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fluxos e refluxos de
personagens no Atlântico Sul
Fortaleza | 2014
Copyright © 2014 Marcela Magalhães de Paula
Impressão e Acabamento
Filiada à
escritoresace@gmail.com
192p.
ISBN 978-85-7564-742-4
Legião Urbana
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3. Na outra margem do Rio: O do Brasil
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Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
porque toda a ilha era um porto e uma estrada
sem regresso 116
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Nosso Senhor, apartados dos pecados, em que agora vivem,
mande Vossa Alteza muitas orphãs, e si não houver muitas,
venham de mistura dellas e quaesquer, porque são tã desejadas
as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito bem à
terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá aparta-se-hão do
pecado118.
118 NÓBREGA apud MIRANDA, Ana: Desmundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
119 MIRANDA, Ana: Desmundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 01.
120 Cf. DEL PRIORE, Mary: Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades
no Brasil colônia, Rio de Janeiro, José Olympo, 1993.
121 Também em São Tomé e Príncipe, a incoerência dessa civilização reside na violência com
que os indivíduos são arrancados dos seus lugares de origem para seguirem um destino
com o qual não concordam. Um fenômeno que se institui em todo o contexto do colo-
nialismo. Estabelecendo esses “entre-lugares” também se fundam sujeitos divididos entre
várias identidades.
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fora eu arrancada com muita pena”122, mas, assim como Iracema, sua
identidade parece comungar com a personagem brasileira quando “se
fundamenta na solidão”123. Também consciente sobre a impossibilidade
de realizar seus sonhos de adolescente, Oribela vive no desassossego de
um destino implacável, cúmplice de ilhas e do mar:
Aquele era o meu destino, não poder demandar de minha sor-
te, ser lançada por baías, golfos, ilhas até o im do mundo, que
para mim parecia o começo de tudo, era a distância, a manhã,
a noite, o tempo que passava e não passava, a viagem infernal
feita dos olhos das outras órfãs que me viam e descobriam, de
meus enjoos, das náuseas alheias, da cor do mar e seu mistério
maior que o mundo. O mar, lavrado pela natureza, o mar so-
brepuja tudo, nos deixa feridos de morte e de amor124.
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da raça e da religião, era incapaz de escolher seu destino128. Em Vi-
são do paraíso129, Sérgio Buarque de Holanda tece o primeiro grande
trabalho sobre o imaginário no Brasil colonial, ao analisar as menta-
lidades portuguesas que regiam a visão inicial das terras no trópico.
A obra, publicada originalmente em 1959, retrata o Novo Mundo
através de inúmeras recorrências de iguras baseadas em uma longa
história de mitos e lendas sobre o paraíso, passando em revista leituras
desde os antigos aos renascentistas, dos escolásticos aos viajantes da
Idade Média.
Embora tais mitos e lendas tenham marcado mais a visão caste-
lhana de conquista do que a lusitana, esta última, principalmente por
estar mais diretamente envolvida na “aventura africana e asiática do
século XV”, é que faz parecer que Oribela tenha saído do imaginário
propagandístico da retratação portuguesa do Brasil a partir d’A carta
de Caminha. Mais do que isso, além do mundo paradisíaco, a prota-
gonista de Desmundo espera por um mundo “civilizado” moldado a
partir da sua experiência de mundo:
Ia tirar de mim o cheiro de lá podre, vestir camisa limpa, lavar
o sal da pele, comer fruta da árvore, carne assada, esquentar as
mãos num fogão de lenha, assentar à mesa, adeus ferrugem,
adeus carne de porco na banha, ai um pão quente, um ceitil
de cerejas, tudo parecia alta maravilha130.
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obsessão, motivando-a por grande parte do romance, o que podemos
constatar evidentemente ao longo de suas tentativas — todas frustra-
das — de fuga e de embarque em alguma nau.
O que Oribela encontra é a edenização parcimoniosa dos portu-
gueses que Laura de Mello e Souza mostra no livro O diabo e a Terra
de Santa Cruz 131. Considerado um contraponto de Visão do paraíso de
Sérgio Buarque, Mello e Souza redescobre a mesma crônica da colo-
nização, mostrando-a diminuída e parcial, pois limitava-se a enaltecer
a natureza sem todavia negar o desconforto e a estranheza do viver
no trópico, como experimentado por Oribela. A propagandística que
tanto enfatizava os excelentes climas também lastimava a ininidade
de insetos, pulgas e baratas que “enxameavam” a colônia por todos os
lados, como citava o jesuíta Jerônimo Rodrigues ao contar 45 grilos e
450 pulgas entre a “grandíssima multidão” de insetos que perturbava
a missa, o sono, a mesa etc.
