina”3.

Em segundo lugar, não dá para tratar da Filosofia de toda


uma miríade de etnias4 e culturas desenvolvidas na América La-
tina antes da chegada de Colombo à Mesoamérica, em outubro de
1492. Seria muita pretensão tentar abarcar todas as filosofias de-
senvolvidas nessa região do mundo e, mesmo que se tivesse con-
dição de fazê-lo, o trabalho escaparia aos limites de um capítulo
de coletânea. Assim, a pretensão generalista contida no título se
reduzirá a um caso, mais especificamente ao que os estudiosos
das teorias alternativas ou contra-hegemônicas têm chamado de 191
“Filosofia Náhuatl”. Embora também genérica, dado que o qualifi-
cativo “náhuatl” se refere à especulação de muitos e variados pen-
sadores das diversas formações sociais que floresceram na região
no planalto mexicano e em seu entorno, tudo leva a crer que o
grau de civilização que permitiu a emergência do que chamamos
“filosofia” foi alcançado em uma formação social do passado pré-
-colombiano que se tornou uma espécie de substrato civilizatório
de várias formações sociais menores.

2 Outra denominação polêmica, porque derivada de uma periodização eurocêntrica da história


humana. Retomo-a, aqui, em homenagem ao autor do livro didático de História da América
(POMBO, Rocha. Compêndio de História da América. 2. ed., Rio de Janeiro: Benjamin de Agui-
la, 1925).
3 Abstraímo-nos, aqui, das discussões mais amplas e profundas sobre o significado de “Amé-
rica Latina” – criação francesa do século XIX, por conhecidas razões imperialistas – que não
resiste a uma crítica mais rigorosa, seja do ponto de vista geográfico, seja étnico, seja linguís-
tico ou cultural.
4 Pesquisadores das culturas mesoamericanas anteriores à chegada dos europeus no século
XVI costumam chamar as formações que adotaram a cultura náhuatl de nahuas.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Em terceiro lugar, mesmo com essa delimitação, tratar


da variedade de temas e categorias do pensamento náhautl não
caberia tampouco nos limites deste trabalho, dada sua riqueza e
profundidade. Desse modo, será selecionada uma categoria des-
sa contribuição filosófica ancestral apenas para ilustrar como o
pensamento silenciado não o foi por sua inferioridade epistemo-
lógica, mas pela força das armas. Porém, será escolhida uma cate-
goria que demonstra o vigor de uma formulação teórica que pode
ajudar a resolver problemas filosóficos não resolvidos, ou resolvi-
dos de modo parcial no pensamento chamado de “ocidental”.

Antes, porém, de atravessar os umbrais do que pensavam


os descendentes dos toltecas, é preciso dizer algumas palavras,
nem que seja sumariamente, sobre o que é filosofia. No mundo
ocidental, o termo “filosofia” nasceu na Grécia Antiga, numa com-
binação dos vocábulos philos (φίλος) e sophia (σοφία) que querem
dizer, respectivamente, “amizade” e “sabedoria”. Com uma decla-
192 ração subjetiva de modéstia, os pensadores da Atenas do século
IV a.C. preferiam ser chamados de “amigos da sabedoria” (“filóso-
fos”) do que serem denominados “sábios” (sofós). Justificando-se
com essa hipocrisia, desprezavam, autoritariamente, os sofistas,
que não tinham receio de assumir a condição e de se autoprocla-
marem “sábios profissionais”. Além disso, os filósofos desencade-
aram uma verdadeira perseguição aos sofistas, exercendo uma
espécie de “sofocracia” (poder da sabedoria) monocrática, em
frontal contradição com a mencionada modéstia, na medida em
que não admitiam uma forma de pensar a realidade diferente da
que lhes era própria. Em suas origens, o termo “filosofia” traía,
portanto, a coerência, traduzindo uma espécie de epistemologia
hipócrita, na medida em que seus defensores se autoproclama-
vam, “humildemente”, apenas como “amigos da sabedoria”, mas
não admitiam, arrogantemente, outra forma de pensar. Por isso,
o termo “filosofia” foi aspado. É que, além de se aplicar especifi-
camente a um tipo de produção reflexiva ocidental, o vocábulo
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

está carregado de conotações hipócritas, já que seus defensores


não admitiam paradigmas diferentes, punindo seus adversários
até mesmo com a morte, como ocorreu com Sócrates, quando foi
“confundido” com os sofistas. Na verdade, os defensores da filoso-
fia não eram “amigos da sabedoria”, mas do poder instituído que,
por meio da “sabedoria” auto-referenciada, exerciam uma verda-
deira “sofocracia”, como já foi mencionado neste trabalho. É bem
verdade que o termo foi ganhando outros significados com o pas-
sar dos tempos, tornando-se uma verdadeira, autêntica e coerente
busca das razões mais profundas e das finalidades estruturantes
do protagonismo humano.

Também nestas primeiras palavras, antes da abordagem


do tema do trabalho, cabem algumas observações sobre a topo-
nímia e sobre a adjetivação pátria dos habitantes dessa parte do
mundo mais conhecida, na atualidade, como América Latina5.
Como já foi destacado, toda adjetivação pátria é seletiva e arbitrá-
ria porque depende da perspectiva de quem a atribui. Assim, vá- 193
rias têm sido as denominações que se dão aos lugares e aos povos
mais antigos desse subcontinente.

Sabe-se que a denominação “América”, dada ao “Novo


Mundo”, foi uma injusta homenagem a Américo Vespúcio, já que
se reservara para o “descobridor” das terras “recém-achadas”, Cris-
tóvão Colombo, apenas a denominação de um país: Colômbia.
Não se pode negar, porém, que a expressão – inicialmente grafada
com o adjetivo em minúsculas, “América latina” –, embora formu-
lada para denominar um subcontinente com evidentes intenções
eurocêntricas e colonialistas, acabou predominado sobre outras

5 A expressão foi cunhada por Michel Chevalier, em 1836. Derivou, certamente, de uma elabo-
ração europeia prévia que contrapunha a Europa Meridional “latina” à Europa do Nórdica,
“anglo-germânica”. Mais tarde, para justificar a aventura francesa no México, com o efêmero
império de Maximiliano (1963-1867), a expressão foi retomada pragmaticamente pelos fran-
ceses.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

tentativas de denominação, tais como “Hispanoamérica”, “Indo-


américa”, “Iberoamérica”, consagrando-se, no século XX, como
expressão de uma resistência ao universalismo imperialista, sen-
do por isso grafada, definitivamente, com as iniciais maiúsculas
(v. SADER et al., 2006). O acréscimo da expressão “e do Caribe”
corrige algumas ambiguidades e incompletudes da denominação
“América Latina”, embora não resolva todos os problemas da in-
clusão de povos que foram protagonistas importantes do processo
civilizatório que ocorreu nessa parte do mundo.

Em decorrência, é necessário explicitar o significado e o


porquê da escolha da denominação “povos ancestrais latino-ame-
ricanos” como gentílico a ser aplicado aos mais antigos habitantes
dessa parte do mundo. Ao denominá-los “povos pré-colombianos”
pode-se cair nas armadilhas do “eurocentrismo”, que referencia
toda a história humana na da Europa, considerada como centro
do processo civilizatório de toda a humanidade. Pior ainda é de-
nominá-los “pré-hispânicos”, porque outras áreas da “América”, ha-
194
bitadas por povos ancestrais, antes da chegada dos europeus, não
foram colonizadas por espanhóis, mas por portugueses, franceses,
ingleses e holandeses. Aliás, como já foi exaustivamente explicitado
pelos geógrafos, linguistas, antropólogos e historiadores, a ocupa-
ção pluriétnica dessa região do globo dificulta também a aplicação
adequada do gentílico “latino-americano” aos habitantes da Jamai-
ca e da República do Suriname (antiga Guiana Holandesa).

Em suma, optou-se, neste capítulo, pelo uso das expres-


sões “América Latina” para designar o subcontinente em que vive-
mos e, em relação aos que que nele habitaram antes da chegada
dos europeus, “povos ancestrais latino-americanos”.

Finalmente, ainda antes de adentrar os umbrais da rica


cultura tolteca, que se traduziu em cultura “náhuatl”, cuja filosofia
é a que nos interessa destacar a título da ilustração já mencionada,
cabem algumas palavras sobre a colonização e a colonialidade.
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

2. Colonização e Colonialidade
Carlos Piñeiro Iñiguez, no prólogo da importante obra
Pensadores latino-americanos del siglo XX, afirma:

Por certo, segue sendo a cantilena [da globalização


neoliberal] escutada na maioria das regiões do Planeta, mas,
em Nossa América, conduziu a tão grandes fracassos que não
parece casual que se queira ouvir outras vozes, como as que nos
vêm de um passado que, segundo os propagandistas do fim da
história, estava bem sepultado6 (2014, p. 15).

O conceito de colonialidade veio a calhar para traduzir


essas outras vozes que emergem numa região do mundo em que
a questão da independência não foi suficiente para romper com
a condição colonial: é preciso completar o processo de libertação
com a independência cultural e, no caso mais específico, com a
independência filosófica e epistemológica. 195

Explicando porque nossas formações sociais libertas do


jugo colonial continuaram colonizadas, o autor já citado analisa
uma de suas mais importantes causas:

... nossas sociedades emancipadas eram controladas por


elites, por oligarquias, que funcionaram como um enclave antina-
cional e privilegiado inscrito em um corpo social miserável, e res-
tringiam o acesso das maiorias populares à cidadania que procla-

6 As citações em idiomas estrangeiros serão traduzidas pelo autor deste capítulo e as inter-
polações, eventualmente necessárias para a melhor compreensão do texto, serão inseridas
entre colchetes. Assim, segue-se a primeira citação estrangeira traduzida: “Por cierto, sigue
siendo la cantinela [de la globalización neoliberal] más escuchada de las regiones del Pla-
neta, pero en Nuestra América condujo a tales fracasos que no parece casual que se quiera
oír otras voces, así sean aquellas que nos vienen del pasado que, según nos proponían los
voceros del fin de la historia, bien enterrado estaba (2014, p. 15)”.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

mavam, com grande liberalidade, nossas constituições (PIÑEIRO


IÑIGUEZ, 2014, p. 16) 7.

Essas elites sempre acompanharam, atentamente, as re-


flexões metropolitanas (inicialmente da Europa e, depois, dos Es-
tados Unidos), “macaqueando” as últimas novidades da “ciência
normal”8 dos paradigmas dominantes em cada contexto: Classicis-
mo, Tomismo, Iluminismo, Romantismo e Positivismo – evidente-
mente, nenhum deles representando ameaça ao conservadorismo
do poder das castas colonizadoras, nem de seus intermediários
nas ex-colônias –, consolidando o que se denominou de erudita-
mente de “mimetismo” e popularmente de “síndrome de vira-lata”.

Certamente, uma das grandes contribuições latino-ame-


ricanas à trajetória da experiência política da humanidade tem
sido o chamado Nacionalismo Popular – às vezes batizado com
outras denominações desqualificadoras pela “cientificidade” orgâ-
nica a serviço da colonialidade –, que tem emergido nos contextos
196 históricos em que a América Latina se pôs a pensar sobre si mes-
ma. Aliás, toda vez que os oprimidos e as oprimidas se puseram a
pensar criticamente sobre si mesmos(as), seu respectivo processo
de libertação se pôs em marcha e, quando esse pensar se dá com o
aparato epistemológico próprio, esse processo se consolida. Neste
caso, a América Latina se torna América “Ladina”.

É interessante observar que, quando nossos países dei-


xaram de ser colônias das metrópoles ibéricas e passamos a ser
satélites de potências anglo-saxónicas – primeiramente da In-
glaterra e, mais recentemente, dos Estados Unidos –, não havia
uma colonização a ser superada e, em seguida, camuflada pelos
resquícios da colonialidade, especialmente no caso do último. É

7 “... nuestras sociedades emancipadas eran controladas por elites, por oligarquías, que fun-
gían como un enclave antinacional y privilegiado inscripto en un cuerpo social miserable, y
restringían el acceso de las mayorías populares a la ciudadanía que proclamaban con gran
liberalidad nuestras constituciones”.
8 Na infeliz expressão de Thomas Kuhn (1995).
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

bom lembrar que a dominação inglesa do Brasil se deu ainda no


contexto da colonização, com a presença do Estado Britânico no
em território brasileiro, no curto período de 1808 a 1931 e, ainda
assim, como semi-metrópole, dividindo-a com os portugueses9.
Antes dessa época e ao longo dela, a pirataria fora política de Es-
tado da coroa britânica, na fase da acumulação primitiva. No que
diz respeito à dominação cultural, a Inglaterra não deixou tanta
“colonialidade” no Brasil quanto deixou em Portugal.

Já os Estados Unidos tentaram satelitizar o Brasil e os de-


mais países latino-americanos, desde o século XIX, com a dou-
trina do “Pan-americanismo”, formulada por Monroe. A ela se
contrapôs o “Bolivarismo”, elaborado por Simon Bolívar, que pro-
punha a união de parte dos americanos, não incluindo os Estados
Unidos. No século XX, quando emergiu como potência extra-euro-
peia, ao final da II Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram
a hegemonizar a maioria dos países latino-americanos. Portanto,
as relações de dominação cultural entre a “Cortina de Dólar” e o
Brasil não se deram no contexto da “modernidade”, cuja contra- 197
-face é a colonialidade, mas, no da contemporaneidade, que foi
amenizando a política do “Big Stick”10 dos presidentes anteriores a
Franklin D. Roosevelt, que estabeleceu o Welfare State11.

9 Décio Saes tem uma explicação mais detalhada sobre a conjuntura da “semi-colonização”, na
obra A formação do Estado Burguês no Brasil (1888-1891) (1985, p. 96 e seguintes).
10 A “diplomacia” do Big Stick (em português, “grande porrete”) foi a política externa dos Esta-
dos Unidos sob a presidência de Theodore Roosevelt (1901-1909). A expressão foi inspirada
no provérbio africano: “Fala com suavidade e carrega um grande porrete; assim, irás longe”.
O presidente criaria ainda o Corolário Roosevelt, como uma extensão da Doutrina Monroe:
“América para os americanos”... do Norte, poder-se-ia acrescentar. Ainda no seu governo,
entrou em vigor a Emenda Platt, anexa à constituição da recém independente Cuba, que
permitia aos Estados Unidos intervir no país, caso seus interesses fossem ameaçados na
ilha. Outra intervenção na América Central ocorreu no Panamá, cuja independência, favo-
recida pelos Estados Unidos, teve como contrapartida o controle do canal homônimo, até
1999. Apesar das intervenções e dos saques nos países dominados, sem falar na anti-diplo-
macia, Theodore Roosevelt ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Os presidentes subsequentes
agiram da mesma forma.
11 Com o argumento da força ou com a força do argumento, a maioria dos países latino-ame-
ricanos alinharam-se com os Estados Unidos e esse alinhamento manteve-se, no Brasil, até
o primeiro Governo Lula. Corre uma história de que o Presidente Franklin Delano Roosevelt,
que usou uma diplomacia mais light, teria dito, quando em visita ao Brasil, em 27 de no-
vembro de 1936: “Despeço-me esta noite com grande tristeza. Há algo, no entanto, que devo
sempre lembrar. Duas pessoas inventaram o New Deal: o Presidente do Brasil e o Presidente
dos Estados Unidos”. O New Deal foi um programa voltado para as políticas sociais públicas,
que foram também desenvolvidas por Getúlio Vargas.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Pode-se dizer que uma das mais antigas resistências ao


imperialismo estadunidense foi o “Bolivarismo”, que não deve ser
confundido com o movimento contemporâneo do “Bolivarianis-
mo”, cujo maior representante foi o recentemente falecido Presi-
dente Hugo Chávez da Venezuela. Formulado por Simon Bolívar
((1783-1830), o “Bolivarismo” antecipou a radicalidade de Fidel
Castro na denúncia de que a Organização dos Estados Americanos
(OEA) era, na verdade, o Departamento de Estado Norte-america-
no: “Os Estados Unidos parecem destinados pela Providência para
empestear a América de misérias em nome da liberdade” (apud
IÑIGUEZ, ob. cit., p. 33). É curioso, no entanto, que sustentando
oficialmente intervenções econômicas privadas na América Lati-
na, os governos norte-americanos não fizeram muita questão de
interferir epistemologicamente nos satélites, até porque sua pro-
dução no campo das ciências sociais é pouco expressiva. Sua “co-
lonialidade” continua a se fazer por meio da economia e da influ-
ência política nos “americanófilos” do subcontinente. Diga-se de
198 passagem, a agressividade das intervenções norte-americanas na
América Latina não distingue democratas de republicanos. Em-
bora variando de estratégias e táticas, a América Anglo-saxônica
manteve uma permanente atitude imperial com seus “parceiros”
latino-americanos. Mais recentemente, tentou sufocá-los com o
neoliberalismo, cujo “laboratório” foi o Chile, levando esse país
andino a uma das mais ferozes ditaduras do subcontinente e a
uma verdadeira ruína. Tentou, com a Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), uma continentalização econômica subordina-
da, a que o Brasil se recusou a aderir.

No entanto, os Estados Unidos compensam a própria po-


breza científica e filosófica com a importação (comprada) de cé-
rebros e pela força do marketing. Neste campo, eles se tornaram
especialistas, particularmente com a expertise adquirida na in-
dústria do lazer e no desenvolvimento dos mass media com base
nas tecnologias da comunicação e da informação (TICs). E a força
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

da propaganda é tão grande que, cada vez mais, se aprofunda a


“síndrome de vira-lata”. Basta observar que boa parte da popula-
ção brasileira, mesmo que não tenha recursos para tal, sonha com
a “disneylização” de seus filhos.

Quando uma ex-colônia continua encantada pelos traços


culturais de uma formação social que considera superior, acaba
por renunciar aos fundamentos, princípios, metodologias, valo-
res, ciência e filosofia próprios, tornando-se, em suma, uma colô-
nia de si mesma. Este é o resultado mais profundo e mais danoso
do que se poderia considerar “colonialidade”.

Em muitas nações latino-americanas, a luta pela afirma-


ção anti-ibérica acabou por fortalecer a opção por traços culturais
ingleses, franceses e, finalmente, norte-americanos. Mais recen-
temente, a produção científica tenta superar este “estado de es-
pírito” pelo resgate das contribuições do pensamento dos povos
ancestrais, como é o caso do que pretende ser a humilde contri- 199
buição deste trabalho.

3. A Cultura e a Filosofia da Educação Náhuatl


Na verdade, náhuatl é a língua falada pelos habitantes de
uma vasta região da Mesoamérica, que se estende do México à
América Central, antes da chegada dos espanhóis, e, depois, com
variações em cada região, continuou existindo e ainda é falada,
até hoje, por diversas comunidades mexicanas. Apesar da diversi-
dade de povos que ocuparam o Planalto de Anahuac, acabou por
tornar-se a língua franca de toltecas, chichimecas, zapotecas, as-
tecas ou mexicas, dentre outros povos, identificando-os, de cer-
ta maneira, por meio de uma cultura comum. No entanto, essa
cultura comum é mais conhecida por meio do termo toltecáyotl,
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

que poderia ser traduzido como “toltequidade” e que equivaleria


à paidéia grega, à bildung alemã, conectando sempre as ideias de
educação e de cultura de uma determinada formação social.

Vejamos como um especialista em cultura náhuatl com-


preende o vocábulo toltecáyotl:

Os antigos mexicanos o empregavam para abarcar o


que consideravam seu legado [recebido e transferido], inspira-
ção e condicionante de novos avanços. A toltecayotl, o legado
de Quetzalcóatl12 e dos toltecas, abarcava a tinta preta e a ver-
melha – a sabedoria –, escritura e calendário, livros de pintura,
conhecimento dos caminhos seguidos pelos astros, as artes, en-
tre elas a música de flautas, bondade e retidão no trato com os
seres humanos, a arte de bem comer, a palavra antiga, o culto
dos deuses, dialogar com eles e consigo mesmo... (LEÓN-POR-
TILLA, 1980, p. 7).

200 Acrescentadas as instituições e os demais processos e


produtos das criações toltecas, tem-se o significado pleno do ter-
mo toltecáyotl: tradução da cultura de todo um povo, de suas con-
tribuições ao processo civilizatório13. Entretanto, até pelo conceito
de “legado” que desenvolveram – tlapializtli, que quer dizer “ação
de preservar algo” –, os povos que sucederam os toltecas foram
acrescentando traços, dando novos significados a traços culturais
existentes e extinguindo outros. Em síntese, o termo passou a se
referir, ao longo do tempo, ao legado tolteca reinventado pelos
grupos étnicos que foram portadores da cultura náhuatl.

Quando se analisa uma cultura diferente da própria é


muito difícil colocar-se na perspectiva das peculiaridades especí-

12 Principal divindade asteca, representada como uma serpente emplumada.


13 Consciente dos problemas que envolvem a expressão “processo civilizatório”, uso-a, aqui, de
propósito, para demonstrar que, na marcha da humanidade, várias formações sociais
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

ficas da cultura diferente, ainda mais quando essa cultura é de um


passado distante e que foi profundamente marcada, ao longo dos
séculos, pelos traços culturais da formação social colonizadora,
gerando o que Serge Gruzinski chamou de “cultura mestiça”14. Em
geral, quando se analisam as contribuições dos saberes de povos
ancestrais, parte-se de um pressuposto, no mínimo discutível, de
que todos eles desenvolveram uma espécie de pensamento “míti-
co”, ou seja, o analista “moderno” apresenta-se com uma concep-
ção darwinista de cultura – as culturas ancestrais são primitivas
e estão numa espécie de estágio pré-lógico que evoluirá para o
lógico –, desqualificando-a epistemologicamente in limine.

