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DIREITO CONSTITUCIONAL I

Elementos de trabalho para as

Aulas Práticas 2022-20231

(em progresso)

Pedro Lomba

1
Os excertos aqui reproduzidos constituem utilizações estritamente para uso educativo, ao abrigo do artigo 75.º, n.º 2, f) do
Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
PROGRAMA

1ª Aula - O governo das leis e o governo dos homens

2ª Aula – O governo de um, poucos ou muitos: o tema da procura do melhor regime

3ª Aula – Governo de Deus ou governo dos homens: o problema da origem do poder

4ª Aula – As formas políticas da Constituição dos antigos

5ª Aula – Governo justo e governo injusto: o surgimento dos direitos individuais

6ª Aula - Maquiavel e a secularização do poder político

7ª Aula – A instituição do Estado moderno e o conceito de soberania

8ª Aula – Governo limitado, liberalismo e direitos naturais

9ª Aula – Os princípios do Estado constitucional liberal

10ª Aula – Constitucionalismo britânico

11ª Aula – Constitucionalismo francês

12ª Aula – Constitucionalismo americano

13ª Aula - A separação de poderes

14ª Aula - Conceções da liberdade

15ª Aula – Do princípio da igualdade de condições ao advento do Estado social

16ª Aula – A deformação do Estado moderno: totalitarismo e anti-Direito

17ª Aula - Direitos fundamentais e dignidade humana (“Estado de Direitos Humanos”)

18ª Aula – Cidadania moderna: os direitos dos nacionais e os direitos dos estrangeiros

19ª Aula – A Constituição moderna e a identidade constitucional: princípios, valores e


normas.

20ª Aula - Revisões

21ª Aula – Temas do Estado atual: i) digitalização; ii) internacionalização; iii) Estado de
emergência permanente; iv) Estado de vigilância

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1ª Aula

Governo dos homens e governo das leis

Articulação com as aulas teóricas

(Paulo Otero (PO): Instituições Políticas e Constitucionais, Vol. I, pp. 62-87

1 – Platão e Aristóteles

Platão e Aristóteles na Sala da Assinatura (Vaticano)

2- A alegoria do navio. A condenação da democrática. A “ciência régia”

Platão, “República”, Ed. Gulbenkian

LIVRO VI

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- Ao cabo de uma longa discussão - observei eu - é que nós mais ou menos pusemos a claro,
ó Gláucon, estas duas coisas: quem é que é filósofo e quem o não é.

- Provavelmente não era fácil fazê-lo através de uma discussão curta.

- Não me parece - repliquei -; pelo menos, julgo que ela se nos antolharia melhor, se só
tivéssemos de nos pronunciar sobre esse assunto, e não faltasse examinar muitos outros, se
quisermos ver em que se distingue uma vida justa.

- Ora então, que é que nos falta depois disto?

- Que mais há-de ser, senão as suas consequências?

Uma vez que os filósofos são aqueles que são capazes de atingir aquilo que se mantém sempre
do mesmo modo, e que aqueles que o não são, mas se perdem no que é múltiplo e variável,
não são filósofos, qual das duas espécies é que deve ser chefe da cidade?

- Que hei-de eu dizer para dar uma resposta adequada?

- Que aquele dentre os dois que parecer capaz de guardar as leis e costumes da cidade, esse
mesmo seja nomeado guardião.

-Exactamente - corroborou ele.

- Acaso não é evidente - prossegui eu - se deve ser um cego ou uma pessoa de visão clara que
fica de atalaia a tomar conta do que quer que seja?

-Como não havia de ser evidente?

- Ora bem! Parece-te que há alguma diferença entre os cegos e aqueles que estão realmente
privados do conhecimento de todo o ser, e que não têm na alma nenhum modelo claro, nem
são capazes de olhar, como pintores, para a verdade absoluta, tomando-a sempre como ponto
de referência, e contemplando-a com o maior rigor possível, para só então promulgar leis cá
na terra sobre o belo, o justo, o bom, se for caso disso, e preservar as que existirem, mantendo-
as a salvo?

-Por Zeus, que a diferença não é grande!

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- Serão pois esses que de preferência faremos guardiões ou os que conhecem cada um
dos seres, e que não ficam a dever nada em experiência àqueles, nem lhes ficam atrás
em nenhum outro aspecto da excelência?

- Ora pois, seria absurdo escolher outros, se em tudo o mais não lhes ficassem a dever nada,
pois lhes levariam vantagem naquilo que é de supremo interesse.

- Não diremos, portanto, de que modo serão capazes esses mesmos de possuir aqueles e estes
atributos?

- Claro que sim.

- Como afirmávamos ao começar esta discussão, temos primeiro de examinar com cuidado
qual a natureza deles. E, creio eu, se chegarmos a um perfeito acordo sobre ela,
concordaremos em que as mesmas pessoas serão capazes de possuir esses atributos, e
que ninguém mais, senão elas, deve ser guardião da cidade.

(…)

- Ora não seria a pessoas assim, aperfeiçoadas pela educação e pela idade, e só a essas, que
gostarias de entregar a cidade?

- Ó Sócrates! - interrompeu Adimanto - ninguém seria capaz de contraditar os teus


argumentos. Mas de facto, a impressão que experimentam aqueles que de tempos a tempos
ouvem o que acabas de expor é mais ou menos esta: supõem que, pela sua inexperiência em
interrogar e responder, a cada pergunta a discussão os desvia um pouco, e que, depois de
terem acumulado esses pequenos desvios, ao chegarem ao fim da argumentação, surge um
erro grande e contrário à posição inicial; e, tal como, no gamão, os jogadores hábeis cercam
as pedras dos outros e não os deixam chegar ao fim, nem ter para onde mover as pedras,
também eles acabam por ficar cercados e sem ter que dizer nesta outra espécie de jogo, feito
não com pedras, mas com argumentos. O certo é que a verdade não adianta nada por esse
modo. Falo com os olhos postos no caso presente. De facto, poder-se-á objectar que uma
pessoa não tem argumentos para contraditar cada uma das tuas perguntas, mas que os factos
mostram que todos quantos se dedicaram à filosofia, para se cultivarem, quando eram novos,
e não a abandonaram, mas persistiram mais tempo nesse estudo, na maior parte dos casos se
tornam bastante excêntricos, para não dizer perversos, e aqueles que parecem mais

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equilibrados, mesmo assim se ressentem dessa aplicação que tanto elogias, tornando-se uns
inúteis para a cidade.

- A pergunta que fizeste - esclareci - carece de uma resposta em forma de metáfora.

- Mas não é teu costume, segundo julgo, falar por metáforas.

- Seja - disse eu -. Estás a troçar, depois de me teres atirado para um raciocínio tão difícil de
demonstrar! Ouve, então, a metáfora, para veres ainda melhor como eu sou mesquinho a
arquitectá-las. O sofrimento que aguentam os melhores, por parte da cidade, é tão pesado,
que não há outro assim; mas, para dar uma imagem dele, e para fazer a sua defesa, tenho de
reunir elementos de muitas proveniências, tal os pintores que misturam nos seus quadros
bodes com veados e outros que tais.

Imagina, pois, que acontece uma coisa desta espécie, ou em vários navios ou num só:
um armador superior em tamanho e em força a todos os que se encontram na
embarcação, mas um tanto surdo e com a vista a condizer, e conhecimentos náuticos da
mesma extensão; os marinheiros em luta uns contra os outros, por causa do leme,
entendendo cada um deles que deve ser o piloto, sem ter jamais aprendido a arte de
navegar nem poder indicar o nome do mestre nem a data do seu aprendizado, e ainda
por cima asseverando que não é arte que se aprenda, e estando prontos a reduzir a
bocados quem declarar sequer que se pode aprender; estão sempre a assediar o dono
do navio, a pedir-lhe e a fazer tudo para que lhes entregue o leme; algumas vezes, se
não são eles que o convencem, mas sim outros, matam-nos, a esses, ou atiram-nos pela
borda fora; reduzem à impotência o verdadeiro dono com a mandrágora a embriaguez
ou qualquer outro meio; tomam conta do navio, apoderam-se da sua carga, bebem e
regalam-se de comer, navegando como é natural que o faça gente dessa espécie; ainda
por cima, elogiam e chamam marinheiros, pilotos e peritos na arte de navegar a quem
tiver a habilidade de os ajudar a obter o comando, persuadindo ou forçando o dono do
navio; a quem assim não fizer, apodam-no de inútil, e nem sequer percebem que o
verdadeiro piloto precisa de se preocupar com o ano, as estações, o céu, os astros, os
ventos e tudo o que diz respeito à sua arte, se quer de facto ser comandante do navio, a
fim de o governar, quer alguns o queiram quer não - pois julgam que não é possível e
aprender essa arte e estudo, e ao mesmo tempo a de comandar uma nau

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- Quando se originam tais acontecimentos nos navios, não te parece que o verdadeiro piloto
será realmente apodado de nefelibata, palrador, inútil, pelos navegantes de embarcações
assim aparelhadas?

3- Excertos de Política de Aristóteles, editora Veja.

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4 - Constituição Portuguesa de 1976

Artigo 2.º

(Estado de direito democrático)

A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no


pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação
dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a
realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia
participativa.

5 - Constituição da República Islâmica do Irão (1979)

Artigo 1º

O Governo do Irão é uma República Islâmica que a nação do Irão, baseada na sua crença
eterna num governo de verdade e justiça do Alcorão, em seguimento à vitoriosa Revolução
islâmica, liderada pelo Ayatollah Imam Khomeini, confirmou por Referendo Nacional que
teve lugar em 10 e 11 de Farvardin, 1358, da Hégira Solar, correspondendo a 01 e 02 de
Jamad al-awwal, 1399 da Hégira Lunar (= 30 e 31 de Março de 1979), com uma maioria de
98,2% dos ll-votos.

Capitulo Oitavo

O Líder ou o Conselho de Direção

Artigo 107º

Depois de Ayatola Imam Khomeini, distinta autoridade religiosa e líder carismático da


Revolução mundial islâmica e fundador da República Islâmica do Irã, quem foi escolhido
como líder e autoridade religiosa pela maioria do povo, nomeação do líder é da

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responsabilidade dos Peritos eleitos pelo povo. Os Peritos da liderança tomarão conselho
acerca da competência de todos os candidatos que se reúnem às condições estabelecidas no
Artigo 5º e 109 desta Constituição. Quando encontraram um deles mais cientes na
jurisprudência, conhecedor de assuntos políticos e sociais, aceitado pelo povo ou se tenha
uns dos atributos e características relevantes descritos no artigo 109, nomearam-no como o
Líder. O Líder escolhido por Peritos estará encarregado da gestão de todos os assuntos e todas
as responsabilidades dele emanantes.

7- Questões de estudo

- Em que se distinguem a conceção da política de Platão e de Aristóteles?

- Em que diferem o governo ideal de Platão e a cidade de Aristóteles?

- Explique o sentido da “alegoria do navio”?

- Por que falamos de dominação em Platão e de participação em Aristóteles?

- Comente a frase: “Quando Platão exalta sua «ciência régia», que «não escreve leis mas
provê como lei a sua arte”

- É o Estado Constitucional português um governo das leis ou dos homens?

- Relacione a expressão “governo dos homens” com experiências constitucionais de afirmação


do poder pessoal no século XX (Irão)?

- Recorda-se de alguma manifestação contemporânea próxima do governo dos homens?

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2ª Aula

O governo de uns, poucos ou muitos

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 69-76 e pp. 81-86

1 - O melhor regime político

• “Quem exerce o poder” - numa abordagem clássica, o governo poderia ser entregue a
“um”, a “muitos” ou a “todos”.
• “Qual a melhor forma de governo” - finalidade ético-política

2 - Qual o melhor regime?

• O diálogo dos três persas nas Histórias de Heródoto

Norberto Bobbio, Teoria das Formas de Governo, 1995:

“Cada um dos três persas faz uma avaliação positiva de uma das três constituições e anuncia
um julgamento negativo das outras duas. Defensor do governo do povo (que ainda não é
chamado de “democracia”, esse termo tem de modo geral, nos grandes pensadores políticos,
uma aceção negativa, de mau governo), Otanes condena a monarquia. Defensor da aristocracia,
Megabizo condena o governo de um só e o governo do povo. Por fim, Dario, que defende a
monarquia, condena tanto o governo do povo como o governo de uns poucos”.

- Otanes apela à democracia (contra: “o monarca pode fazer o que quiser”; é “prepotente”;
“irresponsável”); (a favor: “isonomia”, “igualdade”, “cargos distribuídos pela sorte”).

- Megabises defende a oligarquia (contra: “a massa inepta é obtusa e prepotente; a “plebe


desatinada”) (favor: “as melhores decisões pelos melhores”)

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- Dario opta pela monarquia (contra: “conflitos pessoais porque todos querem ser o chefe,
surgindo as facções”; “se o povo governa, há corrupção”); (a favor: o monarca que
“assume a defesa do povo” e acaba com a corrupção.

3 - Aristóteles, Política (ed. Veja)

- a cada forma de governo justa ou correta corresponde uma forma de governo injusta ou
defeituosa.

- A classificação cruza dois critérios: i) número de governantes; ii) e (interesse prosseguido:


próprio ou geral)

- Justas Injustos

- Monarquia ----→ Tirania

- Aristocracia ---→ Oligarquia

- Politeia -------→ Democracia

- Regimes corretos e regimes degenerados

- O regime moderado: “classes médias”

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4 - O regime constitucional moderado em Aristóteles – classes médias –

• O governo moderado e misto é o governo da classe média: “a massa mais estável nas
cidades” que absorve as tensões entre os muitos (pobres) e os poucos (ricos)
• Um governo da classe média evitaria sublevações e conflitos entre os pobres e os ricos,
garantindo a sua durabilidade.
• O regime mais adequado seria o das facções intermédias; seria um governo em que as
partes democráticas e oligárquicas estivessem bem misturadas para que as fações de
poucos não se apropriem dos muitos, nem para que os muitos não sejam manipulados e
o demos (povo) não destrua a nomos (lei).

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4 – Regime misto, divisão e equilíbrio do poder

Políbio, Historias, VI

A maioria daqueles que nos querem educar sobre o tema das constituições quase mantêm a
existência de três tipos de constituições: chamam uma "monarquia", outra "aristocracia" e a
terceira "democracia".

Mas penso que seria muito apropriado perguntar-lhes se propõem estas constituições como
as únicas constituições.

Estão a propor estas constituições como as únicas possíveis, ou, por Zeus, apenas como o
melhor. Parece-me que em ambos os casos eles estão errados. De facto, é evidente que
devemos considerar que a melhor constituição é a que integra todas as três características
acima mencionadas.

(…)

Assim, estas três classes de governo que citei dominaram a constituição, e todas elas foram
tão ordenadas, e tão bem distribuídas, que ninguém, nem mesmo os nativos, jamais poderia
dizer com certeza se o regime era inteiramente aristocrático, ou democrático, ou monárquico,

Uma coisa muito natural, pois se olharmos para o poder dos cônsules, parece-nos uma
constituição perfeitamente monárquica e real, se olharmos para a do Senado, aristocrática, e
se considerarmos o poder do povo, dar-nos-ia a impressão de ser, sem qualquer ambiguidade,
uma democracia.

(…)

Aqui está, então, como o poder político é distribuído entre as várias formas de regime.

irá agora tratar-se de como cada um deles pode, à vontade, cooperar com os outros ou opor-
se a eles.

Os cônsules, quando atingem o poder acima descrito e saem em campanha, dão a impressão
de que têm poder absoluto para levar a cabo a sua missão, mas na realidade precisam do
senado e do povo, e sem eles não são capazes de cumprir a sua missão.

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5- Questão para discustir:

• Imaginemos que a Constituição do Estado X determina que só podem exercer o poder


cidadãos com mais de 50 anos, e apenas com licenciaturas.

