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ao? Rhy a VY YV VV VV VV Y Dh UN PONT, a a Ri. ps a Leap WAS li ~~ Sa ‘ on CK \ ZA CNY a CAAA AY AY PO a ~ MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Prec REGINA ABREU * MARIO CHAGAS i Peay A arena do patriménio cultural no Brasil esta Dien RU Menu: cet feet ei tec Saeed ee Oe re tere nc moe OMSL TT CSCO Td Perea eres ote ge rs eae 200 e cal - igrejas, fortes, pontes, chafarizes, pré- Creetiecnfuleettenremi ieceaet tet Fea eeeetne Mice Cg eeemen steerer Utero Re Terto Leyes OST MeL ee onto 2000, que instituiu 0 inventario e o registro Creare emer ee Murr Reem rau Seon cei Mic Mt ee ceo cou a alteragdo radical da antiga corelacao evra Lette Coe lane tare eM Url) ite-To ieee Waet siete eect Peat semicon sociedade civil (detentores de saberes tradi- cionaise locais) associados a profissionais no reuse eusnensreCORG entice desaberes especificos) poem em marcha um Morente ore ites irene tribuindo social e politicamente para a cons- truco de um acervo amplo e diversificado de expressées culturais em diferentes dreas: linguas, festas, rituais, danas, lendas, mitos, De eee Coe aay ace ecm Pe rea ere eee ee eae Pome uexeU Me Mae ce ate nham um novo cenario. Essa redefinicao pas. sa inclusive pelo campo do biopatriménio Pater Unease tcom ine en Counts olhares para a relagao entre natureza e cul- ura, € facilitando a compreensiio da nogao Pee Cane ty etn r Tine Renter Cen eea rae Uru COMiaeaeNCMe ny 0) tae Tes Nate eee ooo Liat Ue atle Cees Lao Sn aaeie Tee uso cao Fou Eo Coaeectte eee seal eC tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos Pree Mie rio ECU CUM Mu Petuiulon tenures Dre an eee eo ou ce eee Tura CCN Nok ite Pt GomecU eGR iceiecucnant oa Eres erence oe etary CeCe Memeo ees mem Core PREC een COR Car Moers Pee tere) REGINA ABREU & professora do Programa de Pés- Rete te OR ue rer koe ct to de Filosofia Ciéncias Sociais da Universidade Fee Sn a eum Mon doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pés-Graduacio em Antropolagia Social (PPC Centos ole ene Cir ir RoR de Janeiro (UFRJ). RCS Ne eRe ne ma en ae fete eet a uc Sora Sr Ene eo a oe A lees EC ico CO ee Ree Re ee (UniRio), doutor pelo Programa de Pés-Graduacao em Ciéncias Sociais da Universidade do Estado do ome ue en Ores ee ccm en Dore eee NM estene aeons one Ppa coirek eu ciee Ms cater Tc MEMORIA E PATRIMONIO ENSAIOS CONTEMPORANEOS Meméria e patriménio: ensaios contemportieos Regina Abreu; Mario Chagas (orgs.) 1, ed. (2003). Rio de Janeiro: DP&A © Lamparina editora Revisaio Michelle Strzoda (1. ed.) Angelo Lessa (2. ed.) Projeto grdj Priscila Cardoso co, diagramucito ¢ capa Imagem da capa Pintura corporal ¢ arte gréfica wajapi. Seni Wajapi/20c0. texto deste livro foi adaptado ao Acordo Ortogrdfico da Lingua Portuguesa, assinado em 1990, que comecou a vigorar em + de janeiro de 209. Proibida a reprodugao, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprogra- fico, fotografico, grafico, microfilmagem etc. Estas proibicgdes aplicam-se também as caracteristicas grdficas e/ou editoriais. A violacao dos direitos autorais é punivel co- mo crime (Cédigo Penal, art. 84 ¢ §§; Lei 6.805/80), com busea, apreensfo e inde- nizagées diversas (Lei 9.610/98 ~ Lei dos Direitos Autorais ~ arts. 122, 123, 124 € 126) Catalogagao-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros M487 aed Memoria e patrimnio: ensaios contemporaneos / Regina Abreu, Mario Chagas (orgs.) ed. ~ Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. Tnelui bibliografia ISBN 978-85-98271-59-0 . Patriménio cultural — Protecao — Brasil. 2. Meméria — Aspectos sociais — Brasil. 1 Abreu, Regina. II. Chagas, Mario 98-1519. CDD: 363.692981 CDU: 351.853(81 Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, 2° andar, sala 201, Lapa Cep 20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel./fax: (21) 2232-1768 lamparina@lamparina.com.br PARA ALEM DA PEDRA £ CAL: POR UMA CONCEPGAO AMPLA DE PATRIMONIO CULTURAL MARIA CECILIA LONDRES FONSECA A imagem que a expressiio “patrimdnio histérico ¢ artistico” evoca entre as pessoas é a de um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excep- cionais, ou por terem sido paleo de eventos marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores. Entretanto, € forgoso reconhecer que essa imagem, construida pela politica de patriménio conduzida pelo Estado por mais de sessenta anos, esta longe de refletir a diversidade, assim como as tensdes € os confli- tos que caracterizam a producao cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado. Quando se olha, por exemplo, a Praga XV, no centro do Rio de Janeiro, um dos écones do patriménio histérico nacional, a evo- cacao mais ébvia é a do poder real, suscitada pelo Pago Imperial, sede da Corte. Ao funde, a antiga catedral, hoje igreja de Nossa Senhora do Carmo, atesta a importancia, no Brasil colonial e im- perial, do poder da Igreja. Esses sao testemunhos materiais im- ponentes, tanto do ponto de vista da ocupagao e da permanéncia no espaco da cidade, quanto dos padrées estéticos hegeménicos, valorizados como expressées de cultura a época do tombamento desses bens pelo SPHAN. Essa leitura da Praca XV, no entanto, esta longe de evocar plena- mente © passado, a sociedade da épaca ¢ a vida que se desenvolvia naqucle espago. Poucos foram os registros que, como os deixados por Debret, Hildebrandt (Fundacaa Bienal de Sao Paulo, 2000) e outros, captaram ainda a presenga, nesses espagos, de mercado- Tes, escravos domésticos, negros de servico e alforriados, enfim, da sociedade compiexa e multifacetada que por ali circulava. Era, so- 60 MEMORIA E PATRIMONIO bretudo, 0 olhar distante dos viajantes estrangeiros, movide menos pela necessidade de construir uma imagem ideal, em moldes