Encontramos algumas semelhanças entre a narração inicial de
Oribela e aquela de Caminha, mas em uma versão nova, menos edêni-
ca, em que a protagonista parece reconhecer sua identidade feminina
através do confronto com a alteridade:
Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das na-
turais, sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os
cabelos da cabeça como se forrados de martas, não pude dei-
xar de levar o olhar a suas vergonhas em cima, como embaixo,
sabendo ser assim também eu, era como fora eu desnudada, a
ver em um espelho132.
131 MELLO E SOUZA, Laura de: O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial. 7. reimp, São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
132 MIRANDA, Ana: Op.cit., 2006, p. 56.
133 SCHMIDT, Simone: “Desmundo, Desmando, Desencanto”. In: PORTUGUESE
CULTURAL STUDIES, 1 Spring 2007, Utrecht, University of Utrecht, p.99.
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paraíso”134. Lembramos que Mello e Souza airma que, na verdade, a
Terra de Santa Cruz tinha um caráter edênico condicional, pois era
vinculada à efetiva ocupação e à exploração do território por parte
da metrópole. O paraíso desses portugueses, segundo Mello e Souza,
confundia-se com o aproveitamento econômico das riquezas naturais,
que adquiria pleno sentido apenas se conjugado ao processo de coloni-
zação, mas também representava o “inferno pela humanidade peculiar
que abrigava”135. O Brasil constituiria ainda o “purgatório pela sua
relação com a metrópole”. Era o sítio onde Portugal enviaria os inde-
sejáveis do reino, a “nau dos insensatos”, para expiar crimes e pecados
cometidos no aquém-mar:
Do que haviam trazido, que gente vinha, donde vinha e quan-
tas eram as pessoas passageiras e as que ia icar, veio o meiri-
nho saber, [...] eram ladrões, chatins cobiçosos [...] almas pe-
nadas e os que queriam forçar as mulheres com desonestidade,
matar, saquear casas136.
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provavelmente “nem sabiam estar morto ou vivo o rei, mas diziam ser
aqui terra de Sua Alteza, a seus reais pés estivesse e amássemos”138.
Como recorda Samara139, a Igreja, como instituição mestra no
projeto da difusão da importância do matrimônio na colônia portu-
guesa na América, instituiu os códigos de conduta que estabeleciam a
divisão de incumbências no casamento. Desse modo, a vida feminina
principalmente da mulher branca140 estava restrita “ao bom desempe-
nho do governo doméstico e na assistência moral à família, fortalecen-
do seus laços”. Por sua vez, o homem concentrava o poder de decisão
na família e era encarregado da provisão da mulher e dos ilhos. Assim,
na época colonial, a sexualidade e o ser feminino propriamente dito
manifestavam-se sob as bases misóginas, fundamentadas na culpa do
pecado atribuído pela Igreja Católica e nas conigurações da família
patriarcalista. Em tal sistema cabia à mulher apenas a obediência à
igura do pai e do marido.
Desse modo, como Oribela não se encaixa exatamente nesses
moldes, é descrita como “demoninhada” e “perdida” por seu compor-
tamento indisciplinado e passa a sofrer castigos físicos e psicológicos.
Contudo, envolvida nesse ambiente selvagem, Oribela começa um
processo de identiicação com o Outro, principalmente ao perceber-se
igual à índia Temericô:
Eu pintava o rosto de urucum, comia do prato das naturais e
me desnudava nos dias quentes, deixava os chicos chuparem
residentes em seu território, ao determinar que brasileiros “são todos os nascidos em Por-
tugal e suas Possessões que, sendo já residentes no Brasil na época em que se proclamou
a Independência da Província onde habitavam, aderiram a esta, expressa, ou tacitamente,
pela continuação da sua residência”.
138 MIRANDA, Ana: Op.cit., 2006, p. 48.
139 SAMARA, Eni de Mesquita: A família brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 59.
140 “A realidade colonial era a de lares pequenos e famílias com estruturas simpliicadas”
(Cf. DEL PRIORE, Mary: Op.cit., 1989, p. 46), sendo muito comum a existência de
mães solteiras, que foram vítimas de exploração sexual e doméstica, traduzindo-se em
humilhações, abandono e violência por parte do homem progenitor da criança. Assim,
caracterizadas “como auto-sacriicadas, submissas sexualmente e materialmente reclusas,
a imagem da mulher de elite se opõe à promiscuidade e à lascívia da mulher de classe
subalterna, em regra mulata ou índia”(Cf. DEL PRIORE, Mary: Op.cit., 1993. p. 48).