Desconfiamos que os mitos antigos, em geral, nem sem-


pre são inteligíveis, não por serem “pouco científicos”, ou com
“pouco conhecimento”, mas por causa dos limites do próprio ana-
lista moderno. A escassa racionalidade atribuída ao homem e à
mulher primitiva, cujas elucubrações estariam ainda mais carre-
gadas de emotividade e de imaginação do que de lógica, faz com 201
que os analistas contemporâneos considerem as culturas ances-
trais curiosas, bizarras, insólitas e, por isso, devem ser defendidas
como “recordações de como já foi o homem contemporâneo”. Na
maioria das vezes, mesmo entre os pesquisadores ditos “progres-
sistas”, as culturas ancestrais são alvo de uma observação benevo-
lente e paternalista do pitoresco primitivo. São curiosos e bizarros
em sua maneira de ler e interpretar o mundo, mas desprovidos
da objetividade científica da modernidade e da pós-modernidade.
Necessitamos superar a antinomia entre pensamento pré-lógico
(primitivo) e pensamento lógico (moderno). É preciso considerar
o homem e a mulher primitiva como pensadores e pensadoras,
como filósofos e filósofas. Na análise de uma cultura alheia, o ana-
lista carrega em sua bagagem uma caixa de ferramentas próprias

14 Serge Gruzinski é um pesquisador francês que tem se dedicado à análise dos cruzamen-
tos culturais entre os espanhóis e os habitantes do altiplano mexicano, desde o século XVI.
Embora se proponha a fazer uma generosa crítica à colonialidade, Gruzinski não conseguiu
escapar de uma perspectiva hegemônica, acabando por fazer uma crítica eurocêntrica do
eurocentrismo nas duas obras em que trata mais especificamente do tema (2003 e 2011).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

de sua visão de mundo que, com certeza, criarão ruídos na inter-


pretação da visão de mundo do povo analisado. Assim, é preciso
tomar cuidado com as interpretações e “traduções”. Para dar um
exemplo, o que os sacerdotes cristãos entenderam como supers-
tições dos nahauas, na verdade se tratava de uma espiritualidade
como princípio unificador de toda sua visão de mundo.

Neste trabalho, tentar-se-á uma posição diferente, ou


seja, será proposta a discussão de uma categoria do pensamento
náhuatl cuja configuração “ontológica” e “epistemológica” embora
tenha aproximações com o pensamento ocidental, dele se diferen-
cia, especialmente no que diz respeito à sua aplicação a todos os
aspectos da vida no cosmos.

Trata-se da categoria “processo”. Tudo é processo, porque


tudo se dá no tempo. Uma espécie de “razão temporal” guia to-
das as especulações e formulações dos sábios astecas, que são os
últimos representantes do pensamento náhuatl antes da chegada
202 dos europeus que, praticamente, destruíram todo um sistema de
pensamento, toda uma visão de mundo.

Referindo-se à mesma necessidade de superação da an-


tinomia mencionada entre um pensamento primitivo pré-lógi-
co e um pensamento moderno lógico, o especialista em cultura
náhuatl assim se manifesta:

Quem, superando pré-juízos, tem valorizado, pelo


menos parcialmente, a grande arte da civilização mesoameri-
cana, desde os tempos olmecas15 e, depois, durante os períodos
clássico e pós-clássico, até os dias da Conquista, terá já prova

15 O autor aqui se refere ao primeiro período da história da civilização náhuatl, cuja periodiza-
ção compreende os seguintes marcos cronológicos: (i) Período Pré-Clássico (1.000 a.C.-1d.C),
com predomínio do olmecas, que já se espalhavam pelo planalto mexicano desde o neolítico
e que desenvolveram os primórdios da civilização náhuatl: (ii) Período Clássico (400 d.C.-600
d.C.), com o esplendor de Teotihuacan, dos centros maias e de Oaxaca e (iii) Período Pós-
-Clássico (1.000 d.C. -1500d.C).
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

do grau de desenvolvimento intelectual desses povos. Reitera-


da evidência disso oferecem os monumentos com inscrições, o
obsessivo afã de medir o tempo com precisão calendárica e qua-
se inverossímil, os hieróglifos dos livros de pintura e os textos
que foram resgatados em idioma indígena (LEÓN-PORTILLA,
1980, p. 144).

Esta citação se justifica, aqui, não apenas pela recorren-


te necessidade de se lembrar que a compreensão de uma cultura
alheia implica estar sempre alerta para as possibilidades de etno-
centrismo. Contudo, tomemos um de seus trechos: “... o obsessivo
afã de medir o tempo com precisão calendárica...”. De fato, por
que a obsessão com os calendários? Por que os povos da Mesoamé-
rica, legatários da cultura náhuatl dos olmecas e toltecas, tiveram
verdadeira obsessão pelos calendários, neles investindo o melhor
de suas energias intelectuais?

No idioma náhuatl, o termo cáhuitl (“tempo”) deriva do 203


verbo cahua, que significa “deixar algo, ou levar alguma coisa para
outro lugar”. Parece ser, segundo León-Portilla (op. cit., p. 181), da
mesma raiz de outro verbo, cauh-tiuh, que significa “deixar como
lembrança”. Este autor acrescenta:

Em estreita relação com esse vocábulo e conceito en-


contramos a palavra tlacauhtli que significa “algo que foi dei-
xado”, “O que ficou permanentemente”. Com ela se designa pre-
cisamente “espaço de lugar”, tanto que cáhuitl conota a ideia
de “espaço-tempo”. Como se pode ver, espaço e tempo aparecem
estreitamente relacionados no pensamento náhuatl. O denomi-
nador comum dos conceitos é “deixar”: “ir deixando”, quando
se refere ao tempo e “haver sido deixado permanentemente”,
quando se refere ao espaço (id., ib.).

No entanto o que se pretende destacar aqui é a substanti-


va representação de tudo por meio de ações, ou seja, de processos.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Mesmo o espaço, que poderia denotar uma estrutura, necessita do


resultado de uma ação (“haver sido deixado”) para se configurar.
Em suma, os criadores da cultura náhuatl parecem ter sentido a
necessidade incoercível de identificar linguisticamente tudo por
fórmulas verbais, revelando, no fundo, a necessidade de conceber
o universo e todos os fenômenos como processos.

Da mesma forma, não seria a obsessão com os estudos


sobre o tempo, inclusive com o desenvolvimento extremamente
avançado dos calendários – pode-se “afirmar que os maias alcan-
çaram uma aproximação do ano astronômico superior , inclusive,
ao que alcançou o ano gregoriano” (LÉON-PORTILLA, op. cit., p.
45) – uma expressão dessa categoria estruturante de todo o pensa-
mento náuhatl, que seria uma espécie de razão temporal?

Para se melhor compreendido, cabe, aqui, um parênte-


ses para explicitar o que entendo por Razão estrutural e Razão
204 Temporal (com maiúsculas). A Razão Estrutural, como o próprio
nome indica, considera tudo como estrutura e, por isso, limita-se
à análise imanente, ou seja, toma sempre os fenômenos e os seres
como entidades autônomas constituídas por dependências inter-
nas e verifica a relação de cada parte ou dependência interna com
as demais partes e destas com o todo. Contenta-se, assim, com
a análise lógica, ou “compreensiva”, como diz Lucien Goldmann
(1980, 1986), ou com a análise “sintático-semântica”, como afirma
Eliseo Verón (1970). Já a Razão Temporal considera o “ser” (com as-
pas, porque, na verdade o que existe é o “sendo” na dimensão tem-
poral, enquanto processo. Sua análise será sempre transcendente,
ou seja, buscará elementos externos à entidade autônoma, que
será considerada sempre como entidade relativamente autônoma,
colocando-os em diálogo com os resultados da análise compreen-
siva ou sintático-semântica. A Razão Temporal não nega a Razão
Estrutural, mas a considera incompleta, na medida em que ela
não dá o passo necessário da análise “explicativa”, como defende
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

Goldmann (ib.), ou da análise “pragmática”, como propõe Verón


(ib.). Em suma, a Razão Estrutural teve sua melhor expressão no
Positivismo e nas correntes de pensamento nele referenciadas,
como é o caso do próprio Estruturalismo, e a Razão Temporal se
configurou, no Ocidente, como Razão Dialética, tendo sua melhor
expressão no Materialismo Histórico.

A racionalidade náhuatl parece ser uma expressão radi-


calizada da Razão Temporal, ou da Razão Dialética, na medida em
que a própria sintaxe-semântica busca o movimento, o processo,
a oposição dos contrários, transformando a própria expressão lin-
guística (estruturada) em movimento por meio de signos estrutu-
rantes (verbos) ou expressões calendáricas.

Os chineses antigos seguiram caminhos semelhantes,


quando constataram que a língua chinesa não dava conta de ex-
primir o movimento e a transformação implícitos em tudo, uma
vez que o idioma é constituído por unidades estruturadas, desde 205
os signos (fonemas e grafemas) até as unidades significativas (sin-
tagmas), enquanto a realidade é constituída por processos. Para
tentar resolver o problema, os chineses antigos criaram um sis-
tema de representação binário, constituído por dois signos Yin e
Yan (traço contínuo e traço descontínuo) em relação de comple-
mentação e de oposição.

OPOSIÇÃO DOS CONTRÁRIOS (YIN e YAN)

Figura 1

No entanto, como a realidade não é diádica (figura 1), mas


triádica, uma vez que da oposição dos contrários nasce o tercei-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

ro elemento. Daí, a necessidade de composição dos “trigramas”.


Combinados de modo a continuar representando a oposição dos
contrários, há somente 8 (oito) tipos de trigramas (fig. 2).

1.1 TRIGRAMAS

Figura 2

Porém, se tudo admite e exige seu contrário, a primeira


maneira de representar o cosmos com apenas 8 (oito) trigramas,
admite e exige, também, uma maneira contrária de representá-lo.
Daí, as combinações de trigramas em hexagramas que, por sua vez,
contrapostos, permitem 64 (sessenta e quatro), e apenas 64 (sessen-
206 ta e quatro), combinações. Desse modo, a matriz do impropriamen-
te denominado “Livro das Mutações” ficaria assim configurada:

1.2 HEXAGRAMAS COMBINADOS


1.3 (Matriz do “Livro das Mutações)

Já nos dois caracteres, contínuo e descontínuo, perce-


be-se a oposição dos contrários, condição necessária do desequi-
líbrio, do movimento. Ora, o choque de dois contrários conduz,
automaticamente, a um terceiro, resultante da construção (fenô-
meno oposto) à destruição dos contrários originais. De fato, se no
choque dos contrários ocorre um processo de destruição e cada
coisa ou fenômeno admite sempre seu contrário, ao processo de
destruição contrapõe-se o de construção e dele nasce o resultante
que, na dialética ocidental, corresponde à síntese. Desse modo, o
cosmos e tudo que nele existe não pode ser devidamente repre-
sentado pelos dois caracteres opostos, mas por um trigrama. No
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

entanto, se essa maneira


de representar tudo por
trigramas é um modo de
representação e se cada
coisa admite seu contrá-
rio, a esse modo de repre-
sentação existe um modo
de representação do uni-
verso contrário a ele. As-
sim, os trigramas têm de
ser combinados 2(dois) a
2(dois), formando um he-
xagrama. Ora, 3(três) ele-
mentos, combinados dois
a dois, ou seja, as possibi-
lidades de contraposição
de trigramas, nas suas 8
possibilidades de combi- 207
nações de traço contínuo
e traço descontínuo, gera Figura 3
64 (sessenta e quatro), e
somente 64 (sessenta e quatro), formas de representação. Daí ser
este o número de hexagramas do I Ching.

Esta longa digressão sobre os esforços chineses para


encontrar uma forma temporal (processual) de representação
da realidade, que é também constituída por processos, ou, em
termos ocidentais, essa desesperada busca por uma representa-
ção dialética da dialética, teve por objetivo apenas demonstrar
que os povos ancestrais mesoamericanos encontraram uma
forma mais simples, embora também sofisticada, de alcançar
essa adequação entre a representação da realidade e a própria
realidade. Encontraram-na no substrato efetivamente temporal
de toda e qualquer “ser” (sendo) ou fenômeno. Vejamos alguns
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

exemplos para se ter maior clareza em relação a reflexões apa-


rentemente tão complexas.

Aliás, diga-se de passagem, a realidade é complexa; a ci-


ência deve traduzir essa complexidade para a simplicidade das ex-
plicações. Não é dever de qualquer pensador denotar aquilo que
está carregado de conotações?

Mas, vamos aos exemplos. Um primeiro poderia ser dado


em relação ao conceito de legado, herança cultural. Nas culturas
ocidentais, o conceito de legado tem um caráter estático, na medi-
da em que é o que recebemos do passado, portanto, o já realizado
e consolidado que é deixado como herança aos descendentes. Os
náhuas tinham uma perfeita noção de legado enquanto heran-
ça cultural dos antepassados. No entanto, a palavra que usavam
para designá-lo, tlapializtli significa “ação de preservar ou guardar
algo”. Ou seja, o legado pronto, acabado, em suma estático, ganha
208 vida, porque implica o movimento de guardar, de preservar, a ser
desencadeado pelos legatários.

Um segundo exemplo pode ser ilustrativo desse modo de


pensar temporalmente: o vocábulo yuhcatiliztli que, literalmente,
significa “a ação que leva a existir de um modo determinado”, cor-
responde à concepção que temos de identidade cultural, de existir
de um determinado modo, com todos os componentes das chama-
das culturas “material” (tipos de habitação, modos de produção,
indumentárias etc.) e espiritual (tradições, crenças, rituais religio-
sos, artesanato etc.). Entretanto, como aponta León-Portilla:

... longe de conotar algo estático, ou seja, realidades


culturais que se apresentam como meramente estabelecidas e
fazendo abstração da mudança e do esforço criador, supõe um
destaque dinâmico, na medida em que é, acima de tudo, atuar:
“a ação que leva a existir de um modo determinado” (op. cit.,
p. 17).
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

Como no conceito anterior, o mesmo autor sublinha a


ação e o dinamismo. Uma herança cultural, uma tradição, em
suma, um legado só faz sentido quando retrabalhado, recriado,
reinventado. O legado (estrutural) é para ser preservado por um
ato de criação e de reinvenção (temporal) em cada contexto. O le-
gado estará ameaçado se for recebido por um ato de espera, de
inação de quem o recebe. Por essa concepção, é possível imaginar
o trauma causado, nos povos ancestrais, pelo processo violento e
destrutivo da ocupação espanhola, especialmente em termos de
razia cultural, pela determinação europeia de amordaçar, silen-
ciar e, no limite, extinguir manifestações culturais nativas para a
imposição da “civilização ocidental cristã”.

Ocupadas desde o oitavo milênio antes de Cristo, as pla-


nícies da Mesoamérica assistiram a invenção da escrita, sete mi-
lênios depois. Ao invés de despertar o interesse dos europeus,
por sua obsessão pelos registros gráficos – “pas de documents, pas
d’histoire”16 –, os espanhóis tentaram apagar, a todo custo, toda e 209
qualquer memória desse avanço e das conquistas expressas nos
documentos produzidos pelos intelectuais dos povos ancestrais
que os antecederam na Mesoamérica. “No mundo olmeca, e possi-
velmente no primeiro milênio antes de Cristo, nasce o calendário
e com ele os primeiros vestígios de escrita” (LEÓN-PORTILLA, op.
cit., p. 44). Ninguém pode esquecer a tortura imposta por Hernán
Cortez ao último imperador asteca, Cuauhtémoc, queimando-lhe
os pés. Além da terrível violência física, a violência cultural foi
mais profunda, no sentido de destruição do mito ancestral da “bi-
locação” do governante asteca.

Um exemplo da Razão Temporal náuhatl pode ser busca-


do na educação. Como os sábios nahuas, tlamatinime, concebiam

16 “Se não há documentos escritos, não há história”, dizem os franceses quando abordam o
processo civilizatório.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

a o processo educacional dos mais jovens membros da formação


social asteca? Ora, como o substrato de todo processo educacional
é o ser (sendo) humano, qual a ontologia náuhatl concebia a pes-
soa? Na linguagem erudita (tecpilatolli), ao designar um interlocu-
tor, o enunciador dizia: “Vosso rosto, vosso coração” (“In ixtli, in
yóllotl”). Esta justaposição de rosto (estático) e coração (dinâmico),
atribuindo a este último órgão “o dinamismo da vontade e a con-
centração máxima de vida” (id., ib., p. 192) demonstra o quanto o
processo e, não, a estrutura, deveria ser o arcabouço de qualquer
definição. Formar um jovem ou uma jovem, para que ele ou ela
fosse uma pessoa madura (omácic oquichtli) implicava ajudá-lo(a)
a se tornar “dono de um rosto e de um coração”, significando, no
fundo, “possuir um rosto sábio” e “um coração firme”.

Quando os espanhóis chegaram ao Planalto de Anauhac


em 1519, os nauhas desenvolveram o conceito de nepantla, que
quer dizer “viver entre”. Significava, claramente, a vivência de um
210 processo civilizatório que oscilava entre recriar o legado da tradi-
ção ancestral e viver sob o domínio de outra cultura. O conceito
significa textualmente “viver na ‘entredade’” de duas culturas.

Considerações Finais
É evidente que todo processo de colonização apresenta
suas singularidades, suas especificidades históricas, não caben-
do colocá-los todos dentro dos parâmetros de uma mesma matriz
colonizadora. Desse modo, quando se fala em “empresa colonial
europeia”, que inaugurou a modernidade e sua contra-face, a
colonialidade, nem todos os colonizadores se comportaram da
mesma forma em relação aos colonizados. No caso específico
da colonização das colônias americanas, a dominação colonial
apresentou variações de acordo com o propósito dos colonos,
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

como se pode perceber na diferença que os historiadores esta-


belecem entre “colônias de povoamento” e “colônias de explo-
ração”. Nas primeiras os transplantados das metrópoles para as
respectivas colônias buscavam uma terra para construírem seus
lares e aí viveram e passaram seus legados às futuras gerações;
nas segundas, a ideia era apenas extrair riquezas e retornar à
metrópole para usufruí-las, bem como gozar do prestígio social
por elas proporcionado. Esta parece ser ainda a explicação mais
razoável para a diferença de desenvolvimento das diversas ex-
-colônias, porque a que se baseia nas diferentes mentalidades
dos colonizadores não resiste à menor crítica, como é o caso de
considerar que as ex-colônias inglesas desenvolveram-se mais do
que as espanholas ou as portuguesas. De fato, se se olha para
determinadas ex-colônias anglo-saxãs, como é o caso do Canadá
Ocidental, pode cair no mito da superioridade da colonização
inglesa. No entanto, no mesmo país, Canadá, encontra-se a parte
oriental, tão desenvolvida quanto a ocidental, que foi colonizada
pelos franceses. Além disso, se se examina a situação de deter- 211
minados ex-colônias da África e mesmo das Américas, encon-
tram-se países tão subdesenvolvidos quanto os colonizados pelos
portugueses e espanhóis.

Porém, o que quero destacar é o substrato comum da


atitude de todos os colonizadores, no sentido do silenciamento
e da ocultação da ciência e da epistemologia dos colonizados.
De fato, todos os colonizadores, de uma forma explícita ou vela-
da, tentaram impor sua própria maneira de ler o mundo e, espe-
cialmente de filosofar, em suma, impuseram sua racionalidade
ou sua “razão”, como prefiro denominá-la, como superior à dos
colonizados. E mesmo que ela apresentasse fragilidades em de-
terminados aspectos científicos, ou ontológico-epistemológicos,
quando comparada com a dos povos dominados, ela se impôs
pela força das armas ou pela astúcia colonizadora. No primei-
ro caso, não há dúvidas de que as fragilidades científicas e fi-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

losófica dos espanhóis, quando se confrontaram com a cultura


náhuatl, foram eclipsadas pela imposição graças às ferramentas
extra-gnosiológicas. No caso de países classificados como “orien-
tais” a “ciência” “Orientalismo” se encarregou de manter a do-
minação do pensamento dos colonizadores, como demonstrou
Edward Said (1985a).

O que quero destacar, aqui, é que um paradigma – no sen-


tido que Kuhn (1995) conferiu a uma maneira de pensar – não é
substituído por outro apenas por sua superioridade gnosiológica,
mas, na maioria das vezes, as mudanças paradigmáticas se dão no
campo do poder extra-epistêmico, como ocorreu no confronto da
toltecayótl com a cultura europeia no século XVI.

As reflexões contidas neste trabalho, especialmente as das


“Considerações Finais”, se justificam pelos evidentes prejuízos, não
somente científicos e epistemológicos, mas, também, pelos danos à
212 evolução histórica da humanidade, quando se silenciam as contri-
buições de qualquer formação social, como fica evidente no eclipse
da cultura náuhatl. De fato, os diversos povos que habitaram a Me-
soamérica em geral e o altiplano mexicano em particular, deram
expressivas contribuições ao pensamento humano e ao processo
de transformação da produção e reprodução da vida imediata, mas
foram amordaçados pela cultura europeia via cultura espanhola,
atrasando a solução de diversos desafios que enfrentamos até hoje,
seja na vida concreta, seja na reflexão filosófica.

Semelhantemente ao desenvolvimento do conceito ne-


pantla (“viver entre”) ocorreu (e ocorre) no Brasil um fenômeno
de oscilação cultural. De um lado, como todos ex-colonizados
– ainda, científica e epistemologicamente colonizados – cultu-
amos uma tradição que não é nossa e que constitui uma espé-
cie de “utopia mimética”, ao mesmo tempo que somos obrigados
a reproduzir, homologamente, uma realidade mais “prosaica”,
CAPÍTULO 9: “FILOSOFIA” DE POVOS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANOS

mais “feia”, e que constitui sua “ideologia”. Assim sendo, somos


“estrábicos” e nesse estrabismo, ou continuamos a sofrer a “sín-
drome da inferioridade epistêmica” e continuamos a louvar e a
imitar as razões de nossos dominadores, ou aproveitamos essa
situação limite para transformá-la em seu oposto, em um inédito
viável17 de uma razão alternativa.

213

17 Tanto o conceito de “situação limite” quanto o de “inédito viável” foram desenvolvidos por
Paulo Freire, especialmente em Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do
oprimido (1992).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

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CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

Decolonialidade e emancipação:
o caráter interpelativo e
dialógico do pensamento andino

MANUEL TAVARES
SANDRA GOMES

Nota introdutória

E
ste texto é uma reflexão sobre o pensamento andino e seus
princípios epistemológicos e éticos que, do nosso ponto 217
de vista, constituem uma verdadeira interpelação ao pen-
samento ocidental, dominante durante séculos. Questiona-se se
existe um pensamento filosófico latinoamericano que não esteja
contaminado pelo ocidentocentrismo. Defendemos neste texto a
tese de que o pensamento latinoamericano, apesar de todas as in-
fluências ocidentais se move, atualmente, no âmbito do desejo de
libertação de um passado de dominação colonial e neocolonial
e, ao mesmo tempo, que se afirma pela invenção e pela desco-
berta, resgatando culturas e saberes originários que caracterizam
as identidades dos povos latinoamericanos. Um pensamento novo
contra todas as formas de dominação e de exclusão, um pensa-
mento aberto às múltiplas influências de outras culturas, eman-
cipatório e promotor da dignidade humana. Todo o pensamento
se caracteriza pela sua incompletude. O pensamento ocidental
afirmou-se como hegemónico e invisibilizou as alteridades cultu-
rais e epistemológicas pela imposição de uma uniformidade lin-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

guística e uma homogeneidade cultural quase absoluta. As formas


diversas de resistência e insurgência dos povos latinoamericanos
pelo reconhecimento das suas culturas e saberes proporcionará
um diálogo intercultural que, por sua vez, contribuirá para dissol-
ver a pretensão hegemónica do pensamento dominante e para dar
visibilidade a formas de pensamento mais holísticas e mais huma-
nas. O processo de decolonialidade1 supõe a dissolução de todas as
formas de dominação e subalternização cultural, epistemológica
e ontológica dando lugar a um processo de diálogo intercultural.