eu- ropeus, do pais, que pelo interesse em documentar o que lhes pare- cia peculiar, e proprio daquelas terras, que costumava “incluir” na paisagem os “excluidos”, ndo apenas daqueles espagos, que tam- bém ocupavam, mas da memoria coletiva. O exemplo da Praga XV € significativo. Nesse local nao € possi- vel encontrar nenhuma marca ou mengdo, atualmente, 8 presenca constante dos escravos pegando dégua no Chafariz do Mestre Valen- tim, que 14 ainda permanece apenas como mera extensao do Pago Imperial. Se, como pesquisas histéricas véern comprovando, o Rio de Janeiro foi uma cidade quase africana durante a primeira metade do culo XIX," essa informagao nao ficou registrada nos bens que ali so identificados como patriménio cultural brasileiro, nem na leitu- ra que deles fazem os érgdos de preservagao. !sso foi agravado pela falta de documentagio sobre essa vertente da histéria do Brasil. Mesmo em relagao a centros histéricos, como o da cidade de Goids, tombado pelo phan em 1978, portanto j4 em fase mais re- cente da politica federal de preservagao, a perspectiva nao é muito diferente. Hé muito tempo realiza-se, na Semana Santa, nessa ci- dade, a Procissdo do Fogaréu, de que as igrejas, ruas e pragas s elementos fundamentais, assim como os rituais, a indumentaria e, sobretudo, as formas especificas de participagao da comunidade. Entretanto, a condi¢ao de patriménio cultural da nagio é atribus- da, pelo 6rgao federal encarregado, apenas ao conjunto urbano edificado, além de alguns iméveis isolados. Embora fugaz, pois so se realiza uma vez no ano, 2 Procisséo do Fogaréu confere a esse cendrio ¢ 4 cidade um significado particular, indissociavel de sua identidade como patriménio cultural. Na cidade de Belém, cujo centro histérico A beira do rio Amazo- nas tem feigao portuguesa, é impossfvel deixar de perceber, no mer- cado Ver-o-Peso, a forte presenca indigena nos produtos trazidos da 10 1. Confurme noticia publicada no Jornal do Brasil, em g de agosto de 2901, 3 pagina 19, com o titulo “Livres, mas sem direito & memséria", em que ¢ mencionado o livro da historiadora norte-americana Mary Karasch, intitulado A vida dos esevavos nu Ria de Janeiro: 08-1350 PARA ALEM DA PEDRA £ CAL selva e, especialmente, nos modos de usé-los, também transmiti- dos pelos vendedores. No espago do mercado, coexistem edifica- des de valor arquiteténico e artistico, como os mercados do Peixe e da Carne, com tendas e esteiras em que ficam expostos ervas, cheiros ¢ outras tantas mercadorias; 6 um lugar onde “se concen- tram e se reproduzem praticas culturais coletivas”,* relerentes aos grupos que, nesse espago, efetuam trocas materiais e simbdlicas. ‘Trata-se de um raro exemplo de local em que coexistem claramente marcas de culturas tio distintas como a portuguesa e a indigena, sendo que apenas as primeiras foram identificadas ¢ reconhecidas, via tombamento, como patriménio cultural brasileiro. Também a Feira de Caruaru, em Pernambuco, é um lugar com as mesmas caracteristicas do mercado paraense, com a diferenga de que, em seu perfmetro, nado ha qualquer edificagdo que pos- sa ser tombada pelos critérios reguladores desse instrumento de protegao. Em barracas iguais a diversas outras, e nos espagos entre elas, convivem as manifestagdes mais variadas da cultura nordestina rural e urbana: 0 artesanato da regio, suvenires para turistas, comidas tipicas, bandas de pifanos, folhetos de cordel. A Feira de hoje é, sem davida, muito menos homogénea, ou “au- ’, como muitos diriam, que a de cinquenta anos atras, de cardter essencialmente rural. Todavia, é impossivel negar que con- tinue a ser uma referéncia da cultura nordestina, que incorpora téntic; cada vez mais intensamente outras influéncias que ndo apenas as da tradigao sertancja. Um lugar como esse, porém, sem nenhuma edificagao ou paisagem de “excepcional valor”, nado apresentava, até a edictio do Decreto 3.551/2000,* os requisitos para integrar 0 2.Ci de trecho relativo ao Lino das Ingares, no inciso IV do § 1° do artigo 1° - Deereto dle 4 de agosto de 2000. 3. Também na cidade de Belém e em municipios vizinhos acorre anualmente, no segundo, domingo de outubro, 0 Cirio de Nazaré, considerado a maior festa da cristandade pelo numero de pessoas que retine, e que também nao figura no repertéric oficialmente consti- tuido do patriménio cultural brasileito 4. O Decreto 3.551. de 4 de agasta de 2000, “institiri o Registro de Bens Culturais de Na- turcza Imaterial que constituem patriménio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patriménio Imaterial ¢ dé outras providancias”. Sobre os trabalhos que eulminaram na publicagaa do decreto, ver publicacio © registro do patrimdnio imaterial — dossié final » a 62 MEMORIA E PATRIMONIO universo de bens considerados pelo Estado patriménio histérico e artistico nacional. Na verdade, do conjunto de bens e manifestagdes culturais ci- tados, apenas uma pequena parte foi, até agora, integrada ao pa- trim6énio cultural brasileiro, constituido por legislagao federal: o Paco Imperial, o Chafariz ¢ a antiga Catedral, na Praga XV; 0 conjunto arquiteténico e paisagistico Ver-o-Peso, em Belém; cas edificagdes j4 mencionadas em Goids. Sao esses os bens passi- veis de tombamento, ¢ a leitura deles feita, como incorporados ao patriménio, esta centrada em seus aspectos arquiteténicos, integrando marginalmente dados histéricos e andlises de sua re- lagdo com a cidade e a paisagem.