- Concordariam com este tipo de regime? Que vantagens e desvantagens?

- Que forma de governo seria?

• Devemos ter o governo:

➢ Dos mais inteligentes?

➢ Dos mais ricos?

➢ Dos mais pobres?

➢ Dos mais velhos?

➢ Dos mais novos?

➢ Dos aristocratas?

➢ Das profissões?

• Existe alguma relação entre a tradição do Governo misto e o bicameralismo?

Os argumentos contemporâneos em favor do bicameralismo continuam a ser fundados na


tradição do governo misto (divisão e equilíbrio do poder). Isto para:

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Representar uma multiplicidade de interesses, decorrentes das diferenças sociais ou
profissionais de uma sociedade (ex: Assembleias Estamentais na Idade Média; Representação
por Ordens; Câmaras Corporativas);

Representar os interesses de regiões ou estados em sistemas complexos (ex: federalismo,


Senado americano);

Integrar a experiência, o conselho, a sabedoria dos melhores (ex: Senado Romano, Câmara
dos Lordes)

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3ª Aula

Governo de Deus ou governo dos homens: o problema da origem do poder

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 94-121

1. Conceções descendentes sobre o poder: “Non est potestas nisi a Deo”

São Paulo, na Carta aos Romanos 13, 1; 3-4, todo poder vem de Deus e os que
foram estabelecidos governantes visam a coibir o male a punir quem o pratica, a
fim de que os bons vivam em paz.

Jesus, igualmente, ensina a mesma coisa no diálogo que manteve com Pilatos, ao
dizer-lhe, conforme o Evangelho de João, 19, 11: Não terias poder nenhum sobre
mim, se não te tivesse sido dado do alto’.

Deus

Governantes

2. Conceções descendentes: a separação entre poder e jurisdição: os dois gládios

Deus
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Poder espiritual Poder temporal

«Pagaremos ou não pagaremos?» [imposto]

Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.» (Mateus 22:21)

Os dois gládios

No final do século V, o papa Gelásio I (na imagem) estabelece a doutrina das duas espadas
ou dos dois gládios numa carta dirigida ao imperador Anastásio I. Distingue a auctoritas
sacra pontificum, procedente diretamente de Cristo, e a regalis potestate, o poder real
confinado à gestão dos assuntos temporais: os príncipes cristão devem recorrer ao sacerdócio
em tudo o que diga respeito à sua salvação. Por seu lado, os padres devem atender a tudo o
que foi estabelecido pelos príncipes no tocante aos acontecimentos do domínio temporal, de
modo que o soldado de Deus não se imiscua nas coisas deste mundo e que o soberano
temporal não faça ouvir a sua palavra nas questões religiosas. Era a auctoritas entendida como
o poder fundador, o poder em sentido pleno, como fonte de legitimidade, donde derivaria a
potestas, o poder de execução, o poder de facto, da administração das coisas e das pessoas.

JEANNINE QUILLET, Les Clefs du pouvoir au moyen age, Paris, Flammarion,1972

3. Agostinianismo político

Santo Agostinho, A Cidade de Deus, ed. Gulbenkian

CAPITULO I

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Nesta parte da obra começa-se por se mostrar as origens e os fins das duas Cidades- da Celeste
e da Terrestre.

Chamamos Cidade de Deus àquela de que dá testemunho a Escritura que, não devido a
movimentos fortuitos dos ânimos, mas antes devido a uma disposição da Suma Providência,
ultrapassando pela sua divina autoridade todas as literaturas de todos os povos, acabou por
subjugar toda a espécie de humanos engenho. É, realmente, nela que está escrito:

Disseram de ti coisas gloriosas, cidade de Deus: e num outro salmo lê-se: O Senhor é
grande e digno dos maiores louvores na cidade do nosso Deus;

CAPÍTULO XIV

Em. que estado foi o homem criado por Deus e até que ponto caiu por sua própria vontade.
Deus, autor das naturezas e não dos vícios, criou o homem recto, mas este, castigado, gerou
pervertidos e castigados. É que todos estivemos naquele homem único quando todos fomos
aquele homem único que foi arrastado ao pecado pela mulher que dele fora feita antes do
pecado. Ainda não tinha sido criada nem distribuída a cada um de nós a forma na qual cada
um de nós devia viver individualmente, mas já existia a natureza seminal de que-havíamos
de nascer. E estando esta corrompida pelo pecado, aprisionada. nas cadeias da morte,
justamente castigada- do homem não podia nascer um homem de condição diferente.

E por isso, do mau uso do livre arbítrio saiu esta série de calamidades que, por um
encadeamento de desgraças, conduziu o género humano, pervertido desde a origem' e como
que corrompido na raiz, até ao flagelo da segunda morte que não tem fim, à excepção apenas
daqueles que pela graça de Deus se libertarem.

Livro XII

CAPÍTULO I

Pela desobediência do primeiro homem, se a graça de Deus a muitos não libertasse, todos
seríamos arrastados para a perpetuidade da segunda morte.

Já nos livros precedentes dissemos como Deus, querendo não só tm.ir os homens numa única
sociedade pela semelhança da natureza mas também, mercê dos laços do parentesco, juntá-

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los numa hannoniosa unidade no vínculo da paz, institui a humanidade a partir de um só
homem.

Esta humanidade em cada um dos seus membros não devia morrer se os dois primeiros
homens, um tirado do nada e a outra do primeiro, não o tivessem merecido pela sua
desobediência. Tão grande foi o pecado por eles cometido que a nature.za humana ficou
deteriorada e com ela se transmitiu aos descendentes a sujeição do pecado e a necessidade da
morte. Todavia, o reino da morte dominou de tal forma os homens que um merecido castigo
a todos precipitaria na segunda morte, que não tem fim se uma graça de Deus, não merecida,
disso não libertasse um cerro número. E por isso aconteceu que, entre tantos e tão grandes
povos espalhados por toda a Terra, apesar da diversidade dos usos e costumes da imensa
variedade de línguas e vestuário, não se encontram senão dois tipos de sociedades humanas
que nós podemos à vontade, segundo as nossas Escrituras, chamar as duas Cidades- uma,
a dos homens que querem viver segundo a carne, e a outra, a dos que pretendem seguir
o espírito, conseguindo cada uma viver na paz do seu género quando eles conseguem o
que pretendem.

CAPITULO IV

Das lutas· ou da paz na Cidade Terrestre.

A cidade terrestre, que não será eterna (pois, uma vez condenada ao suplício final, já não será
cidade), é cá na Terra que tem o seu bem, tomando parte na alegria que estas coisas podem
proporcionar. E como não há bem que não cause apreensão aos que o amam, esta cidade
acha-se, a maior parte das· vezes, dividida contra si própria com litígios, guerras, lutas, em
busca de vitórias mortíferas ou mesmo mortais. A verdade é que, qualquer parte dela que
provoque a guerra contra a outra, o que procura é ser senhora dos povos, quando afinal é ela
que fica cativa dos vícios; e se, quando sai vencedora, se exalta na sua soberba, a sua vitória
é-lhe mortífera. Mas se, refletindo sobre a sua condição e as vicissitudes comuns, se sente
mais atormentada pela adversidade que lhe pode surgir do que envaidecida pela prosperidade
- a sua vitória é então apenas mortal, porque lhe será impossível manter o seu domínio sobre
os que pôde subjugar com tal vitória. Mas não e pode dizer corretamente que as coisas, que
esta cidade ambiciona, não são verdadeiramente boas, sendo certo que mesmo ela, dentro do

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seu género humano, ainda é melhor. Procura certa paz terrena em vez destas coisas ínfimas-
e é para a obter que ela faz guerra. Se vencer e não houver quem lhe resista - será a paz que
as partes adversas não tinham quando se batiam por bens que na sua desgraçada indigência
não podiam possuir em conjunto. Esta é a paz procurada por guerras laboriosas - a paz que
uma vitória, que se julga gloriosa, consegue! Quando são vencedores os que lutam por uma
causa mais justa, quem duvidara de que seja louvável uma tal vitória e desejável a paz que
dela resulta? São bens e, não há dúvida, dons de Deus.

4. Conceções ascendentes

Deus

Igreja Poder Político

Comunidade – o
“Legislador Humano”

Marcílio de Pádua, Defensor Pacis

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On the demonstrable efficient cause of human law, and also on the cause that cannot attain
conviction by demonstration; which is to inquire into the legislator. From this it will further
become apparent that anything instituted by election has its authority from that election
alone, without any other confirmation.

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Let us say, then, in accordance with both the truth and the counsel of Aristotle, Politics III
chapter 6,3 that the ‘legislator’, i.e. the primary and proper efficient cause of the law, is the
people or the universal body of the citizens or else its prevailing part,4 when, by means of an
election or will expressed in speech in a general assembly of the citizens, it commands or
determines, subject to temporal penalty or punishment, that something should be done or
omitted in respect of human civil acts. (I say ‘prevailing part’ taking into consideration both
the quantity and the quality of persons in the community upon which the law is passed.) This
is so whether the said body of citizens or its prevailing part does this directly of itself, or
commits the task to another or others who are not and cannot be the legislator in an
unqualified sense but only in a certain respect and at a certain time and in accordance with
the authority of the primary legislator. And in consequence of this I say that laws and
anything else instituted by election must receive their necessary approval from the same
primary authority and no other: whatever may be the situation concerning various ceremonies
or solemnities, which are not required for the results of an election to stand but for their good
standing, and even without which the election would be no less valid. I say further that it is
by the same authority that laws and anything else instituted by election must receive any
addition or subtraction or even total overhaul, any interpretation and any suspension:
depending on the demands of time and place and other circumstances that might make one
of these measures opportune for the sake of the common advantage in such matters. It is by
the same authority, too, that laws must be promulgated after their institution, so that no citizen
or stranger who commits an offence against them can be excused on grounds of ignorance.

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On the efficient cause of the best way of instituting a principate, which will also reveal the
efficient cause of the other parts of the city

Now that we have demonstrated the efficient cause of this part, we have now (following what
we have frequently proposed) to speak of the cause that effects, institutes and determines the
remaining offices or parts of the city. And we say that the primary cause is the legislator, but

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we say that the secondary cause, in the sense of instrumental or executive, is the prince by
the authority for this granted to him in accordance with the

form given him by the same legislator, viz. the law (according to which the prince ought
always to act and to settle civil actions insofar as he can, as shown in the last chapter). For
although the legislator, as the primary and proper cause of this, ought to determine which
men should exercise what kind of functions in the city, nevertheless it is the princely part that
commands, and if necessary enforces, the execution of such decisions, as he does other
matters of law. For it is more convenient for the execution of legal matters to take place
through him than through the universal multitude of the citizens, since one or a few persons
exercising the function of prince are enough for this business, in which the universal
community would be unnecessarily occupied and would moreover be distracted from other
necessary tasks. For when these individuals do something, the entire community does it: since
those who exercise the function of prince do it in accordance with the determination (sc.
legal) of the community; and because they are few or one in number, legal matters are more
easily carried out.

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4ª Aula

As Formas Políticas da Constituição dos Antigos

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 103-121

1 – Formas Políticas da Antiguidade ao Período Medieval:

Aristóteles: “Um regime político resulta de um certo modo de ordenar os habitantes da cidade”
(Política: 185).

Cronologia rápida:

▪ 890 a.C.: Data aproximada para a composição da Ilíada e da Odisseia. Fundação de Esparta.
▪ 800 a.C.: Ascensão das cidades-estados.
▪ c. 735: Fundação das colónias de Corcíra e Siracusa por Corinto.
▪ 594-560 a.C.: Importantes reformas nas estruturas sociais, política e econômica na Atenas.
▪ c. 505 a.C.: Atenas adota a democracia como forma de governo.
▪ 509 a.C.: Início da República Romana. Os etruscos começam a entrar em declínio.
▪ 450 a.C.: Promulgação da Lei das XII Tábuas.
▪ 275 a.C.: Começou o período de conquistas. Roma dominou as cidades gregas do sul da
península Itálica, dominando-a por inteiro.
▪ 149 a.C.: Depois de ocupar a Península Ibérica e derrotar Aníbal, Roma destruiu Cartago. A
cidade ficou em ruínas. No mesmo ano, as tropas romanas conquistaram a Grécia. Em 133 a.C.,
assumiu o controle total do mar Mediterrâneo.
▪ Em 27 a.C., Otaviano recebeu o título de Augusto. Nos 41 anos de seu reinado, Otaviano acabou
com um século de conflitos e iniciou um período de 200 anos de paz e prosperidade, a
chamada Pax Romana. Data convencionada pelos historiadores como início do Império
Romano.
▪ Ano 1: Jesus nasceu em Belém, na Judéia. Nesta época, o império tinha cinco milhões de
habitantes.

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▪ 64: A perseguição começa sob Nero após o grande incêndio de Roma. Martírio de São Pedro.
A perseguição aos cristãos continua intermitentemente até 313 d.C.
▪ 110: Inácio de Antioquia usa o termo Igreja Católica em uma carta à igreja em Esmirna, em
uma das cartas de autenticidade indiscutível atribuída a ele. Nesta e em outras cartas genuínas,
ele insiste na importância dos bispos na igreja e fala severamente sobre hereges e judaizantes.
Fala sobre a mudança do sábado judaico para o domingo cristão, no capítulo nove na sua carta.
▪ 117: Sob o governo de Trajano, Roma conquistou a Britânia e alcançou sua maior extensão
territorial, englobando o sul da Europa, o Mediterrâneo, o Egito, o Norte da África, a Gália,
parte da Germânia, Mesopotâmia e atuais Bulgária, Romênia, Grécia e Turquia. Ver província
romana.
▪ 212: O imperador Caracala fez a Constitutio Antoniniana (também conhecida como Édito de
Caracalla, ou Édito de 212, na qual concedia a cidadania romana a todos os habitantes livres do
império.
▪ 303: Com o número de cristãos atingindo 15 milhões dos 60 milhões de habitantes de império:
25% da população escrava, plebeia e até parte da elite sobretudo em Roma, partes da África e
da Ásia, Diocleciano (último imperador pagão) promoveu uma nova grande perseguição.
▪ 313: Com o Édito de Milão, o imperador Constantino I acabou com a perseguição aos cristãos
declarou que o império não tem mais uma religião oficial.
▪ 324: O papa Silvestre I em seu calendário confirma o domingo (e não o sábado judaico) como
o primeiro dia da semana, "dies dominicus" ("Dia do Senhor", em latim) e ordena aos membros
da igreja que o mantenham como um dia santo; dia em que Jesus Cristo teria ressuscitado.
▪ 330: O imperador Constantino I reconstruiu a cidade grega de Bizâncio (atual Istambul), como
uma "Nova Roma". A cidade passou a ser conhecida como Constantinopla.
▪ 410: Saque de Roma pelos visigodos (Alarico I).
▪ 476: Odoacro, líder dos bárbaros germânicos Hérulos derrubou Rômulo Augusto, o último
imperador romano, então com 15 anos de idade. Os historiadores em geral consideram este
evento como o fim do Império Romano do Ocidente e o início da Idade Média. O Império
Romano do Oriente, com capital em Constantinopla, ainda duraria quase mil anos, até 1453.
▪ 481: Clóvis torna-se primeiro rei dos francos.
▪ 493: Teodorico I funda o reino dos ostrogodos na Itália.
▪ 494: Famuli vestrae pietatis é uma carta escrita em 494 pelo Papa Gelasius I ao Imperador
Bizantino Anastasius I Dicorus que expressava a doutrina Gelasiana
▪ 496: Clóvis submete-se ao papa, torna-se primeiro soberano a reconhecer a autoridade romana.
▪ 527: Justiniano torna-se imperador romano do Oriente.

