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Isilda Campaner Palangana DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM EM PIAGET E VIGOTSKI Arelevancia do social 6° edigdo revista 3 A relevancia do social numa perspectiva interacionista Nas turtmas picapas, as teorias que adotam a perspectiva interacionista como matriz, a partir da qual se pode explicar de forma mais satisfatéria 0 processo de con: mento, adquiriram destaque nos meios educacionais brasilei Parajque se possam sistematizar algumas consideragd¢s a respei- to djs diferentes condutas inter dois mo em pauta (de niente lembrar em que consiste uma abordagem interacionista, Como se sabe, 0 proceso de conhecimento implica uma relagio busca conhecer € 0 objeto a ser conhecido, de tal forma que se estabelecem relagdes reciprocas entre ambos, as quai modificam tanto 0 polos, mas sim a interagio que se estabelece entre eles. Alguns autores, mesmo apostando nessa interagéo como condigio para que 0 conhecimento se realize, ou seja, mesmo sendo interacio- nistas, atribuem ora Piaget e Vigotski compartilham a otganismo ativo na construgao do con s, ambos adotaram uma conduta rec: como se pode percebe longo das reflexes anteriores, Vigotski analisou 0 desenvolvi- 139 ‘mento das fangbes cognitivas especificamente humanas a partir de principios interacionistas, diferentes dos assumidos por Piaget. Justifica-se tal afirmativa por se considerar que, na verdade, Vigotski adotou como matriz epistemolégica de seu interacionis- mo a dialética materialista, enquanto Piaget fundamentou-s bretudo, no método estruturalista Vigotski nao s6 detinha maior conhecimento a respeito da corrente epistemolégica que o influenciou, como, em razao disso, foi capaz de conceber o organismo humano com um alto grau de plasticidade e de considerar o impacto que a variacéo do ambi te sdcio-histérico pode exercer sobre o desenvolvimento cognit vo, Precisamente por ter assumido esse ambiente como contexto cultural, histérico e, portanto, em constante transformacao, é que seu pensamento diferencia-se do de Piaget. Enquanto Vigotski preocupou-se em explfcitar a unidade dia- lética entre fatores biolégicos e culturais, ou seja, preocupou-se ‘com as interagdes entre as condigées sociais em constante muta~ ‘40 € 0 substrato biolégico do comportamento, Piaget adotou um suporte mais biolégico, que the permitiu postular um cardter universal dos estagios de desenvolvimento. ‘Um dos principais pontos a ser observado, em qualquer teoria do desenvolvimento que se proponha interacionista, é a forma como concebe a relagio entre as bases biolégicas do comporta- mento € as condigdes sociais nas quais e pelas quais humana ocorre, Para enfrentar essa questio, Vigotski propés um sistema funcional do aprendizado. Como tantos outros tebricos, le admitin que os sistemas funcionais esto enraizados nas res- postas adaptativas mais basicas do organism, tais como os refle- x0s condicionados e inconclicionados. A contribuigao trazida por Vigotski est, justamente, na forma como ele analisou a relacéo entre os processos biolégicos e os de natureza s6cio-histérica, As primeiras formas de comportamento humano ~ 4s quais Vigotski denominou de estruturas elementares ~ constituem tota- lidades psicolégicas construidas basicamente por determinantes ividade 140 biolégicos, por processos reativos. Jé as estruturas seguintes (ow superiores), quer dizer, as formas de comportamento mais com- plexas, emergem todas do processo de desenvolvimento cultural Inicialmente, as respostas que as criangas dio a0 mundo sito de- terminadas pelos processos biolégicos (estruturas elementares de reagio do organismo). Mas, na constante mediagao com adultos ‘ou pessoas mais experientes, os processos psicoldgicos comple- x05, tipicos do homem, comegam a tomar forma. Assim, é na ¢ pela interagao social que as fungGes cognitivas so elaboradas. Nesse sentido, a possibilidade de o homem constituir-se como sujeito e apropriar-se das conquistas efetuadas pela espé- ie esté, de um lado, condicionada ao desenvolvimento de seu sistema nervoso ¢, de outro, & qualidade das trocas que ocorrem entre qs individuos. Verfica-se, portanto, uma relagio eciproca entre a maturacio e as interagdes sociais no processo ¢e co tuiggo e desenvolvimento dos seres humanos, Em fungao das variagdes histéricas nos contextos, as quais determinam, em larga medida, as diferentes oportunidades para cada sujeito, nto € possivel admitir um esquema universal que represente adequa- damente as relagdes dindmicas entre aspectos endégenos e exb- genos no processo de desenvolvimento. Logo, os sistemas funcionais de aprendizagem de vérias criangas, ainda que sejam semelhantes, no podem ser tomados como idénticos. Ha de se considerar as peculiaridades histéricas e sociais de cada mo- ‘mento, mais especificamente, as condigdes e oportunidades que se colocam para cada uma delas, pois, a depender dos instru- mentos de pensamento disponiveis, suas mentes terdo, por con- sequéncia, estruturas diferentes. Piaget, provavelmente influenciado pela filosofia kantiana e pelas epistemologias que dao suporte a seu modelo tedrico, adotou uta postura ao discutiras relagdes entre o biologico e o social no processo de desenvolvimento, Ao enfatizar o principio da recapi- tulagao biogenstica na espécie, ele ex cao privilegi 0 0 sujeito e nao a interagao entre os dois polos. Como se sabe, na teoria piagetiana a construso do conhecimento é determinada, fandamentalmente, pela agéo da crianga. Dispondo dos mecanis- mos de adaptagao e organizagao, bem como do nivel de maturagio requerido pela experiéncia, a crianga interage com o meio, cons- truindo estruturas de conhecimento cada vez mais complexas esse sentido, 0 que interessa & concep piagetiana sfo as coniribuigées do sujeito no processo de desenvolvimento, referindo-se apenas tangencialmente e de forma genérica ao con- texto social em que ele esta inserto. Como um auténtico estruturalista, Piaget acreditava ter desven- dado as formas, ou seja, a esséncia dos mecanismos pelos quais 0 pensamento