* A Constituigao Federal de 1988 (2003), em scu artigo 216, en- tende como patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referéncia a identidade, a a dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se io, A meméria incluem: 1. as formas de expresso; IL. os modos de criar, fazer e viver; Tih. IV. as obras, objetos, documentos, edificagées ¢ demais espagos s criagdes cientificas, artisticas e tecnolégicas; destinados as manifestagées artfstico-culturais; V. as conjuntos urbanos e sitios de valor histérico, paisagistico, artistico, arqueolégico, paleontolégico, ccolégico ¢ cientifico. » das atividades dar Comissiio ¢ do Grupa de ‘Trabalho do Patriménio fmaterial, produride distribuida pelo Iphan e pela Secretaria do Patrimonio, Muscus Artes Plasticas do Minis tério da Cultura (Fonseca, 2009). 5. Uma proposta de leitura mais rica dos ambientes natural ¢ construido, inserindo nessa leitura sua dimensio histérica, foi feita pelo arquitcto do Iphan, Luis Femando Franco, na Informagdo 135/1986. Cabe nolar que 0 Guia dos bens tombados (Carrarzoni, 1987), apesar do que o titulo sugere, ubrange apenas os bens iméveis inscritos nos Livros do Tombo do. Iphan (que, na verdade, constituem a esmagadora maioria dos bens tombados), ¢ apresenta basicamente informagées de carater formal, estilistico ¢ arquitetdnico. Esse guia de grande utilidade foi elaborado com base na consulta aos processos de tombamento, o que s6 vem a confirmar o tipo de leitura feita pelos técnicos do Ipbun. predominantemente arquitetos PARA ALEM DA PEDRA E CAL Portanto, de acordo com o entendimento do legislador, 0 con- junto de bens passfveis de ser tombados (artigo 216, incisos IV e \) constitui apenas parte® do que, no texto constitucional, é con- siderado patriménio cultural brasileiro. Para esses, aplica-se um tipo de protecdo legal que visa a assegurar sua integridade fisica, podendo inclusive limitar-se, com essa finalidade, o direito indivi- dual a propriedade. Entretanto, o que deveria ser uma das moda- lidades de formagao desse patriménio terminou por ser, durante mais de sessenta anos, a tinica disponfvel.” No caso da maior parte das “criacées cientificas, artfsticas e tec- nolégicas” (inciso IIT), sobretudo as de autoria individual, existem mecanismos préprios de registro, transmissao, protegao e difusao. As leis de propriedade intelectual e de direito autoral foram de- senvolvidas com essa finalidade, assim como o depésito legal de publicagées na Biblioteca Nacional. Embora nao tenham como objetivo atribuir valor cultural aos bens a que se apliquem, es- ses instrumentos e essas praticas terminam por contribuir para a construgao do patriménio cultural brasileiro, na medida em que identificam essas criagdes e asseguram o acesso a elas, trazendo garantias e benefficios a seus produtores. No caso especiffico das criag6es artisticas de cardter erudito, sao muitas as instdncias de atribuigdo de valor cultural, como pre- miagées, referéncias em textos de histéria da arte ou de critica, integragao em colecées particulares, principalmente de museus, divulgacao em exposigdes etc. Esses critérios de atribui¢ao de valor foram mencionados por Mario de Andrade (1981, p. 39-54), em seu anteprojeto para a criacdo do Servico do Patrim6nio Artistico Na- cional, elaborado em 1936. No entanto, ha toda uma gama de bens e manifestagdes cultu- rais significativos como referéncias de grupos sociais “formadores da 6, Em depoimento a0 Conselho Federal de Cultura, em janeiro de 1968, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987, p. 72) diz que, entre “os bens a proteger de valor arquealégico, historico, artistico € natural [,..] avultam, porém, 0 monumentos arquitetdnicos, como niicleo primacial de nosso patriménio” protesao dos monumentos aryueolégicos e pré-histéricos é objeto de legis cifiea, a Lei 3.924, de 26 de julho de 1961. 63 64 MEMORIA E PATRIMONIO sociedade brasileira” (Brasil, 2003, p. 146-147) a que nao se podia aplicar, até recentemente, nenhum instrumento lega) que os cons- titufsse como patriménio. Isso significa que muitos deles poderiam desaparecer sem deixar nenhum vestfgio, seja material, seja na meméria da nagdo, pelo fato de nao terem sido considerados “de valor excepcional’”, conforme determina 0 artigo 1° do Dec.-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que cria o tombamento, ou por tratar de manifestagdes de cardter processual, a que nao se aplica qual- quer forma de protecao que tenha por objetivo fixar determinada feicdo fisica do bem.* A limitacao, durante mais de sessenta anos, dos instrumentos disponfveis de acautelamento teve como consequéncia a produ- ¢4o de uma compreensao restritiva do termo “preservaciio”, que costuma ser entendido exclusivamente como tombamento. Tal si- tuacdo veio reforgar a ideia de que as politicas de patriménio sao intrinsecamente conservadoras e elitistas, uma vez que os critérios adotados para 0 tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradigao europeia, que, no Brasil, sao aqueles identificados com as classes dominantes. A consciéncia desses problemas, que também ocorrem, com as devidas diferengas, na grande maioria dos estados que desenvol- vem politicas de patriménio, tem levado, nos. foros nacionais e in- ternacionais, como a Unesco, a solugées diferenciadas, visando a ampliar a abrangéncia de tais politicas.? Esse movimento € relativa- mente recente e, na Unesco, é fruto tanto da critica ao eurocentris- mo da nogao tradicional de patriménio histérico e artistico quan- to da reivindicagao de pafses e grupos de tradigao ndo europeia, 8, Cabe lembrar 0 processo de tombamento do Santuario de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, que foi arquivado porque o relator, 0 antropélogo Luis de Castro Farias, em 1968, via um conflito entre a conservagao da edificagdo e seu uso, a pratica de “um culto de cunho popular” que tinha uma dindmica pripria envolvendo “ampliagdo, renavaciio e mesmo ino- vagao” do espaco. Argumento semelhante foi invocade como objecio ao tombamento do Terreiro da Casa Branca, em 1984, mas, nesse caso, o bem foi inscrito na Livro histérico e no Livro arqueoldgico, etnogréfico e paisagistico. 