33
▪ 529—534: Publicação do Corpus iuris civilis.
▪ 728: Doação de Sutri. Primeiro núcleo do estado da Igreja.
▪ 800: Carlo Magno coroado imperador escolhido pelo Papa Leão III.
▪ 1143: Tratado de Zamora. Acto de vassalagem de Afonso I ao papa.
▪ 1453: Os turcos otomanos (povos de origem nómade da Ásia Central) invadiram Constantinopla (actual
Istambul) e derrubaram o Império Romano do Oriente ou Império Bizantino.

2 – Pierre Manent, Les Métamorphoses de La Cité.

Quais são as características próprias da história do Ocidente? O que é a sua fórmula, por
assim dizer?

Tenho insistido no movimento moderno, no carácter da modernidade como movimento, um


movimento que nunca chega ao seu termo, ao seu lugar de descanso. Há grandes civilizações
à parte do Ocidente, e muitas coisas acontecem ali, mas eles não conheceram movimento,
movimento histórico. Há no Ocidente um princípio singular de movimento e é isso que o
caracteriza acima de tudo.

O princípio do movimento ocidental é a política, e portanto a cidade. O movimento do


Ocidente começa com o movimento da cidade. Já foi dito que os gregos não conheciam a
história, que eles tinham uma compreensão cíclica do tempo e que o tempo linear da história
começou com o cristianismo, ou com a filosofia moderna da história. Isso não colhe. Os
gregos conheciam muito bem o tempo irreversível da história política. Aristóteles era tão
capaz como Tocqueville de observar que a democracia era no seu tempo o único regime que
ainda era possível.

O movimento ocidental começa com o movimento da cidade grega, o movimento interno e


externo da cidade grega, da luta de classes por dentro e da guerra com o estrangeiro por
fora. A cidade é a forma da vida humana que fez aparecer a coisa comum, o governo do
comum e a execução da coisa comum numa pluralidade de cidades hostis um ao outro e

34
divididos no seu interior. A cidade grega era a primeira forma da vida humana para produzir
energia política. (…) Foi finalmente consumida pela sua própria energia na catástrofe da
Guerra do Peloponeso.

A forma que sucedeu à cidade foi o império. O império ocidental, por contraste com o
império oriental, é um tipo de continuação da cidade. A cidade de Roma empregou energias
tão poderosas que ultrapassou todos os limites que circunscreviam as cidades, uma vez que
se juntavam a si próprias populações cada vez mais numerosas e distantes ao ponto de
parecerem à beira da montagem toda a raça humana. O império ocidental subjugou a
liberdade da cidade, mas prometeu unidade e paz. É uma promessa que não foi inteiramente
cumprida, mas, como no caso da cidade, o político e as energias espirituais sobreviveram
parcialmente à queda da forma, e a imperial ideia marcou o Ocidente não só pelo prestígio
duradouro do Império Romano, mas também sob uma forma absolutamente sem precedente
que também é própria da Europa, que é a Igreja, a católica, ou seja, a Igreja universal
Igreja, que procura reunir todos os homens numa nova comunhão, mais íntima do que a
cidade mais fechada, mais extensa do que o império mais vasto. De todas as formas políticas
do Ocidente, a Igreja é a que mais repleta de promessas, uma vez que propõe, como acabo
de dizer, uma comunidade que já foi cidade e império, mas é também a mais decepcionante
porque nunca consegue, e fica muito aquém das expectativas, criar esta associação universal
para o qual despertou o desejo.

Acabo de rever a história pré-moderna da Europa com a velocidade e delicadeza de Átila.


Mas o meu saque faria um rei bárbaro ficar verde de inveja. Pois eu reuni os elementos da
situação que irá condicionar a elaboração do projecto moderno. Como pode estas situação
ser caracterizada? Direi simplesmente que os Europeus desse tempo estavam divididos entre
a cidade, o império e a Igreja. Eles viveram sob as autoridades mistas e concorrentes destes
três modos de associação. As cidades que subsistiram ou ressuscitaram estavam em
competição e muitas vezes em guerra com o Império Romano que se tornou o Santo Romano
Império da nação alemã, e a Igreja estava em competição com as cidades e o império, que
estavam em concorrência com ele. Esta é um uma desordem terrível, um conflito de
autoridades e lealdades. É desta confusão que o projecto moderno procura retirar-nos. A
querela tem a ver com instituições, com certeza, mas também, mais profundamente, com o
tipo humano que deve inspirar a vida humana. A quem imitar? Deve-se seguir a vida de

35
humilde e sacrifício para o qual Cristo fornece o modelo? Ou então é preciso levar a vida
activa e orgulhosa de o cidadão guerreiro que produziu Roma e foi produzido por ela? E
entre os próprios pagãos, iremos admirar Catão, ou César? Os Europeus não sabiam que
cidade queriam ou podiam habitar; eles não sabiam que homem queriam ou podiam ser. É
nesta radical perplexidade e, para a enfrentar, que, repito, o projecto moderno nasceu.

3 – Formas políticas

a) Cidade Grega A cidade não é a casa, a família, a tribo


A cidade é uma comunidade política
auto-suficiente que promove a vida boa,
realizando a natureza política do homem.

b) Res Publica Romana “Cada república, que é, como eu disse,


uma "coisa" de um povo, deve ser regida
por uma espécie de deliberação para que
possa ter uma longa duração.” Cícero

Augusto:
c) Império Romano
Tribunicia potestas sobre Roma
e imperium proconsular sobre o Império
(imperium – poder de comando –
antecedente de soberania )

36
A passagem do poder do Senado para o
Imperador.

- São Mateus (Jesus Cristo: “Sobre esta


d) Igreja
pedra edificarei a minha Igreja”)
- A afirmação do poder da Igreja
Universal (Papa Silvestre I)
- A supremacia papal (Papa Gelásio
I):duo sunt o poder espiritual do Papa
seria superior ao tempo temporal dos
imperadores (auctorias do papado vs
potetas do imperador)
- A doutrina da infalibilidade papal (o
Papa não poderia ser julgado por
ninguém)

- Afirmação de poder sobre um


e) Reino
território
- Justificação do poder do rei como um
poder separado do poder espiritual
- A condição da obediência ao rei.

- Remissão
f) Estado
- O Estado soberano
- Centralização
- Secularização
- Juridificação

37
5ª Aula

Governo justo e governo injusto: a visão do bem comum e o surgimento dos direitos
individuais

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 121-175

1. São Tomás de Aquino e a lei do Estado: a lei arbitrária e a lei orientada para o
“bem comum”

São Tomás de Aquino, Summa Theologica, parte II, secção II, pergunta 58, artigo 7,

O bem comum da cidade e o bem particular de uma pessoa individual não diferem apenas
como o muito difere do pouco, mas de acordo com uma diferença formal.

A razão para o bem comum e a razão para o bem particular são de facto diferentes, tal como
a razão para o bem comum e a razão para o bem particular são diferentes.

Summa Theologica, Parte II, Secção I, Pergunta 92, Artigo 1,

responder à terceira objecção:

Uma vez que um homem faz parte da cidade, é impossível para ele ser bom se não estiver
bem ordenado no que respeita ao bem comum: um todo não pode ser bem constituído se as
suas partes não lhe forem encomendadas. Por conseguinte, é impossível para o bem comum
da cidade ser bem alcançado, se os cidadãos não forem virtuosos, pelo menos aqueles que
têm o dever de governar;

No caso dos outros, e no que diz respeito ao bem da comunidade, basta que sejam virtuosos
na obediência aos mandamentos do príncipe. É por isso que o Filósofo diz, no Livro III da

38
Política, que "é o mesmo que virtude do príncipe e do homem bom; mas a virtude de qualquer
cidadão e a virtude do homem bom não são a mesma.

2- Sobre o poder político ilegítimo e o direito de desobediência

III. PODER POLÍTICO

Comentários sobre os livros das Sentenças, de Pedro Lombardo,

livro II, distinção 44, pergunta 2, artigo 2, no corpo:

A obediência a um preceito é dada na medida da natureza obrigatória da sua observância.

Este carácter obrigatório é o efeito da ordem do poder, que tem força coerciva, não só em
questões temporais mas também espirituais, "por razões de consciência", como diz o
Apóstolo aos Romanos, XIII, 5. aos Romanos, XIII, 5, porque a ordem de autoridade desce
de Deus, como o Apóstolo também aí afirma. Portanto, os cristãos são obrigados a obedecê-
los; não são obrigados a obedecer àqueles que não vêm de Deus.

Agora, um poder não pode proceder de Deus por duas razões:

quer quanto à forma como é adquirida, quer quanto ao uso que dela é feito.

A primeira pode ocorrer de duas maneiras: através de um defeito na pessoa, na medida em


que ela não é digna de o ser, ou através de um defeito na forma de adquirir o poder, na medida
em que este seja adquirido por violência, ou por qualquer meio ilícito.

Pelo primeiro defeito, uma pessoa não é impedida de adquirir o direito de poder; e uma vez
que o poder, de acordo com a sua razão formal, procede sempre de Deus (que é a causa do
dever de obediência), portanto, aqueles que assim a adquirem, embora indignos, são devidos
pela obediência dos seus súbditos.

Mas o segundo defeito impede o direito de poder, aquele que adquire o domínio pela
violência não se torna assim verdadeiramente um magistrado ou senhor; e por esta razão,
quando existe a possibilidade, pode alguém repelir tal domínio: a menos que seja

39
posteriormente tornado legítimo, quer pelo consentimento dos sujeitos, quer em virtude de
autoridade superior.

O abuso de poder pode ocorrer de duas formas: em primeiro lugar, porque o que é comandado
pelo poder é contrário àquilo a que o poder é ordenado, como seria o caso se fosse prescrever
um acto que fosse contrário à virtude pelo cuidado cuja preservação foi ordenada. Neste caso,
não só não existe o dever de obediência, mas há também o dever de não obedecer.

Os mártires sofreram a morte por não obedecerem às ordens ímpias dos tiranos.

Em segundo lugar, porque se é obrigado a fazer algo a que a ordem de poder não se estende:
como se um senhor exigisse um tributo que o servo não é obrigado a prestar, ou situações
semelhantes; nesses casos, o servo não é obrigado a obedecer, mas também não é obrigado a
não obedecer.

3- Primeiros sinais do conceito de direitos humanos

Michel Villey, A Formação do Pensamento Jurídico Moderno

Propomo-nos a aprofundar a análise dessa estrutura própria do direito moderno, de que


acabamos de dar um panorama geral, provisório, e submetê-la a um exame crítico. Só é
possível fazê-lo, como dissemos, remontando a suas fontes filosóficas, fontes estas que, no
entanto, são mais antigas do que se costuma imaginar.

Até recentemente, a historiografia tradicional estabelecia uma ruptura brutal, no século XVI,
entre o obscurantismo medieval, atribuído comumente ao primado da fé cristã, e o
"Renascimento", liberto dos entraves da superstição, aberto para as luzes da Razão moderna.
Essa visão simplista repousava num duplo erro.

Em primeiro lugar, como acabo de recordar, não é de forma alguma verdade que o século
XVI e até mesmo o século XV estejam livres da fé cristã. Não só Rabelais ou Montaigne não
parecem minimamente tocados pela tentação da incredulidade7, como tampouco Hobbes ou
Espinosa foram ateus, embora tenham ganhado posteriormente essa reputação. Todo o século
XVII está repleto de uma ardente vida religiosa não só na França, mas também no mundo

40
protestante, e as discussões religiosas ocuparam um lugar de destaque nas obras de Grócio,
Espinosa, Pufendorf ou Locke.

Além disso, não é verdade que o humanismo esperou o século XVI para eclodir. Tampouco
é verdade que as universidades medievais foram um centro de barbárie: como vimos, foram
sede de alta filosofia.

Ambos os traços que destacamos como específicos do pensamento jurídico moderno têm,
aliás, sua verdadeira origem na escolástica medieval, embora, com efeito, ainda dissociados.
Isso é claramente enfatizado no artigo, citado anteriormente, de Guido Fassò: a laicidade, o
respeito à razão profana, vêm da escola de são Tomás; o individualismo e suas conseqüências,
o positivismo jurídico, o conceito de direito subjetivo surgem da escola rival do começo do
século XIV, da escolástica franciscana e, sobretudo, do nominalismo de Guilherme de
Ockham. De qualquer forma, pode-se, grosso modo, fazer essas atribuições. Não tememos
nos afastar de nosso tema - agora a filosofia jurídica moderna - ao nos dedicarmos a seus
precursores medievais. Será só posteriormente que virá o estudo dos sistemas do século XV.
Nesse momento, pela conjunção mais ou menos completa do laicismo jurídico, do
individualismo, do utilitarismo, às vezes do racionalismo, o pensamento jurídico moderno
irá se revestir de sua forma mais perfeita.

Assim como não existe uma doutrina moderna única (mas sim um sem-número de doutrinas
muitas vezes contrárias), não temos o direito de falar de um pensamento medieval. Há várias
"Idades Médias". Saibamos, pelo menos, fazer as distinções: uma alta Idade Média, sombria
com efeito e, quanto às ideias, dominada pela ditadura da fé e da letra da Escritura; depois, a
partir do século XI ou do século XÔ, em alguns locais privilegiados, um novo período; as
caravanas dos venezianos abriram para a Europa as portas do desenvolvimento econômico,
artístico e intelectual; surgem as cidades, as corporações de comerciantes e artesãos;
renascem Estados, uma vida política intensa, rica em controvérsias, criativa, e que é tudo
menos "estática"; tem-se, enfim, o desenvolvimento dos estudos e da razão, em Chartres, em
Bolonha, em Paris.

Na história universitária da segunda dessas duas "Idades Médias", correndo o risco de sermos
esquemáticos demais, distinguimos no ano passado duas grandes escolas:

41
- Uma corrente humanista, particularmente receptiva à filosofia profana: Chartres, Abelardo,
os intérpretes de Cícero e do direito romano, de Aristóteles ou de Averróis. Essa "escola"
atinge seu auge com a síntese, aliás moderada, de são Tomás.

- Há também uma corrente que chamamos de integrista, mais ligada à tradição estritamente
cristã, sobretudo a santo Agostinho. Ela atravessa toda a Idade Média e, no século XIII,
invade particularmente a escolástica franciscana. Por volta de meados desse século, ela talvez
se veja um pouco eclipsada pelo maravilhoso sucesso da doutrina de são Tomás. Mas, após
a condenação deste último, em 1277, retoma a ofensiva e floresce no começo do século XIV
com os sistemas teológicos de Duns Escoto e de Guilherme de Ockham.

Ora - insistamos nisso -, cada uma dessas duas escolas colocou uma pedra para a construção
da doutrina jurídica moderna. É sem dúvida principalmente de Guilherme de Ockham e da
escola nominalista que procede o individualismo que, a nosso ver, é sua principal
característica9. Existe um vínculo direto e contínuo entre Ockham (e, em menor escala, Duns
Escoto) e os profetas por excelência do pensamento moderno que, nos séculos XVI e XVII,
serão Lutero, Descartes, Hobbes ou Pufendorf. Propomo-nos, portanto,, a dedicar a maior
parte de nossas investigações à escolástica franciscana, a Duns Escoto e a Guilherme de
Ockham. Mas, para começar, não será inútil voltar a são Tomás e ao que também sua obra já
comporta de moderno. É muito comum ignorar-se que o tomismo foi um dos principais dados
da vida escolar dos séculos XVI e XVII. Depois de conhecer uma potente renovação na
Espanha do século XVI, e, embora mais ou menos corrompido, ter sido transmitido por
intermediários, dominará o ensino até o final do Antigo Regime, quase igualmente nos países
protestantes e no mundo católico. Portanto, o direito moderno parece dever ao tomismo sua
segunda característica: sua laicidade, sua confiança nas forças da razão humana. (…)

Capítulo III

A FILOSOFIA JURÍDICA DE GUILHERME DE OCKHAM

Salvo mais informações, o escolástico franciscano que deixou a marca mais forte na filosofia
do direito - cuja obra demarca a passagem do direito clássico para o direito moderno - é, na

42
primeira metade do século XIV, Guilherme de Ockham. Isso porque as circunstâncias
fizeram desse franciscano primeiro um filósofo e, secundariamente, um político.

