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REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO Hoe facit, ut longos durent bene gesta per annos. El possint sera posteritate frui. hastowco ceocranincux’ IN URBE FLUMINENSI coxpTrut DIE XXI OCTOBRIS, Omocscumv, R IHGB, Rio de Janeiro, a. 159, n. 399, pp. 353-641, abrjjun., 1998, INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO Considerado de utilidade piblica pela Lei n. 1.068, de 14-12-1966 ‘Av, Augusto Severo, 8 — Riode Tanciro— 2021-040 ‘Rindado em 21-10-1838, em plena Regéttia, por 27 sécios da prestigiosa Sociedade Auxiliadors da Indisiria Nacional, o THGB originou-se de propesta anterior do macechal-de-campo Cunha Matos ¢ do ‘éinego Tamério da Cunha Barbosa. Pedro II fog0 0 tomou sob seus auspicioa. Qs objetivos esttutétos eram, entre outros: clit, netodizar, publicar ou arquivar documentos, pro- rover cursos edilar a Revista Trimestral de Hintrin ¢ Geografia ou Jornal do THGB, © Arquivo é hoje um dos methores do Brasil, grgas a sucessivas dooySes de papéis de estadistas ¢histo- riadores, como José Bonificio, omarquds de Olinda, Varnhagen, Cotegipe, conded'Eu 0 visconde de Ouro Preto, Pridonte de Morais, Rodrigues Alves, Epiticio Psson, Manvel Barata, Wanderley Pinho, Hao Viana « Jackson de Figueiredo, entre outs, [A Biblioteca, por compra, dongs e permutas, passa de 500 mil volumes de grande interesse para os est dos teasileirce A Mapotecadispe de cerca de 12.000 cartas geourfica.referentes, sobretudo, so tettériobrasiliro, (© Museu, crindoem 1851 para guardar a meméia de vardes iustres em méscaras fisiondmicas,retealos ¢ Jembranjas pessosir, exibe hoje pegas como aespada de campanha de Caxias (modelo dos espadins dos cade- tes do n0tso Exército) oua cadeirn cm que Pedko I, duraute 40anos, presi aS08 sesxGer do Instituto, [A Pinscoteca é rica, abrangendo desde a imensa tela da Coroagio de Pedro II. de autoria do cio Arado Porto-Alegre, até a impressicnante galecia de retrates ( bustos) de monarcas, nobtes e personalidades da Colénin & Repiblica. Os s6cios, Emétitos, Titulares, Honoririos ¢ Correspondentes, no Pais © no estrangeito, sto cleitos vi taliciamente. 0 corpo soxial promove conferéncias, congressos ¢ cursos, anunciados com antecedncia °te- liza reunides, de margo a dezembro, todas as quartas-feimas. As atas so publicadas pela Revista em suplemento ao timo mamero do ano, INSTITUTO HISTORICO E. GEOGRAFICO BRASILEIRO DIRETORIA — (1998 — 1999) Presidente: Amo Wehling P Vice-Presidente: Newton Lins Buarque Sucupira 2 Vice-Presidenie: Mério Antonio Barata 3° Vice-Presidente: Joao Hermes Pereira de Araijo 1° Secretdrio: Cybelle Moreira de Ipanema 2° Secretaria: Elysio Cust6dio de Oliveira Belchior Tesoureiro: Victorino Chermont de Miranda Orador: Marcos Almit Madeira CONSELHO FISCAL. Membros efetivos: Mircea Buescu, José Pedro Pinto Esposel, Jonas de Morais Correia Neto Membros suplentes: Augusto Carios da Silva Telles, Joaquim Victorino Porella Ferreira Alves COMISSOES PERMANENTES ‘Admissdo de sécios: Monsenhor Guilherme Schubert, Geraldo Euldtio do Nascimento Silva, José Arthur Rios, Carlos Wehrs, Francisco Luiz Teixeira Vinhosa Ciéncias Sociais. Leda Boechat Rodrigues, Paulo José Pardal, Maria da Conceigfio de Moraes ‘Coutinho Belirao, Paulo de Carvalho Neto, Helio Jaguaribe de Mattos Esato: Jose Gomes Bezerra Cimara, Afonso Arinos de Melo Franco, Rai Vieira da Cunha, ‘Alberto Venancio Filho, Victorino Coutinbo Chermont de Miranda Geografia: Max lusto Guedes, Isa Adonias, Waldir da Cunha, Lucinda Coutinho de Mello Coelho, Sydney Martins Gomes dos Santos, Ronaldo Rogério de Freitas Mourdio Histéria: Hexculano Gomes Mathias, Joio Hermes Pereira de Araijp, Maria Cecflia Ribas ‘Carneiro, Eduardo Silva, Pe, Femando Bastos de Avila Patrimonio: Afonso Celso Villela de Carvalho, Cliudio Moreira Bento, Geraldo de Menezes, “Joaquim Victorino Portella Ferreira Alves, Dino Willy Cozza CONSELHO CONSULTIVO Membros natos: Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, Cristévao Leite de Castro, D. Pedro Gastio de Orleans e Braganga, Vicente Costa Santos Tapas, Membros nomeados: Luiz de Castro Souza, Herculane Gores Mathias, Isa Adonias, Frieds ‘Wolff, Evaristo de Moraes Filho, Vasco Mariz COMISSAO DA REVISTA Carlos Wehrs (Diretor) — Esther Caldas Bertoletti — Homero Seana (CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA: José Gomes Bezerra CAmara, Lucinda Coutinho de Mello Coelho, Eduardo Silve, Elysio de Oliveira Belchior, Newton Lins Buarque ‘Sucupira, Jodo Hermes Pereira de Aradjo e Paulo de Carvalho-Neto. CEPHAS (Comissio de Estudos ¢ Pesquisas Histéricas) — Secretéria: Miridan Brito Knox Fale DIRETORIAS ADJUNTAS Arquivo: d. Matheus Ramalho Rocha Biblioteca: Lygia da Fonseca Femandes da Cunha Museu: Vera Lucia Bottrel Tostes Secretaria Adjunta: Arivaldo Silveira Fontes Coordenadoria de Cursos: Marcos Guimarles Sanches Patriménio: Antonio Pimentel Wine Projetos Especiais: Guilherme de Andréa Frota Informética e Disseminagio da Informagto: Esther Caldas Bertolet REVISTA DO INSTITUTO HISTORICO E GEOGRAFICO BRASILEIRO Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos. 1 possint sera posteritate jrui, | OX URBE FLUNINENSL coNDITLA -O-MOCCEEV RIHGB, Rio de Janeiro, a, 159, n. 399, pp. 353-641, abr./jun. 1998. REDAGAO: Avenida Augusto Severo, 8 — 10° andar CEP: 20021-040 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil Fax (021) 252-4430 Tels.: (021) 232-1312\509-5107 COPYRIGHT © Instituto Hist6rico e Geogrifico Brasileiro Revista do Instituto Hist6rico ¢ Geogrifico Brasileiro. — Ano 1, N. 1-4 (jan/dez., 1839) — Rio de Janeiro, Instituto Hist6rico ¢ Geografico Brasileiro, 1839. vy. 23cm, ‘Trimestral ‘Titulo varia ligeiramente. Ntimeros de 1-4 formando um volume. ISSN 0101-4366 1, Hist6ria— Periddicos, I Instituto Hist6rico e G sia Geogrifico Ficha Catalogrifica preparada pela Bibliotecdria Célia da Costa SUMARIO I—INEDITOS 1. Mistérios de Canudos José Arthur Rios 2. A obra de historiador do Prof. Edgardo de Castro Rebello Alberto Venancio Filho 3. Novas consideragées sobre a Princesa Isabel Alexandre de Miranda Delgado 4. 0 indio no Recéncavo da Guanabara Ondemar Dias A expansio dos europeuse a América ‘Parte I— Antes dos europeus Os primeiros homens Os horticultores Aceramica Colonizagao indfgena A vida na aldeia Tupi Parte II — O embate s primeiros anos da colonizagdo européia A conquista e as redugGes indigenas no Rio de Janeiro Parte III — A sujeigao O {ndio no perfodo colonial Redugées e catequese Situagio jurfdica ¢ social A escravidio dos indios Parte IV — Usos & abusos ‘As primeiras contribuigdes do fndio 4 sociedade colonial A miscigenagio Contribuigdes ao conhecimento regional Como forga de combate Indio contra indio {ndio contra «os outros» Indios no conflito civil Os indios e as minas A construgiio naval O Aqueduto da Carioca O financiamento Ainda a Carioca... Os projetos A qualidade da obra Amao-de-obra, ‘Parte V — O indio no rec6ncavo Em Iguacu Em Jacutinga Na aldeia de Mangaratiba O final da historia ‘Concluséo Bibliografia INEDITOS 1. MISTERIOS DE CANUDOS José Arthur Rios! Decorrido um século da tomadae destruigao do arraial de Canudos, a 3de outubro de 1897, muita coisadessa luta fratricida permanece ainda em mistério. Razao tinha Euclides da Cunha ao rabiscar no seu Didrio, esbogo da obra defi- nitiva: «Hé, em toda esta lutauma feigdo misteriosa que deve set desvendada», (1) A frase citada vem depois da seguinte: «Nao € possivel que a munigao de guerra daquela gente seja s6 devida A deixada pelas expedigdes anteriores, A nossa esgota-se todos os dias; todos os dias entram comboios carregados e, no entanto, jénos falta as vezes», (2) Para desvendé-la escreveu Os Sertdes. Mas 0 enigma permanece. Intimerasas quest6es emaberto. Quem, por exemplo, fornecia armaaos ja- gungos? De onde provinham? Bosquejava-se que haviam resultado do botim das primeiras expedicdes desbaratadas. Parece que até os combates de Uaud, em novembro de 1896, o armamento dos homens do Conselheiro era dos mais primitivos. Antes de iniciar a arremetida que lhe seria fatal, o Coronel Moreira Cezar, de triste meméria, brandindo uma espingarda pica-pau, tomada ao ini migo, declarava que «inimigos mal armados e desmoralizados nao poderiam resistir ao choque das forgas republicanas». (3) Poucos meses depois, tombava ferido e logo morria, sua tropa em debandada confusa, caatinga adentro, num dos episédios mais lamentaveis da campanha. Quando o Major Febronio de Brito atacou Canudos, «ao seu encontro mar- charam mais de quatro mil homens... uns seiscentos bem armados com espin- gardas modernas, os outros possufam bacamartes». E do Tenente Macedo Soares a observagio e sabia do que falava. (4) E ele que consigna ainda a otima Pontaria dos jaguncos, o que, no seu entender, demonstrava que «Aquelaépoca Jd existia em Canudos um bom nticleo de indivfduos conhecedores das moder- nas carabinas cujo uso demanda certa pratica». Em agosto de 1897, o General Arthur Oscar, em telegrama cifrado a0 Mi- nistro da Guerra indagava «...por quem e como veio o armamento e munigio 4 Socio titular. RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):353-364, abr.jjun. 1998. 