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meus peitos, dançava, de modo que dona Branca veio baixar
umas regras, antes que virasse eu uma bárbara da selva e me
metesse a comer carne humana141.
Entretanto, Oribela era uma moça branca e, como tal, tinha a li-
berdade muito mais cerceada do que as meninas indígenas. Vemos, nesse
contexto, a primeira e traumatizante relação sexual da protagonista com o
marido, que se concretiza através da dor e da força:
Umas vacas na sala. Para deitar, um monte de feno, mas a
mim foi segurando Francisco de Albuquerque e derrubando.
Logo se tornou num cachorro que vi sobre uma cadela de
rua, um ganso numa gansa, no Mendo Curvo, ou um padre
na freira (...) que eu estava a temer de me quebrar os ossos e
rasgar pela metade (...) Ele me abriu, explorou e olhando no
lume a cor do molhado, de sangue, abanando a cabeça disse.
Verdade disseste e agora és minha142.
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A protagonista de Desmundo nos revela, porém, o seu cotidiano
marcado por muitas dores e maus-tratos: “Meu esposo muito me mal-
trata, põe em tormento, açoite, manteiga quente nos pés, vive tentado
do Demo, mal pode dormir de tanto sofrer as malignidades de sua al-
ma”144. Sendo uma sociedade misógina, Oribela era naturalmente uma
vítima inerme e vulnerável145. Assim, revelando seu desânimo, Oribela
passa a perder as esperanças e deixa transparecer as marcas de uma vida
de repressão ao sentir-se culpada por ter amado outro homem146 que
não seu marido:
Um grande pecado que devia eu de dar suplício ao corpo,
minha unhas aiei na parede e raspei a minha pele dela tirando
sangue numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a
pagar com minha dor a dela e vinha ele a bafejar, ai amor, eu
bem vejo o teu coração dando saltos, ilusão da língua, toques
de mãos, união de corações, a nos saírem pela boca resplen-
dores de fogo e vivia eu disso, sacramentada ao Ximeno, dele
sendo toda possuída, a suspeitar que era o demo, ele, que me
precipitava nos ingimentos, a ungir meu peito de abismos, a
apertar os meus pulsos, lançar aos estímulos carnais, ah, Deus
que me salvasse, a quem podia eu confessar?147
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e os ideais sobre sexo/gênero, raça/etnicidade e classe social “nos novos
sistemas de identiicação, classiicação e discriminação social” que se se-
guiram na sociedade colonial ibero-americana, em especial no que diz
respeito às consequências da moralidade sexual e dos estereótipos para
todas as esferas da vida das mulheres em tal período. Apesar das tentati-
vas por parte da metrópole de isolar as raças através do casamento entre
brancos, os contatos estreitos — que derivaram da exploração da mão de
obra e, principalmente, dos abusos sexuais de mulheres indígenas e afri-
canas pelos colonos europeus — produziram um número crescente de
mestiços, raiz de futuras desigualdades econômicas e sociais, explicadas
pela falta de políticas de inclusão e integração.
O corpo sexuado feminino se embate contra sua condição de ser
individual e social no mundo colonial. Stolke nos ilustra o caso de um
Dr. Tembra do México que, em 1752, airma ser da opinião que um
matrimônio “desigual” poderia ou não ser celebrado sem o consenti-
mento dos pais, dependendo da condição social da moça. Ou seja, se a
donzela delorada por uma promessa de casamento fosse de status infe-
rior do que o do rapaz e causasse “maior desonra à linhagem dele”, era
melhor a moça permanecer “desonrada”: “como quando um Duque,
Conde, Marquês ou Cavalheiro de conhecida nobreza seduz uma me-
nina mulata, uma china [descendente da mistura de negro e indígena
com negro], uma coyota [descendente de índio e mestiça] ou a ilha de
um carrasco, um açougueiro, um curtumeiro)”149. Assim, para o Dr.
Tembra, o melhor neste caso seria o moço não casar com tal donzela,
porque a injúria para ele e para toda sua linhagem seria maior
do que aquela em que a donzela incorreria ao permanecer sem
salvação [...] pois o último caso é uma ofensa individual e não
causa danos para a República, enquanto o primeiro é uma
ofensa de tal gravidade que irá denegrir uma família inteira,
desonrar uma pessoa proeminente, difamar e manchar toda
uma linhagem de nobres e destruir algo que oferece esplendor
e honra à República150.
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