(…)

ele é não só o fundador do nominalismo, que tem suas aplicações em direito assim como em
todas as coisas, mas as circunstâncias levaram-no, um franciscano, a se fazer jurista. Quando
um filósofo e um místico chega a se envolver com o direito, isso raramente ocorre sem
algumas infrações às rotinas das pessoas do ramo. E perceberemos na obra jurídica de
Ockham a eclosão, quanto às fontes do direito, do positivismo jurídico, e quanto à sua
estrutura, da noção de direito subjetivto individual.

(…)

Qual será, então, inversamente, seu ensinamento? Ockham levou ao extremo o movimento
apenas esboçado por Aristóteles contra Platão, desprezando o geral em benefício do singular.
Na interpretação de Ockham, só os indivíduos existem: só Pedro, Paulo, aquela árvore, aquele
bloco de pedra são reais, só eles constituem "substâncias" Quanto ao "homem", quanto ao
vegetal ou ao mineral, isso não existe, e poderíamos dizer o mesmo de todas as noções gerais.
Quando hoje falo do "nominalismo", por exemplo, acabo por tomar, por excesso de
intelectualismo, essa palavra por uma realidade; mas, na verdade, não existe "nominalismo"
- apenas esse ou aquele filósofo dito nominalista, Ockham, Gregório de Rimini ou Gabriel
Biel. Não existe "filosofia moderna" - tão-somente esses filósofos ditos modernos, cada um
tomado individualmente, Hobbes, Descartes, Espinosa ou Locke. Não existe realmente uma
"ordem franciscana" mas, dispersos pela Europa, frades franciscanos. Este último exemplo é
dado pelo próprio Ockham, em polêmica, como veremos, com o papa João XXII. Outro
exemplo, tomado do domínio das "relações": não existe paternidade. Como poderia existir a
paternidade, sem pai e sem filho? Há apenas pais e filhos e, mais precisamente ainda, esses
pais e esses filhos. Não há natureza das coisas, natureza do homem, formas comuns, causas
finais57. Só possuem existência real esses indivíduos singulares, de que, de resto (tese
franciscana já encontrada em Duns Escoto) nos é dado um conhecimento imediato e intuitivo,
e que designamos por rfteio desses signos que são os nomes próprios.

(…)

43
Ora, assim como suscita uma crise no seio da teologia, e, no longo prazo, renova os métodos
das ciências, o nominalismo também viria a invadir o direito. Ele significa o abandono do
direito natural, ou seja, do método que presidira, a nosso ver, à constituição da ciência jurídica
romana e que a escolástica humanista acabava precisamente de restaurar no direito erudito
da Idade Média - método que tomava como ponto de partida para a descoberta das soluções
jurídicas a observação da Natureza e da ordem que dela emana. Õ nominalismo, ao contrário,
habitua a pensar todas as coisas a partir do indivíduo: o indivíduo (não mais a relação entre
vários indivíduos) toma-se o centro de interesse da ciência do direito; o esforço da ciência
jurídica tenderá doravante a descrever as qualidades jurídicas do indivíduo, a extensão de
suas faculdades, de seus direitos individuais. E, quanto às normas jurídicas, não podendo
mais extraí-las da própria ordem que antes se acreditava ler na Natureza, será preciso buscar
sua origem exclusivamente nas vontades positivas dos indivíduos: o positivismo jurídico é
filho do nominalismo. Todas as características essenciais do pensamento jurídico moderno
já estão contidas em potência no nominalismo.

Embora, como veremos, essas conseqüências já estejam presentes em Ockham, só penetrarão


o conjunto da ciência jurídica no longo prazo. (Da mesma forma que as ciências positivas
experimentais só se desenvolverão plenamente no século XVII, três séculos após a eclosão
do nominalismo.) Os novos métodos lógicos e a nova visão de mundo que a filosofia de
Ockham introduziu na Escola ainda terão de avançar lentamente na educação dos estudiosos
assim como na dos juristas. Mas a estrutura do direito moderno só se explica remontando a
essa fonte, a essas premissas metafísicas elaboradas pelas escolas do auge da Idade Média.
Sua lógica, sua metafísica, embora transmitidas ao direito apenas de modo lento e indireto,
são portanto a principal contribuição de Ockham para a história do direito. (É verdade que se
Ockham não tivesse instaurado o nominalismo, outros sem dúvida o teriam descoberto na
mesma época - pois tais revoluções não são o feito de um só homem.)

5- Padre António Vieira e a defesa dos índios

Sermão de Santo Antonio

44
Pregado em S. Luís do Maranhão, três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino.

Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.

IV

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora
as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira
cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande
escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros,
senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os
pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os
grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai
como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti
sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças,
vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da
razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos
cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo
Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-
lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero
que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os
olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar.
Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito
mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes
aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes
aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os
homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo
tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os
testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos
órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer;
come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe
dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe

45
tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não
comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e
menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade,
considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava
Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me
perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha
carne?» Quereis ver um Job destes?

Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai
quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão,
come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha,
come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que
os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e
morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.

6- O surgimento do conceito de direito subjetivo moderno

Hobbes,

CAPÍTULO XIV

Da primeira e Segunda leis naturais, e dos contratos

O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que
cada homem possui de usai seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de
sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu
próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.

46
Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de
impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um
tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o
que seu julgamento e razão lhe ditarem

47
6ª Aula

Maquiavel e a secularização do poder político

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 136-143

1. Maquiavel – O Príncipe: a “nova ciência da política”

48
49
50
Tópicos
- A rutura de Maquiavel relativamente à ciência política antiga caracterizada pela
procura do melhor regime
- O realismo político: a criação e preservação do Estado acima da justiça política
- A “lei da necessidade”: os fins justificam os meios
- O poder executivo

51
7ª Aula
A instituição do Estado moderno e o conceito de soberania

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 164-170

1. Da instituição do Estado moderno: como surge o Estado?

Hobbes, Leviathan

“A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente
para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver
satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens,
que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que
equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de
suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à

paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante,
e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma
verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta
assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa
se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para
falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo
no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o

52
torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e
ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do estado, a
qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante
pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela
poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurara paz e a defesa comum.

Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder
soberano. Todos os restantes são súditos.

2. Os direitos da soberania

HOBBES

CAPÍTULO XVIII
Dos direitos dos soberanos por instituição

Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordam e pactuam,
cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembleia de homens a quem
seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu
representante ), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram
contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões desse homem ou assembleia de homens,
tal como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outro
e serem protegidos dos restantes homens.
É desta instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele ou aqueles
a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do povo reunido.

Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que não se encontram
obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual. Consequentemente,
aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como
seus os atos e decisões de alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto
no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que estão
submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à monarquia, voltando à,.
confusão de uma multidão desunida, nem transferir sua pessoa daquele que dela i é portador
para outro homem, ou outra assembleia de homens. Pois são obrigados, cada homem perante
cada homem, a reconhecer e a ser considerados autores de tudo quanto aquele que já é seu
soberano fizer e considerar bom fazer. Assim, a dissensão de alguém levaria todos os

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restantes a romper o pacto feito com esse alguém, o que constitui injustiça. Por outro lado,
cada homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o
depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça. Além do mais,
se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele castigado devido a essa
tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição é autor de tudo quanto
seu soberano fizer. E, dado que constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser
castigado por sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto. E quando
alguns homens, desobedecendo a seu soberano, pretendem ter celebrado um novo pacto, não
com homens, mas com Deus, também isto é injusto, pois não há pacto com Deus a não ser
através da mediação de alguém que represente a pessoa de Deus, e ninguém o faz a não ser
o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania abaixo de Deus. E esta pretensão de um
pacto com Deus é uma mentira tão evidente, mesmo perante a própria consciência de quem
tal pretende, que não constitui apenas um ato injusto, mas também um ato próprio de um
caráter vil e inumano.
Em segundo lugar, dado que o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é
tornado soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não entre
o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto da parte do soberano,
portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração.
É evidente que quem é tornado soberano não faz antecipadamente qualquer pacto com seus
súditos, porque iria ou que celebrá-lo com toda a multidão, na qualidade de parte do pacto,
ou que celebrar diversos pactos, um com cada um deles. Com o todo, na qualidade que parte,
é impossível, porque nesse momento eles ainda não constituem uma pessoa. E se fizer tantos
pactos quantos forem os homens, depois de ele receber a soberania esses pactos serão nulos,
pois qualquer ato que possa ser apresentado por um deles como rompimento do pacto será
um ato praticado tanto por ele mesmo como por todos os outros, porque será um ato praticado
na pessoa e pelo direito de cada um deles em particular. Além disso, se algum ou mais de um
deles pretender que houve infração do pacto feito pelo soberano quando de sua instituição, e
outros ou um só de seus súditos, ou mesmo apenas ele próprio, pretender que não houve tal
infração, não haverá nesse caso qualquer juiz capaz de decidir a controvérsia. Volta portanto
a ser a força a decidir, e cada um recupera o direito de se defender por seus próprios meios,
contrariamente à intenção que o levara àquela instituição. Portanto é inútil pretender conferir
a soberania através de um pacto anterior. A opinião segundo a qual o monarca recebe de um
pacto seu poder, quer dizer, sob certas condições, deriva de não se compreender esta simples
verdade: que os pactos, não passando de palavras e vento, não têm qualquer força para
obrigar, dominar, constranger ou proteger ninguém, a não ser a que deriva da espada pública.
Ou seja, das mãos livres e sem peias daquele homem, ou assembleia de homens, que detém
a soberania, cujas ações são garantidas por todos, e realizadas pela força de todos os que nele
se encontram unidos. Quando se confere a soberania a uma assembleia de homens, ninguém
deve imaginar que um tal pacto faça parte da instituição. Pois ninguém é suficientemente tolo
para dizer, por exemplo, que o povo de Roma fez um pacto com os romanos para deter a
soberania sob tais e tais condições, as quais, quando não cumpridas, dariam aos romanos o

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direito de depor o povo de Roma. O fato de os homens não verem a razão para que se passe
o mesmo numa monarquia e num governo popular deriva da ambição de alguns, que vêem
com mais simpatia o governo de uma assembleia, da qual podem ter a esperança de vir a
participar, do que o de uma monarquia, da qual é impossível esperarem desfrutar.
Em terceiro lugar, se a maioria, por voto de consentimento, escolher um soberano, os que
tiverem discordado devem passar a consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem
aceitar reconhecer todos os ates que ele venha a praticar, ou então serem justamente
destruídos pelos restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que
constituíam a assembleia, declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e portanto
tacitamente fez um pacto? de se conformar ao que a maioria decidir.
Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus decretos, age
contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça parte da congregação, quer não
faça, e quer seu consentimento seja pedido, quer não seja, ou terá que submeter-se a seus
decretos ou será deixado na condição de guerra em que antes se encontrava. e na qual pode,
sem injustiça, ser destruído por qualquer um.
Em quarto lugar, dado que todo súdito é por instituição autor de todos os atos e decisões do
soberano instituído, segue-se que nada do que este faça pode ser considerado injúria para
com qualquer de seus súditos, e que nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz
alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em
virtude de cuja autoridade está agindo. Por esta instituição de um Estado, cada indivíduo é
autor de tudo quanto o soberano fizer, por conseqüência aquele que se queixar de uma injúria
feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não
deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio de injúria, pois
causar injúria a cometer injustiça nem injúria em sentido próprio.
Em quinto lugar, e em conseqüência do que foi dito por último, aquele que detém o poder
soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira pode ser punido por
seus súditos. Dado que cada súdito é autor dos ato, de seu soberano, cada um estaria
castigando outrem pelos atos cometidos por si mesmo. Visto que o fim dessa instituição é a
paz e a defesa de todos, e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios, constitui
direito de qualquer homem ou assembleia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos
meios para a paz e a defesa quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas.
E o de fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto antecipadamente, para a
preservação da paz e da segurança, mediante a prevenção da discórdia no interior e da
hostilidade vinda do exterior, quanto também,
depois de perdidas a paz e a segurança, para a recuperação de ambas. E, em conseqüência.
Em sexto lugar, compete à soberania ser juiz de quais as opiniões e doutrinas que são
contrárias à paz, e quais as que lhe são propícias. E, em conseqüência, de em que ocasiões,
até que ponto e o que se deve conceder àqueles que falam a multidões de pessoas, e de quem
deve examinar as doutrinas de todos os livros antes de serem publicados. Pois as ações dos
homens derivam de suas opiniões, e é no bom governo das opiniões que consiste o bom
governo das ações dos homens, tendo em vista a paz e a concórdia entre eles. E, embora em

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matéria de doutrina não se deva olhar a nada senão à verdade, nada se opõe à regulação da
mesma em função da paz. Pois uma doutrina contrária à paz não pode ser verdadeira, tal
como a paz e a concórdia não podem ser contrárias à lei da natureza. É certo que, num Estado
onde, devido à negligência ou incapacidade dos governantes e dos mestres, venham a ser
geralmente aceites falsas doutrinas, as verdades contrárias podem ser geralmente ofensivas.
Mas mesmo a mais brusca e repentina irrupção de uma nova verdade nunca vem quebrantar
a paz: pode apenas às vezes despertar a guerra. Porque aqueles que são tão desleixadamente
governados que chegam a ousar pegar em armas para defender ou impor uma opinião, esses
se encontram ainda em condição de guerra. Sua situação não é a paz, mas apenas uma
suspensão de hostilidades por medo uns aos outros. É como se vivessem continuamente num
prelúdio de batalha. Portanto compete ao detentor do poder soberano ser o juiz, ou constituir
todos os juízes de opiniões e doutrinas, como uma coisa necessária para a paz, evitando assim
a discórdia e a guerra civil.
Em sétimo lugar, pertence à soberania todo o poder de prescrever as regras através das quais
todo homem pode saber quais os bens de que pode gozar, e ais as ações que pode praticar,
sem ser molestado por qualquer de seus concidadãos: é a isto que os homens chamam
propriedade. Porque antes da constitui) do poder soberano (conforme já foi mostrado) todos
os homens tinham direito todas as coisas, o que necessariamente provocava a guerra. Portanto
esta propriedade, dado que é necessária à paz e depende do poder soberano, é um ato ,se
poder, tendo em vista a paz pública. Essas regras da propriedade (ou meum e tuum), tal como
o bom e o mau, ou o legítimo e o ilegítimo nas ações dos súditos, são as leis civis. Quer dizer,
as leis de cada Estado em particular, embora hoje o nome de direito civil se aplique apenas
às antigas leis civis da cidade de )ma, pois sendo esta a capital de uma grande parte do mundo,
suas leis eram ,se tempo o direito civil dessa região.
Em oitavo lugar, pertence ao poder soberano a autoridade judicial, quer dizer, o direito de
ouvir e julgar todas as controvérsias que possam surgir com ,peito às leis, tanto civis quanto
naturais, ou com respeito aos fatos. Porque na decisão das controvérsias não pode haver
proteção de um súdito contra as árias de um outro. Serão em vão as leis relativas ao meum e
ao tuum. E cada homem detém, devido ao natural e necessário apetite de sua própria
conservação, o direito de proteger-se a si mesmo com sua força individual, o que é uma
condição de guerra, contrária aos fins que levaram à instituição de todo Estado.
Em nono lugar, pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com iras nações e
Estados. Quer dizer, o de decidir quando ela, a guerra, corresponde ao bem comum, e qual a
quantidade de forças que devem ser reunidas, oradas e pagas para esse fim, e de levantar
dinheiro entre os súditos, a fim de pagar suas despesas. Porque o poder mediante o qual o
povo vai ser defendido insiste em seus exércitos, e a força de um exército consiste na união
de suas forças sob um comando único. Poder que pertence, consequentemente, ao soberano,
instituído, dado que o comando da militia, na ausência de outra instituição, torna , ao
soberano aquele que o possui. Portanto, seja quem for o escolhido para general de 11 exército,
aquele que possui o poder soberano é sempre o generalíssimo.