353 José Arthur Rios que possuem, ponto capital que pretendo elucidar». Nao o fez, masalinhou con- jeturas sobre a procedéncia das armas — Europa ou Repablica Argentina. Mos- trou alguma munigdo a Euclides que sentenciou em seu Didrio, «sio de ago, se- melhantes as das Mannlichers, algumas, outras completamente desconhecidas. Sao inegavelmente projéteis de armas soe nao possuimos». (5) E,torna ‘a perguntar: «Como as possuem 0s jagungos?» E também a interrogagio e a per- plexidade do General Arthur Oscar expressa em seus telegramas ¢ oficios. (6) Outro mistério seria a presenga de estrangeiros no arraial, afirmada pela mesma autoridade. Teriam auxiliado 0 Conselheiro e até atuado de urbanistas alinhando as ruas do chamado Bairro Nobre. (7) Manoel Benicio (8) correspon- dente do Jornal do Commercio junto as tropas legais refere a existéncia de ita- lianos no Jequié e Pé de Serra que haviam tido suas propriedades e negécios saqueados pelos jaguncos do Conselheito, 0 que motivou o protesto deles pe- rante o Consulado em Salvador. A autoridade consular da Bahia dirigiu-se 8 do Rio que falou a0 Ministro do Exterior, General Dionisio Cerqueira, coinciden- temente também Ministro da Guerra, que, por sua vez, ordenou ao General So- Ion, comandante do distrito militar, pusesse & disposigio do Governador da Bahia as forgas federais necesséirias para reprimir esses saques prejudiciais as negociagées, entao processadas, entre o Governo da Reptiblica e o Reino da Its- lia. Esses italianos so os tinicos estrangeiros de que se tem noticia na regifio. Seriam os invistveis instrutores dos jagungos? Quem eram? Ninguém sabe. A prdpria vida do Conselheiro revela uma misteriosa ruptura, Na verdade, parecem dois homens, duas personalidades, o nordestino comum Antonio Ma- Ciel, nascido em Quixeramobim em 1835, caixeiro de armazém, casado com uma mulher de maus costumes, depois mascate ¢ advogado de porta de xadrez, que vagueia por cidades do Nordeste, e o fandtico descabelado, de barba hirsu- ta, vestido de azuldo, arrimado a um cajado, que alga a cruz das peregrinagdes e, ruminando prédicas em mau latim, arrasta multiddes andarilhas. Entre ambos n&o hé vinculo ou semelhanga. Que teria disparado no pau-de-arara de ruim destino o mistico que reformava igrejas e cemitérios, entoava o Bendito, pregava contra a Republica pecaminosa e corrupta? Afastadas as hipsteses pseudocientificas, de manifesta anomalia psiquica de- flagrada nas bossas craneanas do yidente pelo sol do sertdo, resta saber qual o trauma que disparou no Conselheiro, a vocacio do beato, ou a simulagao do tau- maturgo. Fala-se em varios fatores, como causas possfveis que foram se poten- cializando na conduta do mfstico e cristalizaram no perfil definitive do Con- selheiro. Cita-se o traumatismo causado pelo abandono e conseqiiente prostituicao damulher — mas entre esse fato ¢ 0 primeiro incidente com o grupo jé formado de sequazes, decorrem alguns anos. A influéncia do Padre Ibiapina seria aceita- 354 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):353-364, abr{jun. 1996. Mistérios de Canudos Yel como fator de conversio, Ibiapina, advogado e padre exemplar, figura extraordinéria, era homem normal, nunca se insurgiu contra as auitoridadee do Império, nem consta que jamais tivesse sido sebastianista, O préprio sebastianismo do Conselheiro, contestado por muitos, nio pare- ce ter sido o fato motivador da pregagao, mas um trago amais de conduta ditado pela cultura religiosa do sertio, Quando, entio, a fagulha mistica teria se propa- ado A personalidade do beato, impondo-lhe uma missdo, a de ir pelos sertoes, Feparando muros de igrejas e capelas, reformando cemitérios, pregando o advento do Reino, a vinda proxima de Dom Sebastiao? Nao estd excluida a hipétese de Ihe ter chegado aos ouvidos, numa de suas andancas, a palavra de algummissiondrio, desses que percorriam os sertdes, ca. Puchos ou franciscanos, batizando, casando, confessando, Eram freqiientes es- Ses pregadores que apelavam para a imaginacdo dos ouvintes, mais para a sensibilidade que para a inteligencia, usando uma ret6tica de meios e aesom. bros. Na hist6ria do arraial, hadesses pontos de ruptura que ido deflagrar situa- (¢0es futuras. E 0 caso da missao de Frei Joao Evangelista de Monte Marciano, capucho do Conventode Nossa Senhora da Piedade de Salvador, incumbido eng 1895, pelo Arcebispo da Bahia, Dom Jeronimo Tomé da Silva, de ira Canudos trazer 0s conselheiristas razio. Frei Marciano (1843-1921) chegara Bahiaem 1872. Quando partiu para Canudos, em 1895, j4 inémeras missdes tinham percorrido o vasto interior. De- tinham-se geralmente uma semana em cada vilarejo, pregando, confessando, batizando, casando e também reparando capelas e igrejas. Frei Marciano, obe. dicnte, viajou de trem até Queimadas, onde encontrou a caatinga, Depois, a ca- valo, chegou a Monte Santo, onde viu a capela construfda por outro capuchinho italiano, Frei Apolonio de Todi, € aréplicado calvariode Jerusalém nocaminho da serra do Piquaragd marcado pelas cruzes e as estagdes da Paixao, Soube, en. tao, pelo Padre Sabino, recém expulso de Canudos, que a gente do Conselheiro havia empreendido a restauragio das capelas pouco tempo antes de se localiza rem no arraial. Partiram no dia seguinte. Foi quando encontraram, na Serra do Cumbe, Pela primeira vez, os conselheiristas. Frei Marciano assim descreveu a cena em Seu relat6rio que marca a entrada dos conselheiristas na Histéria: «Trés léguas antes de chegar a0 Cume, avistamos um numeroso ‘grupo de homens, mulheres ¢ meninos quase nis, aglomerados em tomo de fogueiras e, acercando-nos deles, os saudamos, perguntando-Ihes eu era aquela estrada que conduzia ao Cume.» RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399)-353-364, abr.jjun. 1998. 355 José Arthur Rios «Seu primeiro movimento foi langar mo de espingarda facdes que ti- nham de lado e juntaram-se todos em atitude agressiva. Pensando acalmé-las, disse-lhes que éramos dois missionérios que se tinham perdidona estrada e que: tiam saber se era longe a freguesia. Responderam: “Nao sabemos, perguntem ali E apontaram para umacasa vizinha. Era uma guarda avangada do Antonio Conselheiro, essa gente que havfamos encontrado.» (9) ‘Acessaaltura, Antonio Maciel, j4 era o Conselheiro, ja pervortia os sertoes, seguido pela chusma dos sequazes e até 0 clero daregido jé se dividia quanto a tla. Alguns 0 acolhiam — outros protestavam contra suas pregagoes. Era em 1874, 0 Delegado do lugar, inimigo do Padre — sempre as quizilas municipais portrasde tudo—solicitara destacamento policial para expulsar 0 Conselheiro € seu povo. Antes que a forga chegasse, os conselheiristas deixavam a cidade. Nos dois anos seguintes, a cena se repetiria, osincidentes se amiudando, cleroe poder civil, ora se atritando, ora se aliando no apoio ou na repulsa ao beato. Fm 1876, durante uma pregagao em Senhor Deus Menino do Aragds, 0 in- cidente resultou na morte de trés pessoas. O Conselheiro foi, entio, preso ¢ en- viado a Salvador, onde esteve poucos dias, Dai foimandado para o Ceard, por se dizer que era devedor de crimes nessa provincia, teria até assassinado a mie € a mulher, além de explorar a credulidade dos fi¢is tomando-lhes dinheiro. De Fortaleza foi remetido a Quixeramobim, onde teriam sido cometidos os supes” foscrimes, Mas 0 Juiz da Comarca concluiu que era inocente dos delitos que lhe sceacavam, Voltou a Bahia, retomou suas caminhadas, descalgo, pelas estradas pedregosas do sertdo. Continuow a reformar igrejas e cemitérios enquanto en grossavam as multiddes que oseguiam. Viviam de esmolas, organizavam muti- bes, comiam carne de caga, batatas de umbuzeiros e frutas silvestres. Porentdo, em 1882, onovo Arcebispo da Bahia, Dom Luiz dos Santos, ex- pediu uma circular aos padres do interior proibindo que qualquer secular se er Eisse em pregadot e se dirigisse ao povo nas freguesias, o que inclufa, seni aisava, Antonio Conselhciro. © Arcebispo temia a aco do beato, tanto assim {ue, em 1887, pediu ao Presidente da Provincia que mandasse interné-lo no Hospicio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro, Nao o conseguiu, mas, ano & ane, 0 cerco apertava em tomo do beato e de seus fitis. Em 1893, em Bom Conselho, 0s fandticos, por ordem de seu chefe, quei- rmaram, em praca piblica, editais de cobranga de impostos. Foi o primeiro ato piblice de insubordinagao dos conselheirstas. A reagdo foi enviar contra eles {ima forga policial. O encontro nao se deu no lugar chamado Masseté, naestrada de Monte Santo e resultou em tiroteio ¢ fuga da forga policial. Teria sido determinante da fundagao de Canudos? O fato é que, nesse mes- mo ano, o Conselheiro decide abandonar sua vida errante ¢ busca um lugar para tstabelecer agora sua comunidade de fiéis. Encontrou-o numa velha fazenda 356 RIHGB, Rio de Janeiro, 199 (399):353-364, abr /jun. 1998. Mistérios de Camudos abandonada. as margens do Vaza Barris, de facil acesso, mas conveniente defe- sa. Assim nasceu 0 que Euclides da Cunha, na sua imaginosa linguagem, cha- maria a «Nova Jerusalém». Frei Marciano a viu, jé formada, do alto do Morto da Favela —um povoa- do, centrado na igreja, rodeado de palhogas miserdveis, perdidas na confusio babélica das vielas, casinholas de barro, toscas, sem janela, com uma tinica por- ta. A multidio que acorreu a receber os missiondrios, homens e mulheres, mui- ‘os seminus, que Ihe pareceram viver em promiscuidade. De tudo se desprendia uma impressio hostil, dirigida nao apenas s pessoas dos missiondrios mas propria Republica. Parece que, a esse tempo, jd se constitufta na comunidade essa «ideologia» — o horror ao regime, por definicdo, herético que instituira 0 casamento civil, secularizara a Igreja. Os missionérios dirigiram-se a praca central, um reténgulo, onde se ergui- ama capela e a casa do Conselheiro, olhada como santuario. Nesse estreito es- ago, amontoavam-se «cerca de mil