Na obra, Si el Sur fuera el Norte. Chakanas interculturales


entre Andes y Occidente, de Josef Estermann (2008), o autor afir-
ma que não há nenhuma lei da Física que impeça que o mundo
possa ser representado ao contrário. No nosso imaginário, o Sul
sempre esteve e deverá continuar a estar em baixo e o Norte, em
cima; este arquétipo, quiçá de origem platónica ou parmenidiana,
aprofundado e consolidado ao longo da Idade Média e da moder-
218 nidade, faz-nos crer que o que está em cima é superior ao que está
em baixo; o Norte seria, então, hierarquicamente superior ao Sul
e este, pela mesma razão, inferior ao Norte. Foi esta ideia arque-
típica e convencional, sustentada na visão dualista, etnocêntrica,
androcêntrica e colonial do pensamento ocidental que organizou
toda a nossa maneira de pensar, de conhecer, de relacionamento
com o mundo, com os outros e com outras culturas e condicionou
o diálogo intercultural entre o Norte e o Sul e, mais do que isso,
impediu a afirmação das culturas do Sul no mesmo pé de igualda-
de em relação às culturas ocidentais que se autodesignaram como
superiores, etnocêntricas, para além de outras questões mais pro-

1 O conceito de decolonialidade utilizado por Grosfoguel, Castro-Gómez, Catherine Walsh e


outros autores dos estudos pós-coloniais tem maior amplitude do que o conceito de descolo-
nização. Este tem uma dimensão política e administrativa. É o processo político que, histori-
camente, se inicia com o fim do colonialismo. O conceito de decolonialidade, pelo contrário,
não é um conceito que tenha surgido no Norte, mas emerge das reflexões que os autores
pós-coloniais do Sul, levaram a cabo sobre a amplitude da colonização europeia. Neste sen-
tido, o conceito adquire maior profundidade e amplitude porque se aplica ao campo político,
social, ontológico, epistémico, ético, de género.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

fundas que teremos a oportunidade de discutir ao longo deste tex-


to. Os povos que foram colonizados participaram da modernidade
pela violência, exclusão e discriminação que a modernidade lhes
impôs (SANTOS, 2006). A constituição da dicotomia Norte-Sul

[...] e a natureza hierárquica das relações Norte-Sul


permanecem cativas das relações capitalistas e imperiais. No
Norte global, os “outros” saberes, para além da ciência e da
técnica, têm sido produzidos como não existentes e, por isso,
radicalmente excluídos da racionalidade moderna (MENESES,
2008, p. 5).

Persistem, ainda, relações coloniais de exploração,


opressão e silenciamento no diálogo entre o Norte e o Sul; talvez
seja “[...] o eixo da colonização epistêmica o mais difícil de criticar
abertamente” (MENESES, 2008, p. 5). A superação do etnocentris-
mo e androcentrismo ocidentais e da colonialidade2 do conheci-
mento (QUIJANO, 2009) implicará o reconhecimento de outras 219
culturas, com outras visões do mundo e da vida, e o confronto
com as respectivas alteridades culturais.

As alteridades como interpelação ao pensamento


dominante
Nenhuma cultura pode autodesignar-se como superior e
mais importante do que outra nem considerar-se como detentora

2 O conceito de colonialiadade de Anibal Quijano (2009, p. 73) representa “[...] a parte invisível
e constitutiva da modernidade […] é um dos elementos constitutivos e específicos do pa-
drão mundial do poder capitalista”. Este conceito de colonialidade, conceito mais profundo
e duradouro do que o de colonialismo, embora engendrado dentro deste último, está ligado,
primordialmente, ao poder político e económico, estende-se ao próprio conhecimento como
imposição e resultado das consciências colonizadas, das relações intersubjetivas de domina-
ção, abarcando, ainda, a relação dos seres humanos com a natureza, consigo próprios e com
os outros, as noções de corpo, género e sexualidade (TAVARES, 2014).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

de uma visão única e verdadeira do mundo. As possibilidades e


potencialidades do ser humano e os modos diversos de dizer o
mundo e a vida não se concentram numa única visão cultural:
“[...] nenhuma cultura, nenhum topos filosófico pode abarcar
todas e cada uma das possibilidades da humanidade” (ESTER-
MANN, 2008, p. 27). O mundo é, na sua diversidade, muito mais
rico do que as possíveis representações que possamos ter dele, e
muito mais ainda do que as representações construídas a partir do
modelo epistemológico da modernidade; “[...] o vasto campo das
interrogações abrangidas pela reflexão filosófica excede em muito
a racionalidade moderna, com as suas zonas de luz e sombra, as
suas forças e fraquezas.” (MENESES, 2008, p. 5). Daí que a ques-
tão da modernidade e da participação dos povos não europeus no
movimento da modernidade suscite algumas reflexões. Enrique
Dussel (2012) e Walter Mignolo (2000) preferem falar de transmo-
dernidade3 para designar a exterioridade das vítimas em relação
ao movimento moderno, a alternativa oferecida pelas vítimas en-
220 quanto resistência.

Impossibilitados de ter uma visão ontológica do mundo,


avançamos na perspectiva epistemológica de modo a que possa-
mos ressignificar o mundo a partir das suas inúmeras potencia-
lidades. Falamos das epistemologias da diferença, das epistemo-
logias oprimidas e das suas indiscutíveis potencialidades como
epistemologias da alternância. Não sendo possível apresentar o
mundo tal como ele é, será, todavia, possível perspectivar como
ele deverá ou poderá ser. Neste sentido, a questão epistemológi-
ca liga-se a uma problemática ética que nega todas as formas de
opressão e de dominação. A visão epistemológica unidimensio-
nal imposta e “aceita” social e historicamente como suporte das
diversas formas de exploração e dominação, impediu que possi-
bilidades emancipatórias se realizassem, que outros modelos so-

3 Santos (2006) prefere chamar-lhe modernidade ou modernidades alternativas.


CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

ciais se afirmassem e que outras epistemologias se tornassem vi-


síveis. Esta perspectiva, apoiada nos princípios das teorias crítica
e pós-crítica, não tem um carácter utópico, mas pretende analisar
aquilo que o mundo e as sociedades poderão ser se as subalter-
nidades se transformarem em “alternidades”. Naturalmente que
as potencialidades emancipatórias das alternativas têm algumas
limitações que se prendem com uma visão negativa apresentada
pela modernidade. As outras culturas e as respetivas experiên-
cias locais são perspectivadas como tradicionais, exóticas e nun-
ca constituíram polos de comparação com a cultura eurocêntri-
ca. Em nenhum momento do processo de colonização os povos
“envolvidos na produção constituem uma comunidade, que exista
para si, um povo com aspirações próprias que se possa realizar
com requisitos elementares de sua sobrevivência e prosperidade.”
(RIBEIRO, 2010, p. 40). Efetivamente, não existe nenhuma razão
filosófica intercultural que permita justificar que o pensamento
andino ou outro pensamento não ocidental seja uma etnofilosofia
em oposição ao estatuto filosófico do pensamento ocidental. Se há 221
razões para que o pensamento andino seja uma etnofilosofia, não
há razões para que o pensamento ocidental não seja também uma
etnofilosofia. Verdadeiramente, ambas são filosofias culturalmen-
te contextualizadas de fato e de direito. A alteridade andina reve-
la, afinal, o rosto etnocêntrico do pensamento ocidental por meio
de uma hermenêutica diatópica e de um diálogo intercultural.

Do ponto de vista geográfico, se imaginarmos o mundo ao


contrário, isto é, se colocarmos o Sul no Norte e este no Sul, esta in-
versão não alterará, de imediato, as nossas representações do mun-
do, mas terá algum significado do ponto de vista metafórico, dado
que nos permitirá entender que a própria construção cartográfica
do mundo tem raízes nos impulsos de dominação e de hierarqui-
zação dos povos e das culturas. Em entrevista concedida à EccoS –
Revista Científica, (2013a) Josef Estermann afirma a este propósito:
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A inversão dos “clássicos” mapamundi é um exercí-


cio epistemológico de mudança de perspectiva, perante uma or-
dem geopolítica estabelecida que se impregnou até às subcons-
ciências dos dominadores/as e dominados/as e que transporta
valores culturais e epistémicos. A “introjeção” dominante diz
respeito à repartição geográfica da superficie da Terra que cor-
respondeu à repartição económica e ao saber a nível planetá-
rio: o Norte situa-se “acima”, o Sul “abaixo”. Mas para além
de serem indicadores geográficos ou cosmológicos – no universo
não há “em cima” ou “em baixo” –, trata-se de metáforas ou
símbolos com uma carga psicológica que configura o nosso “ma-
peamento mental” (ESTERMANN, 2013a).

Imaginar um outro mundo possível implica, em primei-


ro lugar, a construção de uma outra geopolítica, que contribua
para dissolver todas as dicotomias que estabelecem hierarquias
entre culturas e povos, entre o Ocidente (Norte) e os povos histo-
ricamente dominados e oprimidos (Sul). O exercício do diálogo
222 intercultural representa, na contemporaneidade, um desafio ao
próprio pensamento filosófico no sentido da construção de uma
nova geopolítica do conhecimento. Para isso torna-se necessário
que o paradigma ocidental, historicamente dominante, possa ser
confrontado com as alteridades culturais de modo a que seja de-
nunciado o seu solipsismo, narcisismo e complexo de superiori-
dade relativamente a outros paradigmas existentes no mundo e,
simultaneamente, a clarividência da sua incompletude.

Quando Karl Marx afirmou, na XI tese sobre Feuerbach,


que a filosofia só tinha interpretado o mundo e que se impunha a
sua transformação, avançava, simultaneamente, com uma crítica
à filosofia ocidental e com a proposta de uma filosofia da praxis.
De facto, a filosofia dominante, que supostamente começa na Gré-
cia Antiga (também esta afirmação é duvidosa!)4, foi interpretada

4 Afirmação duvidosa dado que os grandes princípios sistematizados pelos gregos originaram-
-se no chamado Médio Oriente, particularmente na Índia e na China.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

como filosofia dos dominadores, vendo o mundo a partir de uma


perspectiva eurocêntrica. Chegou, pois, o tempo de perspectivar
o mundo a partir dos dominados e de o transformar, partindo das
posições dos historicamente invisibilizados e subalternizados. O
pensamento ocidental afirmou a sua identidade ao longo do tempo
por meio da negação do outro, do diferente. Os indicadores funda-
mentais que constituíram a base fundamental para a negação do
outro e da outra foram o género e a raça. As características deste
pensamento que marcaram e marcam a sua historicidade são o
machismo, o sexismo, o racismo e o etnocentrismo. As grandes
obras do pensamento ocidental foram escritas por homens bran-
cos e não por mulheres, e muito menos por negros. “Os outros e
as outras não possuem filosofia, a não ser que cumpram todos os
requisitos que a filosofia e os filósofos ocidentais (os ‘unos’ ou a
mesmidade filosófica) definem como essenciais para merecer tal
título”. (ESTERMANN, 2008, p. 22). Esta posição é um ato violento,
excludente por definição, na medida em que exclui aprioristica-
mente todas as formas de pensamento que não se exprimam pelo 223
mesmo tipo de linguagem, não se rejam pelos mesmos princípios
lógicos e não se fundamentem no mesmo conceito de racionali-
dade. A partir do momento em que o pensamento ocidental se
conceba a si próprio como “[...] a negação da sua própria negação,
como a alteridade do outro e da outra” (ESTERMANN, 2008, p. 23),
define-se como monoculturalidade negando o estatuto filosófico
a outros paradigmas que não reconhece como “filosofias”, mas
como cosmovisões, mitologias, religiosidades ou, simplesmente,
como etnosaberes.

O mundo académico, quer no Norte quer no Sul, prisio-


neiro de uma visão científica da modernidade, recusa e exclui to-
das as visões que não se enquadrem nos critérios de cientificidade
impostos pela modernidade e pelo positivismo. Estes critérios, co-
loniais na sua essência, não só impediram que as ciências sociais
e humanas se afirmassem na sua especificidade, quer do ponto de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

vista epistemológico quer metodológico, como também estabele-


ceu uma ruptura epistemológica entre o conhecimento científico
e os outros saberes aos quais não reconheceu dignidade epistemo-
lógica nem dignidade ontológica aos portadores desses saberes.

Na perspectiva de Estermann (2008, p. 24),

[...] a defesa de uma “filosofia andina” não é um as-


sunto académico, nem um simples debate imaginário ou um
capricho de alguns andinófilos, mas a reivindicação de uma
humanidade completa e integral, de um modo peculiar de con-
ceber e representar o mundo, de uma sabedoria milenar oculta-
da por preconceitos culturalistas e etnocêntricos.

A filosofia andina, tal como outras filosofias indígenas


(nahua, maya, amazónica, bantú) questiona alguns dos pressupos-
tos do pensamento ocidental dominante e questiona, sobretudo, o
seu modelo de racionalidade enclausurado no etnocentrismo, no
224
androcentrismo e numa suposta pureza cultural.

O paradigma epistemológico eurocêntrico oprimiu e si-


lenciou todas as formas de conhecimento irredutíveis aos seus
princípios e propósitos epistemológicos e ocultou uma intercul-
turalidade que está na sua origem. Ao reprimir e silenciar outras
formas de conhecimento significa que essas outras formas de co-
nhecimento silenciadas, tal como os silenciados, eram contem-
porâneos de quem reprimiu e silenciou. O pensamento ocidental
não é, de modo algum, na sua génese, homogéneo e monocultu-
ral: o que se chama pensamento ocidental é o resultado da incor-
poração, ao longo da história, de elementos das culturas egípcia,
grega, romana, árabe, semita, hindú, anglosaxónica, etc. Deste
ponto de vista, a noção de “pensamento ocidental” é uma inven-
ção, uma construção histórica do próprio Ocidente. Ao longo do
seu desenvolvimento histórico, o “pensamento ocidental” escon-
deu esta “[...] interculturalidade intrínseca e suprimiu as corren-
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

tes e visões dissidentes” (ESTERMANN, 2008, p. 29), o que significa


que não há culturas puras, mas, quer na sua génese quer no seu
processo de desenvolvimento, todas elas são híbridas (CANCLINI,
2008), derivando daí processos complexos de mestiçagem, apesar
da distância diferencial entre elas (GRUZINSKI, 2007).

A desconstrução deste modelo de racionalidade só é pos-


sível por meio da abertura a uma filosofia intercultural, ou seja,
pelo diálogo com todas as formas de saber historicamente invisi-
bilizadas e menosprezadas. Uma desconstrução intercultural da
filosofia ocidental dominante, defende Estermann (2008, p. 26),
“[...] não se realiza sem um diálogo aberto com outras tradições”
e, no caso específico, com a tradição filosófica andina. Este pro-
cesso dialógico pode designar-se por “hermenêutica diatópica” ou
“interparadigmática” (ESTERMANN, 2008), no sentido que lhe é
atribuído por Panikar (1997 apud ESTERMANN, 2008, p. 26, grifo
do autor), “como compreensão da alteridade a partir do diálogo
intercultural entre os diversos topoi culturais”. Também Santos 225
(2004) se refere à hermenêutica diatópica nos seguintes termos:

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os


topoi de uma dada cultura por mais fortes que sejam, são tão in-
5

completos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incom-


pletude não é visível a partir do interior dessa cultura, uma vez que
a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O
objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a com-
pletude [...] mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência
de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola,
por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra. Nisto
reside o seu carácter diatópico. (SANTOS, 2004, p. 342).

5 “Os topoi são os lugares comuns retóricos mais abrangentes de determinada cultura. Fun-
cionam como premissas de argumentação que, por não se discutirem, dada a sua evidência,
tornam possível a produção e a troca de argumentos” (SANTOS, 2004, p. 341).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

O trabalho de construção e desconstrução apresenta-se


com alguma complexidade por diversas razões: num primeiro mo-
mento, a elaboração de uma filosofia andina não será possível sem
o recurso à própria língua e aos próprios conceitos (a castelhana e
ocidentais) que produziram a sua invisibilidade histórica. Dar voz
ao silêncio com os instrumentos teóricos dos silenciadores desvir-
tua a cultura que se pretende resgatar. Por outro lado, também não
será possível a desconstrução do pensamento ocidental dominante
sem um diálogo intercultural com tradições culturalmente distin-
tas, tal como a tradição cultural andina. Apesar de, atualmente, as
estratégias da globalização económica e cultural não serem favorá-
veis a um diálogo equitativo entre o pensamento ocidental e o pen-
samento andino, este diálogo, ainda que desigual, possibilitará que
cada uma das culturas tome consciência da sua incompletude, das
suas limitações e das suas potencialidades emancipatórias.

No que se refere à interculturalidade, Walsh (2012, p. 62)


226 afirma que pensar a Interculturalidade a partir do “contexto euro-
peu não é o mesmo que pensá-la na América do Sul, onde as aspi-
rações de dominação do mundo, o surgimento do mercado global
e a imposição de modernidade e seu outro lado oculto, a colonia-
lidade6, tomou forma prática e sentido.”

Para Walsh (2005, p. 09), autora que desenvolve importan-


tes trabalhos sobre a temática, “a interculturalidade é diferente
no que diz respeito a complexas relações, negociações e trocas
culturais, e procura desenvolver uma interação entre pessoas, co-
nhecimentos e práticas culturalmente diferentes.” Sua perspecti-
va intercultural “não pode ser reduzida a uma simples mistura,
ou fusão, combinação híbrida de elementos, tradições, caracte-

6 O conceito de colonialidade pertence a A. Quijano (2005) e é definido por ele como a face
oculta e perversa da modernidade que invade todos os domínios: poder, mentes, conheci-
mento, género, ser, sexualidade, economia. Não se identifica com a colonização, mas é uma
consequência dela.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

rísticas ou práticas culturalmente diferentes.” (Id. Ibid.). Acredi-


ta, ainda, que é incontestável compreender a interculturalidade
em suas diversas dimensões e sugere uma importante discussão e
análise profunda da atual realidade das sociedades e, sem esgotar
o objeto, busca resumir, de forma concreta, o que se entende por
interculturalidade (WALSH, 2005, p. 10-11):

• Um processo dinâmico e permanente de relação, comu-


nicação e aprendizagem entre culturas em condições de
respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade;

• Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhe-


cimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes,
buscando desenvolver um novo sentido entre elas na
sua diferença;

• m espaço de negociação e de tradução onde as desi-


U
gualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações
227
e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos
ocultos e sim reconhecidos e confrontados.

• ma tarefa social e política que interpela o conjun-


U
to da sociedade, que parte de práticas e ações sociais
concretas e conscientes e tenta criar modos de respon-
sabilidade e solidariedade.

• Uma meta a alcançar7.

7 • Un intercambio que se construye entre personas, conocimientos, saberes y prácticas cul-


turalmente distintas, buscando desarrollar un nuevo sentido de convivencia de éstas en su
diferencia.
• Un espacio de negociación y de traducción donde las desigualdades sociales, económicas y
políticas, y las relaciones y los conflictos de poder de la sociedad no son mantenidos ocultos
sino reconocidos y confrontados.
• Una tarea social y política que interpela al conjunto de la sociedad, que parte de prácticas
y acciones sociales concretas y conscientes e intenta crear modos de responsabilidad y so-
lidaridad.
• Una meta por alcanzar (WALSH, 2005, pp. 10-11).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A filosofia andina, na sua vocação holística e dialógica,


contrariamente à filosofia ocidental, parte de uma concepção
não-dualista da realidade. Os princípios da relacionalidade, da
complementaridade, da correspondência e da reciprocidade es-
tão na base de todo o pensamento andino. Assim, não existe cisão
entre o divino e o humano, entre o vivo e o inerte, entre o céu e a
terra ou entre o religioso e o profano. Há uma complementarida-
de essencial entre tudo o que existe, nada pode ser separado da
totalidade e este holismo constitui um princípio de vida: “[...] não
há vida de uma forma isolada, mas apenas por meio de uma rede
de relações complementares” (ESTERMANN, 2008, p. 32). Uma
das críticas do pensamento andino ao pensamento ocidental é ao
seu histórico androcentrismo. O pensamento ocidental é, na sua
origem, evolução e construção, um pensamento masculino e ao
serviço da masculinidade, responsável, afinal, pela subordinação
da mulher e pela sua exclusão da vida social ao longo da história.
Pelo contrário, os grandes princípios em que assenta o pensamen-
to andino supõem outra racionalidade: “Os princípios transversais
228 e paradigmáticos de relacionalidade, integralidade e ciclicidade
parecem adequar-se mais a uma forma de vida e a um modo de
estar no mundo feminino do que masculino” (ESTERMANN, 2008,
p. 32). Por outro lado, a filosofia andina supera a visão biológica da
sexualidade tal como uma perspectiva redutível ao género para a
ampliar a uma sexualidade cósmica, o que implica que

[...] todos os fenómenos obedecem ao princípio de uma


complementaridade entre o feminino e o masculino e a vida só
se reproduz como resultado desta complementaridade sexuada
e destruir-se-ia se desaparecesse um desses complementos (ES-
TERMANN, 2008, p. 33).