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Em décimo lugar, compete à soberania a escolha de todos os conselheiros, ministros,
magistrados e funcionários, tanto na paz como na guerra. Dado que o soberano está
encarregado dos fins, que são a paz e a defesa comuns, entende-se que ele possui o poder
daqueles meios que considerar mais adequados para seu propósito. (…)

Tópicos

• O poder do Estado = poder soberano é uno, indivisível e irrenunciável e destina-se a


garantir a segurança do povo.
• Sem os direitos essenciais da soberania, cada indivíduo retorna ao estado da natureza da
guerra contra os outros.
HOBBES contra a tese de Aristóteles/São Tomás de que o homem é um animal social
e político.
Estado de natureza ---→ Estado de sociedade
• Os poderes do Estado (representar, fazer leis, autoridade judicial, defender) são
atributos da soberania

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8ª Aula

Governo limitado, liberalismo e direitos naturais

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 179-203 e 250-255

3. Do Estado de segurança de Hobbes ao Estado de propriedade de Locke – os fins


do governo

Objeto do direito de propriedade

§. 27. Apesar da terra e de todas as criaturas inferiores serem propriedade


comum de toda a humanidade, cada homem é proprietário da sua própria
pessoa, sobre a qual mais ninguém detém direito algum. O trabalho do seu
corpo e o labor das suas mãos são seus, há que o reconhecer.
Ora, para que um homem possa colher alguma coisa, retirando-a daquele
estado em que a natureza a havia colocado, necessita de exercer sobre ela o
seu eiforço, de lhe adicionar algo de seu, nomeadamente o seu trabalho. E é
por esta via que a transforma em propriedade sua.

Os fins da sociedade política e do governo

§. 123. Se no estado de natureza o homem é tão livre como se afirmou, perguntar-


me-ão se é senhor absoluto da sua própria pessoa e dos seus bens, igual ao mais
insigne, e súbdito de ninguém, então por que razão renunciará à sua liberdade?
Por que razão cederá o seu império e se submeterá ao domínio e ao controlo de
outro poder qualquer? A resposta a estas questões é óbvia. No estado de natureza

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o homem possui, de facto, um tal direito, contudo, o seu exercício é
extremamente incerto, uma vez que está constantemente exposto à invasão dos
outros. Todos são reis, tanto quanto ele, e cada homem é o seu igual.
Ora, a verdade é que, na sua maioria, os homens não são exactamente
cumpridores escrupulosos da equidade e da justiça, daí que o usufruto da
propriedade de que dispõem num tal estado de natureza seja bastante perigoso e
sem garantia. É isto que os leva a abandonar aquela condição que, apesar de
marcada pela liberdade, está repleta de medos e de perigos contínuos. E não é
sem razão que um homem procura e deseja unir-se a outros em sociedade,
quer estes já se encontrem assim organizados, quer estejam resolvidos a unirem-
se com vista à preservação mútua das suas vidas, das suas liberdades e dos seus
bens, a que me tenho vindo a referir com o nome genérico de propriedade.

§. 124. Portanto, o grande e principal fim que conduziu à união dos homens em
sociedade e à sua submissão a um governo, foi a preservação das suas
propriedades. Tarefa para a qual o estado de natureza se apresentava
profundamente inadequado em muitos aspectos.

§. 127. Assim, e não obstante todos os privilégios que o estado de natureza


apresenta, enquanto os homens nele permanecerem, encontrar-se-ão numa
condição muito má, razão pela qual se vêem rapidamente impelidos para se
organizarem em sociedade. Daí ser muito raro encontrar homens capazes de viver
em conjunto num tal estado durante algum tempo. As inconveniências a que nele
se encontram expostos, decorrentes do exercício irregular e incerto do poder que
cada homem possui para castigar as transgressões dos outros, leva-os a procurar
asilo debaixo da alçada das leis estabelecidas pelos governos, e a nelas lograr a
preservação das suas propriedades. Eis a razão por que cada um deles abdica
voluntariamente do seu poder singular de punição, que passará a ser exercido
exclusivamente por aquele que for eleito de entre todos com esta finalidade.
Tarefa que passará, então, a desempenhar de acordo com as regras que vierem a
ser estabelecidas para o efeito pela comunidade, ou por aqueles que forem por

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ela indigitados para as definir. Aqui temos o direito originário e o surgimento
inicial dos poderes legislativo e executivo, bem como dos próprios governos e
das sociedades.

Tópicos

- As diferenças entre Locke e Hobbes na justificação do nascimento da sociedade


política
- O direito de propriedade em Locke
- Os fins do poder político e a justificação do Estado

2 – O consentimento – o Estado liberal será um Estado de “proprietários”

§. 138. Terceiro. O poder supremo não pode deitar a mão a qualquer parcela
da propriedade de um homem sem o seu próprio consentimento. A
preservação da propriedade constitui a finalidade do governo e a razão pela
qual os homens se integram em sociedade, o que necessariamente pressupõe
e exige que tenham propriedade. De outro modo, ter-se-ia de supor que, no
momento em que se unem em sociedade, perdem exactamente aquilo cuja
preservação os levou a aderir a ela, o que seria um absurdo grande demais
para ser aceite por quem quer que seja. Por isso, uma vez que se reúnem em
sociedade com as suas propriedades, os homens adquirem um direito sobre
os seus bens, tal como definido pelas leis da comunidade. Um direito que
ninguém lhes poderá retirar, ainda que parcialmente, sem o seu
consentimento. Aliás, se tal não fosse o caso, não teriam propriedade alguma.
Em boa verdade, nunca posso considerar como sendo meu aquilo que alguém
tiver o direito de tomar, quando entender, mesmo contra a minha vontade. Daí
ser um erro pensar que o poder legislativo ou supremo de uma comunidade

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política pode fazer o que entender, dispor dos bens dos seus súbditos de forma
arbitrária, ou apropriar-se de qualquer parte deles a seu bel-prazer. Ora, não
é muito de temer que isto venha a acontecer em governos nos quais o poder
legislativo está situado, no todo ou em parte, em assembleias, cuja
composição varia com o tempo e que, quando são dissolvidas, os seus
membros cessam funções e regressam à condição de súbditos iguais a todos
os outros perante a lei comum do seu país. Pelo contrário, no caso de governos
onde o poder legislativo se encontra atribuído a uma assembleia composta
sempre pelos mesmos membros, ou a um só homem, como nas monarquias
absolutas, por exemplo, persiste o perigo real de que os membros permanentes
dessa assembleia, ou o homem singular que comandar um tal poder, venham
a considerar que possuem interesses privativos, distintos daqueles que o resto
da comunidade apresenta, circunstância em que se sentirão inclinados a
aumentar as suas fortunas e o seu poder, a expensas do povo, extorquindo-
lhe o que entenderem. Com efeito, a propriedade de um homem jamais estará
assegurada, mesmo naquelas comunidades que contarem com leis boas e
equitativas para a sua delimitação se, por acaso, aquele que as governar
detiver o poder de se apoderar das parcelas que entender da propriedade de
qualquer súbito, e de dispor delas como lhe aprouver.

§. 139. Todavia, tal como ficou demonstrado, esteja em que mãos estiver, o
governo foi constituído com esta condição e com esta finalidade,
designadamente, para que os homens pudessem ter as suas propriedades e
usufruir delas em segurança. Por isso, apesar de deterem o poder legislativo,
de adoptarem leis para a regulamentação da propriedade dos seus súbditos
nas suas inter-relações mútuas, o príncipe ou o senado jamais poderão deter o
poder de tomar para si, no todo ou em parte, a propriedade de qualquer um
deles sem o seu consentimento.

Tópicos:

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• Somente através do consentimento individual de cada um os homens podem ser
colocados sob o poder político de outrem – é dessa forma de se engendra a construção
do contrato de Locke. A única maneira pela qual uma pessoa pode abdicar da liberdade
natural e revestir-se dos elos da sociedade civil – juntando-se num grupo que goza de
protecção para as suas propriedades e da maior segurança contra aqueles que dela não
fazem parte.

3- Os limites do Estado

§. 142. Em todas as comunidades políticas e em qualquer forma de governo são


estes os limites do poder legislativo, decorrentes da missão que lhe foi confiada pela
sociedade e pelas leis de Deus e da natureza.
Em primeiro lugar, governar segundo leis votadas e promulgadas, que não
poderão ser alteradas em função dos casos particulares, mas, antes, constituir uma
só regra, para o rico e para o pobre, para o favorito da corte e para o camponês
no arado.
Em segundo lugar, estas leis não podem ser adoptadas para qualquer outra
finalidade que não seja, em última instância, o bem do povo.
Em terceiro lugar, não deve lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o
consentimento desse mesmo povo, expresso directamente pelos membros da
comunidade política, ou indirectamente pelos seus representantes. E, em sentido
estrito, este é um limite que se aplica apenas aos governos em que o legislativo é um
poder permanente, encontrando-se sempre em funções, ou, pelo menos, àqueles em
que o povo não reservou uma parcela deste poder para deputados eleitos
periodicamente.
E, em quarto lugar, o legislativo não deve, nem pode, traniferir para quem quer
que seja o poder de legislar que possui, ou depositá-lo em quaisquer outras mãos
que não sejam aquelas que o povo elegeu para lho entregar.

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4 – Caso prático

• Podemos dizer que, na medida em que uma sociedade liberal protege as liberdades
individuais e o direito de propriedade à custa do seu trabalho, qualquer indivíduo está
autorizado a comprar a gestação de um bebé?

63
• Podemos dizer que o direito de propriedade incluirá o direito a vender partes do seu
próprio corpo?
• Existirão limites à liberdade de disposição no mercado? Que limites serão esses?

64
9ª Aula

Os princípios do Estado Constitucional liberal

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 227-255

1- Sieyès e o poder constituinte

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Chapitre 5. Ce qu’on aurait dû faire principes à cet égard.

« En morale, rien ne peut remplacer le moyen simple et naturel. Mais plus l’homme a perdu
de temps à d’inutiles essais, plus il redoute l’idée de recommencer, comme s’il ne valait pas
toujours mieux recommencer encore une fois et finir, que de rester à la merci des événements
et des ressources factices, avec lesquelles on recommencera sans cesse sans être jamais plus
avancé. »

Dans toute nation libre, et toute nation doit être libre, il n’y a qu’une manière de terminer les
différends qui s’élèvent touchant la constitution. Ce n’est pas à des notables qu’il faut avoir
recours, c’est à la nation elle-même. Si nous manquons de constitution, il faut en faire une ;
la nation seule en a le droit. Si nous avons une constitution, comme quelques-uns s’obstinent
à le soutenir, et que par elle l’Assemblée nationale soit divisée, ainsi qu’ils le prétendent, en
trois députations de trois ordres de citoyens, on ne peut pas, du moins, s’empêcher de voir
qu’il y a de la part d’un de ces ordres une réclamation si forte qu’il est impossible de faire un
pas de plus sans la juger. Or, à qui appartient-il de décider de pareilles contestations ? On
sent bien qu’une question de cette nature ne peut paraître indifférente qu’à ceux qui, comptant
pour peu en matière sociale les moyens justes et naturels, n’estiment que ces ressources
factices, plus ou moins iniques, plus ou moins compliquées, qui font partout la réputation de
ce qu’on appelle les hommes d’État, les grands politiques. Pour nous, nous ne sortirons point
de la morale ; elle doit régler tous les rapports qui lient les hommes entre eux à leur intérêt
particulier et à leur intérêt commun ou social. C’est à elle à nous dire ce qu’on aurait dû faire,
et, après tout, il n’y a qu’elle qui puisse le dire. Il en faut toujours revenir aux principes
simples, comme plus puissants que tous les efforts du génie.

Jamais on ne comprendra le mécanisme social, si l’on ne prend pas le parti d’analyser une
société comme une machine ordinaire, d’en considérer séparément chaque partie, et de les
rejoindre ensuite, en esprit, toutes l’une après l’autre, afin d’en saisir les accords et d’entendre
l’harmonie générale qui en doit résulter. Nous n’avons pas besoin, ici, d’entrer dans un travail
aussi étendu. Mais puisqu’il faut toujours être clair et qu’on ne l’est point en discourant sans
principes, nous prierons au moins le lecteur de considérer dans la formation des sociétés
politiques trois époques dont la distinction préparera à des éclaircissements nécessaires.

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Dans la première, on conçoit un nombre plus ou moins considérable d’individus isolés qui
veulent se réunir. Par ce seul fait, ils forment déjà une nation ; ils en ont tous les droits ; il ne
s’agit plus que de les exercer. Cette première époque est caractérisée par le jeu des volontés
individuelles. L’association est leur ouvrage. Elles sont l’origine de tout pouvoir.

La seconde époque est caractérisée par l’action de la volonté commune. Les associés veulent
donner de la consistance à leur union ; ils veulent en remplir le but. Ils confèrent donc, et ils
conviennent entre eux des besoins publics et des moyens d’y pourvoir. On voit qu’ici le
pouvoir appartient au public. Des volontés individuelles en sont bien toujours l’origine et en
forment les éléments essentiels ; mais considérées séparément, leur pouvoir serait nul. Il ne
réside que dans l’ensemble. Il faut à la communauté une volonté commune ; sans l’unité de
volonté, elle ne parviendrait point à faire un tout voulant et agissant. Certainement aussi, ce
tout n’a aucun droit qui n’appartienne à la volonté commune. Mais franchissons les
intervalles de temps. Les associés sont trop nombreux et répandus sur une surface trop
étendue pour exercer facilement eux-mêmes leur volonté commune. Que font-ils ? Ils en
détachent tout ce qui est nécessaire pour veiller et pourvoir aux soins publics, et cette portion
de volonté nationale, et par conséquent de pouvoir, ils en confient l’exercice à quelques-uns
d’entre eux. Telle est l’origine d’un gouvernement exercé par procuration. Remarquons sur
cela plusieurs vérités. 1º la communauté ne se dépouille point du droit de vouloir. C’est sa
propriété inaliénable. Elle ne peut qu’en commettre l’exercice. Ce principe est développé
ailleurs. 2º le corps des délégués ne peut pas même avoir la plénitude de cet exercice. La
communauté n’a pu lui confier de son pouvoir total que cette portion qui est nécessaire pour
maintenir le bon ordre. On ne donne point du superflu en ce genre. 3º il n’appartient donc pas
au corps des délégués de déranger les limites du pouvoir qui lui a été confié. On conçoit que
cette faculté serait contradictoire à elle-même.

Je distingue la troisième époque de la seconde, en ce que ce n’est plus la volonté commune


réelle qui agit, c’est une volonté commune représentative. Deux caractères ineffaçables lui
appartiennent ; il faut le répéter. 1º Cette volonté n’est pas pleine et illimitée dans le corps
des représentants, ce n’est qu’une portion de la grande volonté commune nationale. 2º Les
délégués ne l’exercent point comme un droit propre, c’est le droit d’autrui ; la volonté
commune n’est là qu’en commission.

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Actuellement, je laisse une foule de réflexions auxquelles cet exposé nous conduirait assez
naturellement, et je marche à mon but. Il s’agit de savoir ce qu’on doit entendre par la
constitution politique d’une société, et de remarquer ses justes rapports avec la nation elle-
même. Il est impossible de créer un corps pour une fin, sans lui donner une organisation, des
formes et des lois propres à lui faire remplir les fonctions auxquelles on a voulu le destiner.
C’est ce qu’on appelle la constitution de ce corps. Il est évident qu’il ne peut pas exister sans
elle. Il l’est donc aussi, que tout gouvernement commis doit avoir sa constitution ; et ce qui
est vrai du gouvernement en général l’est aussi de toutes les parties qui le composent.

