Você está na página 1de 4

Sócrates e a fundação da filosofia moral

“Digo-vos que exatamente isso é para o homem o bem maior, refletir todo dia sobre a
virtude e sobre outros argumentos sobre os quais me haveis ouvido disputar e pesquisar
sobre mim mesmo e sobre os outros, e que uma vida sem tais pesquisas não é digna de ser
vivida”(Apologia,38)

a)“Ó Sócrates, tinha ouvido, antes mesmo de encontrar-me contigo, que tu não fazes senão duvidar
e que fazes duvidar também os outros: ora, como me parece, tu me fascinas, me encantas, me
enredas completamente, de modo que me tornei cheio de dúvidas. E parece-me verdadeiramente, se
é lícito brincar, que te assemelhas muitíssimo, pelo aspecto e por tudo o mais, à raia marinha:
também esta, de fato, entorpece quem dela se aproxima e a toca: e parece-me que agora, tu também
produziste sobre mim efeito semelhante. Com efeito, tenho a alma e a boca entorpecidas e não sei
mais o que te responder. Contudo, muitas e muitas vezes discorri sobre a virtude, diante de muitas
pessoas e muito bem, pelo menos segundo me parecia; agora, ao invés, não sei nem mesmo dizer o
que ela é. E parece-me que tu decidiste acertadamente não atravessar o mar e não viajar: se tu, de
fato, fizésseis tais coisas, em outra cidade, serias expulso imediatamente como impostor.” (Platão,
Ménon, 80 a-b)

“Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em todo o resto à das parteiras, mas difere dela
no fato de agir sobre homens e não sobre mulheres, e cuidar das almas grávidas e não dos corpos. E
a minha maior capacidade é que eu consigo discernir seguramente se a alma do jovem dá à luz a
uma quimera e a uma mentira, ou se a algo real. Pois eu tenho em comum com as parteiras o fato se
ser também estéril...de sapiência; e a reprovação de muitos já me fizeram, que eu sempre interrogo
os outros, mas não manifesto nunca sobre qualquer questão o meu pensamento, ignorante que sou, é
uma reprovação verdadeira. E a razão é o que o Deus obrigou-me a ser obstetra, mas proibiu-me de
gerar. Eu sou, portanto, ignorante, e de mim não saiu nenhuma sapiente descoberta que tenha sido
produzida pela minha alma; ao invés, aqueles que se comprazem de minha companhia, embora
alguns deles pareçam no início totalmente ignorantes, continuando a freqüentar-me, conseguem em
seguida, desde que Deus o permita, extraordinário proveito, como eles mesmos e os outros
constatam. E é claro que não aprenderam nada de mim, mas unicamente por si mesmos
aprenderam e geraram muitas e belas coisas...
Pois bem, caro amigo, contei-te toda esta história justamente por isso, porque suspeito que tu, e
talvez tu mesmo creias, estejas grávido e sintas as dores do parto. Portanto, confia-te a mim, que sou
obstetra e filho de parteira; e o que te pergunto, tenta responder da melhor maneira possível. Se ,
depois, examinando as tuas respostas, eu encontrar que algumas são quimeras e não verdades,
arranco-as de ti e lanço-as fora, e não te zangues comigo como fazem com seus filhos as que dão à
luz pela primeira vez. Já muitos, caro amigo, têm contra mim esta má disposição, tanto que estão até
mesmo prontos a agredir-me se eu tento arrancar deles alguma opinião extravagante; e não vêem
que faço isso por benevolência, longe como estão de saber que nenhum Deus quer o mal dos
homens; e não é , na verdade, por maldade que eu faço isso, mas só porque não considero lícito
aceitar a falsidade ou obscurecer a verdade” (Platão, Teeteto, l48 e-151)