homens» (sic) armados de bacamartes, facdes, garruchas —nenhumamengio até aqui do armamento moderno que vai aparecer depois. Mal chegados, os capuchos se abrigaram na casa que fra do Padre Sabino ¢ logo se apressaram ase avistar com o Conselheiro, Dirigiram-se & capela por entre a multidao que bradava «louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!» — a0 que respondiam unanimes «para sempre seja louvado!» Era a capela nova e ali encontraram 0 Conselheiro que the observava a construgao. Desse encontro resulta o primeiro retrato fidedigno do beato, traga- do por Frei Marciano: «Vestia tiinica azuldo, tinha a cabega descoberta ¢ empunhava um bordao; 0s cabelos crescidos, sem nenhum trato, a cafrem sobre os ombros; os hirsutas barbas grisalhas, mais para brancas; os olhos fundos, raras yezes levantados Para fitar alguém, orosto comprido, ¢ de uma palidez quase cadavérica; 0 porte grave € 0 ar penitente davam-Ihe 20 todo uma aparéncia que no pouco teria contribufdo para enganar e atrair © povo simples e ignorantes dos nossos ser- Ges.» (10) Esse retrato vai correr mundo. O honrado capuchinho registrou, ainda, alguns tragos psicoldgicos que observou no Conselheiro. Teria 65 anos, escaveirado, tostado de sol. Tossia muito. Respirava humilde, sofrimento. Afora 0 6dio 2 Repiiblica, nada de afir- mativo, Sua acolhida foi composta, preocupado que nada faltasse aos visitan- tes, Leyou-os a ver as obras da capela, seguidos sempre pelo séquito armado. Em momento azado, Frei Marciano estranhou os acompanhantes. Para que tantos homens em armas quando viera em misso de paz? Os sequazes nao es- peravam a resposta do Conselheiro para bradar: «Nés queremos acompanhar 0 RIHGB, Rio de Janeiro, 159(399);353-364, abr./jun. 1998, 357 José Arthur Rios nosso Conselheiro». Mas este impés siléncio e respondeu ao Frei com singular declaragao: «E: para minha defesa que tenho comigo esses homens armados, porque V, Rev." hi de saber que a policia atacou-me e quis matar-me no lugar ‘chamado Masseté onde houve mortes de um e outro lado». E, logo avangou uma declaragao politica: «No tempo da Monarquie, deixei-me prender porque reco- nhecia 0 Governo, hoje, néo, porque nao reconhego a Republica». (11) OFreitentou responder, argumentando que algreja condenavaadesobedi- ancia e entendia que todo Poder vem de Deus; ¢ a Repiiblica, em outros patses, ‘como a Franca, era aceita pelos cat6licos. Perguntou ao Conselheiro porque re- pelia onovo regime, mas ndo obteve resposta, a no ser uma frase sibitina: «Eu hao desarmo a minha gente, mas também nfo estorvo a Santa Missa». Visiveis no diflogo certas distiincias incompreensdes intranspontveis. Como falar em Franca —sem mencionar o anticlericalismo desse pais — a ca- boclos ignorantes? Em uma de suas pregagoes, o bom capuchinho tentou escla~ recer o fim e aregra do jejum prescrito pela Igreja. Ouvindo que se podia jejuar comendo carne ao jantar e tomando pela manha uma chavena de café, o Conse- Iheiro estendeu o labio inferior e sacudiu negativamente a cabeca; € os seus principais asseclas romperam logo em aparte, exclamando: «Ora isso nio éje- jum, é comer a fartar». (12) confronto entre o Conselheizo ¢ Frei Marciano antecipa o fracasso do acordo, prenuncia os desacertos que virdo depois. A questo de Canudos come- cava, antes de tudo, religiosa, para depois ser politica. Frei Marciano nio tinha nem poderia ter, 0 aparelho critico necessdrio para separar 0 que eta cristianismo popular e o que era messianismo sebastianista, ‘Viu muito bem, isso, sim, desde que penctrou em Canudos, a nudez,a misériae julgou ver —o que é discutivel, a promiscuidade dos moradores. Percebeu que Oapelo de uma comunidade igualitariaatraia as multidoes indigentes do sertao, ea esperanga de uma outra Vida, onde encontrariam paz. fartura. Pouco se sabe da divisdo de poder no arraial. Havia um poder religioso © ‘um poder secular. © primeiro enfeixado nas mos ascéticas do Conselheito, 0 segundo na Guarda Catélica comandada por Joao Abade que respondiapels se guranca dete. Nessa Guarda figuravam futuros herdis da guerra, jagungos, al- guns carregando 0 estigma de muitos crimes, ¢ até foragidos da justiga, Cercavam estreitamente o Conselheiro. Ninguém podia falar-Ihe a s6s, registra 6 capuchinho, porque seus pretorianos no 0 deixavam, quer receassem pela vida do chefe, quer 0 vigiassem, para nao Ihes escapar nenhum dos seus movi- mentos eresolugdes. Assumiama fungiio de olhos c ouvidos: do Conselheiro, le- ‘Vando-lhe informagdes de tudo que se passava no arraial, ou se incumbiam da puarda e limpeza das igrejas auxiliados pelas beatas. Encarregavam-se da ali- 358 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):3 3-364, abr Jjun. 1998, Mistérios de Canudos mentacao do chefe e até, um deles, conhecido como «Ledo de Natuba» cra uma espécie de secretério, escrevendo sob ditado do Conselheiro. Havia ainda 0 grupo dos negociantes — a «classe conservadora» — que ‘mantinham loja aberta na praca principal e eram responsiveis, entre outras ati- vidades, pelo comércio de couro de bode curtido que acarretava recursos parao Povoado. Tao préspero era que emitiam-se vales € os circulavam, na regiio, como dinheiro. Um deles, Antonio Vilanova, chomem alto, de barba e bigode fechados, trajando sempre paleté e camisa». Dele 0 capuchinho guardou e re- gistrouo olharastuto e interesseiro. Sobreviveria ao massacre e iria viver, incé- lume, no interior do Cear4 onde morreu de morte morrida, sem que ninguém se lembrasse de molesté-lo. Nio faltavam, como de esperar no Nordeste, artffices que fabricavam uten- siios, faces e ferramentas; e os que se dedicavam a0 plantio e ao gado. Frei ‘Marciano avaliou tudoisso na época de sua missao, em cerca de mil pessoas, oi- tocentos homens duzentas mulheres, sem contat a populagao flutuante que, como sempre, afluia de todos os aredores, vindos dos segmentos sociais mais baixos. O Frade viu-a fortemente mestigada de brancos e fndios, um tergo de ne- gros, Toda essa gente obedecia a normas rfgidas tragadas pelo Conselheiro. Dis- Putas cram punidas com a expulsao, A prostituicdo era proibida, No arraial, ha- via uma escola, dois cemitérios e até cadeia para os cachaceiros. No comego, a Missdo parecia ter sucesso. A primeira pregagio teriam acorrido quatro mil pessoas, os homens armados, em atitude belicosa, de gorro 4 cabega, calgando alpercatas, as mulheres com longos vestidos de pano gros- seiro. OConselheiro a tudo assistia, arrimado a seu bordao, ao lado do altar que- brava a impassibilidade com gestos de desaprovago logo ecoados no protesto da multidio, (13) E preciso entender que essa gente se alimentava espiritualmente de uma tradigao cat6lica. Por isso acorria a batizar-se, a casar.a confessar-se logo que 95 sacramentos Ihe eram oferecidos. As coisas se mantiveram calmas enquanto os pregadores se limitaram a pastoral e a liturgia. Eis senao quando, imprudentemente, resolveram tratar do problema politico, interpretando sua fungao como de esteios da ordem e do re- gime. E 0 préprio Frei que conta: «Observei que neste sentido ja se pronunciara © Sumo Pontifice, recomendando a concérdia dos catélicos brasileiros com 0 Poder civil; ¢ concluf declarando que, se persistissem em desobedecer e hostili- zar um Governo que o povo brasileiro quase na sua totalidade aceita, nfo fizes- sem da religido pretexto ou capa para seus 6dios e caprichos...» (14) RIHGB, Rio de Janeiro, 159(399):353-364, abr./jun. 1998, 359 José Arthur Rios Num assomo retérico, perguntou & multidao que se comprimia na praca — quem eram os responsaveis pela morte e pelo fim miseravel de velhos, mulhe~ ese criangas que diariamente pereciam naquele povoadoem extrema pentiriac hbandono>. A frase s6 podia ser interpretada como aluso clara a0 Conselheiro. Foi quando uma voz se ergueu da multidao: «Eo Bom Jesus que os manda para 0 céu». (15) ‘A Gltima pregagao, como de prever, terminou em clima de repidio, sob o protesto geral e ruidoso dos conselheiros liderados por Joio Abade, Frei Mar- rjano declarouentio que suspendia a missfo. Resistiu aos apelos do Conselhei- ro que Ihe teria enviado um trogo de adeptos pedindo-Ihe que voltasse atrés. O Frade protestou em altas vozes contra a coagao a que teria sido ‘submetido e, no. dia seguinte — que seria 0 oitavo da Missio — deixou Canudos. Levaria, pelo testo da vida, o amargor da derrota moral que sofreu ea divida sobre o acertoou desacerto de seus atos. Tudo isso reflete no relat6rio que entregou nas maos do Arcebispo da Ba- hia. Esse documento é importante pelo que a oposigao ao Conselheiro dele pode retirar como munigo para a destruigo do arraial. Nele Frei Marciano conside- raos conselheiristas «uma seita politico-religiosa... ndo s6 um foco de supersti- G40 e fanatismo (mas) um pequeno cisma na Igreja baiana» e «um nucleo da resistencia e hostilidade ao Governo constitufdo do pais», um «Estado no ¢ Es- tado» onde néo so aceitas as leis, nem reconhecidas as autoridades, nem sequet se permite a circulagao do dinheiro da Repiiblica. «Naquela infeliz localidade» ~~ resumia — «nto tem império a lei e as liberdades publicas estdo grosseira- mente coartadas». (16) © Frei conclui seu relatério pedindo uma providéncia que restabelega no povoudo, para desagravo da religido, o bem social e a dignidade do poder civil, ‘co prestigio da lei as garantias do culto catdlico e os nossos foros de povo civi- lizado».