Ainsi le corps des représentants, à qui est confié le pouvoir législatif ou l’exercice de la
volonté commune, n’existe qu’avec la manière d’être que la nation a voulu lui donner. Il n’est
rien sans ses formes constitutives ; il n’agit, il ne se dirige, il ne se commande que par elles.
À cette nécessité d’organiser le corps du gouvernement, si on veut qu’il existe ou qu’il agisse,
il faut ajouter l’intérêt qu’a la nation à ce que le pouvoir public délégué ne puisse jamais
devenir nuisible à ses commettants. De là, une multitude de précautions politiques qu’on a
mêlées à la constitution, et qui sont autant de règles essentielles au gouvernement, sans
lesquelles l’exercice du pouvoir deviendrait illégal. On sent donc la double nécessité de
soumettre le gouvernement à des formes certaines, soit intérieures, soit extérieures, qui
garantissent son aptitude à la fin pour laquelle il est établi et son impuissance à s’en écarter.

Mais qu’on nous dise d’après quelles vues, d’après quel intérêt on aurait pu donner une
constitution à la nation elle-même. La nation existe avant tout, elle est l’origine de tout. Sa
volonté est toujours légale, elle est la loi elle-même. Avant elle et au-dessus d’elle il n’y a
que le droit naturel. Si nous voulons nous former une idée juste de la suite des lois positives
qui ne peuvent émaner que de sa volonté, nous voyons en première ligne les lois
constitutionnelles, qui se divisent en deux parties : les unes règlent l’organisation et les
fonctions du corps législatif : les autres déterminent l’organisation et les fonctions des
différents corps actifs. Ces lois sont dites fondamentales, non pas en ce sens qu’elles puissent
devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce que les corps qui existent et
agissent par elles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie, la constitution n’est pas
l’ouvrage du pouvoir constitué, mais du pouvoir constituant. Aucune sorte de pouvoir
délégué ne peut rien changer aux conditions de sa délégation. C’est en ce sens que les lois
constitutionnelles sont fondamentales. Les premières, celles qui établissent la législature,

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sont fondées par la volonté nationale avant toute constitution ; elles en forment le premier
degré. Les secondes doivent être établies par une volonté représentative spéciale. Ainsi toutes
les parties du gouvernement se répondent et dépendent en dernière analyse de la nation. Nous
n’offrons ici qu’une idée fugitive, mais elle est exacte.

2- Caso prático

Suponha que é aprovada uma lei sobre o estatuto e funcionamento dos órgãos de soberania que
vem consagrar as seguintes regras:

§1: “O Parlamento reúne unicamente à porta fechada”.

§2: “Só os cidadãos maiores de 60 anos podem candidatar-se ao cargo de Presidente da


República”.

§3: “Enquanto estiverem em funções e dado que encarnam a vontade do Estado, os membros
do poder executivo não poderão ser acusados da prática de qualquer crime”.

Relativamente a cada regra da lei em causa, pergunta-se:

a) Quais os problemas jurídicos subjacentes?

b) Quais os autores que permitiriam justificar e contestar a regra §3?

69
10ª Aula

Constitucionalismo britânico

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 175-178, 229-232 e 268-272

1- O desenvolvimento dos Parlamentos modernos

• Os pré-parlamentos: assembleias medievais, assembleias estamentais, não eram


parlamentos modernos: estrutura feudal da sociedade, monarquias centralizadas

• Parlamento inglês: Magna Carta, King in Parliament


• Três condições para os parlamentos modernos:

1- O soberano encontrar-se diante de um órgão colegial representativo: contraparte do soberano

2- Esta autoridade representativa seja bastante extensa para permitir ao Parlamento falar em
nome e por conta dos interesses do reino no seu conjunto: interlocutor do soberano

3- A autoridade do parlamento consiga tornar-se ela própria soberana.

2- As características da Constituição inglesa

Edmund Burke, “Reflexões sobre a Revolução em França”

(….)

O Senhor há-de reparar que, desde a Magna Carta à Declaração de Direito, foi política
invariável da nossa Constituição reivindicar e afirmar as nossas liberdades como uma
herança que nos vem dos nossos antepassados, para ser transmitida à nossa descendência, -
como uma propriedade que especialmente pertencesse ao povo deste reino, sem qualquer
referência a outro direito mais geral ou mais antigo. Por este meio, a nossa Constituição

70
preserva a unidade na grande diversidade de todas as suas partes. Temos uma coroa
hereditária, uns pares hereditários, e uma Câmara dos Comuns e um povo que herda
privilégios, direitos e liberdades desde há uma longa linhagem de antepassados.

Esta política parece-me ser o resultado de uma profunda reflexão - ou antes, o feliz efeito de
seguir a Natureza, que é sabedoria sem reflexão e acima dela. Um espírito de inovação é
geralmente o resultado de um temperamento egoísta e de vistas curtas. Não cuidará da
posteridade quem não olhou nunca para os seus antepassados.

Além disso, o povo de Inglaterra sabe bem que a ideia de hereditariedade proporciona um
princípio seguro de conservação, e um princípio seguro de transmissão, sem de modo algum
excluir um princípio de aperfeiçoamento. Deixa a aquisição livre, mas assegura o que
adquire. quaisquer vantagens obtidas por um Estado, actuando segundo estas máximas,
depressa se vêem envolvidas numa espécie de contrato familiar, seguras numa espécie de
bem de mão-morta para sempre. Através de uma política constitucional que opera segundo o
modelo da Natureza, recebemos, mantemos e transmitimos o nosso governo e os nossos
privilégios, do mesmo modo que usufruímos da nossa propriedade e das nossas vidas.
Recebemos

e legamos a outros do mesmo modo e pela mesma ordem as instituições políticas, as riquezas
e as dádivas da Providência. O nosso sistema político está colocado numa justa
correspondência e simetria com a ordem do mundo e com o modo de existência destinado a
um corpo permanente composto de partes transitórias:

pela disposição de uma sabedoria extraordinária, que preside ao grande mistério da unidade
da raça humana, o todo, num dado momento, nunca é velho ou de meia idade ou novo mas,
numa condição de imutável constância, move-se segundo o curso diverso da decadência, da
queda, da renovação e do progresso perpétuos. Assim, preservando os métodos da Natureza
na condução do Estado, naquilo que modernizamos nunca seremos completamente novos e
naquilo que conservamos nunca seremos completamente obsoletos.

71
Ao aderir desta maneira e segundo estes princípios aos nossos antepassados, somos guiados,
não pela superstição saudosista, mas pelo espírito da analogia filosófica. Nesta escolha do
que é herdado,

demos ao contexto político a figura de uma relação de família: ligando a Constituição do


nosso país com os laços domésticos mais queridos, seguindo as nossas leis fundamentais no
seio dos nossos afectos familiares, mantendo inseparáveis e alimentados com o calor da sua
benevolência mútua e conjunta, o nosso Estado, os nossos lares, os nossos sepulcros e os
nossos altares.

3 – A Constituição inglesa - A Constituição como convenção

Burke, Reflexões sobre a Revolução em França

Se a sociedade civil é o fruto de uma convenção, esta convenção deve ser a sua lei. Essa
convenção deve limitar e modificar todos os tipos de constituição formada sob a sua alçada.
Todo o tipo de poder - legislativo, judicial ou executivo - é criatura sua. Nenhum deles pode
ter existência em qualquer outro estado de coisas. Como é que um homem pode reclamar,
sob a convenção da sociedade civil, direitos que nem sequer supõem a sua existência e que
são absolutamente incompatíveis com ela? Um dos primeiros motivos para a existência da
sociedade civil, e que se torna uma das suas principais regras, é: nenhum homem deverá ser
juiz em causa própria. Por causa disto cada pessoa se despojou a si própria do primeiro direito
fundamental dos que não são membros de nenhuma sociedade o qual é: julgar por si próprio
e defender a sua própria causa. Abdica de todo o direito de se governar a si próprio, e
inclusivamente, em grande medida, abandona o direito à autodefesa, a primeira lei da
natureza. Os homens não podem usufruir ao mesmo tempo dos direitos próprios de quem
vive em sociedade e dos direitos de um estado não civil. Para que possa obter justiça, ele
abdica do seu direito de determinar o que é a este propósito mais essencial para ele.

72
Com o fim de assegurar alguma liberdade, ele entrega à guarda da Sociedade a totalidade
dela. O governo não foi criado em virtude dos direitos naturais, os quais podem e devem
existir em total independência dele, e existem na maior clareza, e num maior grau de
perfeição abstracta: mas a sua perfeição abstracta é o seu defeito prático. Por terem direito a
tudo, eles querem tudo. O governo é uma invenção da sabedoria humana para prover às
necessidades humanas. Os homens têm direito a que estas necessidades sejam satisfeitas por
esta sabedoria. Entre estas necessidades conta-se a necessidade, que nasce da sociedade civil,
de uma suficiente restrição das paixões. A sociedade requer não só que as paixões dos
indivíduos sejam refreadas, mas também no conjunto da sociedade, assim bem como nos
indivíduos, que as inclinações dos homens devam ser frequentemente contrariadas, a sua
vontade controlada e as suas paixões domadas. Isto apenas pode ser feito por um poder fora
deles mesmos e que não esteja, no exercício desta função, sujeito à vontade e às paixões que
é sua função refrear e submeter. Neste sentido, devem contar-se entre os direitos do homem
não só as suas liberdades, mas também as suas restrições.

3- Parlamentarismo:

1. O Executivo/Governo forma-se a partir do Parlamento: de certo modo, o Parlamento


“escolhe” o Governo
2. Parlamento legisla e controla a legislação governamental
3. Parlamento fiscaliza a atividade do poder executivo/governativo
4. Parlamento tem o poder de demitir o Governo (moção de censura e moção de
confiança)

73
11ª Aula

Constitucionalismo francês

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 198-201, 233-237, 240-246, 262-265

1 – O Contrato Social, de Rousseau: a lei como expressão da vontade geral

CAPÍTULO I

A soberania é inalienável

A primeira e mais importante consequência dos princípios acima estabelecidos é que somente
a vontade geral pode, por si só, dirigir as forças do Estado, de acordo com o objectivo da sua
instituição, que é o bem comum; porque, se a oposição dos interesses particulares tornou
necessário o estabelecimento das sociedades, sem a concordância desses mesmos interesses,
ela não teria sido possível. É o que há de comum nos diferentes interesses que constituem o
vínculo social, pois, se não houvesse um ponto em que todos estivessem de acordo, nenhuma
sociedade poderia existir.

Ora, é unicamente sobre este interesse comum que a sociedade deve ser governada. Assim,
afirmo que a soberania, sendo o exercício da vontade geral, nunca pode alienar-se, e que o
soberano, que é um ser colectivo, só por si próprio pode ser representado: o poder pode
transmitir-se, mas não a vontade. De facto, uma vontade particular pode concordar num ponto
qualquer com a vontade geral, mas nunca este acordo será duradouro e constante; porque a
vontade particular, pela sua natureza, tende para a preferência e a vontade geral, para a
igualdade.

74
(…)

CAPÍTULO II

A soberania é indivisível

A soberania, pelo facto de ser inalienável, é também indivisível, porque a vontade, ou é geral,
ou não o é; ou é a de todo o povo, ou apenas a de uma parte. No primeiro caso, declarada esta
vontade, trata-se de um acto de soberania e faz lei; no segundo, é simplesmente uma vontade
particular, um acto de magistratura ou, quando muito, um decreto

CAPÍTULO IV

Limites do poder soberano

Se o Estado ou a cidade é uma entidade moral, cuja vida consiste na união dos seus membros,
e se o mais importante dos seus cuidados é o da sua própria conservação, tem de existir uma
força universal e compulsiva que mova e disponha cada parte da maneira mais conveniente
para o todo.

Tal como a natureza concedeu ao homem um poder absoluto sobre todos os seus membros,
assim o pacto social transmite ao político um poder absoluto sobre todos os seus; e é este
mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, toma, como já o disse, o nome de soberania.

A Declaração de Direitos - França

1. Declaração de direitos do homem e do cidadão - 1789

França, 26 de agosto de 1789.

75
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, tendo em vista que a
ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos
males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos
naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente
em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus
deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a
qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso
mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em
princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à
felicidade geral.

Em razão disto, a Assembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser
Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:

Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem
fundamentar-se na utilidade comum.

76
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a
resistência à opressão.

Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação,
nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.

(…)

Art. 12º. A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública. Esta
força é, pois, instituída para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem
é confiada.

Art. 13º. Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é


indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo
com suas possibilidades.

Art. 14º. Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da
necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e
de lhe fixar a repartição, a coleta, a cobrança e a duração.

Art. 15º. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua
administração.

Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida
a separação dos poderes não tem Constituição.

Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser
privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob
condição de justa e prévia indenização.

In Textos Básicos sobre Derechos Humanos.


Madrid. Universidad Complutense, 1973, traduzido do espanhol por Marcus Cláudio Acqua
Viva. APUD.

FERREIRA Filho, Manoel G. et. alli. Liberdades Públicas


São Paulo, Ed. Saraiva, 1978.

77
12ª Aula

Constitucionalismo americano

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 227-229, 237-240, 255-262, 272-278

1- As origens da Constituição americana

A DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

[ Versão portuguesa ]

Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo dissolver


os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual
e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno
para com as opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa
separação.

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são
criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão
a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos,
governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento
dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins,
cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais
princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para
realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se
mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim
sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto
os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram.

78
Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo
objecto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem
como o dever, de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança.
Tal tem sido o sofrimento paciente destas colónias e tal agora a necessidade que as força a
alterar os sistemas anteriores de governo. A história do actual Rei da Grã-Bretanha compõe-
se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todos por objectivo directo o estabelecimento da
tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os factos a um
mundo cândido.

Recusou assentimento a leis das mais salutares e necessárias ao bem público.

Proibiu aos governadores a promulgação de leis de importância imediata e urgente, a menos


que a aplicação fosse suspensa até que se obtivesse o seu assentimento, e , uma vez suspensas,
deixou inteiramente de dispensar-lhes atenção.

Recusou promulgar outras leis para o bem-estar de grandes distritos de povo, a menos que
abandonassem o direito de representação no legislativo, direito inestimável para eles e
temível apenas para os tiranos.

Convocou os corpos legislativos a lugares não usuais, sem conforto e distantes dos locais em
que se encontram os arquivos públicos, com o único fito de arrancar-lhes, pela fadiga, o
assentimento às medidas que lhe conviessem.

Dissolveu Câmaras de Representantes repetidamente porque se opunham com máscula


firmeza às invasões dos direitos do povo.

Recusou por muito tempo, depois de tais dissoluções, fazer com que outros fossem eleitos;
em virtude do que os poderes legislativos incapazes de aniquilação voltaram ao povo em
geral para que os exercesse; ficando durante esse tempo o Estado exposto a todos os perigos
de invasão externa ou convulsão interna.

Procurou impedir o povoamento destes estados, obstruindo para esse fim as leis de
naturalização de estrangeiros, recusando promulgar outras que animassem as migrações para
cá e complicando as condições para novas apropriações de terras.

79
Dificultou a administração da justiça pela recusa de assentimento a leis que estabeleciam
poderes judiciários.

Tornou os juízes dependentes apenas da vontade dele para gozo do cargo e valor e pagamento
dos respectivos salários.

Criou uma multidão de novos cargos e para eles enviou enxames de funcionários para
perseguir o povo e devorar-nos a substância.

Manteve entre nós, em tempo de paz, exércitos permanentes sem o consentimento dos nossos
corpos legislativos.

Tentou tornar o militar independente do poder civil e a ele superior.