9. Ver Lévi-Strauss (inédito). © antropéloge acompanhou ativamente os trabalhos de pre- paragao da proposta do decreto, desde o Seminario de Fortaleza, em 1997. Ver também 0 texto publicade no dossié, citado na nota 4. PARA ALEM DA PEDRA ECAC 65. no sentido de verem reconhecidos os testemunhos de sua cultura como patriménio cultural da humanidade. No Brasil, a publicagdo do Decreto 3.551/2000 insere-se numa trajetéria a que se vinculam as figuras emblematicas de Mério de Andrade e de Alofsio Magalhaes, mas em que se incluem também patriménio cultural brasileiro, montada a partir de 1937.° Contri- buem, ainda, para essa reorientagdo nao sé o interesse de univer- sidades e institutos de pesquisa em mapear, documentar e analisar as diferentes manifestagdes da cultura brasileira, como também a multiplicagtio de érgiios estaduais ¢ federais de cultura, que se empenham em construir, via patriménio, a “identidade cultural” das regides em que esto situados." Entretanto, ante a existéncia, hoje, de um contexto favoravel & ampliagao do conceito de patriménio cultural e 4 maior abrangén- cia das politicas puiblicas de preservagao, ficam no ar algumas per- guntas: 0 que se entende por “patriménio imaterial”, se € que essa expresso nao constitui uma contradigfio em termos? Qual o objeti- vo do Estado ao criar um instrumento especifico para preservar ma- nifestagdes que ndo podem e ndo devem ser congeladas, sob o risco de, assim, interferir-se em seu processo espontaneo? E como evitar que esse registro venha constituir um instrumento “de segunda classe”, destinado 4s culturas materialmente “pobres”, porque a seus testemunhos nao se reconhece o estatuto de monumento?” Nao se pretende aqui responder a essas perguntas, apenas fazer algumas consideracdes que auxiliem no mapeamento dessa nova 10, Essa observacao nao deve ser entendida como uma erftiea & agéio passada do SPHAN, o que significaria um anacronismo (Fonseca, 1997, p. 20) u, Um exemplo € 0 projeto “Conhecer para preservar”, apresentado ao prémio Rodri- go Melo Franco de Andrade, em 1997, pela Secretaria de Estado da Educagao e Cultura do ‘Tocantins, que se propde a fazer um inventdrio em nove cidades histéricas do estado reeém-criado, aliando assim a emancipagao politica uma “emancipagao” simbélica. A pro- pésito, um importante material para o estudo do patriménio cultural de natureza imaterial no Brasii ¢ constituide pelos trabalhos apresentados aos prémios Silvio Romero, do Centro Nacional de Folclore ¢ Cultura Popular da Funarte, e Redrigo Melo Franco de Andrade, do tphan. 12. A “Carta de Veneza’, de 1964, estende a nogao de monumento histérico “também as obras modestas que tenham adquirido com o tempo uma significagdo cultural’ (Cartas Patrimoniais, 1995, p. 109) 66 MEMORIA E PATRIMONIO representacdo, mais ampla, do patriménio cultural brasileiro, e a tragar politicas inclusivas, que contribuam para aproximar o patri- ménio da cultura produzida no pais. A fungao de patrimonio e as politicas publicas A questao do patriménio imaterial, ou, conforme preferem outros, patriménio intangivel, tem presenca relativamente recente nas polf- ticas de patriménio cultural. Em verdade, é motivada pelo interesse em ampliar a nogao de “patriménio histérico e artfstico”, entendida como repertério de bens, ou “coisas”, ao qual se atribui excepcional valor cultural, o que faz com que sejam merecedores de protecdo por parte do poder publico. Voltadas para monumentos e visando & conservacio de sua inte- gridade fisica, as politicas de patriménio centradas no instituto do tombamento certamente contribufram para preservar edificacées e obras de arte, cuja perda seria irrepardvel. Contudo, esse entendi- mento da pratica de preservacao terminou por associé-la as ideias de conservagao e de imutabilidade, contrapondo-a, portanto, 4 nogdo de mudanga ou transformagao, e centrando a atengao mais no ob- jeto e menos nos sentidos que lhe s&o atribuidos ao longo do tem- po. Como observa o antropélogo José Reginaldo Gongalves (1996, P. 22), a énfase na ideia de “perda” é tributdria de uma nogio de histéria como “processo inexordvel de destruigao [...] sem que se Jevem em conta, de modo complementar, os processos inversos de permanéncia e recriacdo das diferengas em outros planos”. E necessdrio pensar na produgdo de patriménios culturais nao ape- nas como a selegao de edificagics, sitios e obras de arte que passam a ter protecio especial do Estado, mas, conforme propée o autor cita- do, como “narrativas”, ou, como sugere Mariza Veloso Motta Santos (1992), tomando de empréstimo a formulacao de Michel Foucault, como uma “formagao discursiva”, que permite “mapear” contetidos simbélicos, visando a descrever a “formagéo da nagao" e constituir uma “identidade cultural brasileira”. Em verdade, as politicas de pa- PARA ALEM DA PERA £ CAL triménio, tal como estao estruturadas atualmente, com certeza esto longe de cumprir esses objetivos, ainda mais numa sociedade que se queira democratica. Uma anilise critica dos Livros do Tombo, do Iphan, revela que essa limitagao tem consequéncias mais graves que a mera exclu- sio de “tipos” de bens culturais desse repertério. Na realidade, essa estratégia produziu um “retrato” da nacdo que termina por se identificar & cultura trazida pelos colonizadores europeus,"? repro- duzindo a estrutura social por eles aqui implantada. Reduzir o patriménio cultural de uma sociedade as expressdes de apenas algumas de suas matrizes culturais — no caso brasileiro, as de origem europeia, predominantemente a portuguesa — é tao proble- méatico quanto reduzir a fungao de patriménio a protegdo fisica do bem. FE perder de vista 0 que justifica essa protegao, que, evidente- mente, representa também um 6nus para a sociedade e para