Neste sentido, o paradigma andino é uma interpelação


aos fundamentos do pensamento ocidental e um convite à reco-
locação e desconstrução dos seus fundamentos ideológicos. Tal
desconstrução deverá realizar-se a diversos níveis:
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

Em primeiro lugar, a partir de uma hermenêutica diatópi-


ca e em diálogo com a filosofia andina, é necessário desconstruir
todos os dualismos do pensamento ocidental que contribuíram
para uma visão de dominação do homem em relação à natureza
e, consequentemente, à depradação dos recursos naturais. Em se-
gundo lugar, há que submeter a uma crítica intercultural e de gé-
nero a visão analítica que predomina na racionalidade ocidental
que, embora tenha contribuído para o desenvolvimento científico
e tecnológico, sacrificou a visão integral, holística e relacional da
vida e do mundo. A racionalidade analítica do pensamento oci-
dental, eurocêntrica e etnocêntrica, pode ser complementada por
uma visão sintética e inclusiva das tradições não- ocidentais. Em
terceiro lugar, a concepção androcêntrica da linearidade, progres-
sividade e irreversibilidade do tempo pode ser complementada por
uma visão cíclica, ondulatória e de periodicidade do tempo. A visão
fragmentária e economicista do tempo (tempo é dinheiro), existen-
te na cultura ocidental, contribui para a divisão do trabalho entre
homem e mulher, para a separação entre esfera pública e privada 229
e para o esquecimento da dimensão qualitativa e histórica do tem-
po. Finalmente, é necessário desconstruir os pressupostos éticos da
filosofia ocidental como marcadamente androcêntricos e antropo-
cêntricos. O conceito de virtude é um conceito masculino, viril e
não feminino. Falar em virtudes femininas é cair em contradição,
se tomarmos a origem etimológica do conceito de virtude (vir - diz
respeito ao homem, virilidade). Nesta perspectiva, os conceitos da
filosofia andina, como a solidariedade, a compaixão, a sensibilida-
de, o cuidado e a corresponsabilidade, sem grande impacto na éti-
ca ocidental, podem contribuir para a construção de uma ética da
libertação, não dualista, cosmocêntrica, que privilegia o cuidado
pela ordem cósmica, a preservação da vida e a reciprocidade como
fundamento da solidariedade (ESTERMANN, 2008). Um diálogo en-
tre culturas diferentes não diminui nenhuma das culturas em diá-
logo, pelo contrário, permite reconhecer cada uma delas como uma
entre muitas culturas e não como “a cultura”;
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

[...] num diálogo entre diferentes, o outro se vê inter-


pelado na sua pretensão universalista ou imperialista e o uno
converte-se em “outro” perante o olhar do “outro”. Trata-se de
uma dialética que inclui a crítica e a constituição e que consti-
tui uma verdadeira “desconstrução analética” no pleno sentido
de uma filosofia da libertação (ESTERMANN, 2013a).

As culturas, ao longo da história, sempre tiveram conta-


tos entre si, gerando fenómenos de hibridação8 intercultural. Como
assinala Canclini (2008), já não basta dizer que não há identidades
que se caracterizam por essências estáveis e a-históricas, nem en-
tendê-las como as formas em que as comunidades se imaginam e
constroem narrativas sobre as suas origens e histórias. Num mun-
do tão fluidamente interconectado, as sedimentações identitárias
organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis, se re-
estruturam dando lugar a conjuntos interétnicos, transclassistas e
transnacionais. O fenômeno das migrações, crescente no mundo
230 inteiro, para além de gerar múltiplos problemas sociais e humani-
tários, constitui um enorme desafio no que diz respeito à reconfigu-
ração social decorrente da “inclusão” de povos e culturas diferentes.
Uma sociedade multicultural não significa que seja intercultural.

Os grandes princípios que sustentam o pensamento oci-


dental dominante são incompatíveis com os princípios do pensa-
mento andino, o que não significa a impossibilidade do diálogo
entre culturas e tradições diferentes. No pensamento ocidental
existe também uma tradição cultural que foi invisibilizada, subal-
ternizada pelo pensamento dominante e que é mais compatível
com o pensamento andino. O diálogo intercultural pode permitir

8 De acordo com Canclini (2008, p. XIX) hibridação é “um conjunto de processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam
para gerar novas estruturas, objetos e práticas.” Considera o autor que as estruturas deno-
minadas discretas foram, elas próprias, o resultado de hibridações e, por isso, não poderão
ser consideradas fontes puras. Canclini parte do pressuposto de que, em nenhum momento
histórico, existiram culturas puras.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

que o Ocidente se redescubra nos aspetos que ele próprio supri-


miu (ESTERMANN, 2013a). Esse diálogo pode constituir uma es-
pécie de terapia contra a cegueira histórica em relação a outras
propostas epistemológicas tão válidas como a ocidental. A recusa
de outras propostas filosóficas, da alteridade, nomeadamente da
filosofia andina, não permite que a tradição filosófica ocidental
se autorrevele como contextual, monocultural e etnocêntrica. A
declaração da não existência da alteridade acaba por ser produ-
zida sob a forma de uma inferioridade insuperável, dado que se
apresenta como inevitavelmente natural: quem é inferior nunca
poderá apresentar-se como alternativa a quem é superior, dado
que a superioridade e a inferioridade são inerentes à própria con-
dição. É a sua condição ontológica e existencial.

A alteridade andina, de acordo com Estermann (2008, p.


37-38), “[...] acaba por revelar o rosto etnocêntrico da filosofia oci-
dental por meio de uma hermenêutica diatópica, de um diálogo
intercultural aberto e simétrico”. Entender a cultura do outro sig- 231
nifica ser capaz de a traduzir porque “[...] toda a aprendizagem da
cultura alheia é um esforço constante de tradução” (ROWLAND,
1987, p. 16, apud CORTESÃO; STOER, 2003, p. 36). No entanto, a
tradução de outra cultura supõe a compreensão da sua raciona-
lidade e da sua lógica sem enclausuramentos numa racionalida-
de eurocêntrica. Como afirma Heinz Neuser (2008, p. 28), “[...] a
opressão cultural reflete-se nos princípios da racionalidade euro-
peia utilizados como mecanismos de domínio, tal como na cons-
ciência de superioridade da sua própria cultura”. Todavia, não há
uma racionalidade, mas racionalidades, não há uma única lógica,
mas diversas lógicas que se construíram a partir de processos his-
tóricos, modos de existência e realidades geopolíticas diferentes
e que conferem sentido à existência concreta dos povos. Há, por
isso, para além da racionalidade ocidental, de raiz grega e ilumi-
nista, racionalidades oprimidas, racionalidades periféricas, fron-
teiriças, mestiças, femininas, indígenas, homossexuais e outras.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Há, afinal, de acordo com a perspectiva de Mignolo (2003) uma di-


ferença colonial, produzida pelo próprio colonialismo, promotora
de racionalidades emergentes.

O pensamento andino revela, ainda, que sob a ortodoxia


do pensamento dominante existem propostas heterodoxas que
vão ao encontro das propostas de visão do mundo e da vida defen-
didas pela filosofia andina: o hilozoismo ou pampsiquismo (Ha-
eckel), o simbolismo cósmico (Pitágoras), o organicismo (Nagel),
a relacionalidade cósmica (Leibniz), a coincidência entre opostos
(Nicolau de Cusa), etc. A pluridiversidade cultural existente no
mundo, desde as culturas indígena e afrodescendente até a diver-
sidade cultural existente na Ásia Ocidental9 , todas elas oprimidas
e invisibilizadas pelo pensamento ocidental, revelam outros mo-
delos de racionalidade diferentes do modelo logocêntrico da filo-
sofia ocidental. Para outras culturas não ocidentais, as oposições
não são posições contraditórias que se excluem, mas polaridades
232 complementares: símbolo, razão, sentimentos, intuições, analo-
gias não são formas de expressão que se excluam umas às outras,
mas formas complemantares de expressão do ser humano na sua
relação com os outros, com a natureza e com o cosmos. A obsessão
pelas classificações, hierarquias e conceitualizações, própria do
pensamento ocidental, é uma forma de domínio poderoso sobre a
diversidade caótica que constitui a própria “ordem” cósmica. Re-
duzir a riqueza da vida e do mundo a um conjunto de conceitos é
uma forma de domesticar e até de aniquilar tudo o que é irredutí-
vel a uma linguagem conceitual.

9 Utilizamos a expressão Ásia Ocidental porque adotamos a perspectiva de E. Said (2012) de


que o conceito de Oriente é uma construção do Ocidente e não corresponde, geograficamen-
te, à realidade. Na mesma perspectiva se posiciona Josef Estermann (2013b) ao estabelecer
uma crítica ao conceito de Próximo Oriente como um conceito colonial e sugerindo, precisa-
mente, o conceito de Ásia Ocidental.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

Do ponto de vista epistemológico, a filosofia andina põe


em causa o reducionismo da epistemologia ocidental que pretende
atingir a verdade absoluta por meio da sensação e da razão. A con-
cepção cientificista de verdade, o seu dogmatismo que se afirmou
historicamente, fazendo da verdade científica uma verdade a-his-
tórica, descontextualizada, neutra e desideologizada, excluiu todas
as fontes alternativas de conhecimento, tal como a filosofia, a ética,
a intuição, os sentimentos, as celebrações ritualísticas e as repre-
sentações artísticas, literárias, musicais e outras. A filosofia andina

[...] insiste numa epistemologia integral que transcen-


de o género humano como sujeito cognoscente. O conhecimen-
to é uma qualidade de todos os entes, sejam humanos ou não-
humanos, animados ou inertes e atinge-se por muitas vias tal
como o ritual, a celebração, a representação simbólica e a união
mística (ESTERMANN, 2008, p. 40).

Todas as relações estabelecidas entre os diversas esferas 233


da realidade e entre os seres são uma forma de religiosidade: a se-
paração entre o âmbito secular e o espaço religioso, característica
do pensamento ocidental, corresponde a uma forma de exclusão e
colide com o princípio holístico do pensamento andino. O traba-
lho agrícola, por exemplo, tem uma dimensão religiosa: “[...] tra-
balhar a terra é uma forma de oração” (ESTERMANN, 2008, p. 192).

A filosofia andina não é uma filosofia de ideias, ruminante,


mas um pensamento que se constrói a partir da assistematicidade
da vida e do contato direto com a realidade multifacetada, vivida e
pensada por mulheres e homens que vivem nos Andes em comu-
nhão com a natureza (Pachamama) e com todas as esferas do univer-
so. A amplitude do conceito de Qama exprime a convivência do ser
humano e da comunidade com a natureza, o relacionamento do ser
humano individual e coletivo com outros seres humanos e com o
seu próprio corpo. Manifesta, ainda, o respeito pelas culturas, cos-
tumes, tradições e formas de trabalho. A vivência em Qama (Qamiri)
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

manifesta o equilíbrio dos seres humanos com todos os seres da na-


tureza. Na relação com a Pachamama, a reciprocidade é uma con-
dição imprescindível de manutenção da vida e de sobrevivência.
A segurança social funciona baseada no princípio de reciprocida-
de, princípio fundamental de coesão familiar e social e, ao mesmo
tempo, garantia de conservação da justiça universal. Deste ponto de
vista, o princípio da reciprocidade tem implicações éticas, dado que
cada ato humano afeta toda a rede de relações e o grau de responsa-
bilidade é mais elevado do que o da liberdade. Um comportamento
não-recíproco causa distúrbios na ordem social, natural e cósmica,
o que colide com a dimensão ética do pensamento ocidental base-
ada no altruísmo, na responsabilidade individual e na autonomia
do indivíduo. De acordo com Estermann, “[...] a concepção holista
do pensamento andino pressupõe uma grande quantidade de rela-
ções entre as diferentes esferas e os distintos níveis” (ESTERMANN,
2008, p. 188). As rupturas estabelecidas pelo pensamento ocidental
entre o divino e o humano, entre o transcendente e o imanente são
234 incompatíveis com o princípio holista e com a correspondência es-
sencial entre todas as esferas do universo. A concepção andina de
Deus nega muitos dos atributos teológicos do pensamento ociden-
tal, tais como a autossuficiência, a absolutização, a transcendência,
a impassibilidade. Deus é parte do sistema de relações cósmicas
e está sujeito à lógica da reciprocidade e complementaridade, ou
seja, Deus sofre, sente pena, está triste e sente cólera, é afetado pe-
las dores e injustiças que acontecem no mundo. Não é, por isso,
uma substância transcendente e imperturbável, superior a todos
os acontecimentos que se desenrolam no universo, mas um ser que
participa ativamente nas atividades humanas e, por isso, precisa
das contrapartidas humanas para ser completo e integral. Não é au-
tossuficiente, mas depende da relacionalidade múltipla do universo
(ESTERMANN, 2008).

Neste sentido e considerando que todo o pensamento se


caracteriza pela incompletude, a filosofia andina constitui uma
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

verdadeira interpelação ao pensamento ocidental que se enclausu-


rou em si próprio, na sua sistematicidade e na sua visão reduto-
ra e dualista do mundo e da vida. É necessário que o pensamento
ocidental realize uma abertura às alteridades filosóficas e que se
deixe inspirar pel interpelação dessas alteridades. Esta abertura à
interpelação “[...] é um verdadeiro processo de ‘inter-transcultura-
lidade’, um processo histórico e dinâmico de diálogo vivo entre cul-
turas, paradigmas e cosmovisões” (ESTERMANN, 2008, p. 284). Se o
pensamento ocidental pretende afirmar-se como um pensamento
emancipatório deverá percorrer o caminho da denúncia em relação
à legitimação histórica da exploração dos povos; deverá abrir-se ao
diálogo intercultural no sentido de superar a sua própria pobreza
perante a riqueza multicultural e a multiplicidade de vozes existen-
tes no mundo. Esta interculturalidade deverá ser crítica tendo em
vista a superação da concepção “culturalista” ocidental e das ideo-
logias que lhe estão subjacentes e que determinaram a hegemonia,
incluindo todo o seu capital simbólico, de um modelo sobre outros.
235

Colonialismo, descolonização e colonialidade


Do ponto de vista teórico, poderíamos afirmar que o
nosso mundo é um mundo descolonizado. Em meados do século
XVIII mais de metade do território americano era juridicamente
constituído por colónias sob o domínio europeu, particularmente
da Grã-Bretanha, Espanha, França e Portugal. A parte restante do
território encontrava-se fora do sistema interestatal da economia-
-mundo capitalista (WALLERSTEIN, 2010). A colonização, nas suas
diferentes e múltiplas dimensões,

[...] foi uma tentativa, por parte da Europa e, pos-


teriormente, do Ocidente, de exercer a sua influência e o seu
domínio sobre a maior parte do mundo [...]. A colonização é
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

a realização violenta e canibalística do cogito racionalista no


sentido do “conquisto, logo sou” (ESTERMANN, 2013a).

Em meados do século XIX, estas colónias converteram-se


em estados independentes sob a égide das populações europeias,
excluindo dos direitos de cidadania as populações ameríndias, de
ascendência africana e povos indígenas. O processo de “descolo-
nização” começa, assim, por ser um processo brutal de neocoloni-
zação dando origem aos colonialismos internos.

A segunda fase da “descolonização” desenvolve-se ao longo


do século XX, particularmente no período pós-segunda guerra mun-
dial, pela persistência das lutas travadas pelos movimentos de liber-
tação ou por determinações da ONU. No entanto, do ponto de vista
da realidade atual dos países “descolonizados”, a colonização persiste
sob múltiplas formas. Estermann (2013a) refere a este propósito:

236 Apesar de uma longa história de “des-colonização”


política, económica e cultural em grande parte do Sul global, o
carácter colonial das sociedades anteriormente colonizadas por
potências europeias e norteamericanas, não diminuiu substan-
cialmente. O que mudou foram as formas e as estratégias da “co-
lonização” ou “neocolonização”. Em vez de uma opressão política
ou militar crua, a colonização “pós-moderna” serve-se dos me-
canismos do mercado, das ferramentas da telecomunicação e de
estandartes ainda muito eurocêntricos da educação e produção
cultural. As universidades continuam a impor os seus critérios
baseados numa perspectiva ocidental, em que as epistemologias
dominantes continuam a refletir os interesses dos dominadores.

O conceito de colonialidade, de Anibal Quijano (2009, p.


73), representa “[...] a parte invisível e constitutiva da modernida-
de […] é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão
mundial do poder capitalista”. Este conceito de colonialidade, con-
ceito mais profundo e duradouro do que o de colonialismo, embora
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

engendrado dentro deste último, está ligado, primordialmente, ao


poder político e económico, estende-se ao próprio conhecimento
como imposição e resultado das consciências colonizadas, das rela-
ções intersubjetivas de dominação, abarcando, ainda, a relação dos
seres humanos com a natureza, consigo próprios e com os outros,
as noções de corpo, género e sexualidade. Uma colonialidade epis-
temológica, sem dúvida, mas que se estende ao domínio ontológico
porque desvaloriza os outros seres não humanos, os humanos não
ocidentais e todos os que não são brancos. O fim do colonialismo
político como forma de dominação que envolve a negação da in-
dependência dos povos subjugados não significou o fim da domi-
nação, da exclusão e das relações profundamente desiguais entre
grupos sociais. O colonialismo do poder continua sob a forma de
colonialidade. A matriz colonial do poder é, assim, como afirma
Mignolo (2010, p. 12), “[...] uma estrutura complexa de níveis que se
entrelaçam”. Efetivamente, se o conhecimento é um instrumento
imperial de colonização, uma das tarefas urgentes que teremos, é a
de descolonizar o conhecimento (QUIJANO, 1994; MIGNOLO, 2010). 237
Descolonizar o conhecimento supõe, do nosso ponto de vista, des-
colonizar a lógica e o modelo de racionalidade totalizante, exclu-
dente, em função dos quais pensamos, em suma, descolonizar o
imaginário, reprogramar o pensamento, despensar, no sentido de
“[...] desmantelar a matriz colonial do poder” (MIGNOLO, 2010,
p.12), aliado ao reconhecimento de outros lugares de enunciação,
com manifestações culturais e epistemológicas próprias. Descolo-
nizar significa dar visibilidade aos povos silenciados e oprimidos
pelo colonialismo, capitalismo e neocolonialismo e para isso não
basta o simbolismo das leis. Dar visibilidade significa que o pro-
jeto político intercultural deve viabilizar a participação equitativa
no poder e assumir-se também como um projeto económico, re-
distribuindo a riqueza, e reparar as injustiças provocadas por uma
ordem global injusta. (ESTERMANN, 2013a).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Descolonizar significa, ainda, “[...] superar uma visão da


vida humana que não dependa da imposição de um ideal de so-
ciedade àqueles que são diferentes, como aconteceu com a moder-
nidade/colonialidade” (MIGNOLO, 2010, p. 32), superar, também, a
ideia de raça como forma de segmentação, discriminação e domi-
nação social. Todavia, este processo de descolonização afigura-se
na atualidade como uma tarefa gigantesca e uma luta difícil e sem
tréguas. O capitalismo global, com todos os mecanismos de que dis-
põe, é mais do que um modo de produção. É um regime cultural e
civilizacional que amplia os seus tentáculos a todos os domínios,

[...] da família à religião, da gestão do tempo à capa-


cidade de concentração, da concepção de tempo livre às relações
com os que nos estão mais próximos, da avaliação do mérito
científico à avaliação moral dos comportamentos que nos afe-
tam (SANTOS, 2009, p. 11).

238 A luta contra uma forma de dominação que é cada vez


mais pluridimensional e multifacetada significa, perversamente,
“[...] lutar contra a indefinição entre quem domina e quem é domi-
nado, e, muitas vezes, lutar contra nós próprios” (SANTOS, 2010, p.
12), dado que a “[...] ‘mentalidade colonizada’ não é simplesmente
um produto do sujeito opressor, mas também uma apropriação
epistémica por parte do sujeito oprimido – o/a oprimido/a assu-
me a sua própria opressão” (ESTERMANN, 2013a) e, por sua vez,
condiciona a sua vida e as suas representações em função dessa
opressão. As formas múltiplas e sofisticadas de dominação neoco-
lonial têm-se ampliado a todas as esferas e lugares do planeta; a
luta contra os resíduos do colonialismo e contra as estratégias am-
plificadoras de neocolonização implicará uma aliança global dos
povos subalternizados e invisibilizados e das respetivas epistemo-
logias no sentido de assumirem a sua própria condição colonial:
os povos indígenas, as mulheres, os afrodescendentes e todos os
indignados do mundo, sejam do Norte ou do Sul.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

Nos países outrora chamados de terceiro mundo, hoje


apelidados países emergentes e ou países semiperiféricos, surgem
experiências inovadoras, de caráter contra-hegemônico, cujos pro-
jetos de educação se situam numa perspectiva de equidade e justi-
ça sociais. Os movimentos contra-hegemônicos têm contra si um
conjunto amplo de estruturas de dominação de longa duração (RI-
VERA, 2010) de herança colonial e neocolonial, que se perpetuam
e, no âmbito das quais, se legitimam e reproduzem relações de do-
minação, subordinação e hierárquicas, próprias do colonialismo.

Neste sentido, os desafios que se colocam, tendo em vis-


ta um verdadeiro processo de descolonização ou de decoloniali-
dade, como preferimos, passam pelo sistema jurídico, político e,
imprescindivelmente, pela educação. Estermann (2013a) afirma:

[…] parece-me que há que superar um simples redu-


cionismo idealista ou marxista, no sentido de que a mudança
na matriz económica e política conduziria automaticamente à 239
mudança das estruturas mentais e epistémicas, ou ao contrário.
Creio que a relação é muito mais dialética. Há que afrontar,
ao mesmo tempo, a descolonização das almas, das mentes, dos
conceitos (educação), e a descolonização de estruturas políticas,
económicas e culturais. Na Educação, o desafio é duplo: por um
lado, uma desconstrução descolonizadora dos programas de
estudo, materiais educativos, currículo, modelos académicos,
metodologias de aprendizagem e ensino.

Para todos os sujeitos colonizados, oprimidos e invisibili-


zados, o processo de decolonialidade implica, em primeiro lugar,
a recuperação da alteridade esquecida pelo colonialismo que aca-
bou por mutilar a sua própria dignidade humana mas também
a do colonizador. Recuperando a visão freiriana, a libertação do
oprimido contribui para a libertação do opressor e, neste sentido,
as alteridades epistemológicas contribuem para a desalienação
da epistemologia dominante, base teórica de todo o processo de
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

dominação. Em segundo lugar, mas não menos importante, o pro-


cesso de decolonialidade implica uma

[...] desconstrução epistemológica por parte da filo-


sofia, das ciências sociais e da teologia, mas ao mesmo tempo
é imprescindível a existência de uma vontade política que pos-
sa pôr em prática estas epistemologias alternativas. Creio que
o Equador e a Bolívia são laboratórios que antecipam alguma
coisa do que possivelmente poderá acontecer noutros contextos
(ESTERMANN, 2013a).