b)“ O Laques, em sua simplicidade, é como o ponto zero do diálogo socrático. A situação; dois
“burgueses” atenienses, que se fizeram por si mesmos, preocupam-se com a educação de seus
filhos. Acaba de chegar um mestre de armas de brilhante reputação, que abre uma escola. Os dois
pais de família perguntam-se se devem enviar para lá seus filhos.
Ora, eles não se sentem de nenhum modo qualificados para tomar uma decisão. Fazem então apelo
a dois de seus amigos que são qualificados para decidir: são “especialistas”. Laques e Nícias são
dois estrategistas renomados que exerceram numerosos comandos: o primeiro, que se formou sobre
o terreno, não tem cultura alguma; o segundo, ao contrário, freqüentou os sofistas e entende também
de política. Sócrates encontra-se lá: convidam-no a participar do debate. E isso, por três razões:
ele conheceu bem o avô de um dos jovens; Laques, que o teve sob suas ordens, dá testemunho de
suas qualidades de combatente; e, enfim, nunca é mal ter um tal homem a seu lado quando se trata
da juventude , que tem na mais alta conta suas opiniões.
O debate começa: cumpre ou não dar lições de esgrima aos jovens? Os dois especialistas
tomam sucessivamente a palavra. Nícias demonstra, com uma argumentação brilhante, que um tal
exercício só pode ser proveitoso tanto como exercício corporal como formação moral. A essa
demonstração Laques opõe “fatos”: ele é de opinião que esse treinamento abstrato de nada serve e
que o único lugar onde se aprende a lutar é o próprio campo de batalha. Dois estilos de
pensamento, duas atitudes que se opõem e se anulam. Como escolher, conseqüentemente? Os dois
pais de família voltam-se para Sócrates e pedem-lhe para optar em favor de uma ou de outra parte e,
assim, por seu voto, concluir o escrutínio.
Ora, este coloca condições para sua participação. Não se trata, precisa inicialmente, de
proceder “democraticamente”numa questão tão grave. Deve-se escolher, mas é preciso que seja
com conhecimento de causa. Ora, a técnica adotada até aqui é má. Laques e Nícias não
entabularam um diálogo efetivo: nada mais fizeram que justapor monólogos. Cumpre, se se quer
avançar, constituir uma verdadeira discussão, isto é, questionar com precisão a fim de dar margem a
respostas adequadas (e não de colecionar respostas sem questão). Essa função interrogativa,
Sócrates reclama que lhe seja concedida.
O que seus interlocutores fazem de bom grado. A partir do momento em que lhe é dada a
liberdade de conduzir o debate, Sócrates muda seu sentido. Daí para a frente aplica seu método: e

2
este consiste em definir rigorosamente de que se fala. Ao problema vago: cumpre tomar lições de
esgrima?, importa substituir a questão mais profunda: que se espera do ensino da arte das armas?
Ora , essa própria questão remete a uma interrogação mais radical. Se é verdade que o fim de
semelhantes lições é o aprendizado da coragem (o que logo reconhecem Laques e Nícias), torna-se
claro que a questão graças à qual será possível resolver o problema inicial é de fato esta: o que é a
coragem?
O diálogo, pouco a pouco, se transformou: a ironia socrática o fez passar do domínio
empírico, onde ele se enredava e onde não podiam se expressar senão preferências contigentes, ao
da essência, onde deve-se elaborar um saber. Dessa obrigação são logo convencidos. Quando
Sócrates pergunta afinal o que é a coragem, eles regozijam: quem, pois, melhor que eles é entendido
nessa matéria? Laques, como é de seu hábito, evoca “fatos”, cita “exemplos” confirmando as
definições sucessivas que dá. A esses “fatos” Sócrates não tem a menor dificuldade em opor outros
“fatos” contradizendo tais definições, a tal ponto é verdade - concepção que será constantemente
característica do projeto filosófico - que nenhum “fato” jamais prova o que quer que seja. Nícias é
mais hábil: sabe que tem de se haver com um temível disputador. Ele constrói suas respostas.
Deve, entretanto, reconhecer, ele também, face às contradições às quais Sócrates o acusa, que não
sabe o que é a coragem. Os dois pais de família estão muito decepcionados: reclamam de quem
soube então vigorosamente denunciar os erros e as confusões que dê uma solução.
Sócrates então recua. Ele nunca pretendeu saber o que é a coragem. O que sempre soube é,
ao mesmo tempo, que não o sabia e que os outros tampouco o sabiam. E marca um encontro com
seus amigos para que discutam de novo...” (Châtelet,F. A Filosofia Pagã, p.81-2)

Leituras complementares:
CHÂTELET, François. A Filosofia Pagã. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, p.73-87.

CHAUÍ, Marilena. Sócrates: o elogio da Filosofia. In: ____. Introdução à Filosofia. Dos pré-
socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 134-158.

DORION, Louis-André. Compreender Sócrates. Petrópolis: Vozes, 2006.

DROIT, Roger-Pol. Silêncios e comentários. In: ____. A companhia dos filósofos. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p.56-72

ERLER, Michael.;GRAESER, Andréas (orgs.). Filósofos da Antiguidade. Dos primórdios ao


período clássico. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p.129-143.

GOTTLIEB, Anthony. Sócrates. São Paulo: Unesp, 1999 (Grandes Filósofos)

MONDOLFO, Rodolfo. Sócrates. São Paulo: Mestre Jou.1972

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola. 1993. v.1.p.247-322.

3
4

Você também pode gostar