alguns cidad: srio que a agao de “proteger” seja precedida pelas ages de “identifi- car” e “documentar” — bases para a selegdo do que deve ser protegido s em particular. Para que essa fun se cumpra, € neces- —, seguida pelas agdes de “promover” e “difundir’, que viabilizam a reapropriac¢do simbdlica e, em alguns casos, econdmica e funcional dos bens preservados. Todas essas agdes encontram-se fundamentadas em critérios nao apenas técnicos, mas também politicos, visto que a “represen- tatividade” dos bens, em termos da diversidade social e cultural do pats, € essencial para que a fungao de patrim6nio realize-se, no sentido de que os diferentes grupos sociais possam se reconhecer nesse repertério. Porém, nao basta uma revisao dos critérios ado- tados pelas instituigdes que tém o dever de fazer com que a lei seja aplicada, tendo em vista a dinamica dos valores atribuidos. E necessaria, além disso, uma mudanca de procedimentos, com 0 propésito de abrir espacos para a participacao da sociedade no pro- cesso de construgao e de apropriag&o de seu patriménio cultural. 15, Ver Rubino (igg1). Ver também 2 mensagem do cntao ministro da Cultura, Francisco Weffort, a0 Conselho Consultive do Patriménio Cultural, proferida em 2 de derembro de 1997. na Sessa comemorativa dos sessenta anos do Iphan, © publicada ni dossié referide nia nota 4 67 68 MEMORIA E PATRIMONIO Sobre a nogao de patriménio imaterial Quando se fala em patrim@nio imaterial ou intangivel, nao se esta referindo propriamente a meras abstragdes, em contraposigao a bens materiais, mesmo porque, para que haja qualquer tipo de co- municacao, € imprescindivel um suporte fisico (Saussure, 1969). Todo signo (e nao apenas os bens culturais) tem dimensdo ma- terial (o canal ffsico de comunicagao) ¢ simbélica (o sentido, ou melhor, os sentidos), como duas faces de uma moeda. Cabe fazer a distingao, no caso dos bens culturais, entre aqueles que, uma vez produzidos, passam a apresentar relativo grau de autonomia em relago a seu processo de producao, e aquelas manifestagdes que precisam ser constantemente atualizadas, por meio da mobi- lizag&o de suportes fisicos — corpo, instrumentos, indumentaria e outros recursos de car4ter material —, 0 que depende da agao de sujeitos capazes de atuar segundo determinados cédigos. A imaterialidade é relativa e, nesse sentido, talvez a expressio “patrim6nio intangfvel” seja mais apropriada, pois remete ao tran- sitdrio, fugaz, que nao se materializa em produtos duraveis. Em relacdo & Procissio do Fogaréu, por exemplo, apenas algum tipo de registro documental pode viabilizar um acesso continuo (e re- lativo) a essa manifestacio cultural. Talvez o melhor exemplo para ilustrar a especificidade do que se esté entendendo por patriménio imaterial — e assim diferencid-lo, para fins de preservagao, do chamado patrim6nio material — seja a arte dos repentistas. Embora a presenga fisica dos cantadores e de seus instrumentos seja imprescindivel para a realizagdo do repente, é a capacidade de os atores usarem, de improviso, as técnicas de composicao dos versos, assim como sua agilidade, como interlo- cutores, em responder a fala anterior, que produz, a cada “perfor- mance”, um repente diferente. Nesse caso, estamos no dominio absoluto do aqui e agora, sem possibilidade, a nao ser por meio de algum registro audiovisual, de perpetuar esse momento. Outro exemplo é o da pintura corporal, praticada por varias tri- bos indigenas no Brasil. Impossivel nao lhe reconhecer valor es- PARA ALEM DA PEORA E CAL :ético, apesar de ser estranho que nao costume figurar em nossos compéndios de artes visuais. Assim como 0 repente, tem caracte- risticas que a distinguem da tradigdo pictérica moderna, de carater individualista, que busca a originalidade como valor: os padroes relativos dquela pintura so codificados pela tradigao e funcionam como sinais distintivos entre membros do grupo. Trata-se, portan- to, de uma pritica ritual, cujo valor simbélico s6 tem sentido num determinado contexto. Se nao forem consideradas essas particula- tidades, corre-se o risco de entender essa pratica em seu aspecto puramente formal, projetando sobre ela valores estranhos aos con- textos culturais a que se refere. Essa abordagem da questao do patriménio cultural vem eviden- ciar um aspecto que a prdtica de preservacdo dos monumentos, centrada nos aspectos técnicos da conservagao e da restauracdo, tende a ocultar: a ideia de que a preservagao do patrimonio cultu- ral € urna “prdtica social” (Arantes, 1989, p. 12-16), que implica um ¢Ho da cultura como produg&o nao apenas material, mas também simbdlica, portadora, no caso dos patrimé- nios nacionais, “de referéncia & identidade, a acdo, A memoria dos diferentes grupos formadores da sociedade” (Brasil, 2003, p. 146). Mesmo quando a iniciativa parte do Estado, esses valores preci- sam ser aceitos e constantemente reiterados pela sociedade, a par- tir de critérios que variam no tempo e no espago. Nessa linha de reflexao, fica claro que a elaboragao e a aplica- cao de instrumentos legais, como o tombamento, nao sao sufi- cientes para assegurar que um bem venha a cumprir efetivamente processo de interpretai sua fungao de patrimnio cultural em uma sociedade. E necessaria uma constante atualizagao das politicas espectficas, tanto mais se tais politicas desenvolvem-se num contexto democratico. E, portanto, a partir de uma reflexdo sobre a fungdo de patrimé- nio e de uma critica 8 nogao de patriménio hist6rico e artistico, que sé passou a adotar — nao s6 no Brasil — uma concep¢ao mais ampla de patriménio cultural, nao mais centrada em determinados obje- tos — como os monumentos ~, e sim numa relagao da sociedade com sua cultura. Nesse sentido, as palavras de Alofsio Magalhaes (1985) nao perdcram sua atualidade. 