Parece, pois, que a procura de um modelo contra-hegemó-


nico surgirá de alternativas que se encontram não no centro, mas
nas periferias e nos contextos de alteridades invisibilizadas, silen-
ciadas e suprimidas. Neste sentido, o pensamento latinoamericano
possui enormes potencialidades enquanto pensamento promotor
do diálogo entre os povos e suas culturas e da libertação humana.
240
Sugerimos o conceito de interculturalidade crítica na
perspectiva de Catherine Walsh (2005) como aliado imprescindí-
vel do processo de decolonialidade. A interculturalidade crítica,
que opõe à interculturalidade relacional e funcional, procura de-
senvolver uma interação entre pessoas, conhecimentos e práticas
culturalmente diferentes. A vantagem do conceito de intercultu-
ralidade é que a sua origem não está nos meios académicos, mas
nas comunidades indígenas e na diferença colonial (MIGNOLO,
2003) que o tomam como um princípio ideológico transformador
da realidade social e comunicacional. Por não ter a sua origem
nos centros geopolíticos de produção do conhecimento – o mundo
académico - não está impregnado e contaminado por uma visão
eurocêntrica nem por princípios que o norte global, tradicional-
mente, impõe ao Sul. É, por isso, pensamos, um conceito subversi-
vo, resistente e insurgente. Consideramos que sem os pressupostos
assinalados não haverá qualquer possibilidade de decolonialidade
do poder e do saber e de um diálogo inter-epistémico.
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

Defendemos, por isso, que uma nova filosofia, um novo


pensamento emancipatório deve ser intercultural e decolonial, não
prisioneiro de um monolitismo cultural e epistemológico que carac-
terizou o pensamento ocidental dominante.

Notas inconclusivas
O texto que acabamos de escrever pretende ser uma pri-
meira abordagem ao pensamento andino a partir dos seus prin-
cípios epistemológicos, ontológicos e éticos que constituem uma
verdadeira interpelação ao pensamento ocidental, sobretudo o eu-
ropeu, ainda dominante na América Latina.

As reflexões inacabadas permitem-nos extrair alguns in-


dicadores que podem e devem ampliar as discussões sobre a di-
versidade epistemológica por descobrir que existe neste nosso 241
mundo e que representa, sem dúvida, uma interpelação ao pensa-
mento, ainda dominante, de matriz eurocêntrica e ocidentocêntri-
ca. O pensamento neoliberal globalizado que domina as socieda-
des contemporâneas reduz a totalidade da vida e todas as esferas
da sociedade à dimensão económica. Esta redutibilidade signifi-
ca a perda de uma visão holística do ser humano numa relação
de reciprocidade com os outros, com a natureza e com o cosmos;
significa, também, a desvalorização da espiritualidade humana e
dos valores que sempre devem organizar a existência humana nas
suas múltiplas relações, quer com os outros quer com o mundo
e todos os seres que dele fazem parte. A figura do “viver bem”,
proposta pela filosofia andina, distancia-se, precisamente, de uma
visão e interpretação meramente economicistas da sociedade, do
ser humano e das relações com os outros. Viver bem implica que
o ser humano estabeleça uma relação saudável com a natureza e
com todos os seres que dela fazem parte, tomando o cuidado como
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

pressuposto ético; implica uma visão holística do ser humano e


do mundo e não uma visão fragmentária e dualista. Do ponto de
vista das relações sociais, o princípio da reciprocidade constitui o
fundamento da coesão e do equilíbrio sociais. Os desafios que se
colocam a todos os que não desistem de pensar e que se indignam
pelas injustiças existentes no mundo contemporâneo, são os de
continuar a pugnar pela abertura de caminhos de justiça por onde
todos os seres humanos, especialmente aqueles que foram e são
oprimidos, quer no Norte quer no Sul, possam afirmar a sua dig-
nidade. A razão que explica e compreende é a mesma que liberta,
oprime, oculta e subalterniza. Neste sentido, cremos que o debate
sobre os direitos de todos ao exercício da cidadania, ao direito a
ser, no âmbito de outras visões antropológicas, epistemológicas e
éticas é uma exigência intelectual no sentido de que a razão cum-
pra o seu papel emancipatório.

242
CAPÍTULO 10: “DECOLONIALIDADE E EMANCIPAÇÃO: O CARÁTER INTERPELATIVO
E DIALÓGICO DO PENSAMENTO ANDINO

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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Posições decolonizantes
no pensamento filosófico-
educacional no Brasil

ANTÔNIO JOAQUIM SEVERINO 1


NATATCHA PRISCILL A ROMÃO 2

Introdução

A
246 visão tradicional do filosofar como modalidade de pensar
sob a perspectiva da universalidade, que sempre predo-
minou em nossos meios acadêmicos em decorrência de
nossa vinculação cultural ao mundo europeu, vem sendo ques-
tionada por muitos pensadores, particularmente por pensadores
latino-americanos, africanos e asiáticos, que se conscientizam do
eurocentrismo dessa proposta filosófica e questionam sua univer-
salidade e hegemonia. (GUHA,1983; MIGNOLO, 2003, 2007; SAID

1 Professor titular, aposentado, de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da Uni-


versidade de São Paulo (USP). Licenciou-se em Filosofia na Universidade Católica de Louvain
(Bélgica). Apresentou seu doutorado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PU-
CSP), defendendo tese sobre o personalismo de Emmamuel Mounier. Prestou concurso de
Livre Docência em Filosofia da Educação, na Universidade de São Paulo (USP). Atualmente
integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uninove, Univer-
sidade Nove de Julho, de São Paulo, atuando como orientador e pesquisador no Grupo de
Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação - GRUPEFE.
2 Graduada em Psicologia. Especialista em Saúde Mental Infanto-Juvenil pelo Centro de Pós-
-Graduação da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro (CESANTA). Mestre em Psico-
logia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Juiz de
Fora (PPGPUFJF). Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Nove de Julho (UNINOVE), de São Paulo.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

1995; 2003; QUIJANO, 1991,1998,2007; GARCIA-CANCLINI, 1997;


FORNET-BETANCOURT, 2004; DUSSEL, 2002; CORONIL, 200 ; WAL-
SH, 2007 ; MALDONADO-TORRES, 2007; LANDER, 2005 ; FANON,
2008, 2010; SOUZA, 2010) Eles vem defendendo que ela é antes um
paradigma vinculado à logosfera euro-ocidental que se tornou he-
gemônica e se impôs globalmente a todas as outras culturas, por
motivos que não exclusivamente filosóficos. Na percepção desses
pensadores, esse processo de universalização do paradigma filo-
sófico euro-ocidental não se constituiu a custo apenas do desco-
nhecimento de outros possíveis modos de pensar, mas sobretudo
de sua repressão, praticando-se o que se convencionou designar,
sob a inspiração direta de Boaventura Souza Santos, um verdadei-
ro epistemicídio. O colonizador, ao conquistar e dominar os po-
vos não-europeus e suas culturas, não praticou apenas genocídios
físicos e dominação econômica, mas também epistemicídios, su-
focando expressões de conhecimento próprias e originais dessas
outras culturas. (SANTOS, 2004, p.8-9).
247
O modo como uma determinada sociedade entende e aplica
o conhecimento tem repercussão profundamente marcante na edu-
cação que pratica, uma vez que, dada sua natureza eminentemente
simbólica, ela tem como seus instrumentos fundamentais os con-
ceitos e os valores. Por isso mesmo, a filosofia da educação atual na
América Latina precisa ter bem presente e levar em consideração es-
tas transformações que estão acontecendo em nosso contexto.

Desse modo, o objetivo deste ensaio é destacar algumas


contribuições de pensadores que desenvolvem essa reflexão no
contexto brasileiro, participando então desse movimento de de-
bate e de crítica. Entre esses pensadores vamos destacar Paulo
Freire, José Eustáquio Romão, Manoel Tavares, Fernanda Frizzo
Bragato e Luciana Ballestrin apresentando, de forma sintética,
suas contribuições teóricas a esse movimento de crítica e de reno-
vação epistemológica.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Para melhor contextuar esta proposta, num primeiro mo-


mento, far-se-á uma breve nota sobre como vem se posicionando
esta tendência no âmbito da cultura latino-americana, posicio-
namento que tem tido papel germinal para o pensamento críti-
co brasileiro. Na sequência serão apresentadas as contribuições
dos pensadores brasileiros. O ensaio se concluirá com algumas
reflexões sobre as implicações dessa postura epistemológica para
a constituição da Filosofia da Educação.

Nota prévia sobre o pensamento decolonial na


America Latina
Este movimento de crítica à hegemonia da epistemologia
europeia se coloca como esforço para mobilizar uma logosfera mais
intensa e diretamente vinculada ao contexto sociocultural latino-
248
-americano. Em nosso continente são reconhecidas algumas lide-
ranças intelectuais, pensadores como Walter Mignolo, Anibal Qui-
jano, Enrique Dussell, Catherine Walsh, Fernando Coronil, Nelson
Maldonado-Torres, Josef Estermann, Leopoldo Zea, Arturo Roig,
Salazar Bondy, Rodolfo Kusch entre outros. Cabe assinalar que
este movimento conta com a contribuição também de pensadores
europeus e norteamericanos, que se dedicaram à análise teórica
dessa questão, tornando-se sensíveis a essa causa. Assim, além de
Boaventura Souza Santos, é o caso dos norteamericanos C-atherine
Walsh e Immanuel Wallerstein, do austríaco Joseph Eastermann.

No final da década de 1990, uniram-se formando o Gru-


po conhecido como Modernidade/Colonialidade (M/C)3, O mo-

3 Ao longo do texto sempre que houver referência ao Grupo Modernidade/Colonialidade será


utilizada a sigla M/C, pois essa conotação é usada de maneira recorrente por autores estudio-
sos da área.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

vimento, de cunho epistemológico, desencadeado pelo referido


grupo, promoveu um debate crítico, buscando renovar os alicer-
ces que sustentavam as Ciências Sociais. Sua principal bandeira
estava ancorada na opção pela “decolonialidade”4 --- epistêmica,
teórica e política --- como instrumento capaz de colaborar para
uma compreensão da realidade sócio-cultural e atuação nela,
com vistas a questionar e superar a permanência dos contornos
de colonialidade global em todos os níveis da vida pessoal e coleti-
va. Esse grupo teve sua gênese a partir do rompimento com outro
grupo de reflexão epistemológica, Estudos Subalternos Latino-a-
mericanos e também em função do compartilhamento de alguns
conceitos centrais criados pelos principais expoentes formadores
do Grupo M/C. O objetivo principal defendido pela proposta de
reflexão epistemológica do Grupo M/C era identificar e superar
os marcos da colonialidade instaurada nos campos do poder, do
saber e do ser.

A compreensão do sentido da colonialidade requer o en- 249


tendimento de mecanismos que se inscrevem na lógica histórica
da dominação econômica, política e cultural, perpetuando-se ao
longo de todo o processo reconhecido como pós-colonial. Quando
se pensa no termo “pós-colonialismo”, é preciso fazer uma distin-
ção entre as possíveis conotações que esse termo adquire. Histo-
ricamente, o “pós-colonial” demarca o período configurado pelo
processo de descolonização do chamado “terceiro mundo” por
volta da metade do século XX. Período entendido como perda da
hegemonia colonial evocando a independência, a libertação e a
emancipação política e econômica das sociedades exploradas pelo
imperialismo europeu, especialmente nos continentes asiático e
africano. O outro emprego do termo, segundo Ballestrin (2013), “...
se refere a um conjunto de contribuições teóricas oriundas prin-

4 Este termo será desenvolvido mais adiante, no entanto, cabe ressaltar que, incialmente, foi
cunhado por Walter Mignolo como “descolonialidade”, adquirindo esta nova ortografia a par-
tir da contribuição de Catherine Walsh para o Grupo Modernidade/Colonialidade.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cipalmente dos estudos literários e culturais, que a partir de 1980


ganharam evidência em algumas universidades dos Estados Uni-
dos e da Inglaterra” (p. 90).

Nesse sentido, o argumento do “pós-colonialismo” reves-


te-se da premissa de descentralizar as narrativas em vigor jun-
tamente com o modo de perceber dos sujeitos contemporâneos,
descontruindo as ideias advogadas pela visão essencialista ao
propor uma epistemologia crítica ao ponto de vista dominante na
modernidade. Pensar a colonialidade é perceber a existência de
situações de opressão e dominação assentadas nas fronteiras de
gênero, etnia e/ou raciais.

É importante destacar que os pensadores pós-coloniais, di-


ferentemente do que se possa imaginar, não surgiram no ensejo da
institucionalização do pós-colonialismo, estando presentes no cen-
tro das discussões do próprio colonialismo, atuando em uma espécie
250 de resistência dialética do momento histórico. A insurgência destes
articuladores germina no momento em que percebem a existência
de relações antagônicas caracterizadas por evidências que compro-
vam o vínculo colonizador-colonizado, afirmando a existência da
binaridade discutida por Walter Mignolo5 por meio conceito de “dife-
rença colonial”, revelando que a simples presença do Outro impede a
manifestação e o desenvolvimento de identidades autônomas, eman-
cipadas e plenas. A relação estabelecida nos moldes da colonialidade
provoca uma ruptura entre o colonizado e a própria identidade ao
subjugá-lo aos mandos e desmandos do colonizador.

5 Nascido em Córdoba, Argentina, formado em Filosofia da Linguagem e Semiótica é reconhe-


cido pela produção acadêmica em torno dos conceitos colonialidade global, geopolítica do
conhecimento, pensamento de fronteira, pluriversidade e transmodernidade. Membro dis-
sidente do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos, é considerado uma das vozes
mais importantes do Grupo Modernidade/Colonialidade. Atualmente, leciona na Universida-
de de Duke, situada na Carolina do Norte (EUA).
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

Frantz Fanon6 juntamente com outros pensadores como


Aimé Césaire7 e Albert Memmi8 são exemplos de precursores do
argumento pós-colonial em meados do século XX, por trazerem
para a arena das discussões questões relativas à colonialidade e,
ao mesmo tempo, tentar interceder pelo colonizado vitimizado e
silenciado pelas práticas coloniais. As produções desses intelectu-
ais figuram como obras seminais e ecoam ao lado de autores como
Edward Said9 cuja obra Orientalismo (1978) retrata a invenção do
oriente pelo ocidente e denuncia a produção do conhecimento
como instrumento de exercício à prática de dominação.

No sul asiático, por volta da década de setenta do século


XX, constitui-se sob a liderança de Ranajit Guha10, o Grupo de Es-
tudos Subalternos como contribuição aos esforços pós-coloniais
epistêmicos, intelectuais e políticos. O projeto tinha como objetivo
analisar tanto a historiografia colonial implantada na Índia pelos
ocidentais europeus quanto a historiografia nacionalista indiana,
reconhecida como eurocentrada. Rapidamente, essa perspectiva 251
se expande tornando-se conhecida fora da Índia e inspirando a
formação do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos,

6 Psiquiatra, filósofo de ascendência africana, originário da Martinica, destacou-se pelo forte


envolvimento na luta pela independência da Argélia. Estudioso de temas como descoloniza-
ção e psicopatologia da colonização, dedicou-se a analisar as consequências psicológicas da
colonização na relação colonizador-colonizado. Principais obras: Pele Negra, Máscaras Bran-
cas (1952) e Os Condenados da Terra (1961).
7 Escritor e político francês, cunhou o termo “Negritude” anunciado no primeiro exemplar do
jornal O Estudante, fundado pelo referido autor juntamente com outros colegas indianos-
-guianenses. Sua inspiração era uma tentativa de rejeitar o projeto francês de assimilação
cultural, promovendo a África e a cultura africana. Obra de destaque Discurso sobre o colo-
nialismo (1978).
8 Escritor e ensaísta francês, nasceu na Tunísia francesa e publicou diversas obras baseadas
na dificuldade de encontrar equilíbrio entre o Ocidente e o Oriente, dentre elas salienta-se O
Colonizador e o Colonizado (1957).
9 Nascido em Jerusalém, tornou-se intelectual, crítico literário e ativista da causa palestina.
Estudou na Universidade de Princeton e na Universidade de Harvard. Atuou como docente de
Inglês e Literatura Comparada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
10 Indiano e historiador exerceu forte influência no Grupo de Estudos Subalternos originado no
sul da Ásia e da África. Defendeu que o conceito “subalterno” definia os sujeitos caracteriza-
dos a partir da diferença demográfica entre a população total indiana e todos aqueles descri-
tos como pertencentes à “elite”. Destacou-se pela obra Aspectos elementares da insurgência
camponesa na Índia colonial (1983).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

oficialmente implantado por meio do documento Manifesto Inau-


gural do Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos (1993).
Aos poucos esses movimentos se alastram pela América e no final
da década de 1990 surge, nos Estados Unidos, o Grupo M/C sob o
comando de Walter Mignolo.

A partir daí a América Latina vê-se inserida no debate


pós-colonial, fortemente comprometido com o estudo da condição
do subalternizado em solo latino-americano. No entanto, Mignolo
defende a teoria de que os estudos de base indiana não deveriam
ser assumidos e traduzidos para a análise da realidade latino-ame-
ricana. Ele acreditava que os diferentes loci de enunciação resul-
tariam em interpretações equivocadas da realidade estudada, pois
a perspectiva indiana tinha como herança o imperialismo colonial
britânico e manteve apartadas do debate questões relativas à traje-
tória de dominação e resistência vivida pela América Latina. Além
disso, o Grupo Latino-americano de Estudos Subalternos tinha
252 como fonte de articulação teórica autores como Michael Foucault,
Jacques Derrida, Antônio Gramsci e Ranajit Guha pensadores eu-
rocêntricos, a exceção de Guha cuja origem remetia ao sul. Mig-
nolo acreditava que eles, influenciados pelas próprias origens eu-
ropeias, teriam dificuldades em promover discussões profundas e
radicais sobre a condição de existência latino-americana.

A intenção de criar um grupo essencialmente latino-ame-


ricano, com bases latinas se deu como tentativa de transcender
epistemologicamente, buscando descobrir e revalorizar as teorias
e epistemologias do sul oprimido, descolonizando não só as men-
tes, mas também os padrões ocidentais em vigor ao propor a cons-
trução de novos paradigmas.

O grupo começa a ser articulado em 1998 como resultado


de vários encontros, seminários e palestras que reuniram nomes
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

como Edgard Lander11, Arthuro Escobar12, Walter Mignolo, En-


rique Dussel13, Aníbal Quijano14 e Fernando Coronil15. Estes en-
contros funcionaram como ponto de partida para a construção
de uma publicação coletiva, intitulada La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales (2000). Aos poucos outros inte-
lectuais como Catherine Walsh16, Boaventura de Sousa Santos17,
Nelson Maldonado-Torres18 foram se incorporando ao grupo.

Cabe ressaltar que muitos desses pensadores já vinham


desenvolvendo, desde 1970, linhas de pensamento próprio a exem-
plo de Enrique Dussel, com Filosofia da Libertação, Aníbal Qui-
jano, com Teoria da dependência, Immanuel Wallerstein19, com
Teoria do Sistema-Mundo. Estas ideias foram incorporadas pelo
Grupo M/C, enriquecendo-o.

253
11 Sociólogo venezuelano, professor da Universidade Central da Venezuela e um dos principais
organizadores do Fórum Mundial de 2006 em Caracas. Tem participação na obra coletiva La
Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales.
12 Antropólogo colombiano-americano. Interessa-se por pesquisas relacionadas à ecologia
política, antropologia do desenvolvimento, aos movimentos sociais e ao desenvolvimento
político da América Latina. Idealizador da Teoria Crítica do Desenvolvimento.
13 Argentino naturalizado mexicano é filósofo, historiador e teólogo. Internacionalmente conhe-
cido por seu trabalho no campo da ética, da filosofia política, da filosofia da América Latina
e, principalmente, como fundador da Filosofia da Libertação.
14 Sociólogo e teórico político peruano foi o mentor do conceito Colonialidade do Poder e de-
fensor da ideia de raça como uma categoria mental da modernidade.
15 Antropólogo venezuelano, contribuiu com estudos relacionados à política do petróleo na Ve-
nezuela.
16 Professora titular e diretora do doutorado em Estudos Culturais Latino-americanos da Univer-
sidade Andina Simón Bolivar. Americana de nascimento tem uma longa trajetória de assesso-
ria aos movimentos indígenas e afrodescendentes na América Latina. Propôs a reformulação
da conotação descolonial para a decolonial.
17 Licenciado em direito pela Universidade de Coimbra e doutor em Sociologia do Direito por
Yale. Um dos fundadores da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, tornou-
-se referência ao organizar a obra coletiva Epistemologias do Sul e ao desenvolver conceitos
como Ecologia do saber, Pensamento Abissal, Epistemicídio, Sociologia das ausências e So-
ciologias Emergentes.
18 Professor do Departamento de Estudos Latinos e do Caribe Hispânico da Universidade Rut-
gers, New Jersey e Presidente da Associação Caribenha de Filosofia.
19 Sociólogo estadunidense, especializou-se em assuntos da África pós-colonial, sendo o prin-
cipal articulador da Teoria do Sistema-Mundo e uma das principais referências teóricas dos
movimentos antiglobalização. Reconhecido pela obra O sistema mundial moderno (1990).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Além disso, alguns conceitos criados pelos próprios in-


telectuais serviram como guia para o desenvolvimento dos tra-
balhos de reflexão. Entre eles destaca-se o conceito cunhado por
Aníbal Quijano (1989), “colonialidade do poder”, configurado pela
permanência e perpetuação da cultura e das estruturas do siste-
ma-mundo capitalista/moderno/colonial na subjetividade do co-
lonizado, mesmo com o fim da colonização política e econômica.

Outro conceito trabalhado pelo Grupo M/C é a “diferença


colonial”, construída e edificada pela ideia de raça da população.
A classificação baseada neste critério promoveu a hierarquização
populacional, garantindo a superioridade da raça branca ao esta-
belecer um padrão de poder capaz de englobar dimensões mate-
riais e subjetivas da existência.

Atrelado à “diferença colonial”, surge o conceito “geopolí-


tica do conhecimento”, configurando a existência de epistemolo-
254 gias locais reveladoras da riqueza cultural pertinente a uma deter-
minada região.

Um convite ao diálogo, em detrimento da construção de


um novo universal, surge a partir do conceito de “transmoderni-
dade” desenvolvido por Enrique Dussel, demonstrando uma pul-
sante preocupação com a pluralidade global ao tentar permitir a
aparição da multiplicidade de experiências de sujeitos acometidos
pelas mais variadas formas de dominação colonial.