se desenvolve, Essas formas universais estariam muito além de posstveis variagdes contextuais, decorrendo dato fato de o tedrico nao ter se ocupado, como Vigotski, con} o peso do social na indica interativa, Por conseguiinte, Piaget naq definiu claramente sila compreensio de meio fisico e social. Na medida em que pr za a acho individual da crianga no processo de conhecimento, a relagéo entre sujeito e objeto escapa & matriz dialética, uma vez que a interdependéncia entre os dois polos da unidade nao ¢ equilibra- da: € 0 sujeito que age sobre 0 meio fisico e social. Portanto, é prin- cipalmente a agio. individual que move 0 processo de cconhecimento, endo a interago ou as trocas que ocortem no meio ambiente, As interagdes sociais, para Piaget, sio necessarias, porém no sio 0 fator de maior peso no desenvolvimento. ‘Ao discutir a relagao entre 0 tempo € 0 desenvolvimento inte- lectual, Piaget fez algumas observagdes que podem cont para elucidar sua posigdo lagao ao papel do social nesse processo, Fle distinguiu dois aspectos do desenvolvimento men- tal, O primeiro é o aspecto psicossocial, que compreende tudo que a crianga recebe do ambiente exterior, ou seja, 0 que ela aprende por meio da transmissao familia, escolar e educativa em geral. © segundo aspecto diz respeito ao fator psicoldgico (es- pontineo), isto é, 20 desenvolvimento da inteli propriamente dita, as formas que a crianga elabora por si mesma. cia Piaget (19784, p. 212) insistia que seu interesse estava em. tudar 0 aspecto esponténeo ¢ essencialmente cognitivo do desen- volvimento, e justificava sua opgéo com base em dois motives: 1 tou psiedlogo endo educador io do tempo, & precisamente esse desenvolvimento esponténeo que também, porque, do ponto de vista constitu a con 9 evidente € necessiria para o desenvalvi- mento escolar Em outras palavras, ele ndo estava interessado diretamente nos conteiidos acumalados ¢ transmitidos culturalmente, Ele preo- cupou-se em explicitar a construcéo dos instrumentos intelectuais, das formas logicas necessérias para a aquisigio de tais conteios. Consiflerando que, do ponto de vista piagetiano, a seqhéncia de evolugfio da légica infantil A do adulto é semprea mesmaja despei- to das variagbes historicas, estuidar a influéncia dos diferentes ambientes de desenvolvimento passa a ser secundétio. Nessa perspectiva, as transmissGes sociais por si s6s so insu- ficientes para promover o desenvolvimento, uma vez. que 86 se efetuam mediante a construgao de estruturas cognitivas que per- mitem & crianga se apropriar, via assimilago, dos contetidos transmitidos. Como a assimilagao est, i elmente, condi- cionada as leis do desenvolvimento esponténeo, quer dizer, @ aprendizagem implica a disponibilidade de esquemas operats- tios proprios da crianga, é a estes que, em principio, os estudos psicolégicos deveriam se ater para explicar como se dé 0 desen- volvimento do pensamento, Em sua obra Psicologia e pedagogia (1970), Piaget retomou essa questéo, demonstrandi ‘ver, sua preocupagao em assinalar o aspecto espontineo ¢ vamente autonomo do desenvolvimento das estruturas mentais, Para ele, o desenvolvimento da inteligéncia provém de pro- cessos maturacionais que podem ser estimulados pela educagio (Familiar ou escolar), mas que, no entanto, néo decorrem dela. processo de desenvolvimento constitui, pelo contrétio, a condi- mo. 13 fo prévia e necesséria de todo ensino. A gradativa maturagao do sistema nervoso abre novas possibilidades para que a crianga, por meio do exercicio funcional ligado as ages, promova seu desen- volvimento mental. A aquisigo de conhecimento depende das sinissGes educativas e sociais, mas 0 éxito nessa tarefa pres- supde a existéncia de instrumentos de assimilacao, sem os quais no se pode atingir a compreensio. Logo, a aprendizagem implica uma estruturagao do real. Como ja foi dito, 0 registro de todo e qualquer dado exterior re- quer a existéncia de condigSes inerentes & atividade no préprio sujeito. A construgao do conhecimento nao acontece sem que hhaja uma reestruturagao do contetido por parte da crianga, Piaget pretendia deixar laro que os mecanismos necessérios a essa reestifituragio no esto implicitos no discurso do traps- issor ~ cojo querem fazer acreditar os empiristas ~, mas im presentes na atividade interna do sujeito. Dessa forma, toda assimilagio é uma reivindicagao do sujeito, e todo desenvolvimento s6 pode ocorrer se as condigdes capazes de promover desequilibrios (entre assimilagio e acomodagio) ¢ de levar a novas reequilibragdes estiverem presentes. Portanto, conforme a teoria piagetiana, a linguagem e as interages sociais niio sio suficientes para promover a I6gica do pensamento. Ela s6 € compreendida gracas aos instrumentos de assimilagio e aco modagio do individuo, cuja origem encontra-se na coordenacdo geral das agbes e na construcao de operagdes mentais. Ainda de acordo com Piaget, hé as duas verdades fundamen- tais da psicologia das fungdes cognitivas. Primeira, 0 desenv ‘mento das operagdes intelectu: al decorre, efetivamente, das ages empreendidas pelo sujeito. A légica é, antes de tudo, a expresstio da coordenagao-geral das agoes. Segunda, a coordena Gio-geral das agdes, que compreende uma dimensio social, uma ver que, para P s coordenagdes inter e intraindividuais dos atos constituem um inico processo: 0 sujeito que age é ao mes- mo tempo, sede € resultado dessas coordenacées. Isso sig «que as operagies mentais sao construidas por intermédio da ago a ctianga nos meios fisico e social. Mais uma ver, pode-se cons- tatar que o fator social aparece na concepgao piagetiana como tum elemento secundario, naturalmente incluido, que est apenas implicito nas ages do sujeito: quem age estabelece relagdes com alguma coisa ou com alguém. Nesse raciocinio, o ambiente social 6 tdo somente o meio onde ~ por meio da cooperagio, no sentido estrito ~ as operagdes de cada um tornam-se, paulatinamente, socializadas. Nao hé, portanto, uma preocupagao central em re- lagdo & contextualizacao histdrica e social desse ambiente. Analisando a relevancia