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Foto: Divulgação.
Vou ler – ou vou tentar não ler – um texto que eu preparei para esta conferência,
“Os templos do tempo?”, com ponto de interrogação: não se trata de uma
afirmação, é uma pergunta.
A ciência fez prova de algo que é muito curioso: quem sofre de amnésia não é
apenas incapaz de se lembrar o que se passou, mas não consegue construir,
imaginar, aquilo que se vai passar. Quem esquece o passado, esquece o futuro.
A pessoa responsável por esse primeiro museu do mundo era uma mulher. Essa
curadora chamava-se Ennigaldi, era uma princesa, filha do último rei da
Babilônia. Curiosamente, Ennigaldi era também a principal sacerdotiza do deus
Nanna, que era uma divindade da Lua. Essa primeira curadora tratava dos ciclos
temporais dos céus e da Terra. A princesa ocupava-se do tempo a tempo inteiro.
Vamos a um museu não exatamente para ver os artefatos mas para nos vermos
a nós próprios como inventores do tempo. Esses artefatos que nos deixam, que
nos são exteriores, concedem-nos inferioridade, essas coisas públicas fabricam
a nossa intimidade. Esses corpos atemporais fabricam o nosso tempo tempo
individual e coletivo.
Toda a minha infância foi um percurso compartilhado com coisas, que me deram
alma, e com bichos, que me humanizaram. Vivo num lugar onde a miséria fez da
morte uma coisa frequente. Talvez por isso, essa nação seja feita de gente tão
viva que mesmo os cemitérios são lugares mais para os vivos passearem do que
para os ausentes morarem. Os mortos são semeados – é assim que se diz lá,
não se diz sepultados. Os mortos são semeados por baixo das sombras das
árvores sagradas. Assim, fui aprendendo a esperar que alguma qualquer gaveta
do mundo surgisse como um encantamento vital. E foi uma poeta, Sophia de
Mello Breyner, que me ajudou a entender esse modo de sentir o tempo. Ela
escreveu os seguintes versos:”Se tanto me doi que as coisas passem, É porque
em mim foi vivo cada instante”.
Na minha família, disputávamos com a costureira esse guardar de passados. Só
não o fazíamos em gavetas de armários, o fazíamos em relatos e histórias. Em
nossa casa, não tínhamos crença religiosa, mas fazíamos o culto da refeição
como um tempo sagrado. Em redor da mesa, não rezávamos, mesmo que o
quiséssemos não saberíamos fazer. O nosso modo de rezar era contar histórias,
a história era a nossa oração. Os meus pais fizeram isso conosco, eu fiz isso
com meus filhos. Essa história, esse novelo de histórias, constituiu uma espécie
de galeria viva em que se cruzam memória e invenção.
Minha pequena cidade não tinha museu, mas nós não precisávamos sair à rua
para ir ao museu. Quando ainda eram crianças, os meus filhos requeriam uma
dose infinita de histórias. Eu contáva-lhes episódios da minha juventude, e
naquela altura eles ainda gostavam, ainda aturavam. A minha filha mais nova,
porém, sentia-se triste porque lhe faltava, na sua própria adolescência, o sentido
épico que marcou a minha juventude. Uma vez, ela me interrompeu e perguntou:
“Pai, no teu tempo o mundo era melhor?” Eu respondi que não, que o mundo
não era melhor. Mas também acrescentei o seguinte: disse que, antigamente, o
futuro era muito melhor. Na altura, eu disse isso com convicção, mas hoje não
sei se é verdade. Não se comparam futuros, não é possível comparar incertezas.
Talvez o meu velho pai estivesse mais certo da superioridade do futuro no seu
tempo, era essa a certeza que o animava quando ele me interpelava e dizia:
“estuda, para seres alguém”. Era isso que o meu pai me dizia. Quando eu era
menino, era isso que ele falava, meu pai, e quando falava assim, meu pai não
falava apenas comigo, ele falava com o futuro. Vivíamos numa condição difícil
sob um regime de uma ditadura colonial, mas havia para o meu pai um futuro
que escutava, um futuro que falava a nossa língua. O futuro éra mais do que
uma feira, era uma aposta clandestina. Num tempo de portas fechadas, o meu
pai espreitava o futuro pelo buraco da fechadura. O futuro mudou? Ou fomos nós
que passamos a entender melhor a complexidade do mundo?
Falei de tudo isto porque cada um de nós vive hoje, na sua vida privada, um
choque frontal de temporalidades. Falamos da globalização como algo que se
traduzisse apenas em termos espaciais, nessa metáfora da aldeia global. Mas
é, sobretudo, no domínio do tempo, que estamos vivendo mudanças radicais. No
espaço de uma geração, fomos todos deslocados, somos todos imigrantes de
uma outra temporalidade, e somos todos recém-chegados a essa espécie de
pátria suspensa, em que todos somos todos e não somos nunca ninguém.
Precisamos aprender a lidar com esta outra cidadania, cuja regra principal
parece ser negar a ideia da cidadania. Somos todos súditos do reino da absoluta
realidade, onde tudo vive no tempo real, tudo é imediato e simultâneo, tudo é
veloz e voraz.
(Eu faço aqui uma pausa, porque estou a pensar nos tradutores. Será que eu
preciso dizer alguma coisa mais lento? Façam um sinal. Está bom?)
Caros amigos, se perguntarem (que vou ser breve, porque eu sei que vocês já
não devem estar para me ouvir muito), se perguntarem a um camponês
moçambicano o que é o tempo, ele responde: “o tempo é uma cobra que come
a sua própria cauda”. Ouvi um caçador enfeitar o nome do tempo da seguinte
maneira: “o tempo é como a cobra, é um bicho feito só de pescoço”. Se
perguntarem a esse mesmo camponês sobre a origem do mundo, ele responde,
sem nenhuma angústia metafísica: “o mundo não teve princípio, porque sempre
existiu”. A sociedade rural moçambicana é dominada pela ideia de um tempo
circular que é bem distinto do tempo linear, sequencial e cronológico que domina
a cidade. Nesta outra dimensão circular do tempo, os mortos não morrem nunca,
e quem nasce apenas renasce. Neste sentimento do mundo, nós somos os
nossos próprios antepassados.
Devo confessar que, nos dias de hoje, esta invasão da tecnologia acontece no
meu próprio espaço familiar. Em casa, olho em volta e vejo acontecer uma
espécie de cerimonial de feitiçaria informática. Trata-se de uma sutil invasão
desse tempo hegemônico do mercado. E vejo que todo, desde os meninos aos
mais velhos, se ocupam e são ocupados por uma parafernália de geringonças,
que hoje tomam o nome refinado de “gadgets”. A minha sala, que ainda é
curiosamente chamada de sala de visitas, exibe uma lista infinita de gadgets
(não sei se pronuncio bem): televisores, reprodutores de DVD, computadores,
smartphones, tablets, ipads, iphones, playstations, leitores de mp3, personal
digital assistants e outros tantos aparelhos que não existiam quando eu saí para
o Brasil mas que certamente passaram a existir quando eu regressar a
Moçambique. Antes, dizíamos de alguém que falava pelos cotovelos. Pois hoje
seria mais apropriado dizer que falamos na ponta dos dedos. Mas talvez falar
não seja o verbo, o certo seria teclar. A sala onde todos se dedicam, cada um, a
ser sozinho, só na aparência está em silêncio. Um imperceptível ruído nos
impede de nos vermos e escutarmos.
Muito obrigado.