Ao propor a modificação do uso do termo “descolonial”


pelo termo “decolonial”, Catherine Walsh, segundo Ballestrin (2013),
tenta estabelecer uma aproximação do termo à proposta defendida
pelo Grupo M/C de promover a genealogia do pensamento. Para
Catherine (apud BALLESTRIN, 2013, p.108), o termo “descolonial”
remetia à ideia de libertação política, econômica e administrativa
territorial vinculada à ideia histórica de descolonização, mas não
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

alcançava a esfera do pensamento e, portanto, da subjetivação, pro-


pósito primordial para o projeto decolonial do Grupo M/C.

É de se ressaltar ainda que o processo de decolonização


empreendido pelo Grupo M/C não deve ser interpretado como
a total rejeição das criações humanas advindas do Norte global,
muito menos como pretexto para a desconsideração das produ-
ções realizadas por essa parte da humanidade. O que se pretendia
era produzir um contraponto e uma resposta ao que se conven-
cionou como tendência histórica, o Sul proporcionando as expe-
riências e o Norte como o gerenciador capaz de interpretar e dar
significado a tais experiências.

Finalmente, é importante alertar que os conceitos assi-


nalados constituem uma pequena amostra dos diversos conceitos
construídos ao longo do processo de desenvolvimento dos grupos
de estudos epistemológicos pós-coloniais, sendo, portanto, uma
tentativa de elucidar o eixo condutor das referidas reflexões sem 255
esgotar as produções que têm adensado as construções epistemo-
lógicas contra-hegemônicas.

Contribuições brasileiras ao pensamento contra-


hegemônico
A prática da filosofia entre os brasileiros, registrada na
sua produção teórico-literária, acontece intimamente vinculada à
tradição filosófica ocidental, situação que é um dado de realidade
que traduz uma facticidade histórica de filiação cultural que não
cabe avaliar apressadamente apenas sob o ângulo da dependência.
Como dado histórico real, é fenômeno decorrente de múltiplas de-
terminações, inalterável pelo anátema da lamentação. O que se
nos impõe, no entanto, como tarefa científica e crítica, é o conhe-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

cimento do fenômeno, o seu acompanhamento, a sua descrição,


sua análise e interpretação. Qualquer desejada criatividade pres-
supõe o desvendamento analítico-crítico de todas as coordenadas
que tecem o fenômeno cultural nas tramas das relações histórico-
-sociais. (SEVERINO, 1999; MARGUTTI, 2009; DOMINGUES, 2017).

Assim, caberia reconhecer que, embora se filiando ainda


à tradição universal da reflexão filosófica da cultura ocidental, a
filosofia no Brasil já se expressa com crescente criatividade e au-
tonomia. Tanto mais criativa e autônoma se tornará, tanto mais
alcançará referências de universalidade, quanto mais atenta se
fizer à particularidade do mundo real em que se realize. Sem dú-
vida, seu desafio maior encontra-se no estabelecimento da dosa-
gem exata de seus vínculos com a temporalidade histórica e com
a espacialidade social. De um lado, precisa recuperar seu tempo
histórico, retornar à atualidade, ou seja, recolocar sua temática
na verdadeira temporalidade, superando o historicismo e o pre-
256 sentismo modista. O filosofar de um povo ou de um indivíduo não
paira sobre o tempo, a filosofia precisa aceitar sua própria histori-
cidade. Aliás, só conseguirá submeter o tempo, submetendo-se a
ele. Mas reconquistar sua temporalidade não significa perder seus
vínculos com a história da cultura.

Essa abordagem filosófica se especifica enquanto busca


de explicitação, esclarecimento e discussão dos aspectos episte-
mológicos, axiológicos e ontológicos das manifestações históri-
co-culturais nos diversos âmbitos da prática histórica humana.
Trata-se, pois, de trabalho teórico de instauração de sentido que
pode se dar seja sob o ângulo do processo de construção do co-
nhecimento nesses diversos campos, seja sob o ângulo do questio-
namento valorativo da prática, pessoal ou social, seja ainda sob o
ângulo das coordenadas existenciais dos sujeitos nela envolvidos.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

A preocupação com a presença/ausência de um filosofar


intimamente entrelaçado com a realidade sociocultural do contex-
to brasileiro tem, certamente, a ver com o fato de que os estudos
revelam que “a grande maioria de nossos pensadores desenvolve
seu esforço teórico deixando-se guiar por algum modelo filosófico
já constituído” (SEVERINO, 1999, p. 24). Mas ela não se envolve com
nacionalismos exacerbados quando a questão é a originalidade ou
a autonomia do pensar filosófico. Como bem pondera Roberto Go-
mes, “a questão coloca-se a partir da natureza da própria filosofia
e não da natureza da nação” (2001, p. 118). O que está em pauta é a
necessária referência da filosofia, como qualquer outra atividade
humana, ao tempo e lugar de sua expressão. A filosofia não pode ser
a-temporal, a-histórica. Invenção e contínua reinvenção do espírito
humano, a filosofia é patrimônio universal, mas necessariamente
se expressando nos diferentes espaços sociais e tempos históricos.
O que deve estar em pauta no trabalho filosófico, o seu mote central,
é a explicitação do como a filosofia se faz presente e se constitui nos
diversos contextos culturais das diversas sociedades pressupondo- 257
-se uma relativa identidade entre as experiências das mesmas. O
enfoque fundamental é aquele da questão relacionada ao como a
filosofia praticada em cada sociedade se autocompreende, como se
autodefine, como estabelece seu próprio estatuto. Por outro lado,
essa autodefinição pode ser apreendida também pelas temáticas
que a filosofia privilegia em sua prática efetiva, pois, mediante
essas opções ela está delineando não só sua própria constituição
como também o papel que pretende exercer no interior do conjun-
to cultural da sociedade local. Assim, ela pode manifestar-se como
reflexões regionais sobre o agir ético, sobre o agir político, sobre a
educação, sobre a cultura, sobre o direito, sobre a linguagem, sobre
a ciência etc. Cada experiência histórica de filosofar se dá sempre
no âmbito de uma logosfera específica.

Esta modalidade de pensamento decolonizante, tão prós-


pero na América espanhola, não tem ainda presença expressiva
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

no contexto brasileiro. São poucos os pensadores que vem desen-


volvendo uma reflexão sistemática, de cunho metateórico, bus-
cando delinear sua configuração epistêmica e defendendo sua
necessidade e relevância. No entanto, já é possível constatar sua
expansão entre nós, pois vem ocorrendo muitos encontros com
a temática do pós-colonialismo e da interculturalidade. Tem sur-
gido igualmente muitos grupos formais de pesquisa, particular-
mente junto aos programas de pós-graduação, constituídos com
a finalidade específica de trabalhar teoricamente essa nova pers-
pectiva epistemológica, buscando aplicá-la em suas investigações.
Em função dessa inspiração, a atenção de estudiosos de diferentes
áreas tem se voltado para os temas da cultura nacional.

É sob estas coordenadas que se pode interpretar o esforço


teórico que vem sendo desenvolvido por alguns pensadores brasilei-
ros, investimento que vai na direção de um endosso da empreitada
de decolonização do pensamento latino-americano. Trata-se então
258 da participação desses autores brasileiros junto ao processo de refle-
xão sobre a realidade nacional, implementando a prática de novas
perspectivas epistemológicas.

A emancipação da consciência oprimida:


Paulo Freire20
Existe uma tendência quase que universal das classes do-
minantes/colonizadoras pensarem sobre e para a (o) oprimida (o)

20 Paulo Reglus Neves Freire (1921-1997) nasceu no Recife, foi educador, pedagogo e filósofo.
Revolucionou o pensamento pedagógico brasileiro com a obra Pedagogia do Oprimido que o
projetou como um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Foi agra-
ciado com o título de Patrono da Educação Brasileira. Desenvolveu e coordenou numerosas
iniciativas de educação popular em diversas regiões da América Latina e da África, tornando-
-se uma referência internacional no campo da educação.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

ou colonizada (o) como se estes não possuíssem habilidade para


cuidar de si e construir conhecimento sobre a própria existência.
Este movimento caracteriza a dinâmica estrutural da sociedade
marcada pela lógica da dominação das consciências e dos sabe-
res com a finalidade de alocá-las dentro do espaço circunscrito
pelos ditames do colonizador. O colonizador não assume que o
pensamento original dos colonizados não aflora justamente em
decorrência do sufocamento da subjetividade deles pelos proces-
sos opressivos que lhes impõem uma subjetivação alienante.

No prefácio que escreveu para a obra Pedagogia do oprimi-


do, Ernani Fiori ressalta a necessidade da (o) oprimida (o) se “au-
toconfigurar responsavelmente” (FREIRE, 1987, p. 9), cabendo a
ela (e) se descobrir e conquistar a sua identidade enquanto sujeito
da própria história, uma vez que existe a possibilidade de trans-
mutação do ser humano biológico para o ser humano biográfico,
ou seja, a passagem do Homo sapiens – indivíduo pertencente à
espécie humana para o Homo sapiens – sujeito histórico, senhor da 259
própria existência.

A proposta dos círculos de cultura, tal como concebida


por Paulo Freire, abarca a ideia de uma reconfiguração do ser
humano ao promover o encontro das consciências, sendo local
privilegiado para o ressurgir de conhecimentos obscurecidos e si-
lenciados pela dialética dominante, pois os sujeitos participantes,
ao comungarem de uma mesma realidade, trocam impressões,
refletem e constroem epistemologias capazes de contribuir para
apropriação da consciência de si e do mundo.

A intenção dos círculos de cultura é, portanto, propor-


cionar aos seres humanos o (re) descobrimento de si mesmo de
forma reflexiva por meio da intersubjetividade caracterizada pela
interação das subjetividades dos indivíduos entre si. Dessa forma,
a consciência de si estabelece uma ligação direta e íntima com a
consciência do mundo.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A conscientização permitirá ao ser humano inserir-se no


processo histórico, reconhecendo-se como sujeito, evitando os
possíveis fanatismos ao inscrevê-lo na busca da própria afirma-
ção. Assim, “... a conscientização, entendida como uma passagem
de uma consciência puramente natural para uma consciência re-
flexiva, de uma consciência em si para uma consciência para-si,
de uma consciência dogmática para uma consciência crítica ...”
(SEVERINO, 1986, p. 97) torna os seres humanos, sob o ponto de
vista antropológico, capazes de se situar em relação à totalidade
apreendendo o sentido da própria existência histórico-social.

Os colonizadores ao domesticarem as consciências dos


povos colonizados causaram a imersão dessas consciências, fixan-
do-as no subsolo dos fazeres humanos reconhecidos como legíti-
mos no processo histórico-social da humanidade. Para que haja a
verdadeira libertação, Freire (1987) destaca a necessidade de dois
movimentos: o primeiro deles é a emersão permitindo a tomada
260 de consciência sobre a própria condição e o segundo é a imersão
novamente na realidade, avaliando-a de acordo com os próprios
parâmetros para transformá-la.

O movimento pode ser, então, ilustrado pela tríade ação-


-reflexão-ação, onde a primeira etapa é o reconhecimento da pró-
pria condição de oprimida (o) e a segunda consiste em expulsar
os mitos criados pelo sistema opressor, decolonizar as mentes, re-
estabelecer as próprias epistemologias (formas de saber), permi-
tindo que as razões oprimidas apareçam, reconhecendo-se como
produtoras de conhecimento sobre a própria realidade.

A(o) oprimida(o), de acordo com a visão freiriana, tem uma


tendência a apresentar uma posição fatalista ao acreditar que sua
condição é resultado de um processo natural, desconhecendo a
própria capacidade de gerir a vida. Além disso, apresenta atração e
repulsa pelo colonizador uma espécie de sentimento ambíguo em
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

relação a ele. Sente-se atraída(o) pelo modelo existencial apresenta-


do, desejando ser como ele e, ao mesmo tempo, rechaça-o em fun-
ção da violência que imprime, tanto física quanto simbólica.

Outra característica comum aos povos dominados é a


autodesvalia resultante da introjeção “da visão que deles têm os
opressores” (FREIRE, 1987, p. 50), tornando-os convencidos da
própria incapacidade e sujeitos à exploração como algo natural.
Essa dinâmica contradiz a vocação ontológico-histórica dos seres
humanos de serem seres para si em busca do “ser mais” (ib., p.
30). Quando os seres humanos se encontram instalados na “cons-
ciência real” não conseguem transcender às “situações limites”21
e, portanto, tornam-se incapazes de almejar o “inédito viável”22.

De acordo com Romão (2008), Paulo Freire provocou uma


verdadeira revolução nas concepções acerca da existência huma-
na. Muito além do desenvolvimento de um método de alfabetiza-
ção, ao atribuir à oprimida e ao oprimido vantagens gnosiológicas 261
e epistemológicas, inverte a ordem vigente, sugerindo a constru-
ção de uma pedagogia da (o) oprimida (o) e não para a(o)s oprimi-
da(o)s. Além disso, os Círculos de Cultura tornam-se espaços aco-
lhedores das epistemologias alternativas ao permitir o resgate de
razões silenciadas pelas epistemologias hegemônicas e, ao mesmo
tempo, a manifestação de epistemologias que intencionam a cons-
trução de uma nova geopolítica do conhecimento.

Em suma, ele não só faz emergir as Razões Oprimi-


das, como também as histórias sociológicas do conhecimento
(ou as sociologias históricas do conhecimento), que não se con-
fundem com as epistemologias hegemônicas e que são capazes

21 Configuram-se como determinações históricas que exigem, do ser humano, adaptação in-
questionável. Em alguns momentos são percebidas como obstáculos ou fronteiras que deli-
mitam o ser e o nada, o ser e o ser mais.
22 Consiste em algo que ainda não é, mas que pode vir a ser pela superação das situações limites.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

[de] enxergar outros lugares de enunciação científica, fora dos


universos tradicionais dessas enunciações (ib., p. 81).

A Pedagogia do oprimido torna-se, assim, obra referen-


cial que potencializa a importância dos novos espaços de enuncia-
ção epistemológica ao reconhecer a autenticidade sócio-histórica
desses espaços em detrimento das concepções hegemônicas. Tra-
ta-se, portanto, do enaltecimento das “razões oprimidas” reconhe-
cidas pela habilidade de avaliar as situações com propriedade e
conhecimento acerca das contradições da própria realidade e pela
posição que ocupam no processo sócio-histórico.

Luciana Ballestrin : colonialidade sem imperialidade23


A professora Luciana Ballestrin, por sua experiência na
262 área de Ciência Política com ênfase na teoria democrática con-
temporânea e nas teorias críticas das relações internacionais, vem
se destacando como importante colaboradora para compreensão
crítica de questões referentes à subjetição do modus operandi co-
lonial na sociedade atual.

No artigo Colonialidade e Democracia (2014) propõe uma


aproximação teórica entre o pós-colonialismo e a democracia ten-
do como referência as contribuições oferecidas pelas Teorias do

23 Luciana Maria de Aragão Ballestrin é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Ciência Política também pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Cursou parte do doutorado em Ciência Política no Centro de Estudos
Sociais (CES) da Universidade de Coimbra em Portugal concluindo-o na Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Atua como Professora Adjunta III de Ciência Política do Curso de Re-
lações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade
Federal de Pelotas. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase nas áreas: Teoria
Política e Democrática Contemporânea, Teorias do Sul, Estudos pós-coloniais e de-coloniais,
Sociedade Civil e Violência, Sociedade Civil Global e Controle de Armas (Small Arms and Light
Weapons). Membro da Associação Brasileira de Ciência Política.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

Sul à Teoria Política. O objetivo é dar visibilidade a incapacidade


demonstrada pelo pós-colonialismo em sustentar uma perspecti-
va pós-colonial de democracia e, ao mesmo tempo, afirmar que a
teoria democrática não foi capaz de dar sustentação a uma pers-
pectiva democrática pós-colonial.

Ballestrin (2014) atesta a convivência entre a coloniali-


dade e a democracia, no contexto das sociedades pós-coloniais,
gerando implicações importantes, negligencias pelas discussões
teóricas produtoras de um conhecimento capaz de determinar a
geopolítica dos saberes contemporâneos.

Nesse sentido, tenta demonstrar como a propagação do


colonialismo e do imperialismo, embora tenham obedecido a di-
ferentes lógicas de ocupação, exploração e destruição em distin-
tos momentos históricos, trouxeram consequências indeléveis a
formação social e subjetiva dos sujeitos históricos.
263
Os primeiros sinais de descolonização, queda e decadên-
cia do colonialismo e do imperialismo se deram em torno de me-
ados do século XIX quando a África e a Ásia se viram às voltas
com a terceira onda de democratização. Além disso, o término da
Guerra Fria e a intensificação dos processos em prol da globaliza-
ção configuram-se como outros fatores que influenciaram direta-
mente nesse processo.

Ballestrin (2014) adverte que as tentativas de elaboração


intelectuais, produzidas ao longo do século XXI, devem ser en-
tendidas como interpretações importantes para compreensão da
persistência dos diferentes níveis de desigualdades existentes na
conjuntura presente na sociedade, pois a análise cuidadosa dos
resquícios e da continuidade das relações coloniais e imperiais
pode trazer elementos eficientes na identificação das diferentes
formas de reprodução dessas relações, auxiliando na compreen-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

são e no entendimento dos complexos níveis e escalas de injusti-


ças estruturais que nutrem os diferentes campos sociais – político,
econômico e cultural.

Na década de 1990, as teorias neoliberais, hegemônicas


e pós-coloniais ganharam força ao tentar romper com a lógica vi-
gente, aliando-se às propostas da globalização e se empenhando
para declarar a ruptura da História, o suposto fim do Estado e da
dicotomia ideológica direita-esquerda. Havia uma inspiração ba-
seada na pretensão de promulgar políticas articuladas de forma
horizontal e democrática capazes de justificar a necessidade de
funcionamento do sistema internacional contemporâneo.

Para muitos autores essa tomada de posição significou a


reprodução de antigas tendências ao camuflar perspectivas clássi-
cas de colonialismo e imperialismo transfiguradas em discursos,
ações e estratégias colocadas a serviço da continuidade e conser-
264 vação de perspectivas mantenedoras dos interesses políticos e
econômicos dos países considerados centrais.

Embora a dominação colonial não fosse verificada de ma-


neira tão ostensiva com a conquista de territórios, a exploração e
usurpação dos recursos naturais e da mão de obra dos povos ori-
ginários e da população escrava, as disputas desiguais pelas áreas
geográficas e a destruição de culturais locais, houve uma espécie
de reformulação eficaz do processo colonizador perpetuando de
maneira sutil as nuances constitutivas desse processo.

Somente no século XXI são retomadas as discussões em


torno das dinâmicas que geram a reprodução das lógicas coloniais
e imperiais contemporâneas, surgindo a ideia da concepção de
de(s)colonização entendida como uma proposta de enfrentamen-
to à modernidade e à colonialidade.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

Por decolonialidade entende-se a luta permanente contra


as epistemologias e topus colonial a partir da noção de “giro deco-
lonial” que é a radicalização do argumento pós-colonial no conti-
nente a partir do século XXI. Defender a opção decolonial – epistê-
mica, teórica e política – significa “compreender e atuar no mundo,
marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes
níveis da vida pessoal e coletiva” (BALLESTRIN, 2013, p.89).

De acordo com essa proposta, Luciana adota uma postu-


ra diferente de outros teóricos da de(s)colonialidade ao dar credi-
bilidade aos autores estadunidenses e europeus como possíveis
colaboradores para a desarticulação das construções ideológicas
geradas pelo colonialismo. Além disso, considera fundamental
valorizar as teorias marginalizadas contribuindo para a intensifi-
cação do movimento de “descolonização epistemológica e desobe-
diência epistêmica” (ib., p. 4).

A autora ressalta como as democracias do século XX e 265


XXI conseguem conviver de maneira pacífica com as injustiças e
discrepâncias sociais mesmo advogando em prol de um projeto
político-social baseado na diminuição e, porque não dizer, erradi-
cação das desigualdades.

O século XVI, marcado pela presença estratégica do co-


lonialismo e do imperialismo, seguiu reforçando os três pilares
fundamentais para perpetuação das injustiças e desigualdades –
capitalismo, racismo e sexismo. Essa configuração ganhou força
e passou a fazer parte do entendimento sobre o funcionamento
do mundo ocidental, determinando o modus vivendi da sociedade
em sua totalidade.

Ballestrin (2014) acredita que o projeto subalterno/pós-co-


lonial/de-colonial e o projeto democrático ainda não conseguiram
uma aproximação teórica mais satisfatória em função da herança
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

deixada por esse passado, que guarda resquícios de uma condu-


ta característica da colonialidade. A problemática em questão é
conseguir agregar o elemento da colonialidade nas discussões que
perpassam a Teoria da Democracia contemporânea contemplando
elementos significativos para o entendimento da submissão sub-
jetivada sofrida pelos agentes sociais e, ao mesmo tempo, trazer
para o centro da arena dos debates “problemas ausentes no centro
da geopolítica do conhecimento” (BALLESTRIN, 2014, p.6).

Nessa linha, a compreensão do sentido da presença da


colonialidade na democracia faz-se necessária, assim como o co-
nhecimento relativo a relação existencial da colonialidade em um
sistema dito democrático. Deve-se primeiro compreender a colo-
nialidade, aqui referida, como processo lógico e sutil de reprodu-
ção e perpetuação de injustiça e desigualdade.

Ballestrin (2014) reitera a ideia, anteriormente frisada por


266 autores referenciados, da importância de entender que o pós-colo-
nialismo relativo às teorias pós-coloniais não remete a um tempo
histórico posterior ao fim do colonialismo, como um fato episódio
e temporal, mas diz respeito a construções teóricas surgidas no cer-
ne do próprio colonialismo. Sendo assim, as teorias pós-coloniais
convergem no sentido de proclamar a denúncia da persistência da
lógica colonial e imperial na modernidade ocidental, preocupando-
-se com questões relativas à libertação, autodeterminação, desco-
lonização dos povos e, principalmente, com a construção de epis-
temologias capazes de desarticular a ideia da existência universal
de sujeitos europeus, brancos, ocidentais, homens, heterossexuais.
Constitui, assim, a busca pela possibilidade de dar voz a um sujeito
que não possui uma determinação geopolítica.

No ponto de vista epistêmico, para Ballestrin (2014), o


Grupo M/C, anteriormente citado, trouxe uma contribuição im-
portante ao inserir de forma radical a América Latina nas discus-
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

sões relativas à colonialidade e promover a inserção de intelectu-


ais latino-americanos preocupados não em construir uma teoria
da democracia, mas salientar a importância de considerar equivo-
cada a pretensão de adotar uma única epistemologia como solu-
ção explicativa para todos os problemas do mundo.