do contexto social na teoria psicoge- nética, Freitag (1986, p. 27) afirma que, apesar de Piaget “atribuir 0 ‘meio’ um papel estratégico na construgio da inteligéncia, a énfase maior recai sopre o meio dos objetos, relegando, em seu litimo modelo, 0 mujdo social a interagéo com sueitos a um segundo plano’. Os primeiros esctitos do autor sobre a psicogé- nese infantil atribufam destacada importincia & linguagem, colocando-a como elemento bésico na estruturagio do pensa- mento (ver Capitulo 1). Por conseguinte, as interagdes sociais também ganharam for- G2 no modelo teérico que estava nascendo. Mas, & medida que Piaget desenvolveu seus principios ¢ amadureceu suas reflexdes, essa énfase foi deslocada para a ago e a manipulagdo da crianga com 05 objetos, Quando ele sistematizou seu modelo Iégico (hoje 0 mais difundido), explicando o processo de desenvolvi- mento do pensamento desde o nascimento até a aquisigéo da ligica formal, ficou evidente que niio era mais a linguagem, ¢ sim a agio ~ movida pelo processo biolégico da maturagéo -, que estruturava seu pensamento, Assim, so as contradigdes que se colocam as agdes da crianga na interagio com 0 meio circundante que representam o principal fator responsével pelo processo de equilibragio majorante, ou seja, pela obtencao de niveis mais clevados e superiores de equilibrios provisérios na forma de pensar ¢ lidar com o mundo, Dada a importancia que Piaget atribuiu & ago do sujeito no processo de conhecimento, poder-se-ia pensar em uma possivel aproximagao entre seu modelo tedrico eo de Vigotski, uma vez que este tltimo também chamou a atengdo para a importancia da atividade humana no processo de formagao das fungdes comple- xas do pensamento. No entanto, é preciso notar que a ago, tal como foi concebida por Piaget, esta muito distante da compreen- slo de Marx sobre a categoria do trabalho produtivo (atividade) e que foi, posteriormente, aplicada na psicologia por Vigotski seus colaboradores. Como assinala Freitag (1985, p. 64-65), na abstata, como aco ividuo descontextualizado, a-hist6rico, que representa a iversis Este indi €o atopic intrioriznagBes asta, conse enratura decoys [el mo caso de Piaget geral de a expéciee sta ago & concebida de f jam atuando os mecanismos ‘tna fo por sua ver descontextualizadas sctais do pensamento da espécie Para Piaget, a acio & salmente realizada pela crianga € tem por objetivo promover seu préprio desenvolvimento. J& para ‘Vigotski, a atividade deve ser entendida como o trabalho organi- zado ¢ desenvolvido coletivamente em determinado momento histérico ¢ social. E por meio da atividade pritica, do trabalho, {que 0s homens interagem uns com os outros, criando ¢ transfor- mando a sociedade e a si proprios. Nessa perspectiva, a elaboragio das fungdes psfquicas do in- dividuo depende da apropriagao do contetido objetivo dispontvel na cultura. Esse conhecimento, acumulado pelas geragdes prece- dentes ¢ veiculado pelos signos ¢ instrumentos, é passado aos mais jovens por meio da interagio, das trocas sociais. Portanto, distanciando-se do postulado piagetiano, Vigotski acreditava que © sistema de atividade da crianga seria determinado, especial- mente, pelo grau de dominio que ela apresenta no uso desses mediadores do conhecimento: os instrumentos ¢ os signos. 146 Piaget partiu do principio de que o homem néo é um ser so- cial desde o inicio. Para demonstrar como ocorre 0 processo de socializagao, ele desenvolveu alguns conceitos particularmente interessantes, na medida em que colocam em evidéncia sua com- preenso quanto a fungio e ao valor das interagbes sociais Na tica piagetiana, 0 desenvolvimento da conduta social compreende basicamente trés fases: o pensamento autista, 0 ego- ctntrico ¢ o socializado, O primeito se apresenta essen! individualista e incomunicavel. Trata-se de uma forma de pensa- ‘mento subconsciente: os objetivos que o determinam eos proble- ‘mas que enfrenta ndo estao presentes na consciéncia, Sendo um pensamento que nio est adaptado a realidade, desenvolve-se em ‘um mundo imaginério, fantasioso, regido pelo principio do pra- zer. A tendéncia dessp pensamento ésatisfazer os prprios dese- jos, sem estar compregneticlo com o estabelecimento de verdades, Somns ee bua apes de wear linguagem, tem de recor- rer a procedimentos indiretos para expressar seus sentimentos. pensamento egocéntrico, por sua vez, € uma forma inter- ‘mediiria entre a conduta autista e a socializada. Ele procura adaptar-se & realidade, apesar de nao se expressar como tal. A a, sincrética, o que torna seus lgamento passa das premissas As conclusdes sem se preocupar com a explicagao das etapas que se encontram entre esses dois pontos, Nao ¢ uma l6gica equilibrada, no sentido em que apresenta pouco controle sobre as proposi- es: opera com esquemas pessoais, constituidos & base de analogias, ou seja, procede, basicamente, por comparacées, ob- servando semelhangas e diferengas Nessa linha de raciocinio, os esquemas perceptivos desempe- nham um papel importante, servindo como demonstragio ou apoio para as dedugdes. O egocentrismo revela, acima de tudo, lidade para lidar com o ponto de vista do outro. A aio egocéntrica & centrada no préprio sujelto e no apresenta, portanto, reversibilidade — ou seja, a capacidade para perceber mente {que algo realizado pode ser desfeito, voltando ao ponto de parti- da, O egocentrismo intelectual é, pois, uma atitude espontinea que comanda o pensamento da crianga nessa fase, permanecen- do pelo resto da vida em estado de inércia mental e voltando a atuar sempre que um novo patamar cognitivo precise ser alcan- sado, De acordo com Piaget, sair desse estgio implicaria nio tanto adquirir conhecimentos novos sobre os objetos € as pes- soas, mas descentralizar-se e dissociar 0 sujeito do objeto. Tsso significa tomar consciencia da sua subjetividade, situando-se no conjunto de perspectivas posstveis, ou seja, 0 sujeito se torna ea- paz de estabelecer relagdes comuns e reciprocas entre 0s objetos, as pessoas e seu préprio eu. 