69 70 MEMORIA E PATRIMONIO. Ocorre, entretanto, que o conceito de bem cultural no Brasil conti- nua restrito aos bens méveis e iméveis, contendo ou nao valor cria- tivo préprio, impregnados de valor historico essencialmente voltados para o passado, ou aos bens da criagao individual espontanea, obras que constituem o nosso acervo artistico {masica, literatura, cinema, artes plasticas, arquitctura, teatro), quase sempre de apreciagao eli- tista. Aos primeiros deve-se garantir a protecao que merecem ea possibilidade de difusdo que os torne amplamente conhecidas. Deles podem provir as referéncias para 2 compreensdo de nossa trajetéria como cultura e os indicadores para uma projegao no futuro. Quanto aos segundos, basta assegurar-Shes a liberdade de expressao e os re- cursos necessdrios 4 sua concretizagao. Permeando essas duas categorias, existe vasta gama de bens — procedentes sobretudo do fazer popular — que, por estarem in- seridos na dindmica viva do cotidiano, nao so considerados bens culturais nem utilizados na formulagao das politicas econémica ¢ tecnoldgica. No entanto, é a partir deles que se afere o potencial, se reconhece a vocagao e se descobrem os valores mais auténti- cos de uma nacionalidade. Além disso, é deles ¢ de sua reiterada presenga que surgem expresses de sintese de valor criativo que constitui o objeto de arte (p. 52-53). [...J Eu diria que minha mi funcfo [de Secretdrio de Assuntos Culturais e Secretario do Patrimé- nio Histérico e Artistico Nacional]; talvez seja apenas 0 tempo neces- Jo talvez. seja temporaria nesta dupla tio para estabelecer uma adequacao mais nitida, dentro do sisterna do trato cultural, da responsabilidade do Estado, e talvez definir me- Thor o que sejam as duas grandes vertentes do bem cultural: a veriente patrimonial e a vertente da agdo cultural. Parece nitida essa divisdo que, na verdade, é mais para efcito de trato metodolégico, ¢ nao pro- priamente uma divisdo de areas. Na imayem que me ocorre, a vertente patrimonial lembra uma rotagao ou circulo de diametro muito amplo e rota¢ao lenta, enquanto a a¢gao cultural, na criagév do bem cultural, é um cfrculo de diametro curto e rotagio muito rapida. Ambas as rotagdes, ambos os circulos trabalham, interagindo um com o outro, mas tém os seus tempos e a sua dindmica proprios ¢ especificos. Se PARA ALEM DA PEDRA E CAL for possivel neste trabalho identificar melhor as duas vertentes e esta- belecer melhor os critérios de adequago dessas vertentes — a quem compete 0 qué, como e quando, onde essas vertentes se encontram, e elas se encontram frequentemente, alimentando-se mutuamente, na verdade — talvez seja possivel chegarmos a uma visdo de conjunto mais compreensiva do que seja o bem cultural, dentro do quadro geral da nag&o brasileira (p. 133-134) Nessa visao, € evidente que o patriménio nao se constitui apenas de edificagdes e pecas depositadas em museus, documentos escri- tos e audiovisuais, guardados em bibliotecas e arquivos. Interpre- tacdes musicais e cénicas (documentadas ou nao) e, mesmo, ins- rituigGes, como € 0 caso da Comédie Francaise ou do Balé Bolshoi Rigaud, 1996, p. 73), também integram um patriménio cultural coletivo. Interpretagées e instituigdes, assim como lendas, mitos, ritos, saberes € técnicas, podem ser considerados exemplos de um patriménio dito imaterial. Esse entendimento amplificado da no- z4o de patriménio cultural apresenta trés consequéncias. Em primeiro lugar, vem diluir certas dicotomias que, tradicio- nalmente, organizam o campo das politicas culturais: produgdo x preservacdo; presente x passado; processo x produto; popular x erudito. Impossivel negar, por exemplo, que a arte do repente seja um patriménio cultural do Brasil, mas impossivel tambéin é tombé4-la”.4 Sua manutengao depende, sobretudo, da adogao de medidas de apoio a seus produtores, no sentido de preservar, na medida do possivel, condigdes de produgao, divulgagao e forma- sao de publico, assim como costumam ser orientadas, por exem- plo, as politicas voltadas para as artes cénicas. A plena fruigéo de um repente supée a presenga fisica de seus produtores frente aum ptblico (do mesmo modo que uma pega teatral precisa de intérpretes), 0 que ndo ocorre na leitura de um livro ou na apre- ciagdo de uma obra de arte visual ou de um monumento. 2, Haja vista os efeitos inécues do tombamento da edificagao e dos equipamentos da fi- “rica de vinho de caju Tito Silva, em Joae Pessoa, realizado em 1981, visando a preservacdo se modo de fazer. 7 72 MEMORIA E PATRIMONIO. Em segundo lugar, vem esclarecer certos mal-entendidos, como 0 que restringe a ideia de patrim6nio imaterial a folclore e/ou cul- tura popular. Embora essas 4reas venham a ser das mais benefi- ciadas por uma politica de patriménio mais abrangente, na medida em que tém ficado bastante desassistidas pelas politicas ptiblicas de cultura, nao é a suposta imaterialidade ou, pior, uma hipotéti- ca “pobreza” de seus testemunhos materiais que constituiriam o diferencial em relagao a bens culturais de natureza material, que seriam assim associados as manifestagdes de cardter erudito.’