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A Apologia de Sócrates: Exercício Cênico*

(Baseado na Apologia de Sócrates, de Platão, na tradução de Jaime Bruna)

Personagens:

Sócrates

O Arauto

Coreutas: 1, 2, 3, 4 e 5

Cenário: o palco vazio, com apenas algumas colunas gregas. Projetada ao fundo, a imagem da
Acrópole ateniense.

[Sócrates em cima do carretel e o coro girando a sua volta. Entra o arauto, atravessando a
platéia. Ao chegar ao centro do palco, bate com um cajado no chão e fala:]

Arauto [olhando para a platéia]:

Atenienses, juizes heliastas: minha tarefa é lembrar-vos de vosso dever. Como manda a lei,
reunimo-nos. Como manda a lei, ouvimos a acusação, neste processo por impiedade. "Ó
Palas, protetora da Cidade, tu que és senhora da terra mais sagrada, superior a todas pela
guerra, pelos poetas e pela potência" 1, deusa Atena, dê-nos ponderação e discernimento para
bem julgarmos.

[Bate outra vez com o cajado no chão]:

Apresente-se Sócrates, filho de Sofronisco, do demo Alopece. Sobre ele pesam, juradas por
Meleto, o poeta, por Ânito, o político, e por Lícon, orador, as acusações de não reconhecer os
deuses da cidade e de corromper os jovens com ensinamentos ímpios, arrancando-os do
caminho da tradição. A pena pedida é a morte. [Enquanto Sócrates dirige-se para o palco, o
coro comenta]:

Coreuta 1 [olhando para a platéia]:

Sócrates! Vens tão tranqüilamente ocupar teu lugar diante destes homens? Não fazes caso de
teu destino? Não receias jamais daqui sair? Não enxergas o sangue nos olhos de teus
acusadores? "Sobre todas as ações paira o perigo e ninguém sabe aonde vai ter, quando a
tarefa começa; quem tentar agir bem, sem prever cai em grande e penosa desgraça".

O ar está cheio de maus presságios...

Arauto:

Já ouviste os termos do processo e a acusação, Sócrates. Defenda-te: é o que a lei prescreve.

Sócrates [olhando para a platéia]:

Atenienses, por favor peço-lhes que não se irritem se eu vos falar como estou acostumado a
falar nas praças, nas ruas, com meus amigos e conhecidos. É a primeira vez que venho a um
tribunal, e o linguajar que usam aqui me é completamente desconhecido. Na verdade, foram
tão exímios os que falaram antes de mim que quase convenceram-me de minha culpa. Além
disso, não tenho, como meus acusadores afirmam, o dom das belas palavras: não sou um
orador, não sou um político. Manda a lei que eu me defenda. Farei isso, apesar de achar que,
por mais que fale, o estrago que essas calúnias fizeram em vossos corações nunca seja
reparado. Mas cumpre obedecer a lei e apresentar a defesa.

Acusam-me de pesquisar indevidamente a que há debaixo da terra, morada dos mortos, o


Hades sombrio, e também o que se passa no céu, território dos deuses. Ora, cidadãos
Atenienses, meus acusadores querem que vós acrediteis que eu seja um físico, esses homens
que a turba persegue em todas as cidades, por dizerem que o princípio de tudo está na água
ou no ar, no fogo ou no pensamento, ou então que o Sol é apenas uma pedra incandescente
suspensa no éter, ou coisa que o valha, e não o divino Hélio carregando a luz em seu carro
atrelado a cavalos alados. Meus amigos, não sou Anaxágoras, aquele que vós quase matastes
por afirmar algo parecido. Não acredito no que Anaxágoras prega, apesar de também não
desejar sua morte. Creio nos deuses da cidade tanto quanto vós, Atenienses, e não me
preocupo em investigar essas coisas. Cumpro as obrigações e os sacrifícios sagrados. No
entanto, existe, sim, um estudo ao qual me dedico, uma outra ciência, mais importante que
todas as demais, e é isso o que preciso explicar.

Coreuta 2:

Sócrates! Estás a ponto de dar um passo fatal. Ainda há tempo para recuar, tempo para suster
a marcha. Tuas palavras serão setas, punhais no orgulho dos homens.

Mas, por que não hesitas, Sócrates?

Sócrates:

Por favor, compatriotas, ouçam com atenção o que direi. Todas essas acusações contra mim
vêem de uma atividade que teve inicio há muito tempo. Atenção, portanto, Atenienses.

Quando eu ainda não era velho, quando vários de vocês ainda não tinham nascido, meu amigo
Querefonte, em peregrinação ao templo de Delfos, onde habita o deus Apolo, perguntou para a
Pítia, a sacerdotisa do deus, tomada pela presença da divindade, se havia alguém - e aqui,
peço novamente, não se revoltem, Atenienses - Querefonte perguntou se havia alguém mais
sábio que Sócrates. E ela respondeu que... não.

Compatriotas, quando soube do oráculo, depois do grande espanto ter passado, comecei a
refletir sobre o que o deus quis dizer com tais palavras, qual o sentido oculto de ter declarado-
me o mais sábio dentre os homens, pois sabia que não o era.