(17) Nao hé davida que esse documento consolidou a imagem de Canudos como um miicleo de subversao. A imprensa jacobina fez o resto. A pedra come- cava a rolar. Em novembro de 1898 — quando Frei Marciano se achava em Salvador, de volta 3 sua faina pastoral, travava-se a refrega de Uaud entre a tropa coman- dada pelo Tenente Pires Ferreira e os fandticos do Conselheiro. A tropa de linha féra requisitada pelo Governador Luiz Viana, responden- do a0 pedido do Juiz Arlindo Leoni. O Conselheiro havia comprado em Juazei- ro uma partida de madeira para 2 conclusio das obras da Igreja Nova. O Juiz da Comarca era seu desafeto. Teria pressionado 0 comerciante de madeiras para que ndo as entregasse aos faniticos. Deveriam descer 0 Séo Francisco até Juazeiro onde os conselheiristas viriam recolhé-la, Recusada aentrega, o Con- 360 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399);353-364, abr-fuun. 1998. Mistérias de Canudos selhciro mandou seus jagungos busc4-la. Quando essa noticia chegou ao Juiz, telegrafou Leoni ao Governador pedindo protegao e reforco policial. No segun. do telegrama, Viana acedeu. No momento, 0 Goyernador Viana nao dispunha de forgas estaduais, em- penhadas em outros municipios tumultuados por desordeiros. Pediu, entai ), a0 Comandante do Distrito Militar, General Solon Ribeiro, que interferisse. Este designou o Tenente Pires Ferreira que partiu com sua tropa para Juazeiro do Norte. O ataque dos conselheiristas a Juazeiro jamais aconteceu, Viana se arre- pendeu de ter batido as portas do Governo Federal. Tentou voltar atrés, Fra tar. de. © Presidente da Reptiblica em exercicio, Manoel Vitorino Pereira, precisava firmar sua intetinidade junto aos jacobinos, que viam nele uma esperanga de seu retorno ao poder. Tampouco estaria disposto a perder uma oportunidade de consolidar suas posigOes e, quem sabe, substituir definitivamente Prudente de Morais, licenciado para tratamento de satide. Em novembro de 1896, dispunham-se essas forgas apostadas numaofensi- vacontrao arraial. Aprofundava-se o dissidio entre o General Solon Ribeiro eo Governador Luiz Viana. Apés o desbarato da expedicao do Tenente Pires Fer- Feira, 0 General passou a opor negativa aos pedidos do Governador para a for- mago de novo contingente contra Canudos. Foi sob esses sombrios auspicios que se formou a expedicio de Febronio de Brito — cem pragas, oito oficiais, médico, enfermeiro e farmacéutico, aos quais se juntaram cem pracas dapolicia estadual e alguns oficiais. Levavam alguma municdo e um canhio Krupp, cali- bre sete e meio, Os desentendimentos cresceram entre Solone Vianaenguanto atropa esta- cionava em Queimados, oque levou, afinal a que o Governador ordenasse a for- gaestadual se desligasse do contingente, Foi quando Manoel Vitorino afastou Solon Ribeiro da Bahia, sob a acusacio de interferir nos negécios estaduais, O novo Comandante do Distrito Militar conciliou-se com Luiz Viana e como Ma- jorFebronio que recebeu ordem de marchar com seus seiscentos homens contra Canudos. Nao tinha como nao fazé-lo: os viveres escasseavam, era imperative © ataque, Foi assim que enfrentaram os quatro mil jagungos entricheirados em Ca- nudos e, apés feroz combate de doze horas, ante aresisténcia dos conselheiris- tas, Febronio resolve ordenar a retirada. Vitéria do Governo? Nao é o que se depreende das descrigdes de Febronio. Em Monte Santo, via sua tropa «mor- ta, maltrapilha e quase nua». Nem da ata que lavrou justificando @ retirada, «s6 tinha égua e alimento para dois dias, os animais morriam de inanigao, faltava munigao». RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):353-364, abr fun, 1998, 361 José Arthur Rios Foi quando se comegou a falar no Rio em reagdo monérquica e sebastianis- ta: O problema do fanatismo ganhava foros de questo de Estado, em jogo, a so- brevivéncia da Republica. Alguns estudiosos negam o sebastianismo do arraial. Pode-se discuti-lo como ideologia do Conselheiro, Pode-se contestar que estivesse tentando con- gregar uma seita no sentido estrito do termo. Nunca se investiu de funcOes sa- cerdotais, Nos seus escritos ndo ha sinal de heresia. Seu messianismo discutivel. Nao ha sinal que se apresente como Jesus Cristo, seu enviado ou su- cessor. A Igreja apenas objetava que pregasse, alegando sua ignorincia doutri- hdtia, Mas 0 fendmeno no era incomum em comunidades isoladas e desassistidas de padres. Quanto’ presenga de tracos sebastianistas em Canudos — como em todaa cultura dos sertes — nao parece haver diivida. Na caderneta de campo de Eu- clides da Cunha onde recolheu quadras ¢ profecias séo intimeras as alusdes a Dom Sebastido, a sua vinda, a sua missao de combate a «lei do cdo». (18) Coriano sertéo, de longa data, essa tradigZo milenarista mal contida, que reponta, de forma brutal e sangrenta nos epis6dios de Rodeador e Pedra Bonita, em 1817 € 1838, no interior pernambucano. Que mais que novamente aflorasse em Canudos? Se é verdade que 0 Conselheiro seguia uma tradigo implantada nos ser- toes pelo Padre Ibiapina, nio hé como filié-la a uma ordem messifinica. Tbiapi- na, homem culto em teologia e Direito, pregava a Imitagao de Jesus Cristo, incitava os fiéis oragao, a pritica dos sacramentos, a humildade e acaridade. Combatia, isso sim, a magonaria, mas unicamente pelo exemplo € modelo da cruz, No mais sentia a miséria, organizara mutirdes para a construgao de esco- las, hospitais, agudes estradas, Fundou casas: de caridade e uma ordem de bea- tase irmaos que socorriam retirantes ¢ flagelados, velhos, érftios ¢ doentes. Af se esgota asemelhangaentre as duas figuras. Nem se coloca na obra de Ibiapina, acontestagio da Reptiblica, nem veleidades de messianismo ou salvagao sebas- tianista, Dizer que o padre cearense foi precursor do mistico de Canudos € ex- cesso de imaginagio. Esse sebastianismo monérquico foi, no entanto, 0 cavalo de batalha dos ja- cobinos que induziram Manoel Vitorino, depois Pradente de Morais, & politica deterra arrazada em relagao a Canudos. Foi o que determinou 0 envio da expe- digdo de Moreira Cezar e depois a de Arthur Oscar € o fim trégico do arraial. Se € verdade, como afirma Levine que nos escritos do Conselheiro, «nao hé nada que sugira um comportamento manfaco ou desequilibrado» (19) no menos verdade que por motivos impenetriveis a psiquiatria da época, seu des vio de conduta pelas privagdes e enormes press6es sofridas no arraial, sétendia 362 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):353-364, abr /jun, 1998. Mistérios de Canudos a se agravar, levando-o a crises misticas, ao agravamento de sua hostilidade & Republica e as suas instituigdes, Canudos — como todo fato historico — € uma trama tecida de muitos ele- ‘mentos: as condicées de vida do sertio, as peculiaridades do sertanejo, os con flitos da politica baiana, a disputa de mao-de-obra pelos latifundidrios, as ContradigGese incertezas da Repiblica mal nascida e—a questo religiosa,que deixou marcas na populace do interior, fanatizada pelos beatos e controlada pelos «coronéis» e seus jagungos, Canudos ainda permanece —e assim ficaré por muito tempo—cercado Por uma zona de sombra, Seu mistério é desafiante— para socidlogo, o his- toriador, o antropdlogo. Nao permite certezas arrogantes ou afirmagoes defi- nitivas E parte de uma consciéncia nacional tatcante, entre arcaismo e moderniza- ‘ges, em conflito consigo mesma, em perpétuo statu nascendi, buscando a pr6- pria definicao. NOTAS, 1, Euctides da Cunha — Cawdos (Diario de uma Expedig&o), Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1939, p. 99, 2. Tb, pp. 98/99. 3. Buclides da Cunha—Cadermeta de Campo, Rio de Janeiro, Cultriy MEC, 1975, p. 106 4. Henrique Dugue Estrada de Macedo Soares — A Guerra de Canudos (2 ed.) Rio de Ja- neiro, INL (1897), 1985, pp. 45/46. 5. Buclides da Cunha, Canudos, p. 101. 6, Ap. Macedo Soares, op. cit, pp. 19/20. 7. Macedo Soares, p. 45. 8, Manuel Benicio — 0 Rei dos Jagungos, Rio de Janeiro (1899), 1997, p. 102. 9. Frei Jodo Evangelista de Monte Marciano — Relatério ao Arcebispo da Bahia, 1895, ap. Ayrton Marcondes, Canudos, Sto Paulo, Circulo do Livro, 1997, p. 75. 10. Ap. Ayrton Marcondes, op. cit, p. 95. 11, 1b..p.97. 12, p. 101. 13, Frei Marciano, ap. Marcondes, op. 14, fb..p. 112, 15, Frei Marciano foi muito atacado por seu desempenho no Belo Monte. Carlos de Laet, criticou-o em artigo publicado, em 1897, na Revista Catdlica do Rio, o que provocou revide do ‘capuchinho no jomal Cidade do Salvador. 16. Ap. Marcondes, ibid., pp. 118/19. pe RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399).253-364, abr jun. 1998. 303 17, Ibid.,p. 117. 18. José Calasans Brando da Silva — No tempo de Antonio Consetheiro, Salvador, UFBa, 1959, pp. $1 esegs. Veranda suarecente Cartografiade Canudos, Salvador, 1997, pp. 88¢SeBs, 19. Robert Levine — 0 Sertdo Prometido (tradusi0), Sto Paulo, Editora da Universidade ‘de Sto Paulo, 1995. RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):353-364, abr jun. 1998. 