'Na teoria piagetiana, o egocentrismo social é explicado como ‘um reflexo ou jam caso particular do egocentrismo epistémico. 4 crianga descore ax pessoas do mesmo modo que descobre cs objetos, valendo-se dos mesmos mecanismos. Observe-se que as ilusdes de perspectiva ocorrem em relagio ao meio fisico e tam- bbém em relacéo ao grupo social. Tanto 0 egocentrismo de natureza epistémica como aquele «quea crianga revela nas atitudes sociais sto, na verdade, aspectos diferentes de um tinico fendmeno: a crianga, centrada em si mes- ma, projeta suas qualidades internas sobre os objetos eas pessoas is se dirige, Nas suas interacdes sociais, ela nao consegue 1 seu ego do de outrem. Uma vez que o pensamento permanece ignorando a si proprio, nao pode alcangat a conscién- cia da sua personalidade, Resta, entéo, perguntar como se dé a socializagdo da sua personalidade. Piaget defendia a ideia de que no plano social, assim como no epistemoldgico, a aquisigio de novos contetides ¢ um fator secundério no processo de descentralizagio, Essa problematica ¢ equacionada com a cons- trugdo de pontos de vista, quando o sujeito, sem abandonar sua premissa inicial, procura situé-los entre tantos outros possivets Assim sendo, a cooperagao ou a socializagio supde duas condi- des: primeira, tomar conhecimento de si proprio como sujeito & 18 desvincular o sujeito do objeto, no sentido de nao mais emprestar a0 iiltimo os caracteres do primeiro, Em segundo lugar, deixar de considerar seu ponto de vista como el e, conse- quentemente, coordené-lo em conjunto com outros. Em sintese, adaptar-se a0 meio “é construir um conjunto de relagdes, ¢ situar-se entre essas relagdes, gracas a uma atividade de coordenagao 4 izagao e reciprocidade nos pontos de vist Por intermédio da coordenagao gradual das agbes ~ denomi nador comum dos sistemas de operagoes da razao e da coopera- ao interindividual -, a crianga chega ao pensamento reversivel, condigéo bisica ¢ indispensével para participar, de fato, do circu- lo de cooperagoes sociais. A possibilidade dehaver trocas interpessoais,interagBes s0- clais efetivas, durante y infancig, fica ainda mais limitada quando se observa que o comifortamento egocéntrico manifesta-se tam- bém no desempenho linguistico da crianga, definindo a forma como ela se comunica com outras pessoas. Nesse modelo psico- genético, os diferentes estagios de desenvolvimento da fala esto estreitamente vinculados ao desenvolvimento das formas de co- operacao. A linguagem egocéntrica coincide com a cooperagao no plano da acdo, da mesma forma que o didlogo inteiramente socializado vincula-se a relagdes cooperativas mais especiali das, constatadas no nivel das ideias, A fala egocéntrica se identi- fica por estar inteiramente voltada ao proprio locutor: a crianga fala para si mesma, sem se importar com os ouvintes Nessa fase, a crianga nao esté preocupada em saber se alguém a ouve. A fala egocéntrica pode ser comparada a um monélogo no qual a crianca pensa em vor alta, Para Piaget, essa forma de comunicagéo néo cumpriria nenhuma fungdo especial no com- Fla é um apéndice da ago, embora nao seja constitutiva para esta, A tendéncia da fala egocéntrica é atrofiar- -se A medida que a idade escolar se aproxima. Por volta dos 7, 8 anos, 0 desejo de participar da coletividade e de comunicar-se v9 com outros fica mais intenso, ¢ as interagdes sociais se amp! Isso porque a crianga vai, aos poucos, adquitindo a légica comu- nicativa, que Ihe permite superar as atitudes egocéntricas ¢ de- senvolver relagdes de cooperacio. O processo de socializagao do pensamento completa-se na adolescéncia quando, entio, o pensamento passa a se orlentar pela adaptagao progressiva dos individuos uns aos outros. O pensamento socializado, inteiramente consciente, encaminha-se para objetivos pré-elaborados pelo sujeito, Além de estar adapta da A realidade e procurar agir sobre ela, essa conduta apresenta a grande vantagem (sobre as demais formas de pensamento) de ser facilmente comunicavel pela linguagem. Esse fato faz. com que a Inteligéncia possa proceder cada vez mais por conceitos, distanciando-se assim da I6glea egocéntrica ligada aos movimen- tos € & representasio por im}ger, inteligencia comunicével, ou pensamento socializado, pri ma pela capacidade hipotético-dedutiva, tornando explictas as ligagdes entre as proposigdes: os esquemas de analogia so subs- titufdos por dedugdes. Nessa fase, 0 raciocinio se expressa de forma organizada, procurando convencer os interlocutores. Com a progressiva descentralizagio, os julgamentos pessoais de val ‘yao sendo gradativamente substituidos por juizos e prinefpios coletivos, mais préximos da razao co ‘Assim, pode-se dizer que, em Piaget, as formas de cooperagao ‘mais avangadas estariam presentes somente no modelo de pensa- mento I6gico-formal, quando a perspectiva do outro jest intei- ramente incorporada a reflexio e, portanto, quando o pensamento se encontra aberto para todas as possibilidades. Piaget apresentou uma compreensio particular dasinfluéncias que os adultos podem exercer sobre o processo de socializagao da crianga, Para ele, 0 adulto é, a0 mesmo tempo, muito superior & prdximo da crianca: superior porque € mais experiente, ¢ proximo no sentido de que pode identificar e compreender 0 pensamento da crianga. Diante dos adu a crianga reage como 150 se estivesse interagindo com um alter ego ou uma inteligencia superior. Nessa relacio de superioridade e inferioridade, a crian- «a distingue o eu o outrem, socializando-se, “A autoridade espi- ritual do adulto faz pressio com todo seu peso sobre o pensamento da crianga” (Piaget, 1959, p. 93-94). Jé.a influéncia que a crianga pode receber de companheiros da ‘mesma faixa etétia no pode ser interpretada da mesma forma, Em um grupo com idade homogenea, existe certa semelhanga ‘em termos de saber e poder. Outro dado a ser considerado é que, precisamente por estarem todas as criangas situadas em niveis aproximadamente semethantes, nao existe entre elas hierarquia de autoridade. Logo, na relagao com seus companheiros, a crian- ‘6a se socializa de maneira diversa aquela observada