Combinou com outros sujeitar-nos a uma jurisdição estranha à nossa Constituição e não
reconhecida pelas nossas leis, dando assentimento aos seus actos de pretensa legislação:

para aquartelar grandes corpos de tropas entre nós;

para protegê-las por meio de julgamentos simulados, de punição por assassinatos que
viessem a cometer contra os habitantes destes estados;

para fazer cessar o nosso comércio com todas as partes do mundo;

por lançar impostos sem nosso consentimento;

por privar-nos, em muitos casos, dos benefícios do julgamento pelo júri;

por transportar-nos por mar para julgamento por pretensas ofensas;

por abolir o sistema livre de leis inglesas em província vizinha, aí estabelecendo governo
arbitrário e ampliando-lhe os limites, de sorte a torná-lo, de imediato, exemplo e instrumento
apropriado para a introdução do mesmo domínio absoluto nestas colónias;

por tirar-nos nossas cartas, abolindo as nossas leis mais valiosas e alterando
fundamentalmente a forma do nosso governo;

por suspender os nossos corpos legislativos, declarando-se investido do poder de legislar para
nós em todos e quaisquer casos.

Abdicou do governo aqui por declarar-nos fora de sua protecção e fazendo-nos guerra.

80
Saqueou os nossos mares, devastou as nossas costas, incendiou as nossas cidades e destruiu
a vida do nosso povo.

Está, agora mesmo, a transportar grandes exércitos de mercenários estrangeiros para


completar a obra de morte, desolação e tirania, já iniciada em circunstâncias de crueldade e
perfídia raramente igualadas nas idades mais bárbaras e totalmente indignas do chefe de uma
nação civilizada.

Obrigou os nossos concidadãos aprisionados no mar alto a tomarem armas contra a própria
pátria, para que se tornassem algozes dos amigos e irmãos ou para que caíssem em suas mãos.

Provocou insurreições internas entre nós e procurou trazer contra os habitantes das fronteiras
os índios selvagens e impiedosos, cuja regra sabida de guerra é a destruição sem distinção de
idade, sexo e condições.

Em cada fase dessas opressões solicitamos reparação nos termos mais humildes;
responderam a nossas petições apenas com repetido agravo. Um príncipe cujo carácter se
assinala deste modo por todos os actos capazes de definir um tirano não está em condições
de governar um povo livre.

Tão-pouco deixamos de chamar a atenção de nossos irmãos britânicos. De tempos em


tempos, os advertimos sobre as tentativas do Legislativo deles de estender sobre nós uma
jurisdição insustentável. Lembramos-lhes das circunstâncias de nossa migração e
estabelecimento aqui. Apelamos para a justiça natural e para a magnanimidade,
e conjuramo-los, pelos laços de nosso parentesco comum, a repudiarem essas usurpações
que interromperiam, inevitavelmente, nossas ligações e a nossa correspondência.
Permaneceram também surdos à voz da justiça e da consanguinidade. Temos, portanto de
aceitar a necessidade de denunciar nossa separação e considerá-los, como consideramos o
restante dos homens, inimigos na guerra e amigos na paz.

Nós, por conseguinte, representantes dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, reunidos


em CONGRESSO GERAL, apelando para o Juiz Supremo do mundo pela rectidão das
nossas intenções, em nome e por autoridade do bom povo destas colónias, publicamos e
declaramos solenemente: que estas colónias unidas são e de direito têm de ser ESTADOS
LIVRES E INDEPENDENTES; que estão desobrigados de qualquer vassalagem para com a

81
Coroa Britânica, e que todo vínculo político entre elas e a Grã-Bretanha está e deve ficar
totalmente dissolvido; e que, como ESTADOS LIVRES E INDEPENDENTES, têm inteiro
poder para declarar a guerra, concluir a paz, contrair alianças, estabelecer comércio e praticar
todos os actos e acções a que têm direito os estados independentes. E em apoio desta
declaração, plenos de firme confiança na protecção da Divina Providência, empenhamos
mutuamente nossas vidas, nossas fortunas e nossa sagrada honra.

2- Presidencialismo americano:

• Forma republicana

• Executivo unipessoal (Presidente lidera o governo: a Administração)

• O Presidente não pode dissolver as câmaras, nem as câmaras podem retirar a confiança
ao Presidente

• A teoria dos freios e contrapesos (checks and balances)

• Sufrágio universal

82
13ª Aula

A separação de poderes

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 189-191

1- Montesquieu e a divisão do poder

O Espírito das Leis

83
84
1- Separação com ‘freios e contrapesos’ no modelo americano

O FEDERALISTA N.0 51

[50]

A Estrutura do Governo Deve Fornecer os Freios e Contrapesos ( Checks and


balances) Adequados entre os Diversos Departamentos

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

JAMES MADI ON

(ALEXANDER HAMILTON]

6 de Fevereiro de 1788

Então, a que meio devemos afinal recorrer, para manter na prática a necessária repartição de
poder entre os diversos departamentos, tal como é estabelecido na Constituição?

A única resposta que pode ser dada é que, como todas essas disposições exteriores se
mostraram inadequadas, a insuficiência deve ser suprida imaginando a estrutura interna do

85
governo de tal modo que as suas partes constituintes possam, através das suas relações
mútuas, constituir os meios de se manter umas às outras nos devidos lugares. Sem a
presunção de intentar um desenvolvimento completo desta importante ideia, arriscarei
algumas observações gerais, que talvez a possam aclarar, e nos dêem a capacidade de formar
um juízo mais concreto dos princípios e estrutura do governo planeado pela Convenção.

Com o intuito de lançar os adequados alicerces para esse exercício separado e distinto dos
diferentes poderes de governo que, em certa medida, é admitido por todos como sendo
essencial para a preservação da liberdade, é evidente que cada departamento deverá ter uma
vontade que lhe seja própria e, consequentemente, deverá ser constituído de tal maneira que
os membros de cada um tenham tão pouca intervenção quanto possível na nomeação dos
membros dos outros. Se este princípio fosse rigorosamente adoptado, ele exigiria que todas
as nomeações para as supremas magistraturas, executiva, legislativa e judicial, proviessem
da mesma fonte de autoridade, o povo, através de canais que não tivessem nenhuma espécie
de comunicação uns com os outros. Talvez um tal plano de construção dos diversos
departamentos fosse menos difícil na prática do que aparenta ser quando o contemplamos.
No entanto, a sua execução seria acompanhada de algumas dificuldades e alguma despesa
adicional. Por conseguinte, têm de ser admitidos alguns desvios ao princípio. Em particular
na constituição do departamento judicial, pode ser pouco expedito insistir rigorosamente no
princípio. Primeiro, porque os seus membros precisam de qualificações especiais, a primeira
consideração devia ser seleccionar o modo de escolha que melhor assegura essas
qualificações; em segundo lugar, porque a posse permanente dos mandatos nesse
departamento bem cedo deve destruir toda a sensação de dependência da autoridade que as
confere. É igualmente evidente que os membros de um departamento deverão ser tão pouco
dependentes quanto possível dos membros dos outros, no que toca aos emolumentos anexos
aos seus cargos. Se o magistrado executivo ou os juízes não fossem independentes da
legislatura neste aspecto particular, a sua independência em todos os outros aspectos seria
meramente nominal.

Mas a grande protecção contra uma concentração gradual dos diversos poderes no
mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os
meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à usurpação pelos
outros. A providência para a defesa deve, neste caso como em todos os outros, ser

86
comensurável com o perigo do ataque. Deve fazer-se com que a ambição contrabalance
a ambição. O interesse do homem deve estar ligado aos direitos constitucionais do cargo.
Pode resultar de uma reflexão sobre a natureza humana, que tais dispositivos sejam
necessários para controlar os abusos do governo. Mas o que é o governo em si próprio senão
a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos
nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens,
não seriam necessários controlos externos nem internos sobre o governo. Ao construir
um governo em que a administração será feita por homens sobre outros homens, a maior
dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e,
seguidamente, obrigar o governo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem
dúvida, o controlo primário sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade a
necessidade de precauções auxiliares.

3- Questões práticas

- Localize o princípio da separação de poderes na Constituição portuguesa

87
14ª Aula

Conceções da liberdade

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 254-255, 201-222

1- Três autores, três conceções de liberdade e três modelos de relação entre o


Estado, a sociedade e a lei

O sistema de liberdade natural

Adam Smith, A Riqueza das Nações

O sistema adequado é o da liberdade natural que desonera o soberano do «dever de


superintender a actividade das entidades privadas e de a encaminhar para as utilizações
mais adequadas aos interesses da sociedade»., p. 33

(…)

Pode dizer-se que impedir os particulares de receber em pagamento uma nota promissória de
um banqueiro, de qualquer valor, grande ou pequeno, desde que eles, por si mesmos, estejam
dispostos a recebê-la, ou impedir um banqueiro de emitir tais notas, quando todos os seus
clientes estão dispostos a aceitá-las, constituiria uma manifesta violação da liberdade natural
que a lei tem por missão não infringir, mas assegurar. Não há dúvida de que regulamentações
deste género podem, em alguns aspectos, ser consideradas como uma violação da liberdade
natural. Mas as leis de todos os governos impedem, ou deviam impedir, todo o exercício de
liberdades naturais por parte de um pequeno número de indivíduos desde que se mostre
susceptível de pôr em perigo a segurança de toda a sociedade; isso acontece com os governos
mais livres como com os mais despóticos. A obrigação de construir paredes refractárias para

88
impedir a propagação dos fogos constitui uma violação da liberdade natural, exactamente do
mesmo género que as regulamentações do comércio bancário que aqui são propostas. P. 570

2- O legicentrismo francês

Da Declaração de Direitos

Art. 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o
exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que
asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites
apenas podem ser determinados pela lei.

Art. 5º. A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei
não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Art. 6º. A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer,
pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para
todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e
igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua
capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.

Art. 7º. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e
de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou
mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou
detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de
resistência.

89
Art. 8º. A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém
pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e
legalmente aplicada.

Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar
indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser
severamente reprimido pela lei.

Art. 10º. Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde
que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11º. A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem. Todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo,
todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.

3- Liberdade moral

Kant, Metafísica dos costumes

§C.

Princípio universal do Direito

«Uma acção é conforme ao Direito quando permite ou quando a sua máxima permite
fazer coexistir a Liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade de todos segundo

uma lei universal».

Se, portanto, a minha acção ou, em geral, o meu estado pode coexistir com a liberdade
de cada um segundo uma lei universal, aquele que me coloca impedimentos comete
perante mim um acto injusto; pois que esse impedimento (essa resistência) não pode
coexistir com a liberdade segundo leis universais.

Decorre daqui também que não pode exigir-se que este princípio de todas as máximas
seja, por seu turno, a minha máxima, quer dizer, que eu o converta em máxima

90
da minha acção; porque cada um pode ser livre, ainda que a sua liberdade me resulte
totalmente indiferente ou deseje de bom grado no coração prejudicá-la, contanto que a
não prejudique com a minha acção exterior.

Tomar como máxima agir em conformidade com o Direito é uma exigência que me
coloca a Ética. Portanto, a lei universal do Direito é: age exteriormente de tal modo que
o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei
universal; esta é, na verdade, uma lei que me impõe uma obrigação, mas que de todo em
todo não espera, e muito menos exige, que deva eu próprio restringir a minha liberdade
a essas condições em virtude dessa obrigação, mas, pelo contrário, a razão diz apenas
que a liberdade, na sua ideia, encontra-se limitada a tal requisito e que ela pode, no
plano dos factos, ser limitada por outros; e isto di-lo ela como um postulado, que não é
susceptível de demonstração ulterior. - Se o propósito é não o ensinar a virtude, mas
apenas expor o que é conforme ao Direito, então não se pode nem mesmo se deve
apresentar aquela lei do Direito como móbil da acção.

4- Liberdade através do Estado

Hegel, Filosofia do Direito

SEGUNDA SEÇÃO

A Sociedade Civil

182 - A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como conjunto de carências
e como conjunção de necessidade natural e de vontade arbitrária constitui o primeiro
princípio da sociedade civil. Mas a pessoa particular está, por essência, em relação com a
análoga particularidade de outrem, de tal modo que cada uma se afirma e satisfaz por meio

91
da outra e é ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da universalidade, que é o outro
princípio.

187 - Como cidadãos deste Estado, os indivíduos são pessoas privadas que têm como fim o
seu próprio interesse: como este só é obtido através do universal, que assim aparece como
um meio, tal fim só poderá ser atingido quando os indivíduos determinarem o seu saber, a
sua vontade e a sua ação de acordo com um modo universal e se transformarem em anéis da
cadeia que constitui o conjunto. O interesse da ideia, que não está explícita na consciência
dos membros da sociedade civil enquanto tais, é aqui o processo que eleva a sua
individualidade natural à liberdade formal e à universalidade formal do saber e da vontade,
por exigência natural e também por arbitrariedade das carências, o que dá uma cultura à
subjetividade particular.

TERCEIRA SEÇÃO

O Estado

257 - O Estado é a realidade em ato da Ideia moral objetiva, o espírito como vontade
substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e
porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no
saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém
a sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao
produto da sua atividade.

258 - O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na
consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade
substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo,
e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem
membros do Estado têm o seu mais elevado dever.

Nota - Quando se confunde o Estado com a sociedade civil, destinando-o à segurança e


proteção da propriedade e da liberdade pessoais, o interesse dos indivíduos enquanto tais é o
fim supremo para que se reúnem, do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado.

92
Ora, é muito diferente a sua relação com o indivíduo. Se o Estado é o espírito objetivo, então
só como membro é que o indivíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação
como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro

fim, e o destino dos indivíduos está em participarem numa vida coletiva; quaisquer outras
satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu
resultado neste ato substancial e universal. Considerada abstratamente, a racionalidade

consiste essencialmente na íntima unidade do universal e do indivíduo e, quanto ao conteúdo


no caso concreto de que aqui se trata, na unidade entre a liberdade objetiva, isto é, entre a
vontade substancial e a liberdade objetiva como consciência individual, e a vontade que
procura realizar os seus fins particulares; quanto à forma, constitui ela, por conseguinte, um
comportamento que se determina segundo as leis e os princípios pensados, isto é, universais.
Esta ideia é o ser universal e necessário em si e para si do espírito.

- Direito Político Interno

260 - É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste
em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno
desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da
sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse universal e, em parte,
consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para
ele agem como seu último fim.

93
15ª Aula

Do princípio da igualdade de condições ao advento do Estado social

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 278-302, 333-383

1- Desigualdade natural e desigualdade humana

Jean-Jacques Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre


os homens

Aquele que após ter cercado um pedaço de terra primeiro afirmou “isto é meu”, encontrando
gente bastante simples para nele acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.
Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao género
humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo a vala, tivesse gritado aos seus
semelhantes: «Não vos deis ouvidos a esse impostor; estais perdidos se vos esqueceis que os
frutos são de todos e a que a terra não pertence a ninguém». Todavia, é muito provável que
naquele tempo as coisas já tivessem chegado ao ponto de não se poderem manter mais como
estavam; porque esta ideia de propriedade, dependente de muitas ideias anteriores que só
gradualmente puderam despontar, não se formou de repente no espírito humano. Foram
necessários bastantes progressos, muita arte e inteligência adquiridas, transmitidas e
acumuladas de um tempo a outro antes de chegar a essa fase final do estado de natureza. (…)

O primeiro sentimento do homem foi o da sua existência, o primeiro cuidado o da sua


conservação. (…)

À medida que o género humano se expandiu, as dificuldades multiplicaram-se com os


homens. (…)

94
Assim que os homens começaram a avaliar-se uns aos outros, e que a ideia de reconhecimento
se formou no seu espírito, todos se acharam no direito a ele e não mais foi possível recusá-lo
impunemente a ninguém. (…)

Foi esta, ou deve ter sido esta, a origem da sociedade e das leis que deram novos entraves ao
fraco e novas forças ao rico (Nota XVIII), que destruíram irreversivelmente a liberdade
natural, que fixaram para sempre a lei da propriedade e a desigualdade, que de uma hábil
usurpação, fizeram um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, subjugaram a
partir desse momento todo o género humano ao trabalho, à servidão e à miséria (…)

2- O movimento da democracia e a igualdade de condições

Tocqueville, Da Democracia na América,

Se o leitor examinar o que acontece na Franca de cinquenta em cinquenta anos, a partir do


seculo XI, não deixara de perceber, ao final de cada um desses períodos, que uma dupla
revolucao se produziu no estado da sociedade. O nobre terá baixado na escala social, o plebeu
ter-se-á elevado; um desce, outro sobe. Cada meio seculo os aproxima, logo vão se tocar.