2. A OBRA DE HISTORIADOR DO PROF. EDGARDO DE CASTRO REBELLO! Alberto Venancio Filh Ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras sucedendo a Euclides da ‘Cunha, diria Afranio Peixoto «como devia ser, veio da Bahia. Como tantos ou- tros iguais —Rebougas, Nabuco, Murtinho, Bilac, Rio Branco, ... de ascendén- cia baiana e nascidos pelos acasos da vida longe de sua origem — foi dadiva feita a0 Estado do Rio, pela generosidade perduléria daquela terra, que, além de dar ao pais os seus melhores homens, ainda possui com que enfeitar as suas ir- mas menos fartas». Nao tendo tido a felicidade apontada pelo autor de «Poeira da Estrada, vinculo-me & Bahia pelos lagos da formagao intelectual. Na galeria de quatro Tetratos que omnam o gabinete de trabalho, estao dois mestres do gosto literario e da educagio; Afranio Peixoto e Anisio Teixeira, No estudo de direito destaca- ram-se dois Professores, Hermes Lima e Castro Rebello, de cuja obra hist6rica pretendo hoje fazer a anilise, Na sucesso 20 meu mestre Afonso Arinos de Melo Francona Academia Brasi- Ieira de Letras, relatei que aos nove anos ali ingressei, ladeado por Afranio Peixoto ¢ por meu pai, Francisco Venancio Filho, para assistir 4 homenagem que o Presiden- teda Bolivia, General Enrique Pefiaranda, prestava a Euclides da Cunha. Dias de- pois recebia com dedicatéria dois volumes das Obras Completas de Castro Alves: «Alberto, Euclides da Cunha ¢ 0 Casiro Alves da prosa, dé a mesma paixfo 205 dois. «Alberto, Castro Alvesmereceu a paixfio de Buclides, que eles the inspirema paixio do Brasil. ‘Seu amigo Aftanio Peixoto» 1 Conferencia pronunciada no Instituto Geogrifica ¢ Hist6rico da Bahia em 1° de outubro de 1997, a0 tomar posse como sécio correspondente. ‘Secio titular, RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399)-365-381, abr/jun. 1998, 365 Alberto Venancio Filho Anisio Teixeira foi figura exponencial da educagao brasileira e tive o privi- légio de trabalhar com ele, quando ainda estudante na Campanha Nacional de Aperteigoamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes). Embora se consideras- se pouco afeito aos problemas da histéria, esta estava presente em muito de suas elocubragies, ¢0 livro péstumo O Ensino Superior no Brasil €admiravel sinte- se histérica. A criatividade de Anisio Teixeira levou-oa organizarem 1935 a Universi- dade do Distrito Federal; convida para Reitor Afranio Peixoto, ¢ Hermes Lima ¢ Castro Rebello, respectivamente, para Diretores da Escola de Economiae Di- reito ¢ de Filosofia e Letras, Anfsio Teixeira incumbiu Afranio Peixoto em via- gem a Europa de selecionar professores estrangeiros, e com a colaboragio do Prof. Georges Dumas, grande amigo do Brasil, contratou um grupo excepcional de professores, no campo da Histéria, Henri Hauser, Eugene Albertini e André Piganiol. Nao se tem registro dos contatos que Castro Rebello teré tido com es- ses eminentes mestres, mas um convivio estimulante deve ter se estabelecido, Tenho em minha biblioteca as principais obras de Henri Hauser, adquiridas do acervo de Castro Rebello Hermes Lima foi meu Professor no primeiro ano da Faculdade Nacional de Direitoda entao Universidade do Brasil, ensinando Introduco & Ciéncia do Di- reito. Aos jovens apedeutas que, entrando na faculdade pensavam tudo conhe- cer, Hermes Lima ministrava curso sistematico, integrando 0 Direito com as Ciéncias Sociais e fornecendo 0 quadro geral do sistema juridico, Afranio Peixoto no Livro de Horas, livro péstamo que, com 0 Brevidrio da Bahia, filtimo de seus livros, compée 0 hino de devogdo & terra natal, dedica ca- pitulo ao Castro Rebello. «Familia tradicional da Bahia cujas vérias geracdes temo prestigioe o talento. Conheci muitos deles e lhes fui amigo e admiradorm, © primeiro, Frederico, Professor da Faculdade de Medicina, de tao grande pres- tigio que a colénia britinica, certa vez, impediu Viagem & Europa porque ficaria desamparada; Afonso, Magistradoe Professor, sibarita da cultura, Joz0 Batista, poeta de grande alcance, Jones, fundador do Jornal A Bahia, revelando muitos talentos € Joaquim Macedo, pai de Edgardo, funcionério piiblico e poeta. Das geragdes seguintes destacou Fernando, que toda a Bahia estimava, Frederico e Otavio que foram meteoros, Mario, Magistrado circunspecto, e Afonso, poeta de rara delicadeza. E da terceira geragao, Aluizio de Carvalho Filho, Mestre de Direitoe de Politica. «Castro Rebello onde aparece € significado intelectual, nonimia baiana de capacidade, em qualquer paragem do espitito a que se diri- jam». Define Edgardo como «Mestre de Direito, comercialista sdbio, de grande pproselitismo ideolégico», e conclui «deles guardo lembrangas pessoais que me perfumam a meméria, De todos fui amigo e admirador, 0s Castro Rebello con- tam na Bahia. Honram minha Bahia», 366 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abr/jun. 1998, A Obra de Historiador do Prof. Edgardo de Castro Rebello Fui aluno de Edgardo de Castro Rebello no tiltimo ano de seu proficuo ma- gistério, J4 enyelhecido despertava o mesmo entusiasmo que durante decénios Provocou em geragées de académicos de Direito, As primeiras aulas sobre a evolugao histérica do Direito Comercial j4 revelavam 0 profundo conhecedor, que pude no curso dos anos melhor apreciar nos trabalhos e na conversa fluente eagradavel. A esse tespeito cabe mencionar o rigor cientifico. Em capitulo de memérias inéditas, com o titulo de Cagaaos Livros, relata que desde o inicio do magistério nao se conformava em dar o tema da origem do Direito Comercial desconhecendo aobra classica de Alessandro Lattes II Diritio Comerciale nella Legislazione Statutaria delle citta Italiane. Durante quarenta anos andou a pro- cura do livro apontado pelos comercialistas italianos como Rotondi como introuvabile, até que num lance de sorte o adquiriu numa livraria de Roma. Nascido em 1887 formou-se em direito e em 1913 fez concurso para Pro- fessor substituto de Direito Comercial da entio Faculdade Livre de Direito. La- cerda de Almeida, um dos examinadores, ao final do concurso, disse-lhe: «O senhor é um Professor nato. Feche 0 seu escrit6rio de advocacia e venha traba- Thar conosco». Logo em seguida iria substituir o titular Frederico Borges, em mandato de Deputado Federal. Exerceu o magistério com empenho e dedicagio até 1954, salvo inter- regnode nove anos em que o regime de excecao retirou-o arbitrariamente dacé- tedra, juntamente com os Professores Hermes Lima, Lednidas Rezende ¢ Sauerbrown Carpenter, Mas ndoexerceu apenasa cétedra de Direito Comercial, pois tinha compe- téncia para ensinar qualquer ramo de Direito, Assim ocorreu com turma que © teve como Professor praticamente em todos os anos, nas cadeiras de Introdugiio 4 Ciéncia do Direito, Legislagao Operdria, Direito das Sucessdes e Processo Penal. No periodo de afastamento, dedicou-se & advocacia, mas a marca principal foi o Professor de Direito ¢ o parecerista, Disse-me certa vez com ironia; «Nao sei a que horas alguns de meus colegas estudam: de manhi esto na faculdade dando aulas, de tarde estio no foro ou no escritério recebendo clientes, ede noi- te estio nas festas. O que sobra para o estudo?» Castro Rebello era temperamento verbal, conversa encantadora, a todos atraia, mas nao deixou uma obra escrita significativa, avesso a escrita. No cam- pode Direito somente no final da vida acedeu em reunir alguns dos pareceres. O principal livro Maud (Restaurando a Verdade) foi contestagio & biografia de Alberto de Faria. A Carta-Prefacio a Histéria Administrativa do Brasil, de Max Fleuiss deveu-se & leitura do livro, e os trabalhos sobre Capistrano de Abreu ¢ Pedro Lessa decorreram de eventos comemorativos. RIHGB, Rio de Janeiro, 159(399):365-381, abr fun. 1998. 367 Alberto Venancio Fitho Da obra hist6rica cabe assinalar o livro Maud (Restaurando a Verdade). O cestudo da vida do grande pioneiro do século XIX jamais fora feito em profundi- dade. Contacom ironia Castro Rebello que Alberto de Faria, homem de neg6- cios, e mais tarde membro da Academia Brasileira de Letras, comprou em Pe- tr6polis a casa de veraneio de Maui e ocorreu-Ihe a idéia de escrever a biogra- fia. O material documental era amplo, oacesso ao depoimento de familiares em muito facilitou a iniciativa. Mas o livro se aproximavada hagiografia, perfil de homem quase sem defeitos, que 86 ambicionara o progresso do pais. Aoanalisar a obra do historiador é preciso estabelecer os fundamentos me- todolégicos de base marxista, Ndo se tem noticia de como a teoria marxista se propagou no Brasil, e é significativo que Hermes Lima, no livro de mem6rias Travessia tenha omitido esta faceta da formagio cultural. Castro Rebello men- ciona que foi Capistrano de Abreu quem o introduziu na leitura de Lenine nos artigos publicados na revista Labour Weekly. Respondendo a um inguérito so- bre livros de predilegao, Castro Rebello afirma: «0 Capital subjuga-nos o entendimento, Decifrando-nos o enigma da produgio capitalista, submete-nos a verdade que exprime: no nos dleixa aliberdade de volver as suas pginas por simples simpatia.» Diria Hermes Lima que Castro Rebello repetia sempre que de trés instru- mentos iluminativos do universo social e psiquico se houvera servido de prefe- réncia: Marx, Ferri e Freud, Mas Castro Rebello nesse inquérito também indica as obras de Spencer ¢ Ferri, No campo da Historia menciona Plutarco, Tacito, Pirenne, Cicero e seus amigos de Gaston Boissier. E traga uma andlise extrema- mente significativa de Um Estadista do Império. O comentario € expressiv «De alguns (livros) seria penoso separar-me. O que maior sedugo exercea sobre mim, Um Estadista do Impéria, & também 0 que mais, teaho lido. Tudo, em qualquer de seus volumes, concorre para que & inspiragdo pessoal do autor aparentemente se confunda com a propria vverdade hist6rica e esta adquira a expressio que melhor Ihe convem: a nobre7a literéria de algumas de sas paginas, o poder evocativode quase todas, o relevo das figuras evocadas, o trago quase sempre rpido, em- bora fime, em geral incompleto, mas sempre exato, aque devemos esse relevo. Nabuco, entretanto, no o tinha pelo mais feliz de seus livros. Na carta de que fez acompanhar oexemplar de Minha Formagdo, que ofere- eu a Domicio da Gama, diz, referindo-se a esta: “S4 agora esse Ficaré sendo onosso exemplar, o que quer dizer que