com adultos. Quando se trata de interagdes entre grupos da mesma idade, as criangas ost ire 0 Tondogfcetvo ou individual) ea discussio, a qual Piaget considerava como verdadeira permuta, justamente porque as diferengas de condigdes presentes nas rela- es com os adultos inexistem. Bis por queact nga se socaliza mals, ou de modo diferente, com os seus Onde a superioridade do adulto Impede a discussio e a cooperagio, o comps {que determinam a verdadeira socializagio da inteligén- semelhantes do que com os ad leo dé acasifo a essas cia. De maneira oposta, onde a igualdade dos companheiros impede a questio ov a interrogagao, o adulto esti a sua disposicdo para responder. (Piaget, ibidem, p. 94-95) ‘esses termos, Piaget identificou dois tipos de relagio, distin- tos mas complementares, no processo de socializacao da crianga. A medida que a crianga cresce, seu respeito pela superioridade adulta tende a diminuir e a mudar de cardter. O adulto deixa de ser “dono da verdade” ¢ os questionamentos transformam-se em discussdes. A partir de entio, 0 conjunto das atividades de socia- lizacao, gestadas pelas trocas no grupo da mesma idade, prevale- 1st ce sobre as atitudes de submissio intelectual da relagéo entre rianga e adulto, colocando-se como instrumento fundamental do qual o sujeito se serviré, cada vez mais, durante toda a vida, Para Piaget, as relacbes interpessoais estariam presentes na vida da crianga desde 0 nascimento. A intervengao do social no proceso de desenvolvimento se expressaria, sobretudo, pela coacdo progressiva do ambiente sobre a crianga ~ em outras palavras, pelas regularidades impostas pelos adultos. Entretanto, esse conjunto de regras permanece por algum tempo incompre- endido. E somente por volta do final do primeiro ano de vida, com a aquisigéo do comportamento imitativo e da linguagem, que a crianga comega de fato a socializar-se. Nao obstante, mes- mo com o desenvolvimento da fala, 0 processo de comunicagao se mantém precério por certo impo, jé que a linguagem serve, a prinefpio, muito mais para agompanhar ¢ estimular a prépria agio do que para nutrir um efetivo didlogo interpessoal. © pon- to de partida & pois, o estado de isolamento, penosamente rom- pido ao longo do desenvolvimento, Segundo Oliveira (1988), a nnatureza das relagGes que a crianga mantém com outras pessoas € 0 predominio inicial dos simbolos individuais sobre os signos coletivos no processo de construgio de esquemas (elaborados por meio de mecanismos biolégicos de autorregulagio) impe- dem um estado equilibrado de socializagao, no qual os individu- 0s consideram-se iguais, podendo controlar-se mutuamente € atingir a objetividade. Quando Piaget descreveu 0 processo de socializacao do ser humano, ficou patente que, na sua opinifo, as ages, a motivagio a cooperagio mantém estreitas ligagdes com as fungGes intelec- tuais, havendo influéncia reciproca entre tais fatores. © ambiente social propicia condigées para que a crianga interaja com outros individuos, desenvolvendo, assim, 0 espirito de cooperacio. ‘Todavia, embora Piaget tenha reconhecido que a coopera¢io social favorece a descentralizagio cognitiva necesséria & forma- do do pensamento légico, ele considerava que as relagdes de 152 cooperagio s6 aparecem a partir de determinado nivel de desen- volvimento, mais especificamente com o estabelecimento do pensamento operatério. Como atestou Pertet-Clermont (1978), « aptidao para coope- rar é solidaria ao desenvolvimento das operagdes, A crescente articulacéo das intuig6es possibilita o aparecimento dos agrupa- ‘mentos operatérios, fazendo com que a erianga se torne cada vez mais apta & cooperagao, Isto ocorre porque as operacdes pressti- Gem reciprocidade entre individuos que saibam diferenciar seus pontos de vista. Vale lembrar que antes desse estagio as trocas interindividuais ficam, de certa forma, bloqueadas pela conduta egocéntrica da crianga. Na verdade, a sociedade estruturada, objetiva, coercitiva, alic- nadora ¢ formadora 36 existe para o sufeito depois de certo nivel de desenvolvimento ¢, ainda assim, essajexisténcia depende da re- construgdo conceitual que os individuos fazem no plano mental ‘Tendo em vista as discussdes levantadas, pode-se inferir que, de acordo com a teoria piagetiana, o desenvolvimento da int géncia é, de inicio, essencialmente sens6rio-motor e individual, e caminha, 20s poucos, para uma progressiva formalizagio. Desde 0s niveis mais elementares, a acdo do sujeito Ihe permite conhe- cer a si mesmo ¢ a0 mundo, Como bem observou Oliveira (1988), é da coordenagio geral das agdes que se origina a Idgica pr6pria da inteligéncia representativa ou conceitual: 0s conceitos, 05 julgamentos eos raciocinios prolongam os esquemas de ago, izando-os. 0 primado da agdo individual sobre os meca- nismos seletivos de significagao ¢ de formagao do pensamento fo fortalecido quando Piaget admitiu que, antes do desenvolvi- mento da linguagem, a crianga dispoe de uma inteligéncia funda. nentalmente pritica, que tem origem na a¢ao. Dessa forma, a possibilidade de o conhecimento derivar das aquisigées linguisticas & descartada. A linguagem pode, em al- guns momentos, funcionar como auxiliar no processo de cons- trugdo desse pensamento. 