Nesse sentido, torna-se perceptível a existência de diver-


sidades epistêmicas “... que apresentam diferentes maneiras de
enfrentar e solucionar os problemas produzidos pelas relações
de poder sexuais, raciais, espirituais, linguísticas, de gênero e de
classe no presente ‘sistema-mundo capitalista/patriarcal moder-
no/colonial’” (ib., p. 15).

O projeto de decolonização política frutificará ao reco-


nhecer sua vinculação íntima ao projeto de decolonização epis-
têmica devendo buscar a ressignificação e a decolonização, por
exemplo, da ideia de sociedade civil baseada na configuração eu-
ropeia, identificando práticas e experiências não ocidentais capa- 267
zes de agregar elementos fundamentais ao entendimento de um
determinado contexto histórico-social.

Segundo Ballestrin (2014) “um dos maiores desafios teó-


ricos e políticos com os quais se depara quem pensa em justiça e
democracia no mundo de hoje é justamente a capacidade de re-
conciliar tradições aparentemente irreconciliáveis” (p. 16).

O conceito colonialidade amplamente utilizado pelo Gru-


po M/C potencializa a proposta de denúncia da continuidade das
formas coloniais de dominação, visibilizando a condição das cha-
madas zonas periféricas que permanecem sob a influência sub-
jetiva das culturas coloniais. Essa concepção permite reconhecer
e compreender a atualidade do colonialismo que se inscreve de
maneira sutil no imaginário sociocultural das antigas colônias.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

A modernidade não conseguiu apagar as fortes influên-


cias ideológicas disseminadas pelo colonialismo, reforçando as
desigualdades de condições históricas e estruturais, produzindo
injustiças em diferentes níveis, escalas e espaços. Nesse sentido,
as demandas contemporâneas de busca pela de(s)colonização
criaram uma espécie de campo de resistência onde intelectuais
e pensadores latino-americanos se articulam na tentativa de des-
montar a lógica disseminada pelas práticas, falas e identidades
dos colonizadores.

Portanto, a elaboração epistêmica de experiências pro-


duzidas pelo sul e o estabelecimento de diálogo igualitário nas
relações com o norte constitui uma luta epistemológica impor-
tante para o rompimento com os paradigmas germinados na
experiência colonial.

Ballestrin, nas próprias elaborações teóricas, reacende


268 a importância da articulação dos diversos conceitos envolvidos
na desconstrução da lógica colonial e insere as novas teorias de
cunho democrático no campo das reformulações necessárias ao
reconhecimento da continuidade de uma dominação subjetiva,
contribuindo assim, para o desmonte de uma lógica eurocentrada
como uma verdade universal.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

Por uma nova geopolítica do saber:


José Eustáquio Romão24
Em seu texto Razões Oprimidas: introdução a uma nova
geopolítica do conhecimento (ROMÃO, 2008), este autor enfatiza
as rupturas de paradigmas, demonstrando a necessidade de ques-
tionar não apenas os paradigmas em si, mas a consolidação de
“um” paradigma, “uma” epistemologia, “uma” forma única e uni-
versal de dar significado ao mundo, abalando os alicerces da cren-
ça na existência de um tipo de saber hegemônico. Ao defender a
existência de uma “revolução paradigmática” (p. 64), acena para
a capacidade humana de instaurar a revisão e ressignificação dos
loci de enunciação dos saberes humanos.

Não se trata, no entanto, do estabelecimento de uma nova


gramática ou da substituição de paradigmas como se faz via de re-
gra, mas sim de reconhecer e assegurar as possibilidades de mani-
269
festação, de perspectivas outras, silenciadas pelo processo históri-
co. “O que necessitamos, agora, é de uma nova geopolítica do saber,
isto é, do reconhecimento de vários conhecimentos, da convicção
de que há vários lugares de enunciação científica” (ib., p. 64).

São propostas que tentam subverter a ordem hegemônica


dando voz aos povos subalternizados que submetidos à coloniza-
ção sofreram não apenas a dominação e a alienação, mas também
a desumanização ao verem demolidos os próprios sistemas de re-
ferência sócio-econômico-cultural.

24 José Eustáquio Romão é graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é diretor e professor
do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Nove de Julho (Uninove), São
Paulo, onde coordena o Grupo de Pesquisas Freirianas em Educação (GRUPEFREI). Principais
obras: Poder local e educação (1992); Avaliação dialógica (!998); Dialética da diferença (2000);
Pedagogia dialógica (2002) e Sistemas Municipais de Educação: A Lei de diretrizes e Bases e a
Educação no Município (2010).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

O grande desafio é denunciar “... o sistema auto-referen-


ciado etnocêntrico, ou melhor, norte-americano-eurocêntrico,
branco, cristão e masculino” (ib., p. 65) que se tornou o alicerce
epistemológico absoluto do mundo ocidental.

Movidos por essa máxima autores como Darcy Ribeiro25,


Edouard Glissant26, Edward W. Said27, Enrique Dussel, Paulo Frei-
re28 e Walter D. Mignolo são apresentados como nomes de peso
quando o que se propõe é promover um diálogo e a desconstrução
de ideias relativas à dominação epistemológica dos povos coloni-
zados. Embora, sejam apresentados como “razões alternativas” ,
o posicionamento desses autores deixa clara a intenção de for-
mular propostas a partir da própria existência sem se prender à
tentativa de construir um movimento antagônico referenciado em
epistemologias já existentes. Os argumentos utilizados procuram
enfatizar a criação de referenciais próprios tendo como axioma as
concepções sobre a realidade, construindo-os com a realidade por
270 meio da inserção nessa mesma realidade.

Ao lembrar de alguns conceitos sugeridos por autores do


pensamento pós-colonial como Boaventura de Souza Santos e Ser-
ge Gruzinski, Romão (2008) pontua a dificuldade de superação de
determinados aspectos próprios da posição eurocêntrica, mas, ao
mesmo tempo, reconhece o esforço empreendido na tentativa de
aproximação às epistemologias alternativas. Sugere que expres-

25 Natural de Montes Claros (MG) antropólogo, escritor e político dedicou-se às questões indíge-
nas e à educação brasileira. Advogava em defesa da identidade latino-americana influencian-
do vários estudiosos latino-americanos. Obra de destaque: O Povo Brasileiro.
26 Natural de Sainte-Marie na Martinica foi um escritor, poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta.
Aproximou-se das ideias de Frantz Fanon, cujas obras foram inspiradas pelas lutas dos movi-
mentos de libertação colonial por mais de quatro décadas.
27 Nascido na Palestina é considerado importante intelectual, crítico literário e ativista da causa
palestina. Principais influências: Antonio Gramsci, Frantz Fanon, Aimé Césaire, Michel Fou-
cault e Theodor Adorno.
28 Romão esclarece o uso da expressão “razões alternativas” alertando para o cuidado de não
traduzir como algo que se contrapõe àquilo que já existe, baseando-se, assim, em referenciais
pré-existentes.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

sões como “sociologia do silêncio”, cunhada por Boaventura, não


refletem a realidade dos povos colonizados uma vez que o silêncio
não lhes pertence, mas foi forjado dentro dos trâmites do processo
de colonização. Recomenda a utilização do termo “sociologia dos
silenciados” por apresentar aproximação semântica ao entendi-
mento da situação vivida pelos povos colonizados. Em relação a
Gruzinski, retoma o tema da mestiçagem evidenciado no conceito
de “cultura mestiça” cunhado pelo autor ao perceber a proprie-
dade dos povos originários do México em possuir o duplo olhar
capaz de imergir nos preceitos do passado e se abrir para as novas
relações estabelecidas no presente. No entanto, adverte que o uso
da expressão pode causar estranheza, pois o termo mestiçagem
cultural remete à aculturação imposta pelos espanhóis aos indíge-
nas, diferente de uma tentativa de reconhecimento dos conheci-
mentos próprios dessa civilização.

Na visão do autor, a despeito de qualquer ressalva, Bo-


aventura e Gruzinski trouxeram importantes contribuições para 271
as reflexões no campo dos estudos pós-coloniais ao avançarem
frente as influências da própria nacionalidade, ilustrando o que
Mignolo denominou “conhecimento limiar” ou “razão fronteiriça”.
Esses pensadores promovem uma reflexão crítica a partir das mar-
gens internas do sistema mundial colonial moderno engrossando
o discurso contra-hegemônico ao se juntarem àqueles que se situ-
am nas margens externas desse mesmo sistema.

Darcy Ribeiro ao propor a tipologia da origem das forma-


ções sociais traz à tona a noção de “povos novos” – mestiços do Novo
Mundo, formados pela conformação da desindianização do índio,
da desafricanização do negro e da deseuropeização do europeu, ao
adquirir, a partir da fusão cultural advinda desses povos, toda a in-
dumentária necessária para se reconhecer como povo síntese. Esse
povo síntese apresenta uma vantagem epistemológica ao ser capaz
de olhar a realidade sob a ótica de mais de um ponto de vista.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

É com a ideia de “criolização”29 de Edouard Glissant que a


“razão criola” entra na arena do discurso pós-colonial vislumbran-
do a possibilidade da existência de uma civilização sem hegemo-
nia como resultado do encontro, da intersecção, do embate, da
colisão, dos arranjos e desarranjos de todas as culturas do mundo.

Com Néstor Garcia-Canclini, Romão (2008) ressalta a exis-


tência da “razão híbrida” interceptada pela noção da hibridização
introduzida por esse autor. Hibridização compreendida como pro-
cessos socioculturais que promovem a combinação de estruturas
ou práticas que na sua existência singular não se faziam perceber,
mas ao se combinarem com outras práticas e outras organizações
são capazes de criar novas estruturas, objetos e práticas. A propos-
ta avança em relação à tentativa de “tradução cultural”, geralmen-
te, limitada e amarrada às perspectivas hegemônicas do pretenso
tradutor impregnado pelo próprio universo sociocultural.

272 Para Romão (2008), Enrique Dussel contribuiu de maneira


relevante para elaboração do que poderia ser reconhecido como uma
epistemologia alternativa-síntese ou “razão exterior” (p.73). Apesar
de não ter demonstrado a intenção de construir uma epistemologia
alternativa, esse autor por meio de uma extensa obra abriu caminho
para se pensar em saberes outros diferentes das formulações hege-
mônicas baseadas nas perspectivas euro-norte-americanas.

Ao articular a necessidade do exercício de “exterioridade”


como atitude indispensável a qualquer pensador (a) colonizado (a),
acentuou a importância de legitimar uma posição crítica que não
seja contaminada pela visão colonizadora, ou seja, uma crítica que
reflita um posicionamento além do espaço delimitado pelos ditames
coloniais. A razão, que opera nesse espaço de reflexão epistemológi-

29 O termo é aqui apresentado como no original em espanhol. No decorrer do texto haverá mo-
mentos em que aparecerá traduzido para o português “crioulização”.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

ca, ganha legitimidade por configurar-se como a expressão genuína


das idiossincrasias da massa ex-colonizada “transformando a geopo-
lítica da enunciação científico-epistemológica” (ib., p. 76).

Fernanda Frizzo Bragato30: por uma abordagem


decolonizante no campo do Direito.
Esta pesquisadora vem se dedicando, intensa e extensa-
mente, a uma consistente reflexão sobre a situação de colonialida-
de em que se encontram os campos teórico e prático do Direito na
sociedade latino-americana. O direito foi e continua sendo usado
como arma para reproduzir, consolidar e conservar as formas de
dominação social nessa sociedade, sob a forma da colonialidade.
Com efeito, segundo a autora, a forma como o poder é apropriado
e exercido segue a lógica do padrão colonial uma fez que a moder-
273
nidade europeia se impôs hegemonicamente sobre todo o mundo
graças ao controle das formas de produção econômica (trabalho
e recursos naturais); de construção de conhecimento (a ciência
única forma válida de saber) e de essencialização e hierarquização
das identidades subjetivas (raça, gênero).

Bragato comunga da visão dos pensadores contemporâne-


os pós-colonialistas ao afirmar a persistência da colonialidade mar-
cando as relações de poder mesmo após o término do colonialismo.

Descolonizar implica, basicamente, romper com o


monopólio de produção de discursos sobre concepções epistemo-

30 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Direito pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, com período de estágio doutoral na University of London (Birkbeck College) onde
concluiu o pós-doutorado. Atualmente é professora do Programa de Pós-graduação e Gradu-
ação em Direito da Unisinos e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

lógicas, políticas e históricas que priorizam, respectivamente,


as ideias de conhecimento científico, racionalismo/humanismo,
liberalismo e progresso e que, necessariamente, converge para o
capitalismo. De acordo com este ideário, conhecimento é ciência,
homem é sujeito racional, sociedade é liberal e história é traje-
tória rumo ao progresso. Isso se torna padrão universal para a
análise de qualquer realidade e em proposições normativas que
definem o dever ser de forma universal. (BRAGATO, 2017, p. 1).

Centrando sua análise e reflexão sobre a questão do fun-


damento dos direitos humanos, discutindo a pretensa universali-
dade que lhe atribuiu a modernidade europeia, Bragato desvenda
os pressupostos dessa teoria desde a perspectiva do pensamento
descolonial. Sua tese é que o discurso próprio do ideário moder-
no-burguês, ao construir filosófico-antropologicamente o sujeito
racional encobriu a produção dos outros sujeitos vistos, de acordo
com essa lógica, como não humanos, que foram então lançados à
condição de oprimidos e vulneráveis nas sociedades culturalmen-
274
te plurais. Para trabalhar compreensivamente esse fenômeno, ela
se apoia nas categorias colonialidade do poder, de Quijano, dife-
rença colonial, de Mignolo e transmodernidade de Dussel, con-
ceitos utilizados de forma ampla por pensadores que se debruçam
sobre as questões de cunho contra-hegemônicos.

Segundo esta concepção, os direitos humanos são con-


siderados um projeto moral, jurídico e político criado na Mo-
dernidade Ocidental e que, depois de ter sido suficientemente
desenvolvido e amadurecido, foi exportado ou transplantado
para o resto do mundo. Como consequência, as origens dos di-
reitos humanos têm pouco ou nada a ver com a história, a racio-
nalidade dos povos não ocidentais (BRAGATO, 2014, p. 205).

Toda a proposta do trabalho de Bragato acena na direção


de uma crítica cerrada à pretensa hegemonia e universalidade do
discurso da modernidade, no caso, da legitimação dos alegados
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

fundamentos eurocêntricos dos direitos humanos. Também nes-


se campo do exercício do poder político e de sua a sustentação
no discurso jurídico, tem-se em vista a “reconstrução de discursos
outros que levem em conta histórias silenciadas, povos esqueci-
dos e culturas oprimidas” (ib. p. 206).

No centro da proposta do pensamento descolonizante,


configura-se a ideia de desobediência epistêmica. Essa perspec-
tiva emancipatória já se fizera germinar na própria modernidade,
como afirmação contra-hegemônica, mas, nessa sua gênese foi
sufocada, ocultada e inviabilizada. Só muito recentemente a ne-
cessidade da tomada de uma iniciativa intencional, sistemática e
autônoma para denunciar e superar essa situação vem se afirman-
do, sendo explicitamente assumida. Toma-se consciência de que
a colonialidade ainda continua presente na modernidade, mesmo
vencido a colonialismo como exercício físico do poder político e
econômico. O abrangente sistema-mundo da modernidade expan-
de o modelo europeu a todo o novo mundo descoberto e coloniza- 275
do, impondo a dominação do outro não europeu e a representação
de um modo de saber que universaliza a experiência particular da
logosfera europeia.

Reconhecer a colonialidade como uma dimensão


constitutiva da modernidade é o primeiro passo para descolo-
nizá-lo, pois esse fenômeno desafia não só a concepção de que
a Modernidade é um fenômeno interno à Europa, mas também
a concepção moderna de ser humano racional que se supõe ser
o sujeito dos direitos humanos. Ao propor que a Modernidade
inaugura um sistema-mundo em que a Europa passa a ocupar
o lugar de centro e o resto do mundo a sua periferia, mostra que
a concepção de história como um caminho linear em direção ao
progresso liderado pela Europa é um disfarce para o poder de
dominação que exerceu sobre o resto do mundo com vistas a seu
próprio proveito. E que a forma como exerceu esse poder arti-
culou-se não apenas no uso da força bruta, mas na construção
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

de discursos que produziram, de um lado, os outros irracionais


e não humanos, a quem se pôde explorar, e de outro, os racio-
nais humanos, representantes de um particular padrão cultu-
ral, cuja superioridade os tornou sujeitos naturais dos direitos
humanos (BRAGATO, 2014, p. 225-226).

Mitos de superioridade moral e epistemológica criados


na modernidade colonial.

Manuel Tavares31 e o resgate das memórias


marginalizadas
Seguindo a mesma linha de pensamento contra-hegemô-
nico, Manuel Tavares (2014) traz um novo olhar para as discus-
sões ao restituir à memória papel de fundamental importância na
276 construção das identidades individual e coletiva.

Parte da premissa de que existe um lado sombrio na his-


tória da humanidade caracterizado pela proibição da manifesta-
ção de saberes que foram silenciados e escravizados pelos proces-
sos de colonização. Neste sentido, a história contemporânea surge
como resultado da “diferença colonial” (TAVARES, 2014, p. 75) que
trabalha para garantir a distorção do imaginário histórico-cultu-
ral de uma civilização ao contribuir para manutenção e perpetua-
ção dos ditames do colonizador.

31 Manuel Tavares é graduado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, doutor em Filosofia


pela Universidade de Sevilha. Atualmente, é Professor na Universidade Nove de Julho (Unino-
ve), em São Paulo, no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE), integrando a linha
de pesquisa Políticas Educativas. Dedica-se aos estudos voltados para o pensamento de Paul
Ricoeur, epistemologias contra-hegemônicas, estudos pós-coloniais e epistemologias do Sul.
Dedica-se igualmente ao estudo do sindicalismo docente em Portugal e ao estudo da inclu-
são da diversidade cultural e epistemológica na educação superior, centralizado no estudo
das novas universidades brasileiras e latino-americanas emergentes nos últimos dez anos.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

O término da dominação política das colônias não trouxe


de maneira efetiva modificações nas estruturas mentais, sociais e
políticas. Segundo Tavares (2014), “A problemática da libertação
exige a reconciliação dos povos consigo próprios pelo reconhe-
cimento do seu lugar na história e na sua construção” (p. 77). É
preciso que haja uma reinvenção dos modos de perceber, inter-
pretar, agir e interagir com a realidade e com a própria existência.
Esse movimento ganha força com a afirmação das “racionalidades
resistentes” (ib., p. 78) ou, porque não dizer, “razões resistentes”
partejadas no anseio humano em corrigir as inúmeras injustiças
causadas pela opressão ao tentar impor uma racionalidade como
forma de pensar a universalidade da existência.

A memória encontra, nessa perspectiva, campo fértil para


semear os subsídios necessários ao fortalecimento epistêmico das ra-
zões resistentes. É por meio da reconstrução da memória social que
os sujeitos se tornam habilitados a compreender o próprio processo
histórico, o imaginário sociocultural do qual fazem parte e a cons- 277
truir uma identidade coletiva.

A comunicação exercerá papel decisivo na reconstrução


da memória sócio-histórica e da identidade de uma população,
contribuindo para reportar a verdade dos acontecimentos recon-
ciliando o presente com o passado ao desmistificar as concepções
culturais construídas sob a ótica dos que detêm o poder. Nesse
sentido, constitui ferramenta essencial para a construção da con-
cepção da identidade que está intimamente ligada à noção de cul-
tura, sendo necessária para o reconhecimento das especificidades
de determinadas configurações sociais. Embora todas as cul-
turas estejam sujeitas ao encontro com outras culturas e, como
consequência tornem-se híbridas, é mister reconhecer a conser-
vação de traços identitários como, por exemplo, as manifestações
simbólicas resistentes às influências externas.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Cultura é algo que se faz, se constrói por mediações


múltiplas, por encontros e desencontros e ao quadro que daí sur-
ge se chama identidade. Identidade é, pois, um movimento, um
percurso entre o ser e o não ser, uma potência que se gera e um
vir a ser permanente (TAVARES, 2014, p. 83).

Sendo assim, a crioulização aventada por Edouard Glis-


sant, anteriormente citado, potencializa a transposição das frontei-
ras identitárias rompendo a falsa universalidade, o monolinguismo,
a predominância de uma epistemologia unificante que inscreve as
culturas periféricas na lógica universal.

Na medida em que as representações individuais são for-


madas a partir das representações sociais, a memória surge como
instrumento de coesão social reforçando valores identificados, re-
conhecidos e legitimados pelo grupo social. É sob essa ótica que
se viabiliza a consciência de si, do outro e da coletividade, reve-
lando as contingências das relações sociais e, ao mesmo tempo,
278 demonstrando a amplitude política da memória.

Segundo Tavares (2014) para promover o resgate e a re-


construção da história da humanidade é preciso dar voz às memó-
rias marginalizadas e oprimidas, pois é na confluência das percep-
ções mnemônicas oprimidas com as memórias opressoras que se
dá a verdade histórica.

O processo de colonização ao desqualificar as memórias e


as experiências oprimidas violenta, não só fisicamente a (o) oprimida
(o) deixando marcas visíveis em uma dada população, mas também
a submete a uma dominação pela via do conhecimento considerada
a mais violenta e longeva de todas as formas de manipulação social.
O termo cunhado por Aníbal Quijano, “colonialidade do poder” (ib.,
p. 95-96) explicita de maneira assertiva as implicações do processo de
colonização epistêmica que perdura, na contemporaneidade, bali-
zando as relações e mantendo as estruturas mentais colonizadas pela
incidência da violência explícita ou simbólica.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

Manuel Tavares (2014) ao reafirmar conceitos como “dife-


rença colonial”, “colonialidade do poder”, “colonialidade do ser”,
“colonialidade do gênero e da sexualidade”, “insurreição dos sabe-
res subjugados”, “saberes marginalizados, subalternos, subalter-
nizados”, “crioulização” entre outros, contribui com os discursos
em prol da quebra de paradigmas que tenta adensar os debates
em prol da libertação, mas não apenas de uma libertação política
e econômica, acima de tudo, de uma libertação epistêmica. Seu
posicionamento contribui para a consolidação dos construtos in-
telectuais que concorrem para promover um olhar diferenciado
sobre as questões hegemônicas, traço de uma resistência ontoló-
gica traduzida em necessidade política.