teré a sua lembranga as50- ciada aums obra que considero a fortuna de minha Vida, a maior genero- sidade da sorte para comigo’ Tso, A sorte nilo foi mais. generosa para com cle quando, tomando-Ihe a pena, lhe ditou 0 capitulo sobre Bagebot ¢ 0 governa de 368, RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abr/jun. 1998. A Obra de Historiador do Prof. Edgardo de Castro Rebello fgabinete, a recordagaio da missa ouvida na Sistina ovo fez tragar oretrato do Bardo de Tautphoeus, do que ao inspirar-Ihe o do Marqués de Parand ‘ou o de cada um dos companheiros deste no Ministério de 18: pois, 0 de Te6filo Ottoni, 0 de Zacarias, ou o de Silveira Martins; nem ‘mais generosa, quando the deu a paleta de que tirou o painel de Massan- ‘gana, do que, na evocasdo da Camara de 1864, a0 inspirar-Ihe o quadro em que perpetuou suas figuras mais expressivas. Recordagio de homens ¢ instituigdes sobre que comega a pesaro cesquecimento ¢, mais do que o esquecimento, a ignordincia, mas de que ‘ainda nos sentimos demasiado perto, para que, a seu respeito,o interesse Puramente hist6rico ou simplesmente literério se sobreponha a qualquer outro, Um Estadisia do Império ificilments ter, emt nossos dias oleitor para quem foi escrito, Dagui a ccm, duzentos anos, sera lido, como emos, ainda hoje, Técito ou Salistio. Falta-Ihe, por enquanto, aquilo a que podemos chamar 0 sentido universal.» Americo Jacobina Lacombe examinow a fundamentagao metodol6gica, ao di- et que «um dos mais respeitdveis defensores da teoria marxista da hist6ria (Castro Rebello) usou uma expressdio que tem sido evidentemente distorcida. Apds enun- ciar a ‘determinacao imperiosa’ da evolugao brasileira pelo fator econémico, de- clara que, com a evidenciagao desse fato, ‘cessa a missdo do historiador’ . E ébvio que 0 saudoso mestre nao queria dizer que a missio do historiador fosse simples- mente aplicaeiio de uma férmula coma descrigiio das etapas através da qual foi al- cangada a sua evidenciagio. Ele proprio, em trabalhos posteriores, foi de uma meticulosidade implacdvel na elaboracdo dos elementos de pesquisas». Nao se pode, assim, ver na metodologia hist6rica de Castro Rebello um marxista fout court. Quero crer que Castro Rebello absorveu da teoria marxista certos pressupostos e utilizou-a como instrumento de trabalho, mas a cultura geral impressionante e 0 espirito critico nao se conformariam na rigidez de qualquer sistema dogmatico. E expressou 0 pensamento de forma significativa: «Nunca juramios bandeira em agremiasaio ou partido, por cujos es- {atutos ou regimento ficéssemos obrigados a conformar nossa opinio com determinada ideologia; nunca nos filiamos a qualquer grupo, seita e ‘confraria, por cuja egrativéssemos de subordinar o pensamento aos art- 4208 de alguma crenca.» Olivro Maud, mostra os condicionamentos que the facilitaram a ascensio econémica, e com ampla gama de conhecimentos jurfdicos rebateu afirmagdes como no caso das sociedades em comandita. Os méveis pessoais, a utilizacéo de prestfgio junto aos Ifderes do governo, tudo af é descrito. O texto foi publica- do em capitulo da revista Cudrura dirigida por Francisco Mangabeira, logo apreendida, e depois reunida em livroem 1932 pela Editora Universal em apre- RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abrdjun. 1998. 369 Alberto Venancio Filho sentagao modesta. Apés a morte 0 carinho devotado de Francisco de Assis Bar- bosa reuniu o livro e outros trabalhos em volume Maud e Outros Estudos, tracando de seu mestre e amigo perfil biogréfico expressivo. Cabe mencionar que esgotado hé muito tempo, nfo quis Castro Rebelloreeditaro livro. Alegava que tendo travado polémica em termos dsperos com Claudio Ganns, deste se tornara amigo endo podia publicaro livro sema polémica, ¢ com apolémica te- ria que dar uma explicagdo que achava complexa. Castro Rebello ¢ Claudio Ganns se tomaram grandes amigos, viajaram juntos pela Europa e foi na varan- da da casa do amigo que Claudio Ganns faleceu. O livrorepresentaya uma visio novanna historiografia brasileira, a apresen- tagio de figura do mundo econémico dentro do contexto da época e como pro- duto dela. Provocou criticas severas: no Boletim de Ariel Miran Latif atacou com afirmages vagas e imprecisas, discordando evidentemente do método, mas sem apontar incorreges ou falhas. E Otavio de Faria, jovem intelectual, fi- Iho do autor, que se destacaria depois com o livro Maquidvel e 0 Brasil e em grande obre romanesca, veio também a liga, mas foi realmente a contestagao de Claudio Ganns na Introdugo ¢ edigio da Exposicio aos Credores, com otitulo Autobiografia a que provocou a contestacao. Henri Hauser no artigo «Notes et Réflexions sur le travail historique au Brésil» (Revue Historique), janeiro-margo de 1937 (p. 85), a propésito do livro disse que 0 autor era um espirito ousado e que outros o chamariam temerdrio. ‘Nao entraria na controvérsia, mas queria anotar que essas manifestagdes icono- lastas serviam a causa da pesquisa historica, poiso primeiro dever do historia- dor, como dizia Michelet, era a falta de respeito. Castro Rebello respondeua Claudio Gunns em vérios artigosna Revista do Brasil, com o titulo «Maud —de novo Maud», e vamos nos fixar em dois pon- tos: escola emissionista € a filiagdo ao saint-simonismo, Claudio Ganns refere- se icarta dirigida por Maus a Vilalba, Ministro da Fazenda doUruguai em 1861 em posigao contréria escola, mas as opinides de Taunay, Pereira da Silva Jo- aquim Nabuco sao acordes em indicar Maud como propugnador da emissao de papel moeda, alegando Castro Rebello que a carta a Vilalba fora mudanga de posicdo. As expresses de Joaquim Nabuco sio contundentes: «Maud como fi- nanceiro era porém um espfrito sempre entrenublado pelas ficgdes do papel moeda». Ereferindo-se ao folheto de H. A. Millet O meio circulante ea questao bancdria, escteve: «folheto, como todos do autor. contra a escola restritiva, Millet, como Maué, s6esperava o progresso do pais comoo dos Estados Unidos pela mobilizagio das riquezas todas, nacional e particular, presente e futura, sob a forma de emissdes bancérias». A vinculagdo de Maud ao saint-simonismo € contestada por Castro Rebello de forma contundente. Aponta que os economistas prediletos de Maud ao tem- 370 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abr fun. 1998, A. Obra de Historiador do Prof. Edgardo de Castro Rebelto podamocidade foram Stuart Mill ¢ J. B. Say e que Exposigdo aos Credoreses- ctita na velhice em 1878 obedeceu a inspiragdo que nao pode explicar 0 passado, O centendrio de Saint-Simon, refeténcias &s idéias de Michel Cheva- lier, citado em duas ou trés paginas da Exposicdo, levaram Alberto de Faria a uma filiagdo inexistente, esquecido de que Michel Chevalier fora discfpulo de Saint-Simon, mas se afastou tanto desse ensino que pertence indiscutivelmente a Escola Liberal. 0 assunto foi examinado por Henri Hauser em artigo publicado em Annales d'Histoire Economique et Sociale em 1937 sob o titulo «Um proble- ma de influ€ncias: o saint-simonismo no Brasil». E conclui que a influéncia saint-simoniana em Maué era uma hipétese gratuita, que encontrou no Brasil um critico de Alberto de Faria, um critico com dente duro que nao sereceiouem dar como subtitulo do seu livro «Restaurando a Verdade». Mas afirma «é gran- dea audacia que se atribui aoatacar o que se chama a verdade oficial», chaman- do-a mesmo de imprudente e adita «ndo € bom atacar os {dolos da tribo, passa-se rapidamente como inimigo do povo». Cabe referir nessa controvérsia & opinido de Capistrano de Abreu sobre 0 livro, considerada por Claudio Gans «conceito apressado». Mostra Castro Re- bello que a opiniio de Capistrano est expressa no artigo «Fases do Segundo Império», publicado em jornal em 2 de dezembro de 1925, e depois na terceira série Estudos ¢ Ensaios. «Irineu Maud, rio-grandense benemérito em quem por desgraca o descortino nao corria parelhas com o patriotismoe com a probidade, firme no prestfgio acumulado nos meios indigenas, fortalecido pela confianga inspirada aos capitais londrinos, rasgou muito das faixas coloniais, comegou a remodelar o Brasil moderno». E acrescenta Castro Rebello: «Que hé de apres- sado neste conceito tio preciso?» A referéncia de Capistrano de Abreu que Al- berto Faria envaidecido reproduz em discurso na Associagio Brasileira de Educagdo em 25 de janeiro de 1927 nao desmente esta opiniao: «Li seu livro com prazer e avidez como se fora um romance e nfo com menos proveito, de- frontando a cada momento idéias novas. Do seu Maud partiram feixes de luz que trazem grandes claridades. Sem Maud nio é mais possfvel escrevera hist6- ria do Segundo Reinado». Em 1923 Max Fleiuss publicou a Histéria Administrativa do Brasil, con- tribuicdo a0 Diciondrio Histérico, Geogrdfico e Etnogréfico do Instituto Hist6- rico ¢ Geogrifico Brasileiro, repert6rio fundamental de informagSes sobre a vida administrativa do pafs, Na segunda edi¢do de 1925, transcrevem-se opinises elogiosas de Cl6vis Beviléqua, Viveiros de Castro, Levi Carneiro, J X. Carvalho de Mendonga e Oliveira Viana, mas especialmente a denominada Carta-Prefiicio de Castro Rebello, tragando painel resumido da historia coloni- al, que, a meu ver, $6 encontra parelha no Esbogo de Histéria do Brasil do Ba- a0 do Rio Branco. RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-38], abr./jun. 1998, a7 Alberto Venancio Fitho Apontando no livro as informagdes sobre a evolucao da Histéria brasileira, indica as «dificuldades que se lhe hao deparado e que admiravelmente venceu. Basta pensar na dispersdo de suas