153 Desscreditando que significados patilhados no inicio do desenvolvimento possam stuar sobre o desenvolvimento co defender uma ioteligtnel individual, ue seria de ordem intima, e que iar veversibilidades opera fica fill para Piaget 2, que constrbi penas mais tarde, racas & possibilidade de ‘ria, se soctaliza ese aproptia de sinaiscoletivos como os da linguagem. (Olivera, 1988, p. 96-97) AAs teses piagetianas acerca da fungio simbélica ou semidtica corroboram a hipétese da influéncia dos pensadores estruturalis- tas (nesse caso, especialmente de Saussure) em suas concepgdes. Piaget também entendeu a fungio simbélica como uma relagio centre significante e significado, Entretanto, 0 fato de 0 autor nao ter contextualizado essa relagao leva a um emypobrecimento pro- fundo da construgao desses significados, uma fez que se acredita aque tal construgio é fundamentalmente histérica: os significados sfo variévels justamente porque sfo elaborados em fungao da posi¢do que o sujelto ocupa socialmente. Como se pode perceber, Piaget incluiu as relagbes sociais en- tre os fatores que condicionam a psicogénese das estruturas cog- nitivas, No entanto, nfo Ihe atribuiu um efeito especifico diferenciador no processo de construgio do conhecimento. Nesse sentido, a fungao da interagao social nao foi suficiente- mente destacada em seu modelo teérico. O autor descartow um estudo pormenorizado da influencia do contexto social que (como confirmam os estudos feitos por Freitag, em 1986), com certeza, revelaria um efeito diversificador sobre o processo de desenvolvimento do pensamento. B certo que as interagées sociais geram conflitos capazes de perturbar 0 estado de equilibrio das esteuturas mentais, mas & preciso lembrar que os desequilibrios no ocorrem sem que a crianga disponha de maturidade (mecanismos de assimilacio) que Ihe permita perceber o conflito, Sem essa condigao pr problemstica simplesmente nao existe ;nto, os mecanismos 154 basicos para que o desenvolvimento ocorra situam-se no sujeito € nio na interagéo social Divergindo da postura piagetiana, Vigotski preocupou-s tamente, em mostrar que o desenvolvimento das fungdes psiquicas superiores no se prende a leis biolégicas, mas a leis sociais e, por isso, histéricas, Para ele, a natureza humana é, desde o inicio, es- sencialmente social: & na relago com o préximo, numa atividade prética comum mediada pelos signos ¢ instrumentos, que os ho- ‘mens se constituem e se desenvolvem como tas. Vigotski interpre- tou a interaggo humana no seio de um contexto histérico, destacando a linguagem como instrumento que promove a forma- ‘géo do psiquismo. Como diz Oliveira (1988, p. 93), i econr sop slam sre mae gee pee pele aprender, na diade, a soluccpar problemas, acompanllande 0 pro cess0 do adulto de em contrapartida, recompor 0 conjunto das pasos do processo, Vigotski deixou transparecer o peso das interagdes s em sua proposta tedrica, especialmente quando an: «ao da linguagem no processo de desenvolvimento, Neste pon- to, novamente se constata uma distincia muito grande entre suas convicgdes ¢ as de Piaget. Enquanto este tiltimo acreditava que a fala passa por um processo de evolugéo para tornar-se socializada - quando entio podera ser um mecanismo verda- deiramente ‘til (comunicativo) nas relagbes de cooperagao -, Vigotski considerava que a fala é, desde o estagio mais primiti- vo, socializada, e sua funcéo primordial, tanto nas criangas como nos adultos, € a comunicagao, o contato social. Ini- cialmente, dizia Vigotski, a linguagem global e multifuncional, Mas, aos poucos, suas fungdes vio sendo diferenciadas até que, em certa idade, a fala social da crianga divide-se em fala egocén- trica e fala comunicativa, 185 ‘A fala egocéntrica corresponde ao periodo em que a crianga comega a transferir formas sociais e cooperativas de comporta- ‘mento para a esfera das fungdes psiquicas pessoais. A fala social (oral), utilizada de inicio para dirigir-se a outra pessoa, lizada gradativamente. Uma vez completado esse processo, em ver de a crianga recor- rer a uma pessoa mais experiente, ela propria regula seu compor- tamento por meio da fala interior. Com isso, a linguagem adquire uma fungao intrapessoal, além de ser o principal instru- ‘mento das relagdes interpessoals. Dessa forma, 0 curso do desen- volvimento do pensamento, incluindo-se, evidentemente, a comunicagao linguistica, néo ocorreria do individual para 0 s0- cial (como sugeriu Piaget), mas do social para o individu Na concepso vigotskiana, o ambiente sbcial em que a crianga estd inserta constitu, de fato, uma zona de desenvolvimento, na ‘medida em que as pessoas mais experientes colocam-se como ‘uma consciéncia indireta que ajuda a crianga a discernir melhor sua experiéncia e, por conseguinte, a sair da indiferenciagao ini- cial, Num primeiro momento (como visto no Capitulo 2), so essas pessoas mais experientes que regulam o comportamento da crianga, por meio da linguagem. Mais tarde, com a internalizagao da fala social, a crianga adquire a capacidade de planejar sua propria ago e de se autorregular. Juntamente com a linguagem, sao internalizados valores, significados, regras de conduta, en- fim, formas culturais de comportamento (ou de papéis) que possibilitam atribuir novo sentido ao real, criar novos simbolos € mpliar 0 conhecimento. A psicologia do desenvolvimento, cujo maior representante & Piaget, postula a existéncia de uma estreita vinculagao entre os processos de maturagao e de desenvolvimento, de tal forma que este titimo nao pode ocorrer sem que estejam presentes as con- digdes maturacionais necessérias. Ora, esse principio limita - ¢ muito ~ as possibilidades de desenvolvimento geradas pela inte- racao social e, por que nao dizer, pela educagao. Toda a aprendi- interna- 156 zagem implicita no processo educacional é encarada como um fator externo que deve, necessariamente, apoiar-se nas condi- ses postas pela maturagao, ou seja, no nivel de desenvolvimen- to alcangado pela crianga. Nesse raciocinio, a ago educativa s6 ‘encontra ressonéncia se estiver adequada ao nivel de desenvol- vimento mental. 