* Em terceiro lugar, a questao abre espaco para estender a grupos e nacées de tradi¢ao nao europeia as politicas de patriménio cul- tural. Foi a pressAo de pafses como o Jap4o e outros do Oriente e da Africa, manifestada na conferéncia de Nara, realizada em 1994, no Japao, e em outras ocasiées, que levou a uma revisdo dos cri- térios da Unesco para inscrigao na lista do patriménio mundial. A impossibilidade de incluir na lista bens como o Templo de Ise, naquele pais, que € sistematicamente destruido e reconstruido no mesmo local,"* ou a arquitetura no Norte da Africa, cujas edifica- g6es devem ser constantemente refeitas devido & ago do vento, constitufa um desafio para o Gomité do Patriménio Mundial. Nos dois casos, e em outros tantos, a protegdo fisica do bem é invid- vel, mesmo porque essa nao é a légica de sua preservagao. O que importa para esses grupos sociais é assegurar a continuidade de um processo de reproducao, preservando os modos de fazer e o respeito a valores como o do ritual religioso, no caso do Templo de Ise, e 0 sentido de adequagao da técnica construtiva as condigdes geolégicas ¢ climaticas, no caso da arquitetura em terra do deserto norte-africano. A ampliacao da nogao de patriménio cultural é, portanto, mais um dos efeitos da globalizagao, na medida em que ter aspectos de sua cultura, até entdo considerada por olhares externos como tos- ca, primitiva ou exética, reconhecidos como patriménio mundial 15, Sobre essas questées, ver os textos do Seminsitio "Pulelore ¢ Cultura Popular”, promovi- do pelo entdo Instituto Nacional do Folclore da Funarte, em i988 (2000) 16. Em 1993, 0 templo foi reconstrusdo pela 63! vez. PARA ALEM DA PEDRA £ CAL contribui para inserir um pafs ou um grupo social na comunidade internacional, com beneffcios nao $6 politicos, mas também eco- némicos. Por outro lado, essa abertura no processo de produgao dos pa- trim6nios culturais apresenta novos problemas para uma pratica de cardter essencialmente seletivo, e que tem sido restrita a espe- cialistas. Se os critérios de atribuigdo de valor tornaram-se mais flexiveis, se ha maior preocupacéo com a dimensio politica dessa pratica social, o que significa a participag&o de novos atores e um permanente questionamento dos critérios adotados, ha estudiosos que alertam para o risco de banalizagao no pressuposto de que tudo pode sc tornar patriménio (Chastel e Babelon, 1980, p. 5-32). Cabe, entio, a pergunta: banalizacado ou dessacralizagao, como conside- ram outros estudiosos, que veem nesse movimento uma orientacao democratizante? O fato é que, tendo em vista fendmenos recentes como os in- tensos fluxos migratérios, os processos de comunicagiio cada vez mais 4geis, a presenga ¢ a interpenetracdo de tradigdes culturais distintas, mesmo em paises de cultura consolidada, como a Fran- ca, movimentos que podem ser resumidos no que tem sido deno- minado “desterritorializagao da cultura” (Gupta e Fergusson, 2000, p. 31-49), nao ha drividas de que essa ampliagao no conceito de patriménio cultural contribui para aproximar as politicas culturais dos contextos multiétnicos, multirreligiosos e extremamente hete- rogéncos, que caracterizam as sociedades contemporaneas. Nesse raciocfnio, torna-se necessdrio ampliar também 0 repertd- rio das praticas de preservagdo, que até recentemente eram identi- ficadas, no Brasil, exclusivamente com o tombamento. No caso das manifestages citadas no inicio ¢ ao longo deste capitulo, o que se pode preservar sao registros (escritos, sonoros, visuais etc.) dessas formas de expressao e informagées sobre 0 contexto em que ocor- rem, assim como 0s sentidos que tém para os diferentes produtores e destinatdrios, o que tem um interesse evidente para a sociedade (Fonseca, 2000). 73 74 MEMORIA E PATRIMONIO. A preservacgio da meméria de manifestacdes, como interpre- tagdes musicais e cénicas, rituais religiosos, conhecimentos tra- dicionais, praticas terapéuticas, culindrias e hidicas, técnicas de produgao e de reciclagem, a que € atribufdo valor de patriménio cultural, tem uma série de efeitos: 1) aproxima o patriménio da produgdo cultural, passada e presente; 2) viabiliza leituras da produgao cultural dos diferentes grupos so- ciais, sobretudo daqueles cuja tradigao é transmitida oralmente, que sejam mais préximas dos sentidos que essa produgdo tem para seus produtores e consumidores,” dando-lhes voz nao ape- nas na produgdo, mas também na leitura e na preservacgado do sentido de seu patriménio; 3) cria melhores condigdes para que se cumpra 0 preceito consti- tucional do “direito a meméria” como parte dos “direitos cultu- rais” de toda a sociedade brasileira; 4) contribui para que a inser¢&o em novos sistemas, como o mer- cado de bens culturais e do turismo, de bens produzidos em con- textos culturais tradicionais possa ocorrer sem o comprometi- mento de sua continuidade hist6rica, contribuindo, ainda, para que essa inser¢do acontega sem 0 comprometimento dos valores que distinguem esses bens e Ihes dao sentido particular. ConsideragGes finais Para Lyndell Prott (Unesco, 2000, p. 157), agdes voltadas para a identificago, a preservagao e a valorizagao do patriménio imate- rial (que a Unesco entende aqui, prioritariamente, como conheci- mentos e modos de vida tradicionais) tém objetivos variados. 17. Em recente visita as novas salas do Museu do Louvre, em que esto expestas pecas mui- to antigas de culturas africanas, asidticas e da Oceania, ouvi do chefe do Servigo Cultural do Museu, Jean Galard, uma observagdo sobre a dificuldade dos curadores de apresentar e contextualizar as pecas, por falta, praticamente absoluta, de informacées complementares, © que os levava de modo inexoravel a fazer uma leitura predominantemente estética dos bens, pelo que vinham sendo criticados sobretudo por historiadores e antropélogos PARA ALEM DA PEDRAECAL 75 Para os que mantém esses estilos de vida, 0 propésito pode ser o de preservar 0 conhecimento tradicional e um valioso modo de vida para as futuras geracées; pode ser, igualmente, a sobrevivéncia fisica, uma vez que a adaptagao tradicional ao meio ambiente é ca- paz de evitar um estilo de vida, em ultima instancia, insustentavel. Para um Estado, 0 objetivo pode ser o de manter tratamento médi- co local de baixe custo para populagées no limite da subsisténcia; para outros, a intengao pode ser a de ganhar tempo para inventariar e explorar exaustivamente recursos, como o conhecimento tradi- cional de propriedades vegetais (médicas, bioldgicas e agricolas), de modo a apropriar-se delas para ganho econémico; para cientis- tas, o objetivo pode ser o de viabilizar a pesquisa sobre modos de vida sustentdveis ou sobre diversidade do desenvolvimento huma- no como evidenciado, por exemplo, nos milhares de lfnguas hoje ameagadas de extingao, ou na sobrevivéncia de espécies desconhe- cidas fora de sua comunidade, como parte dos recursos biolégicos da Terra. Ainda outros grupos podem querer utilizar elementos tra- dicionais em sua cultura como fonte de renda, a ser autorizada para uso de outros ou reservada para eles préprios, a fim de prover-lhes recursos econémicos. Pode-se preservar um modo tinico de vida como uma fonte de dignidade, de orgulho cultural e de identidade, ou usd-lo como uma atracao turistica para gerar renda. Nao é coincidéncia o fato de que, no texto citado, patriménio natural e cultural praticamente nao se diferenciem. Cada vez mais, a preocupac¢ao em preservar estd associada a consciéncia da im- portancia da diversidade — seja a biodiversidade, seja a diversidade cultural — para a sobrevivéncia da humanidade. No caso da biodiversidade, ha uma clareza cada vez maior, por parte da opiniao publica, de que se trata de um patriménio de todos os cidaddos, acima de interesses particulares. Talvez as ori- gens do movimento ambientalista, que nasce associado 4 pesquisa cientifica e as organizacées da sociedade, tenham favorecido essa mobilizagaéo em torno da necessidade de preservar 0 meio am- biente, dificultando a apropriagéo dessa “causa” por facgGes polf- ticas ou sua associacgao a posturas ideoldégicas, como elitismo ou conservadorismo. 76 MEMORIA E PATRIMONIO. Por sua vez, 0 conceito de patriménio histérico e artfstico é for- mulado tendo como pano de fundo a questdo nacional. Raros sao os autores que, como Alois Riegl (1984), pensam a questa do pa- trimOnio cultural a partir da dinamica de valores que 0 constitui. Dado 0 modo como se implantaram as politicas de patriménio, predominantemente associadas 4 construcéo dos Estados-nagao e de uma representacaio de “identidade nacional”, e dada também sua precdria apropriacio pela sociedade como um todo, essas po- liticas terminaram por referir-se predominantemente Aqueles gru- pos sociais que detém o poder de produvir a representacdo hege- ménica do “nacional”. Sem divida, a ampliacao do conccito de cidadania — 0 que im- plica reconhecimento dos “direitos culturais” de diferentes grupos que compéem uma sociedade, entre eles 0 direito 8 meméria, ao acesso 4 cultura e a liberdade de criar, como também reconheci- mento de que produzir e consumir cultura sao fatores fundamen- tais para o desenvolvimento da personalidade e da sociabilidade —veio contribuir para que o enfoque da questao do patriménio cultural fosse ampliado para além da questao do que é “nacional”, beneficiando-se do aporte de compor como a Antropologia, a So- ciologia, a Estética e a Histéria. Outra analogia com a questo ambiental diz respeito & posicao, nesse novo cenério, dos paises em desenvolvimento. Nesse caso, menos se torna mais: a manutengao, em geral involuntaria, dos recursos naturais, torna-os “ricos” nesse sentido,"® assim como a sobrevivéncia de formas de vida, ou melhor, de “formas de ex- pressdo” e “modos de criar, fazer e viver” diversificados, em geral mais apropriados aos recursos disponfveis na regido, torna nao sé esses recursos, como os conhecimentos a eles associados, uma “riqueza” que tem sido cobigada e, em muitos casos, expropriada pelos pafses desenvolvidos.? Pensar em formas de preservar esse 18, Essa foi a principal premissa das ideias desenvolvidas por Alofsio Magelhaes (1485) ¢ do trabalho que desenvolveu a frente das diferentes instituigdes publicas que ditigiu, de 1975 1982, ano de seu falecimento. 19. No Brasil, esse assunto tem sido ebjeto dos trabalbos do Grupo Interministerial de Pro- priedade Intelectual (Gipi), que funciona na Casa Civil da Presidéncia da Repéblica, em que ha um subgrupo que trata especificamente dos conhecimentos tradicionais PARA ALEM DA PEDRA E CAL zatriménio, como também sua relaca4o com seus produtores e con- sumidores, passa a ser estratégica para o desenvolvimento de tais regides. Como se vé, as questées levantadas por essa nova concepgao, zmpliada, de patriménio cultural, abrem em muito o leque de cam- pos de saberes e de instituigdes que passam a se envolver, direta su indiretamente, com a producao, gestao e promocao desse patri- :nénio. No mesmo sentido, as novas questées levam a sociedade 4 uma compreensao mais rica da nogdo de patriménio cultural, e certamente mais pr6xima de seus interesses. Para finalizar, 0 processo de releitura da questao do patrim6nio nao se esgota no nivel conceitual. Implica, sim, o envolvimento de novos atores € a busca de novos instrumentos de preservagao e pro- mocao. Frente a esse novo quadro, muito mais complexo e desa- siador, € fundamental que se formulem e se implementem politicas que tenham como finalidade enriquecer a relagdio da sociedade om seus bens culturais, sern que se perca de vista os valores que ustificam a preservagao.* Falar em polfticas significa ir além dos conceitos, embora sem- pre os tendo como referéncia. Significa formular diretrizes, defi- nir critérios e prioridades, elaborar projetos, realizar intervengées, mantendo sempre como parémetro a tensde entre necessidades, demandas e recursos dispontveis. E, ainda que os conceitos con- tinuem imprecisos, é imperioso passar da teoria a prdtica, na es- peranga de que as experiéncias venham, como de costume, en- riquecer a reflexo, numa dialética do processo de produgao do conhecimento e de transformagao da realidade. Referéncias Axppave, M. de. Cartas de trabalho. 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