fontes. Nao creio que trabalho desse género tenha precedentes entre n6s. Uma coisa, no entanto, € preciso proclamar: a ex celéncia do seu nao se deve a simples circunstincia de vir, assim, primeiro, an- tes, pararealce dele, outros lhe fazem mesmo falta. Interessante € que, dando-nos um quadro minucioso das instituigdes que descreve e subordinando-Ihe a trans- formagio a acontecimentos de ordem geral, a Histéria Administrativa sugere naturalmente as linhas principais de uma outra, para que fornece material abun- dante, eem que parece descobrir 0 préprio substratum: a da exploragao da terra edo homem entre nés>. Indica t6picos expressivos de sintese de Max Fleuiss e se refere a situagao da Bahia do século XVII: «A Bahia jé entio extensa e populosa, ostentava casas de trés an- dares. As fortunas faziam-se ali em alguns anos. O dominioespankol,fa- cilitando © contacto entre Brasil e outras coldnias americanas da ‘mesma soberania, gerou o contrabando da prata, metal que na Bahia ‘como em outras cidades, se tornou de uso comum entre os habitantes.. Para ali fluiram também em grande ntimero judeus expelidos da Europa, alguns de grandes fortunas. Por um alvaré de 1647 concedew-thes, mesmo isengdo do fisco sob o encargo de constituirem com seus cabe- ‘dais Companhia geral do comércio para o Brasil epor alvard posterior de ‘cerca de um més, jd se aprovavam os estatutos.» E coneluiris ‘Bl como de sua Fisidria Administrariva se destaca suavemente ‘um capftulo de uma outra que eu, com alguma afetago, mas com inteira propriedade, intitularia assim: “De como a exploragio da terra ¢ do hhomem pelo préprio homem, no Brasil, foi acausa de nele se criarem as instituigdesadministrativas, e também a de elas se transformarem’. Nilo foi naturalmente seu propdsito escrevé-Io; tanto melhor para seu tra: ‘batho. & que tanto o orientou o amor da verdade, que esta af nio oculta rnenhuma de suas faces.» Em duas conferéncias Castro Rebello analisou a vidae a obra de Capistra- no de Abreu, uma na sessdo comemorativa do centendrio de nascimento em 22 de outubro de 1953 no auditério do Ministério da Educagao ¢ Cultura, ¢ outra, realizada na Casa do Estudante do Brasil sob os auspicios da Sociedade Capis- trano de Abreu em 22 de junho de 1950. ‘Na primeira Castro Rebello discute aspectos da obra do historiador brasi- leiro, analisando de inicio como dos estudos literarios da juventude sobre Jun- queira Freire e a literatura brasileira contemporiinea veio ase dedicar i histéria. Indica que no exemplar da tese sobre O Descobrimento do Brasil oferecido a0 372 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abrfjun. 1998, A Obra de Historiador do Prof. Edgardo de Casiro Rebello Coronel Joaquim de Souza Sombra, primeiro Intendente Municipal de Maran- guape, Capistrano colocou a dedicatéria: «ao Coronel Sombra que me fez histo- iador». Trinta anos depois, em cartaa José Verfssimo, diria que a idéia em consa- grar-se a hist6ria do Brasil fora «resultado de uma leitura febricitante de Taine, Buckle e da Viagem de Agassiz, feita ainda no Cearé». E em 1917, repetia em carta a Joao Liicio de Azevedo: «Terho presente a primeira vez que me veio a ideia de escrever a histéria do Brasil, Estava no Ceard, na freguesia de Maran- guape, com poucos livros, arredado de todo convivio intelectual. Acabara de ler Buckle no original, ¢ relia mais uma vez Taine, tinha acabado a Viagem de Agassiz». Comenta Castro Rebello «os dois passos, a meu ver, conciliam-se perfeitamente como que dissera na dedicatoria, As idéias de consagrar-se a his- Aria do Brasil, a idéia de escrevé-la, vieram da leitura de Buckle, de Taine ede Agassiz. Esta historia jamais foi escrita. Fez-se no entanto historiador, edo Co- ronel Sombra ter recebido, para isso, o estimulo necessério, a sugestiio defini- tiva, talver», E prossegue Castro Rebello «E por que nao escreveua historia que aleitura indicada Ihe sugerira?» J4 em 1890, em carta ao Bario do Rio Branco dizia-se «. OEmbaixador Roberto Assumpgio, seu dedicado amigo, publicou em Pa- tis, em 1972.0 volume A Franciana da Colecdo Castro Rebello, contendo dois trabalhos sobre o escritor francés e 0 catélogo de sua valiosa colegio, precedido de retrato tirado em Paris. Josué Montello observando a fotografia descreve: «De chapéu, colete, gravata bem posta, o paleté aberto, sentado no tanco de jardim pablico deu-me cle a impressito que se fizera fotografar 1a Av, Foch hé poucos passos da famosa Vila Said onde Anatole France tinha sua casa e seus livros. Castro Rebello assim, bem preparado com toque de ansiedade no semblante, como que ia sair dali para visitar 0 mestre, ele, também o mestre.» Hé a destacarpara entender-lhe bem a personalidade do homema figurado Professor, Ao jubilar-se como Professor catedritico da Universidade do Brasil, expressou-se 0 Professor Hermes Lima: quarenta anos de docéncia militante, quarenta anos de magistério juridico, quarenta anos de vida exemplar no cumprimento do dever. Se suprimirmos de sua vida, Professor Castro Rebello, ou da vida desta faculdade sua condigdo de Professor, faltaria 8 hist6ria, quer de sua texistincia, quer da escola, algo que as tornaria irreconheciveis» E acrescenta: «Professor por vocagio, sabia pela raiz ¢ ndo pela rama, Conduzir 0 ra- ‘ioeinio, transmitir 6 conhecimento, argticia no formular os problemas iluminavam suas aulas, suas Prosas.» Comentando o ensino da Hist6ria de Civilizagdo na Universidade do Dis- trito Federal de Anfsio Teixeira, afirmari «sua influgncia em muitas das melhores intetigéncias que thebeberam os ‘ensinamentos habilitou-os a se orientarem para uma preparagao besica © disciplinada. Ensinava a estudar. O rigor metodol6gico no Ihe per- mitia admitir meia contestago de doutrina. Gostava invariavelmente de indagar oque se escondia airés das aparéncias ¢, por isso mesmo, tinha achados e descobertas que espantavam tanto nocotidiano como no excepcional.» 378 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):365-381, abr jun. 1998. A Obra de Historiador do Prof. Edgardo de Castro Rebello Depée 0 historiador José Honério Rodrigues: -, escreveu Ramiz.. Os jornais com os artigos chegaram a0 conhecimento do Senado, tendo sido recebidos com indignagiio pelos escra- vocratas. Ignoramos se ainda existem as colocagdes completas desses jornais mas seria de grande interesse a identificagao e a republicago desses pequenos- grandes artigos. A Princesa dava especial protecio aos abolicionistas perseguidos: «A vida de quantos estiverem ameacados por motivos da causa abolicionista esta de- baixo de minha protecao». Em outra mensagem dizia «lastimar profundamente a mfsera sorte dos es- cravos e fazia votos a Deus para que isso acabasse quanto antes». Em 12 de fevereiro ocorreu a primeira batalha de flores em beneficio da aboligdo que André Rebougas considerou praticamente a «primeira manifesta- ¢40 (piiblica) ... de Isabel» sobre a aboligao, Dia 1° de abril foram entregues pela Princesa, no Palacio de Cristal, 103 ti- tulos de alforria aos escravos de Petrépolis. Assim terminou a escravidio na cidade serrana. Segundo o mesmo escritor, «em 4 de maio almogaram no Pago Imperial de Petrpolis 14 africanos foragidos das fazendas vizinhas. A noite, a miisica do Imperador percorreu as ruas, em ovagao ao Mordomo Nicolau Nogueira da Gama, que libertara todos os seus escravos e 20 advogado Marcos Fioravante que desde o 1° de abril dirigia 0 éxodo sob a protecio de Isabel». RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):383-397, abr./jun. 1998. 387 Alexandre de Miranda Delgado E de imaginar a célera dos escrayocratas contra a Princesa ¢ 0 proprio Im- perador, couteiros de escravos fugidos... Leio XIII escreveu aos Bispos do Brasil: «Essa vontade popular (de ver extinta a escravidao) tem sido na verdade auxiliada pelo alto zelo do Imperador e de sua augusta filha, como também pelos politicos a testa do Governo».. Dia 13 de maio chegou finalmente, debaixo de grande expectativa: «Nao assine, Isabel» — avisou o Conde d’Eu —. «Eo fim da Monarquia». «Assina- lo-ei Gaston», respondeu a Princesa. Se agora noo fizer talvez nunca mais te- nhamos oportunidade tio prépria. Escreveu um historiador: «E foi chorando, no auge da emogio mais pro- funda emais justa que a Princesa Isabel assinou a aboligao. Quebrando 0 si cio religioso, as palmas os vivas espoucaram num delitio de indescritfvel entusiasmo». «Minha alma sobe de joclhos estes pasos... Santa Isabe cheio de emogio, simpaticissimo, Josédo Patrocfnio, Beijou os pés da Princesa e escreveu num Album: «Os reis educam princesas. O Imperador educou uma mulher. (a) José Carlos do Patrocinio, 13 de maio de 1888. Cotegipe, politico inteligentissimo, enxergava longe. «Ganhei ou nio ga- nhei a partida», perguntou-Ihe a Regente, «Sim, respondeu o Bario. Eu ganhei isso (apontou para a rva). Mas Vossa Alteza ganhou aquilo» (apontou para a barra onde safam os navios para a Europa...). Os antigos cronistas e pessoas do povo (algumas das quais chegamos a co- nhecer), que haviam presenciado 0 epis6dio, afirmavam: «foi a maior festa que j4 houve no Brasil». >, exclamou, «Hoje eu vi o povo». escreveu, sobriamente, Machado de Assis. . Essa declaragio causou revolta a muita gente: escravocratas, republicanos, materialistas, magons ortodoxos e alguns eriticos pouco cavalheirescos ‘A Comenda de Sao Gregério Magno foi concedida pelo Papa a todos os membros do Ministério, Dona Isabel determinou que o Ministro Ant6nio Ferreira Viana escrevesse uma circular ao Arcebispo Primaz do Brasil, com c6pia para os demais bispos, pedindo-Lhes