40s psicdlogos sovieticos (adeptos do materialismo histsrico), por acreditarem que as fungdes psiquicas do individuo so cons- trufdas na medida em que sio utilizadas, sempre em dependéncia do contetido objetivo a partir do qual se constroem, defendem a ideia de que as interagbes, de modo geral, eo ensino, em particular, nao devem estar atrelados ao processo de amadurecimento, Segundo David et al. (1989), para esses psicélogos, a crianga afpadureceria ao ser ensinada ¢ educada, quer der, & medida ‘je sob a orientagao de adultos ou companheiros ihais experien: tes, se apropria do conhecimenio elaborado pelas gerasdes prece- dentes ¢ disponivel em sua cultura, Desse modo, a maturacio se manifesta e é produzida pelo processo de educagao e ensino, De acordo com essa visio, 0 comportamento nao é mais fungao da maturagao e sim das trocas que se efetuam no meio ambiente. Dafa relevancia da interago social, uma vez que dela depende o desenvolvimento mental. Essa anslise altera, pela raiz, a postura pedagdgica subjacente & concepeao piagetiana, ampliando e atri- buindo vital importincia ao papel do professor ¢ as interagées que se estabelecem no ambito escolar. De acordo com a proposta teérica de Vigotski, o ensino nao tem de aguardar o nivel de de- senvolvimento necessirio para sua assimilagio, devendo, a0 contratio, produzi-lo, Para melhor explicitar a importincia das interagdes sociais no desenvolvimento cognitivo, Vigotski criou o conceito de “zona de desenvolvimento proximal”, Do ponto de vista da instrugao, esse conceito compreende os aspectos centrais da sua teoria; foi por ‘meio dele que 0 autor demonstrou como um processo interpes- soal (social) se transforma num processo intrapessoal (Psiquico). 157 Ao descrever essa passagem do social para o individual, ele des- tacou a importancia da experiéneia partilhada, da comunhao de situagbes, do dilogo e da colaboragao, concebendo, desse modo, © aprendizado como um processo de troca e, portanto, um pro- cesso social. Vigotski acreditava que as possibilidades de ensino nio poderiam ser definidas a partir de condig6es de aprendiza- gem manifestadas pelas criangas, ou seja, com base naquilo que elas podem resolver sozinhas. Para equacionar essa probleméti- ca, ele props um segundo nivel de desenvolvimento, que se re- fere A aprendizagem realizada mediante a ajuda de outras pessoas al. A distancia qual seja, 0 nivel de desenvolvimento poter centre 0 que a crianga aprende espontaneamente (nivel de desen- volvimento real) ¢ aquilo que ela realiza com o auxflio do meio (nivel de desenvolvimento potencial) caractediza 0 que denomi- nou de zona de desenvolvimento proximal. | Esse conceito ¢ potencialmente iit para educadores e ps {g0s, uma vez que, por meio dele, pode-se identificar 0 desenvol mento mental tanto retrospectiva (pelos ciclos jé completados) como prospectivamente (pelos processos cognitivos em forma- 40). Portanto, a zona de desenvolvimento proximal é um instru- mento que permite entender o curso interno do desenvolvimento «assim, atuar sobre as possibilidaces imediatas da crianga. Para que a escola possa incrementar essa zona de desenvolvimento, & interessante que seus profissionais colaborem na andlise dos pro- cessos internos (em formagio), 0s quais deverdo ser estimulados a0 longo do ensino. Assim, as Fungoes psicoldgicas que se encon- trarem em condigdes potenciais de desenvolvimento poderdo ser ativadas e completadas, a partir de esforeos diretos da insteugio. Ao se referir as implicages educacionais do conceito de zona de desenvolvimento proximal, David et al (1989, p. 5) afiemam: ‘Um ensino que se apoia apenas nas fungdes ps produ ra global: todo bom ensino é aquele Logicas jk desenvolvidas rio é nem desejivel, do desenvolvimento 1, do ponto de vis oo ese dirige para as fancBes 158 psicoligicas emergentes, em processo de se completarem, Assim, o ensino Aleve incidir sobre a zona ce desenvelvimento potencial, et so pro nos meturac que acabam por se efetivar passando a cons base para novas aprendizagens. Essas consideragdes em torno do conceito de zona de desenvol- viento proximal reafirmam o principio vigotskiano de que as interagdes sociais em geral e, em especial, o ensino sistemético Pa festa-se na ¢ pela interagao soci processo transparente, inteiramente possivel de ser observado e comungado por todos aqueles que participam da situagao. E jus- tampnte essa “visibilidade” que amplia « capacidade epgnitiva in- dlivijual, porque ela abre espago.para a tomada de corjsciéncia ea reallzagio em conjunto das tarefis que o individuo nao é capaz de realizar sozinho, Vista por esse Angulo, a interagao com adultos ou com pessoas mais experientes assume um caréter estruturante, pois, além do apoio afetivo, ajuda a atividade cognitiva. Obviamente, 0 ensino sistemitico nao & 0 tinico fator capaz de alargar os horizontes da zona de desenvolvimento proximal. Ao discutir © papel do brinquedo, Vigotski demonstrou, de forma extremamente original, como as interagdes sociais que as crian- «a8 estabelecem nessas circunstancias concorrem para o seu de- senvolvimento, Segundo ele, a crianca projeta-se no brinquedo, realizando as atividades dos adultos, ensaiando atitudes, valores, habitos, significados que se encontram muito além de suas pos- sibilidades efetivas e, no entanto, sero posteriormente incorpo- rados a sua forma de agir e pensar. Mesmo havendo uma grande distancia entre 0 comportamento na vida real e o comportamen- to com o brinquedo, a attiago no mundo imaginério cria uma zona de desenvolvimento proximal composta de conceitos ¢ processos em desenvolvimento, Isso ocorre porque, ao brincar, a ctianga se comporta de um modo que esté além do habitual para se que ela deve ser um sua idade, Assumindo papéis adultos, ela atua em um nivel supe- rior ao que na verdade se encontra, Ao incorporar o papel de mae, por exemplo, ela esta tomando consciéncia das regras que regem 0 comportamento maternal. ‘Enquanto brinca, a crianga reproduz regras, vivencia princi- pios que percebe na realidade. Logo, as interagies requ pelo brinquedo possibilitam a internalizagéo do real, promoven- do o desenvolvimento cognitive. Essa visio do papel do brinquedo no desenvolvimento cogni- tivo difere radicalmente da proposta por Piaget. Sem aprofundar a questo, convém ressaltar que, para esse autor, prepondera no jmilagio, ou seja, a crianga assimila o que percebe da realidade, incorporando esse conteiido as estruturas j4 construt- do, o brinquedo nao modifica a crianga. Por ou- io lado, Piaget reconhece que a imitagad exige que a crianga se acomode, transforme-se para desempenhar papéis ou seguir modelos que esto muito distantes de suas possibilidades reais de atuagio, Desse modo, como se percebe, mais uma ver, Vigotski € Piaget diferem, desta vez quanto as possibilidades de transforma- ‘gOes cognitivas que o brinquedo proporciona a