Implicações da nova epistemologia para a filosofia


da educação 279
Do exposto cabe concluir que essa nova postura teórica e
política, vinculada a esse “giro” filosófico pós-colonial e decoloni-
zante, leva a algumas inferências relacionadas ao entendimento
filosófico da educação no contexto latino-americano:

a. O filosofar passa a ser entendido e praticado como


efetiva prática de etnoconhecimento.

Por perspectiva etnofilosófica, entende-se a prática do


conhecimento a partir das raízes culturais da própria comunida-
de em sua real condição histórico-social. Ela implica uma postu-
ra de questionamento e superação do silenciamento imposto ao
pensamento nativo pela intervenção colonizadora que produziu
um epistemicídio das formas de expressão das culturas locais pré-
-existentes à chegada dos europeus e impediu que a comunidade
latino-americana, que se formou ao longo dos últimos 500 anos,
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

constituísse uma identidade própria e trilhasse caminho diferente


daquele traçado pela matriz cultural do colonizador. Daí a neces-
sária crítica à pretensão de universalismo da epistemologia funda-
da na logosfera da tradição ocidental, pleiteando-se para a filoso-
fia latino-americana uma perspectiva epistemológica fundada em
sua própria logosfera. Trata-se então de uma abordagem apoiada
em epistemologias contra-hegemônicas, entendida como prática
teórica que se vincula dialeticamente à imanência existencial na
temporalidade histórico-cultural de cada sociedade bem como à
transcendência da atividade subjetiva de doação de sentido à con-
cretude desse existir histórico.

b. A interculturalidade passa a ser exigida como me-


diação do diálogo filosófico.

Por perspectiva intercultural, entende-se a postura de


que, uma vez reconhecida a pluriculturalidade existente em nosso
280 contexto, se proceda à busca e ao investimento com vistas a uma
efetiva interação e convivialidade entre essas múltiplas culturas,
numa relação de reconhecimento e respeito mútuos, sem hierar-
quização e hegemonia entre elas.

Assim, este ensaio propõe explicitar e destacar algumas


contribuições de pensadores que desenvolvem essa reflexão no
contexto brasileiro, participando então desse movimento de de-
bate e de crítica, para, em seguida, refletir sobre as implicações
dessas novas perspectivas filosóficas, de perfil etnoepistêmico e
decolonizante, sobre a teoria e a prática da educação, em nosso
contexto histórico.

Sendo assim, o filosofar deve ser compromissado com a


proposta da libertação, entendida como emancipação humana.
Para tanto, precisa começar como etnofilosofia, a ser desenvolvida
com base no reconhecimento da realidade de interculturalidade
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

que marca o tecido da realidade social contemporânea. Trata-se,


para um filosofar autêntico, de assumir um compromisso denso
com a causa da emancipação, articulando suas dimensões ética e
política, não só no posicionamento prático do filósofo como pes-
soa, mas também no seu discurso teórico. A abordagem etnofilo-
sófica se compromete com a causa emancipatória dos segmentos
excluídos da humanidade, contribuindo assim para a luta contra
a opressão. É sempre um permanente investimento com vistas à
superação da condição de colonização por nós ainda vivida.

De igual modo, o cultivo da filosofia parece demandar a


assumpção de um modo de pensar que leve em conta a experiên-
cia vivida pelas diferentes comunidades e suas diferentes culturas.

No que concerne à experiência latino-americana, a Filo-


sofia da Liberação nasce do reconhecimento, por parte dos pen-
sadores desta região, da condição de dominação pelo colonizador
metropolitano, condição que incluiu a imposição também de um 281
pensamento filosófico, fundado na logosfera europeia, que sufoca
e desqualifica o pensamento local, operando um verdadeiro epis-
temicídio do pensamento local.

Para se libertar, os povos oprimidos precisam também


libertar seu pensamento das malhas do pensamento dos domina-
dores. Precisam evitar todas as formas do epistemicídio que acom-
panhou o processo da colonização.

No caso latino-americano, impunha-se, segundo esses


pensadores, uma desconstrução crítica da filosofia eurocêntrica,
explicitando e denunciando sua tendência à dominação. Ao mes-
mo tempo, se fazia necessário construir um outro modo de pensar
filosófico que pudesse se articular a um processo de libertação do
outro oprimido (BOUFLEUR, 1991).
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Não se trata mais de se diluir numa suposta filosofia uni-


versal que, na realidade ocidental, não passou da imposição for-
çada do filosofar eurocentrado, nem se isolar num pensar autos-
suficiente e incomunicável, que não estabelece pontes com outros
pensamentos. Trata-se de um discurso dialogante, que supõe a
alteridade e com ela estabelece comunicação, pois o diálogo filo-
sófico se constitui no seio da matriz de um diálogo intercultural
capaz de reconhecer as idiossincrasias que perpassam a trajetória
da construção do processo existencial. Esta posição pode ser sus-
tentada tendo como alicerce a consolidada obra de Raul Fornet-
-Bettancourt. Para ele, interculturalidade é

... aquela postura ou disposição pela qual o ser hu-


mano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências
identitárias em relação com os chamados ‘outros’, quer dizer,
compartindo-as em convivência com eles. Daí que se trata de
uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um pro-
282 cesso de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual. É
uma atitude que, por nos tirar de nossas seguranças teóricas e
práticas, permite-nos perceber o analfabetismo cultural do qual
nos fazemos culpáveis quando cremos que basta uma cultura, a
‘própria’, para ler e interpretar o mundo (2004, p. 13).

A postura intercultural pressupõe, portanto, a admissão


de que o conhecimento humano se enraíza em contextos históri-
co-sociais bem concretos das diferentes culturas, não procedendo
condoreiramente de um logos universal que dispensasse qualquer
vinculação às culturas singulares. Nessa direção apontam as afir-
mações incisivas de Raul Fornet Bettancourt quando, ao tratar da
prática da filosofia na América Latina, fala em “superar o uso colo-
nizado da razão, que continua cúmplice da herança colonial” (ib.,
p. 13), que mantém “a vigência normativa do cânone estabelecido
pela tradição acadêmica centro-europeia na metodologia filosó-
fica” (ib., p. 24), quando se desconhece o que é pensado, falado e
escrito nas línguas nativas.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

É por isso que, parafraseando novamente os etnomate-


máticos, assim como não procede um “adeus, Pitágoras”, quando
se trata de etnomatemática, a mesma consideração cabe ser fei-
ta em relação à Filosofia. Não cabe mesmo um “adeus Platão...”.
Também a Filosofia viva atual precisa dialogar, na linha do tempo,
com a tradição filosófica, e com as múltiplas versões do filosofar
contemporâneo, na linha da espacialidade sociocultural; mas isso
não implica perder-se no outro dessas tradições, sobretudo, em
nosso caso, alienar-se no pensamento eurocentrado.

c. A nova perspectiva filosófica, sob sua tríplice dimen-


são [epistemológica, axiológica e antropológica], im-
plica igualmente um compromisso especificamente
politico-pedagógico.

A destinação da Filosofia criticamente concebida e pra-


ticada não pode ser outra se não a de contribuir para preparar as
novas gerações a que cabe construir uma civilização mais feliz. O 283
que ela só poderá fazer se se compromissar com um processo pe-
dagógico e político de emancipação dos homens historicamente
situados, daí o compromisso da Filosofia de se engajar numa ta-
refa educacional e política consistente, compartilhando o projeto
de assumir a complexidade da condição humana, propondo a se
praticar como sustentadora de uma modalidade de etnoconheci-
mento e como uma abordagem intercultural do conhecimento.

A concepção teórica e as experiências práticas da etnofi-


losofia suscitam uma intervenção epistêmica e pedagógica muito
mais abrangente do que o próprio campo do conhecimento cien-
tífico, demandando e envolvendo toda uma postura filosófica. Põe
em ação uma reflexão filosófica, que recorta as esferas do episte-
mológico, do antropológico, do sociológico, do político, do ético,
em suma, de toda a esfera cultural.
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Não há como não reconhecer, implícita nessa postura fi-


losófica, uma crítica à hegemonia da racionalidade ocidental e a
afirmação da necessidade de se implementar práticas de raciona-
lidades silenciadas pela dominação epistemológica da filosofia do
Ocidente europeu.

Considerações finais
O presente ensaio trafegou por articulações teóricas empe-
nhadas no questionamento da tradição epistemológica vigente na
sociedade latino-americana como se tivesse valor universal. Esse
questionamento resulta da percepção do teor não puramente filo-
sófico dessa tradição, que carrega em seu cerne articulações episte-
mológicas propagadoras e disseminadoras da lógica eurocentrada
ocidental como ferramenta essencial de conhecimento do mundo.
284
Empenhados em manter o domínio sobre as terras coloni-
zadas, os colonizadores não pouparam esforços para conduzir todo
o processo “civilizatório” pautando-se nas epistemologias e no mo-
dus vivendi que lhes eram próprios. Nesse sentido, a colonização
causou irrevogáveis supressões de saberes originários, declarando
o desaparecimento de conhecimentos singulares relativos a inúme-
ras sociedades que se viram subjugadas e alocadas a uma realidade
dissociada da compreensão originária sobre a própria realidade.

A força ideológica da colonização instituiu uma forma sin-


gular e universal de interpretar as diversas manifestações culturais
que nutriam a maneira como os povos colonizados elaboravam suas
experiências, dando sentido e se situando no campo da própria exis-
tência. Essa forma de atuação dilacerou costumes, valores e referên-
cias originais, impedindo a livre manifestação dos saberes nativos, si-
lenciados, ocultados e usurpados na relação colonizador-colonizado.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

O movimento epistemológico germinado a partir do sul


colonizado viu-se comprometido com a prerrogativa de buscar,
de forma analítica e crítica, a decolonização epistêmica, teórica
e política das regiões que foram submetidas os ditames coloniais,
promovendo o levante e a ressignificação do sistema simbólico,
epistêmico e representacional dessas localidades.

Para tentar superar os marcos de colonialidade instaura-


dos como fio condutor das representações sociais e epistêmicas,
legitimadas como universais, os movimentos teóricos contra-he-
gemônicos passaram a identificar e denunciar a proposta euro-
cêntrica de colonização, não só econômica e física, mas também
epistêmica, propondo a transposição dos alicerces que edificam
as representações, tradutoras do modo de ser dos seres humanos
no contexto sociocultural.

O ápice dessas articulações, na América Latina, deu-se


com a formação Grupo Modernidade/Colonialidade encabeçado 285
por Walter Mignolo, sob a alegação de que era preciso criar um
grupo gestado em solo latino-americano capaz de refletir as idios-
sincrasias dessa realidade.

A imposição do paradigma filosófico eurocentrado ga-


nha, ao longo do tempo, o centro da arena das discussões, eviden-
ciando de maneira acentuada o sufocamento, silenciamento da
livre expressão do conhecimento, a supressão das culturas locais e
o desprezo pelo valores e costumes que estruturam as representa-
ções simbólicas da realidade, fundamentais como referência para
uma prática educativa.

Ao sugerir o deslocamento do paradigma eurocentrado


para paradigmas concebidos pelas epistemologias locais, esse
grupo de intelectuais traz à tona um leque de conceitos que de-
nunciam a prevalência da relação colonizador-colonizado. Den-
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

tre eles é possível destacar: diferença colonial, colonialidade do


poder, geopolítica do conhecimento, transmodernidade, desco-
lonial, decolonial etc. Esse processo não significa instituir uma
nova gramática epistemológica, mas promover, tal qual sugerido
por Catherine Walsh, uma genealogia do pensamento.

Os autores apresentados nesse ensaio comungam a ideia


da necessidade de transpor epistemologicamente por meio da
descoberta e revalorização das teorias e dos saberes do sul, de(s)
colonizando as mentes e os padrões ocidentais em vigor. Cada um
a seu modo, procurou evidenciar a importância das diversas arti-
culações depreendidas dos movimentos intelectuais oriundos da
necessidade ontológica do sul colonizado de existir como parte de
um todo que se encerra na visão do universal.

A Filosofia como instrumento de reflexão sobre o existir


humano e as reais possibilidades dessa existência não pode se ver
286 apartada dessas articulações. Embora, no Brasil, ainda esteja um
tanto quanto impregnada pelas concepções tradicionalistas euro-
peias, vem se apropriando de uma postura autônoma e criativa,
que favorece a aproximação com as articulações crescentes das
teorias contra-hegemônicas. Tomar o lugar que lhe é devido nesse
cenário, não parece tarefa fácil, mas vigora como condição sine
qua non para uma participação efetiva a fim de assessorar a imple-
mentação de novas perspectivas epistemológicas.

A Filosofia precisa, portanto, aparar as arestas para fazer


jus ao seu propósito maior, refletir sobre o ser humano e as reais
possibilidades de existência.
CAPÍTULO 11: “POSIÇÕES DECOLONIZANTES NO PENSAMENTO
FILOSÓFICO-EDUCACIONAL NO BRASIL

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SOBRE OS AUTORES

Sobre os autores

Abdiel Rodríguez Reyes


É pesquisador do Centro de Investigaciones de la Facul-
tad de Humanidades de la Universidad de Panamá. Presidente de
la Asociación Centroamericana de Filosofía. Forma parte de la
Red de Pensamiento Decolonial (www.rpdecolonial.com/). E.mail:
abdiel.rodriguezreyes@up.ac.pa

Adolfo Ramos Lamar


É professor do Programa de Pósgraduação em Educação da 293
Universidade Regional de Blumenau PPGEFURB), Blumenau, Santa
Catarina, Brasil. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Filosofia e Edu-
cação/Educogitans do PPGEFURB. Doutorado em Educação e mes-
trado em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual
de Campinas e pósdoutorado em Filosofia da Educação pela Univer-
sidade de São Paulo (2007), Brasil e Licenciatura em Filosofia pela
Universidad de la Habana (1982). E.mail: ajemabra@yahoo.com.br

Antonio Joaquim Severino


É bacharel e mestre em Filosofia pela Université Catholi-
que de Louvain; doutor em Filosofia, pela PUCSP; livre-docente e
titular em Filosofia da Educação, pela FE-USP; professor aposen-
tado de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP;
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

é atualmente docente pesquisador junto ao PPGE da Universidade


Nove de Julho, em São Paulo, onde também coordena o GRUPE-
FE [Grupo de Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação]. Suas
pesquisas atuais situam-se no campo da Filosofia e da Filosofia da
Educação, no contexto dos pensamentos brasileiro e latino-ameri-
cano. E.mail: ajsev@uol.com.br

Claudio Domingos Fernandes


É formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia e Te-
ologia Paulo VI. É Mestrando em Filosofia da Educação na Uni-
versidade de São Paulo (USP) e Participa do Grupo de pesquisa
em Filosofia da Educação (GRUPEFE), na Universidade Uninove.
E.mail: cdomingosfernandes@hotmail.com

294

Daniel Pansarelli
É professor da Universidade Federal do ABC, sendo seu
atual Secretário-Geral. Docente no Programa de Pós-Graduação
em Filosofia e nos cursos de graduação em Filosofia (bacharelado
e licenciatura) e em Ciências e Humanidades (bacharelado). Foi
Pró-reitor de Extensão e Cultura (2014-2018), coordenou o Bacha-
relado em Filosofia (2011-2012), a Licenciatura em Filosofia (2012-
2013) e foi vice-coordenador do Bacharelado em Ciências e Hu-
manidades (2013-2014). Coordenou também o Colégio de Extensão
(COEX) da Andifes (2016-2018) e foi presidente nacional do Fórum
de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasilei-
ras (Forproex) (2017-2018). É filósofo, doutor em Educação, área
Filosofia e Educação, pela FEUSP. Atua principalmente em temas
relacionados a: ética e filosofia política; filosofia moderna e con-
SOBRE OS AUTORES

temporânea; filosofia e educação; América Latina. Coordena o GT


Filosofia na América Latina, Filosofia da Libertação e Pensamen-
to Descolonial (ANPOF); lidera o Grupo de Pesquisas Perspectivas
Críticas da Filosofia Moderna e Contemporânea (UFABC/CNPq), é
membro do Centro de Filosofia Brasileira (PPGF/UFRJ), do GT Éti-
ca e Cidadania (ANPOF), do Laboratório de Pesquisa e Ensino de
Filosofia (UFABC) e da Asociación Latinoamericana de Filosofía
de la Educación. E.mail: daniel.pansarelli@ufabc.edu.br

Eduardo Freyre
É pesquisador colaborador do do Grupo de Pesquisa Filo-
sofia e Educação/Educogitans do PPGEFURB. Doutor em Ciências
Filosóficas e Licenciado em Filosofia pela Universidade de Mos-
cú, Rússia; Pós-doutor em Educação pela FE/UNICAMP. E.mail:
freyre.roach2016@gmail.com 295

Eugênio Rezende de Carvalho


É mestre em História pela Universidade Federal de Goi-
ás, doutor em História Social e das Ideias, pela Universidade
de Brasília e fez estágio postoural em História, na USP. Tem se
dedicado à investigação na área de História das Américas, es-
pecialmente da América Latina bem como na área de Teoria e
Filosofia da História, abordando privilegiadamente os temas de
história intelectual e das ideias na América Latina e Caribe, sob
a perspectiva da temporalidade histórica. Foi professor visitante
na Universidad Nacionalde Cordoba, Argentina, e na Universi-
dad Nacional Autonoma do México, UNAM. Desde 2009, é bol-
sista Produtividade em Pesquia do CNPq, nivel 2. Atualmente é
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

professor titular de História da Universidade Federal de Goiás.


E.mail: eugeniodecarvalho@gmail.com

José Eustáquio Romão


É doutor em História Social e em Educação pela Univer-
sidade de São Paulo (USP); Diretor Fundador do Instituto Paulo
Freire do Brasil; Presidente do Conselho Mundial dos Institutos
Paulo Freire, Diretor e Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE-Uninove)
de São Paulo. Foi membro do Conselho Nacional de Educação.
E-mail: jer@terra.com.br.

296 Manuel Tavares


É doutor em Filosofia pelo Programa Fenômeno, Signo e
interpretação, da Faculdade de Filosofia da Universidade de Se-
vilha. Defendeu a sua tese de doutorado sobre o pensamento de
Paul Ricoeur: El problema del mal y el sentido de la existencia.
É professor do Programa de Pós Graduação em Educação (PPGE)
da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), integrando a linha de
pesquisa Políticas educacionais, participando do Grupo de Pesqui-
sa sobre Políticas da Educação Superior (GRUPES). Integra ainda o
Grupo de Pesquisa OBEDUC (Observatório da Educação) e lidera
o Grupo de Pesquisa Fundamentos Epistemológicos das Políticas
Educacionais (GRUFEPE). Atuando na área da educação, dedica-
-se a temas de Educação Popular, Epistemologias e metodologias
da pesquisa, Epistemologias contra-hegemônicas, Antropologia
Filosófica, Filosofia da Educação, Ética e Hermenêutica. E-mail:
manuel.tavares@outlook.com.br
SOBRE OS AUTORES

Maurício Langon
É professor de Filosofía (Instituto de Profesores Artigas,
Uruguay). Realizou seus estudos de Filosofía na Universidad del
Salvador, Argentina, no Instituto Magisterial Superior, Uruguay,
e na UNED, Madrid. Ministra seminarios e orienta teses de mes-
trado na Universidad de la República e no IPES (Instituto de Per-
feccionamiento y Estudios Superiores). Atuou como professor e
inspector de Filosofía da Educacão Secundaria (Uruguay); foi pro-
fessor nas universidades de la República (Uruguay), Morón y del
Salvador (Argentina) e no Instituto de Professores Artigas (IPA,
Uruguay). Foi presidente da Asociación Filosófica del Uruguay e
miembro fundador do Filosofar Latinoamericano” e do“Corredor
de las Ideas.”Ganhou o Premio Nacional Morosoli en Filosofía.
E.mail: mlangon@gmail.com

297
Ofélia Maria Marcondes
É doutora e mestre em Filosofia da Educação pela Uni-
versidade de São Paulo – USP; bacharel em Filosofia também
pela Universidade de São Paulo – USP; licenciada em Pedagogia
pela Universidade de Mogi das Cruzes – UMC; professora de
Filosofia da Educação no Instituto Federal de São Paulo – IFSP;
pesquisadora junto ao GRUPEFE – Grupo de Pesquisa e Estudo
em Filosofia da Educação, trabalhando no campo da Filosofia
e da Filosofia da Educação. Faz estágio de pós-doutorado jun-
to ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da UNINOVE.
E.mail: ofelia.marcondes@gmail.com
FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO NA AMERICA LATINA APROXIMAÇÕES, PERSPECTIVAS E DIÁLOGOS

Renato Huarte Cuéllar


Es profesor de carrera en el área de Filosofía de la Educa-
ción en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional
Autónoma de México, tanto a nivel licenciatura como posgrado.
Es licenciado en pedagogía y en filosofía por la misma Univer-
sidad, en donde también cursó la maestría y el doctorado. Sus
investigaciones abordan los elementos de las “tradiciones” de filo-
sofía de la educación desde distintas miradas. Dirige el proyecto
de investigación “Las tradiciones de filosofía de la educación en
América Latina” (PAPIIT IA401216) en la UNAM y desde 2010 co-
ordina el Seminario de Filosofía de la Educación en dicha Facul-
tad. Es miembro fundador de la Asociación Latinoamericana de
Filosofía de la Educación (ALFE) del cual ha sido presidente (2015-
2017). También es miembro desde 2010 de la Red Internacional
Filósofos de la Educación (INPE por sus siglas en inglés).

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Sandra Gomes
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação (PPGE) da Universidade Nove de Julho (UNINOVE).
Defendeu a sua dissertação sobre Formação Continuada de Pro-
fessores da Educação Superior, especificamente da Universidade
Federal do ABC. Doutoranda em Educação no Programa de Pós-
-Graduação em Educação (PPGE), UNINOVE Integra a linha de
pesquisa de Políticas Educacionais e é Professora da Instituição
no curso de Pedagogia. E-mail: san.r.gomes@hotmail.com
Q
ueremos que os autores publiquem
seus livros e que os leitores passem por
uma experiência inesquecível. Para isso,
repensamos o modelo editorial e chegamos em
um formato moderno, simples e criativo.

Um autor tem histórias para contar e nós


pensamos nas formas possíveis de conta-las...

...e até nas impossíveis.

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Publicado por Cartago Editorial.


Impresso no Brasil.
Junho de 2019.

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