que se dirigissem aos respectivos vigarios das freguesias, para que orientassem a populaciio a cumprir e respeitar a Lei da Aboligao. Durante o desfile militar, os marinheiros levaram suas carabinas enfeitadas de flores. Umaflorcaiu e foi apanhada por Ferreira Viana que ofereceu a Prin- cesa. Entao todos os marinheiros depositaram as flores que traziam aos pés da Redentora. Eram comandados pelo oficial Silvio Pelico Belchior. Outro aspecto que tem passado despercebido dessa Regéncia (s6 foi citado por Cal6geras), foi a suspensio da proibigao dos noviciados, revogando-se as- sim o famoso aviso do Conselheiro Nabuco, de 1855. Nao conseguimos locali- zar a tempo esse documento. Seria mais um titulo de gléria para a Princesa Isabel. Havia 723,000 escravos, cerca de cinco por cento da populagio, talvez 400,000 economicamente ativos, Nao ocorreu o propalado desastre econémi- co. Apenas na antiga regio cafeeira do Vale do Parafba, que nao procurou se adaptar aos novos tempos, houve conseqiiéncias negativas. O Conselheiro An- drade Figueira reuniu em sua fazenda todos os libertos e explicou-Ihes a Lei de 13 de Maio: todos permaneceram com antigo senhor. O éxodo rural ocorreu muito Jentamente e s6 se acentuou depois dos anos 30, sobretudo no apés-guer- ra. As estatisticas contribuem para esclarecer 0 assunto, Ficaremos devendo nova comunicagao ao Instituto. Errou a Republica, deixando de fazer uma reforma agricola e educacional que proporcionasse melhores condigdes de vida para os libertos e as geragdes de seus descendentes proximos. Mas a Repdblica, da qual se apossaram logo os avocratas, esqueceu 0s lihertos e até hoje o Brasil sofre as conseqiiéncias dessa omissdo provocada pelas oligarquias. RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):383-397, abr.jjun. 1998, 389 Alexandre de Miranda Delgado Silva Jardim procurava conquistar a simpatia dos escravocratas para o re- gime cuja propaganda fazia ardorosamente: «A Republica indenizard os senho- res de escravos 0 prejuizo que tiveram com a Lei de 13 de Maio». E significativo recordar 0 que escreveu Dom Pedro II, ja no exilio, 4 mar- gem de um livro: «Sempre fui contra a indenizagio». Tinha razio 0 Imperador: 0 libertos € que deviam ser indenizados, depois de tantos anos de espoliacio, de danos morais ¢ fisicos. «Foi a aboligio a primeira emogio que o Brasil deu ao mundo», escreveu Rebougas, «Libertando os escravos... O Brasil libertou a propria humanidade do opré- brio de ter escravos», disse Jules Simon. Nao esquegamos que depois do Brasil ainda mantiveram o sistema servil 0 Egito e Cuba, durante 3 ou 4 anos. Carlos Gomes dedicou a Dona Isabel a 6pera «Lo Schiavo». Encenada sob © patrocinio do Imperador. ‘Mas as comemoragdes duraram pouco mais de um més. Surgiu logo areagao escravocrata, a reagao da lavoura, a reacdo dos fazen- deiros, que constitufam entio a maior forga econémica do Brasil. Discursando na Camara Joaquim Nabuco afirmou: «Considero uma fortu- na part a Monarquia, fortuna devida a culta inspiragao moral da Lei de 13 de Maio, ter nascido a agitagao republicana do ressentimento de uma classe contra © maior acontecimento de nossa patria», «Quando a Monarquia se sentiu obrigada a tocar nesse ponto da economia social, 0s conservadores, 0s antigos saquaremas, educados por Torres, Paulino e Euzebio, passaram todos estrepitosamente para a Repiblica.» © Visconde de Taunay, falando a um fazendeiro depois do 15 de Novem- bro e perguntando-Ihe como iam as coisas, ouviu essas palavras que traduzem o 6dio implacvel para com Dona Isabel Cristina e para com a Monarquia: «Tudo correu muito bem. A Princesa chorou a valer». «Mimosa flor de Bragangan, dissera Artur de Azevedo, ‘Mas 0s aplausos foram se transformando em apupos, as flores em pedras. O Conde d’Eu, viajando ao Norte, passou por Salvador, Recife, Fortaleza, Be- 1ém, Manaus. Foi hostilizado, Fez uma declaragao digna de um cavalheiro e de um demoerata: «A Monarquia brasileira nao tem qualquer interesse particular. Se se convencesse de que a nagao brasileira deseja dispensar os meus servigos, seria a primeira a nfio pér obsticulos & vontade nacional e concorrer para a transformagao que mais consentinea fosse aos interesses do pais». 390 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399);383-397, abr.jun. 1998, Novas consideragies sobre a Princesa Isabel ‘A Princesa Isabel foi vaiada na Rua da Misericérdia, no Rio de Janeiro, teve seu carro cercado pelos estudantes de Medicina e Engenharia, sendo preci- so a intervengio da policia para resgaté-la. E um episddio constrangedor que faz pensar na psicologia das massas ¢ na instabilidade da opiniao publica. A Loja Vigilancia ¢ Fé, da cidade de Sao Borja, aprovou dois manifestos repudiados por um pesquisador da propria ordem «como ridfculos... contra a A Cara Municipal da mesma cidade gaticha aprovou mogao que causou gtande repercussao, insistindo na «educagao fandtica da Princesa» ¢ no fato de ser casada com «um principe estrangeiro» como se fosse crime serestrangeiro. Outra prancha, assinada por Francisco Glicério, principal dirigente das lo- jas reunidas de Campinas, insistia nas mesmas acusagdes. Disse Nabuco que «sem 0s exaltados € impossfvel fazer revolugdes; mas depois é impossivel governar com eles». Sao abundantes os testemunhos ¢ documentos sobre o episédio de 15 de novembro. Quando 0 Conde d’Eu sugeriu que se chamasse 0 Marechal Deodoro para uma conferéncia, discordou a Princesa: «Isso nao. Chamar um insubordinado & presenca de meu pai? Isso nunca!» Quando soube da proposta dos 5.000 contos de reis oferecidos pelo novo governo protestou cheia de amargura: «Oh, Sr. Mallet! Pois é quando nos vé com 0 coragao partido de dor que vem falar-me de dinheiro, conhecendo 0 nos- so modo de pensar sobre semelhante assunto». A um oficial declarou: «Nés nao fazemos questo de dinheiro. O que me custa é deixar a patria, onde fui criada e tenho as minhas relagGes. E isso 0 que mais lamento perder; nao 0 trono, nem ambiges, que nao tenho». A outro oficial deu uma ligdo de democracia: «Pensava que isso se daria, mas de outro modo. A nagio ia elegendo cada vez maior mimero de deputados republicanos e, esses, tendo a maioria, nés nos retirarfamos» Passando pela mesa de trabalho onde assinou a Lei Aurea declarou solene- mente: «Senosexpulsam, a mim ea minha familia pelo que assinei ali, repostas as coisas como dantes, hoje eu tornariaa escrever 0 meu nome sem vacilagao». Eis como se despediu: «E com o coragao partido de dor que me aparto de meus amigos, de todos os brasileiros ¢ do pafs que tanto amei e amo, para cuja felicidade me esforcei por coniribuir e pelo qual continuarei a fazer os mais ar- dentes votos, Isabel, Condessa d"Eu». RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399);383-397, abr.fjun. 1998. 391 Alexandre de Miranda Delgado Escreveu: «Minhas conversas a bordo do Parnafba», «Dirio de viagem» e «Alegrias e tristezas». Soubemos que existem muitas cartas inéditas, de sua correspondéncia ativa.e passiva, no Arquivo Grao Pard, documentagio que pre- cisa ser divulgada pelos pesquisadores. Depois da morte da Imperatriz Tereza Cristina em Portugal a familia radi- cou-se na Franca. «Nossa situaco financeira no momento ¢ igual a zero», es- crevia o Conde d’Eu, Viviam com uma pensio de 8.000 francos recebida do Duque de Nemours. O Imperador dedicaya especial carinho a filha, Em Cannes e Nice recebiamuitas flores. Escolhia as mais belas eas oferecia & sua filha que- rida. Queremos crer que essa dedicagao era causada principalmente pela com- paixao de vé-la destronada e banida. Quando a Princesa soube que a mesa da Abolig%o fora arrombada nao con- teve aindignagdo: «Miserdveis...» Acudiu logo o pai: «Nao. Pensavam que nes- sas gavetas estavam as cartas deles que me pediam dinheiro e empregos. Enganaram-se. Nao guardava tais cartas. Rasgava-as». Recebendo o antigo Ministro Ferreira Viana, do gabinete da Abolicio, rompeu em pranto de saudade da patria. Alguém exaltou as belezas de Nice. Respondeu Dona Isabel: «O Senhor nao conhece Petrépolis»... Emagreceu, envelheceu e ficou com os cabelos brancos em poucos meses de exilio. Explicou a quem estranhou o fato: «Ficaram assim quando, ao partir pela titima vez no Brasil, nao vendo meus filhos, stipus que eles ficassem. As horas de angustia, antes do embarque, na noite de 16 para 17 de novembro, 4es- pera dos filhos que estavam em Petrépolis, pareceram uma eternidade. Temeu pela seguranca e pela vida dos pequenos Principes. Quando do falecimento de D. Pedro II recebeu grandes manifestagdes de pesar de intimeros Chefes de Estado De Vienarecebeu a mensagem de um dileto primo de D. Pedro IL, sobrinho da Imperatriz Leopoldina: «A nova dor que fere Vossa Alteza Imperial afligiu- me profundamente, conhecendo toda a amargura que deixam no coraco esses golpes irrepariveis. Conceda Deus a Vossa Alteza Imperial todas as consolida- oes de que precisa nessa cruel provagao, Franz Josef, Kaiser da Austria e Rei da Hungria». Do Vaticano, o Papa Ledo XIII enviou esta mensagem: «O Santo Padre re- cebeu com vivo pesar a triste notfcia comunicada por Vossa Alteza Imperial. Ele dirige ardentes preces ao Senhor pelo repouso eterno do augusto defunto e apresenta a Vossa Alteza & Familia Imperial as suas condoléncias, Cardeal Rampolla». Em seguida o siléncio. A dificil década republicana nao encontrou nela oportunismo politico. Em 1892 dirigiu manifesto ao povo brasileiro acon- 392 RIHGB, Rio de Janeiro, 159 (399):383-397, abrjun. 1998,

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