crianga. Osaspectos tedricos levantados permitem observar uma signi ficativa divergéncia quanto ao valor e a fungao da dimensio inte- rativa entre os dois modelos tedricos em questo. Piaget nio incluiu em seus estudos as miltiplas determinagies do contexto social sobre 0 sujeito. Além das varidveis ja discutidas, ¢ possivel inferir que tal postura se explica, sobretudo, pelo conceito de au- torregulagao do sistema cognitivo, postulado por esse autor, No entender de Piaget, dispondo de um mecanismo autorregulador, as estruturas cognitivas asseguram sta automanutengio quentemente, a do sistema cognitivo. Assim, 0 desenvolvimento mental se orienta no sentido de garantir a propria preservagio da estrutura cognitiva. Desse fato decorre o aspecto secundirio atri- buido ao meio por Piaget: a estrutura cognitiva tende a se preser- ‘var, qualquer que seja 0 contexto em que se encontre. conse- 160 Como se sabe, Piaget nfo estava preocupado com o sujeito psicolégico, mas sim com o epistémico, Sua obra se encaminhou no sentido de desvendar as formas pelas quais 0 desenvolvimen- to procede. Relegando 0 conteiido a segundo plano, 0 contexto histérico e social no qual é gerado também se torna irrelevante, ‘As divergéncias contextuais e suas influéncias no processo de desenvolvimento nao chegaram a metecer atengo especial por patte de Piaget, uma vez.que a constituigao das formas de pensa- mento (a psicogénese infantil), segundo ele, independe das trans- formagées hist6ricas ou variagbes contextuais. A interagio social compreende, sobretudo, as transformages que 0 sujeito opera ‘em si proprio, mediante sua acio sobre o meio. Inteiramente yoltado para o sujeito e preocupado com a construcio do racio- Einio logico, Piaget nfo aprofundou suas discuspées quanto a0 Jrundo humano e social, com o.qual a crianga injerage e do qual depende ~ para além da constiugdo de seu pensamento ~ sua sobrevivéncia, A psicogenese piagetiana oferece um quadro te6- rico extremamente rico e dinamico, capaz de orientar uma mul tiplicidade de métodos e téenicas pedagdgicos. Mas, quando se busca analisé-la como perspectiva interacionista, seus prineipios omitem uma dimenséo central para tal abordagem, a saber, as relagées reciprocas e equitativas entre sujeito ¢ objeto. Por outro lado, o conceito vigotskiano de interagio social se refere a agbes partilhadas, ou seja, a processos cognitivos realiza- dos nio por um tinico sujeito e sim por varios. Partindo da dia- lética materialista, ele concebeu o desenvolvimento das fungdes psiquicas do homem como um processo essencialmente cultural, histérico. Nessa medida, defendeu a ideia segundo a qual o prin- cipal mecanismo de desenvolvimento dessas fungdes € a apro- priagao de atividades de diferentes modalidades e formas sociai historicamente constitu Ora, se aatividade s6 pode efetuar-se em sua expressio exte- rior, Vigotski postulou que também os processes cognitivos so, de inicio, apropriados de igual maneira, ou seja, na forma como las. se manifestam na interagio social. E s6 mais tarde que essasfor- mas externas transformam-se, gragas a um proceso gradual € paulatino de internalizacio, em formas internas, psiquicas, pr prias do sujeito. A mediatizagio entre o social e 0 psicolégico se 4, portanto, na atividade pritica, por meio de instrumentos de trabalho e principalmente com base na internalizagao da lingua- gem, Com isso, Vigotski conseguiu mostrar como a natureza social das pessoas torna-se, igualmente, sua natureza psicol6gica. ‘Ao buscar as origens das formas superiores de comporta- mento, presentes nas relagdes sociais que 0 individuo mantém com o mundo a sua volta, Vigotski chegou ao carater mediado desses comportamentos: identificou, entio, a importancia das interagdes, das trocas, da instrugio no processo de constituicao do sujeito psicoldgico. £ na atividade prética, social © historicamente organizada que ub se apropria das for- mas de comportamento de natureza social. Cabe precisar, no entanto, que nao se trata de considerar 0 comportamento algo condicionado pelo social, Ao contrério, convém ressaltar que 0 social fornece, isto sim, um quadro de interpretagdes para 0 comportamento humano. Do ponto de vista da instrugao sistematica, esse é 0 grande desafio que se coloca a uma pritica pedagégica pretensamente interacionista: discutir as interagdes entre criangas e entre crian- ga e adulto com base em dados empiricos, historicamente con- textualizados. O desenvolvimento nao se produz apenas por ‘uma soma harmoniosa de experiéncias, mas, acima de tudo, por vivencias em matrizes sociais diferentes, cujos interesses ¢ valo- res sio frequentemente contraditérios. A crianga aprende opondo-se a alguém, identificando-se, imitando, estabelecendo analogias, internalizando simbolos e significados, tudo isso em um ambiente social e historicamente localizado. Assim, é preci- so considerar que as interacoes sociais educativas pressupdem a manifestagao e 0 confronto de diferentes ideias, gestadas em momentos distintos. Pode-se dizer que Vigotski fechou sua proposta em torno do paradigma interacionista ao superar o entrave tepresentado pelas condigdes maturacionais, com isso produziu uma verdadeira re- volugao em um dos conceitos-chave da psicologia da educagao: a relagio entre desenvolvimento ¢ aprendizagem Liberando a aprendizagem do jugo do desenvolvimento, Vigotski reuniu as teses que garantiram & sua proposta uma maior eficécia, quando se trata de discutir as possibilidades da interagio na busca por um ensino mais produtivo, por meio de uma comunicagéo mais clara, precisa, rica e desafiante. Isso pos- to, fica patente que o autor no pode ser classificaclo meramente como um autor interacionista. Antes disso, ele se enquadra na vertente sociointeracionista, dada a percepgao clara com que rou em sua obra as relagées reciprocas que sf estabelecem. etre sujeito ¢ objeto, entendendo por objeto nao ujm meio gené- rico, abstrato e atemporal, mas, sobretudo, um ambiente social, historicamente determinado. 153

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