(…)

O desenvolvimento gradual da igualdade das condições e um fato providencial. Possui suas


principais caracteristicas: e universal, e duradouro, escapa cada dia ao poder humano; todos
os acontecimentos, bem como todos os homens, contribuem para ele.

Seria sensato acreditar que um movimento social que vem de tao longe possa ser suspenso
pelos esforcos de uma geracao? Alguem acredita que, depois de ter destruido o feudalismo e
vencido os reis, a democracia recuara diante dos burgueses e dos ricos? Ira ela se deter agora,
que se tomou tao forte e seus adversarios tao fracos?

3- A radicalização social e a defesa da sociedade sem classes

95
96
4- O advento do Estado Social e o início do constitucionalismo social contemporâneo

Excertos da Constituição de Weimar

Secção IV. Educação e Escolas

Arte. 144. Todo o sistema educativo está sob a supervisão do Estado; este pode atribuir
uma parte desta tarefa às comunidades locais ...

Art. 145. A frequência escolar é obrigatória . . . até à conclusão do décimo oitavo ano. A
instrução e os seus acessórios são gratuitos nas escolas primárias e secundárias].

Art. 148. Em cada escola os objectivos educacionais devem ser a formação moral, o espírito
público, a aptidão pessoal e profissional e, sobretudo, o cultivo do carácter nacional alemão
e do espírito de reconciliação internacional.

Secção V. Vida Económica

Arte. 151. A organização da vida económica deve estar de acordo com os princípios da
justiça e ter como objectivo assegurar para todas as condições de existência dignas de seres
humanos. Dentro destes limites, o indivíduo deve ser assegurado o gozo da liberdade
económica. . . .

Art. 159. A liberdade de associação para a protecção e melhoria das suas condições de
trabalho . . é garantida a todos e em todas as ocupações . . .

97
Constituição portuguesa de 1976

Artigo 9.º

Tarefas fundamentais do Estado

São tarefas fundamentais do Estado:

a) Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e


culturais que a promovam;

b) Garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de


direito democrático;

c) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos


cidadãos na resolução dos problemas nacionais;

d) Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os


portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e
ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais;

e) Proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o


ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território;

f) Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão


internacional da língua portuguesa;

g) Promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta,


designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira;

h) Promover a igualdade entre homens e mulheres.

CAPÍTULO II

Direitos e deveres sociais

Artigo 63.º

98
Segurança social e solidariedade

1. Todos têm direito à segurança social.

2. Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social


unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras
organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais
beneficiários.

3. O sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e


orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição
de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.

4. Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, independentemente do sector de atividade em que tiver sido prestado.

5. O Estado apoia e fiscaliza, nos termos da lei, a atividade e o funcionamento das


instituições particulares de solidariedade social e de outras de reconhecido interesse público
sem carácter lucrativo, com vista à prossecução de objetivos de solidariedade social
consignados, nomeadamente, neste artigo, na alínea b) do n.º 2 do artigo 67.º, no artigo
69.º, na alínea e) do n.º 1 do artigo 70.º e nos artigos 71.º e 72.º.

Artigo 64.º

Saúde

1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.

2. O direito à proteção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições


económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;

b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam,


designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria
sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física
e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do
povo e de práticas de vida saudável.

99
3. Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:

a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica,


aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e


unidades de saúde;

c) Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos;

d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as


com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e
privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;

e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos


químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;

f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.

4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

Questões

1- Explicar em que termos a desigualdade social se tornou uma questão política.


2- Explicar o movimento da democracia social.
3- Explicar a alternativa socialista para a questão social.
4- Compreender o fenómeno da constitucionalização do Estado Social.
5- Identificar o impacto da socialização dos direitos na estrutura e natureza da
Constituição.
6- Compreender as fases de evolução dos direitos sociais

100
16ª Aula

A deformação do Estado moderno: totalitarismo e anti-Direito

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 303-332

1- O fenómeno totalitário no século XX

Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, p. 413 e ss.

101
102
103
104
17ª Aula

Direitos fundamentais (“Estado de direitos humanos”) e dignidade humana

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 477-488, 525-606

Para a discussão da seguinte problemática:

• Lançamento de anões:

Será esta prática é conforme à dignidade da pessoa humana e à ordem pública? Em


caso afirmativo, que dimensões da dignidade da pessoa humana e da ordem pública
estarão a ser afectadas?

105
Argumentos contrários:

• O Estado e a pessoa humana: Kant e a pessoa humana sempre como um “fim em si


mesmo” e nunca como um “meio”

• “A dignidade humana é a dignidade do ser humano: de todo e qualquer ser humano


individual e concreto” (PO, p. 547), o que impõe “uma existência permanente de
respeito e consideração” (PO, p. 552)

• “A dignidade decorre da natureza do homem, impondo-se como realidade anterior e


superior ao Direito” (PO, p. 553)

• “A dignidade humana é independente do grau de consciência ou de compreensão de


cada ser humana sobre a sua existência” e é irrenunciável e inalienável (PO, p. 553).

• “A dignidade humana exige respeito pela integridade física, tanto pelo Estado como
pelas restantes pessoas” (PO, p. 554).

• “A dignidade humana exclui qualquer admissibilidade de sujeição de um ser humano a


estigmatizações ou tratamentos degradantes” (PO, p. 555).

• “As violações da dignidade humana nunca podem assumir relevância jurídica positiva
(…): contra a dignidade humana não há posições jurídicas adquiridas, nem pretensões
juridicamente tuteláveis “ (PO, p. 559).

• O conceito de ordem pública corresponde ao núcleo de valores éticos fundamentais que


se afiguram intocáveis e impostergáveis pela liberdade humana.

Argumentos favoráveis:

• A participação de anões em práticas de lançamento pressupõe um acto de consentimento


de adultos livres e conscientes.

• Não existe qualquer ofensa à dignidade da pessoa humana quando uma dada prática
social consensualmente aceite não põe em causa de forma desproporcionada a

106
integridade física dos visados, não existindo diferenças entre o lançamento de anões e o
boxe.

• A liberdade contratual e autonomia privada.

• (…)

Em resumo, e tomando as páginas pertinentes do livro do Prof. Paulo Otero, que princípios de
um Estado de Direitos Humanos é que estariam aqui em causa?

• Estado de Direitos Humanos: “modelo de sociedade política fundada no respeito pela


dignidade da pessoa humana (…), possuindo normas constitucionais possuidoras de
eficácia reforçada, um poder político democrático e uma ordem jurídica
axiologicamente justa” (PO, p. 541)

- Dignidade humana é um direito fundamental (PO, p. 563)

- Efeito expansivo e irradiante sobre todo o ordenamento jurídico, ditando normas


permissivas e proibitivas , determinando a responsabilidade de pessoas (PO, p. 561)

- Padrão de conformidade de todos os actos jurídicos (PO, p. 562).

- Postulado geral in dubio pro dignitate: entre duas interpretações deve preferir-se a que
respeite a dignidade

Kant, Metafísica dos costume

Somente o homem, considerado como pessoa, isto é, como sujeito de uma razão prático-
moral, está acima de todo o preço; pois que, como tal (como homo noumenon), não pode
valorar-se apenas como meio para fins alheios, mas sim como fim em si mesmo, isto é, possui
uma dignidade (um valor intrínseco absoluto) mediante a qual obriga todos os demais seres
racionais do mundo a guardar-lhe respeito, podendo medir-se com qualquer outro desta
espécie e valorar-se em pé de igualdade.

107
A humanidade na sua pessoa é o objecto do respeito que ele pode exigir a qualquer homem;
respeito do qual ele não há-de também despojar-se. Portanto, o homem pode e deve valorar-
se segundo uma bitola que é pequena ou grande conforme ele seja considerado como ser
sensível (de acordo com a sua natureza animal) ou como ser inteligível (de acordo com a sua
disposição moral).

Uma vez que não há-de considerar-se apeüas como pessoa em geral, mas também como
homem, quer dizer, como pessoa submetida a deveres que a sua própria razão lhe impõe, o
seu escasso valor como animal humano não pode causar prejuízo à consciência da sua
dignidade como homem racional, e, atendendo a esta última, não deve renunciar à auto-
estima moral, isto é, não deve procurar alcançar o seu fim, que é em si mesmo um dever,
rebaixando-se de um modo servil (animo servili), como se buscasse um favor, não devendo
renunciar à sua dignidade, mas sim sempre com a consciência do carácter sublime da sua
disposição moral (consciência que está já contida no conceito de virtude); e esta auto-estima
é um dever do homem para consigo próprio.

Da nossa comparação sincera e precisa com a lei moral (com a sua santidade e o seu rigor)
tem inevitavelmente que se seguir uma humildade verdadeira: mas do facto de sermos
capazes de tal legislação interior, do facto de o homem (físico) se sentir obrigado a venerar
o homem (moral) na sua própria pessoa, tem que simultaneamente decorrer o sentido da nossa
elevação e a mais elevada auto-estima, como sentimento do nosso valor intrínseco (valor),
de acordo com o qual o homem não tem preço (pretium) e possui uma dignidade inalienável
(dignitas interna), que lhe infunde respeito (reverentia) para cons1go mesmo.

108
18ª Aula

Cidadania moderna: os direitos dos nacionais e os direitos dos estrangeiros

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, pp. 470-520

1- Modos de Associação

Compare-se os seguintes modos de associação humana:

Estatutos do Benfica
Artigo 2º
Constituição
1. O SPORT LISBOA E BENFICA é constituído por um número ilimitado de sócios
cuja qualificação resulta apenas da respectiva antiguidade e dos galardões atribuídos,
não se diferenciando em razão da raça, género, sexo, ascendência, língua,
nacionalidade ou território de origem, condição económica e social e convicções
políticas, ideológicas e religiosas;
2. Integram também o SPORT LISBOA E BENFICA as Filiais, Casas do Benfica e
Delegações, em conformidade com as disposições estatutárias e regulamentares.

ESTATUTOS DA SOCIEDADE « [INSERIR DENOMINAÇÃO] » ---------------


Artigo 1.º(Denominação) ---------------------------------------------------------------------
A Sociedade é uma sociedade do tipo de sociedade por quotas e adota a denominação
de [INSERIR DENOMINAÇÃO]. –

Artigo 3.º------------------------------------------------------------------------------

-(Objeto)-------------------------------------------------------------------------------

109
1. O objeto da sociedade consiste [INSERIR DESCRIÇÃO DO OBJETO SOCIAL].
Artigo 4.º
O capital social é de [INSERIR MONTANTE] euros representado pelas seguintes
quotas totalmente realizadas em dinheiro:---------------------------------- a) [NOME DO
SÓCIO] - uma quota de [INSERIR MONTANTE] euros; --------b) [NOME DO
SÓCIO] - uma quota de [INSERIR MONTANTE] euros.-

Constituição Portuguesa de 1976

Artigo 4.º

Cidadania portuguesa

São cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou
por convenção internacional.

• Direito Romano (societas/universitas: Oakeshott)

• Societas (ou parceria): os sujeitos associaram-se porque aceitaram por consenso


vincular-se a um pacto devendo lealdade um ao outro nos termos do pacto celebrado =
SÓCIOS

• Universitas: os sujeitos associaram-se formando uma unidade colectiva, uma


universalidade, uma pessoa jurídica (fictícia) que actua para certos propósitos

• A diferença entre a relação de pertença individual com essas formas de associação


privada e o Estado

• A relevância dos 2 modos de associação

• Como societas, o Estado funda-se no pacto (na societas) entre cidadãos; é uma
associação jurídica que exerce a sua soberania sobre os seus cidadãos em função do
pacto;

110
• Como universitas, o Estado constitui uma pessoa jurídica, uma unidade, uma
corporação; a sua actividade de governo é instrumental para atingir os seus fins (v.g.
justiça e segurança dos cidadãos)

3- Questão

“Artigo 122.º

Elegibilidade

São elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem, maiores de 35 anos.

a. o que se deverá entender por portugueses de origem?

b. como é que na Lei da Nacionalidade essa expressão é desenvolvida?

c. um cidadão naturalizado português poderá candidatar-se a Presidente da República? Qual


o fundamento para a limitação deste direito apenas aos portugueses de origem?

Artigo 15.º

Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus

1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos


e estão sujeitos aos deveres do cidadão português.

2. Excetuam-se do disposto no número anterior os direitos políticos, o exercício das funções


públicas que não tenham carácter predominantemente técnico e os direitos e deveres
reservados pela Constituição e pela lei exclusivamente aos cidadãos portugueses.

Questões:

111
a. Pode um cidadão estrangeiro candidatar-se nas eleições para a Assembleia da República?

b. Pode um cidadão estrangeiro residir e trabalhar em Portugal?

c. Imagine uma lei que restringia a circulação no território nacional a cidadãos oriundos de etnia
cigana? Estaria essa lei de acordo com a Constituição?

112
19ª Aula

Introdução à estrutura da Constituição: a identidade constitucional, princípios, valores e


normas.

Articulação com as aulas teóricas

PO, Direito Constitucional I – Identidade Constitucional

Suponha que em Portugal é aprovada uma lei com o seguinte conteúdo:

§1 É permitido a todos o direito ao uso e porte de arma, para defesa do próprio e dos seus bens
pessoais.

§2 O direito previsto no número anterior não pode ser limitado por lei.

§3 As dúvidas de aplicação do presente direito serão resolvidas em conformidade com a


jurisprudência do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América.

Questões

1- Comente o conteúdo desta lei, tendo presente os conceitos de Identidade Constitucional,


nos planos axiológico e estrutural.
2- Uma tal lei seria compatível com os princípios de um Estado subordinado aos direitos
humanos?

113
20ª Aula

Revisões

(Resolução de caso prático)

Suponha que foi aprovada uma lei que, a respeito de uma nova epidemia de vírus global, veio
determinar o seguinte:

1º - O Ministro da Saúde pode decidir o internamento compulsivo de qualquer pessoa por


motivos de Saúde Pública.

2º - Os doentes ficarão internados por tempo indeterminado e não poderão ter acesso aos seus
ficheiros clínicos.

1) Refira dois autores estudados cujo pensamento poderia ser usado para justificar o conteúdo
desta lei. (3 vals.)

2) Refira dois autores estudados cujo pensamento permitiria contestar o conteúdo deste lei (3
vals.)

3) Considera a presente lei compatível com um Estado de Direito material? (3 vals.)

4) Relacione o conteúdo da presente lei com a evolução dos fins do Estado e os desafios
colocados pela modernidade ao Estado de Direitos Humanos (3 vals.)

114
21ª Aula

Temas do atual Estado constitucional: i) digitalização; ii) internacionalização; iii) Estado


de emergência permanente; iv) Estado de vigilância

Articulação com as aulas teóricas

PO, Instituições, 361-376, 587-595, 609-666

Exercício:

Leia e comente o Acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional, disponível em


https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220268.html, tendo presente as referidas
coordenadas e tensões do atual Estado constitucional:

(i) Internacionalização;
(ii) Internacionalização
(iii) Estado de emergência permanente
(iv) Estado de vigilância

115

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