Depois de muito pensar, decidi fazer, por conta própria, uma investigação. Queria compreender
o sentido do oráculo, ou então, descobrindo alguém mais sábio do que eu provar - eis minha
presunção - que o deus havia errado...

Coreuta 3:

Ó Sócrates, mergulhas no serviço do deus! "Não há homem que veja realizados todos seus
anseios: são eles duramente contidos pelos limites do impossível. A ignorância humana nos
inspira vãs esperanças, mas é a vontade dos deuses que tudo determina." 3

Sócrates:

E assim fui falar com um daqueles que todo o povo, que todos vocês, Atenienses, acreditavam
ser sábio, para poder contrariar o deus e dizer: 'Eis aqui um homem que possui mais sabedoria
do que Sócrates'. E o homem que eu escolhi era um político.

Coreuta 4:
Sócrates! Tuas palavras selam teu destino. Uma frágil linha está para ser rompida. Mas, por
que teu rosto está tão sereno? Como consegues caminhar sorrindo a beira do abismo?

Sócrates:

Atenienses, é triste afirmar isso, mas esse homem, um nobre político que aos olhos de muitos,
e principalmente aos seus próprios olhos, parecia tão sábio, revelou-se, na verdade, um
ignorante. Conversando com ele, percebi que tudo aquilo em que acreditava não passava de
idéias sem justificativas, arremedos de pensamento.

Depois dos políticos, fui aos artistas, aqueles considerados os maiores dentre vós, para com
eles aprender o que não conhecia e refutar o oráculo. Mas, Atenienses, é preciso afirmar que
qualquer outra pessoa saberia explicar melhor suas obras de arte do que eles mesmos. Não
encontrei sabedoria naqueles que fazem poesia, ou pintam graciosos quadros, ou esculpem as
obras que admiramos sinceramente. Há um dom natural, um belo dom natural, mas não o
conhecimento do belo. E erram tais pessoas quando, por serem tão hábeis, imaginam saber
para além de sua arte. E o mesmo erro fui achar junto aos artesãos, que de fato sabiam muito
mais que eu, que nada sei, mas acreditavam saber também vários outros assuntos dos quais
não podiam fazer a mínima idéia. Perguntei-me, então, se preferiria ser como sou, sem a
sabedoria e também sem a ignorância deles, ou possuir deles ambas as coisas. E notei que me
agradava ser como sou.

Coreuta 5:

Não pedes perdão, Sócrates? Não recuas? Dizes ainda estar contente consigo próprio, diante
desses homens tão descontentes com tuas palavras?

Sócrates:

E qual foi minha conclusão, compatriotas? Pensei que tanto eu como todos eles nada
sabíamos, entretanto - e aí talvez esteja posto o segredo do oráculo - eles acham que sabem
alguma coisa e não sabem, enquanto eu não afirmo saber o que não sei. A única sabedoria
que ouso dizer possuir é saber que nada sei.

Coreuta 1:

Falando com todos, livremente, em qualquer lugar, foste hábil em ferir o orgulho de muitos,
Sócrates. E o orgulho ferido sempre cobra suas dívidas...

Sócrates:

É daí portanto que vêm, Atenienses, as acusações infundadas: do orgulho ferido. Essa é
também a origem da fama de sábio. Aqueles que me ouvem conversando e confundindo os
outros ao mostrar sua ignorância, acham que sou sábio no assunto em que os confundo. Além
disso, os jovens que me acompanham também põem-se a interrogar as pessoas, e a
juventude, compatriotas, em qualquer tempo ou lugar está sempre ansiosa pela verdade.
Assim, esses jovens descobrem uma multidão de homens que supõem saber alguma coisa,
mas nada sabem. Por tal motivo, esses que os jovens examinam ficam irritados comigo e
começam a dizer que existe "um tal Sócrates" que corrompe a mocidade. Quando perguntamos
"como" ou "por quê?". não tem o que dizer, então afirmam, como fazem com qualquer filósofo,
essas balelas: descrer dos deuses da cidade, negar a divindade e outras bobagens.

Aí está a origem das acusações. Essa é a verdade, Atenienses, e eu sei que não será fácil
apagar as calúnias que esses homens espalharam. Mas de qualquer modo, eis aí minha
defesa.

Coreuta 2:
Agiste certo, Sócrates? Poderias ter feito de outro modo? Agora, sentes que tua vida pesa
tanto como uma pluma, levada por qualquer brisa, frágil como o graveto prestes a ser quebrado
pela bota do soldado. Disseste a estes homens o que eles não queriam ouvir, não pediste
desculpas, não te inclinaste. E era só isso o que queriam, Sócrates. Ah, Sócrates! Preferiste
agir como sempre agiste, e agora esteja pronto para o veredicto.

Mas, qual é o valor de uma vida traída?

Os maus presságios se condensam no ar...

Arauto:

Os juízes votarão. Sócrates, sabes que a acusação pede a pena de morte. Nada mais tens a
falar?

Sócrates:

Neste momento, alguém poderia perguntar se não me arrependo de ter me ocupado com algo
que me coloca diante da morte. A esse eu respondo que um homem deve levar em conta
apenas um aspecto de seus atos: se o que faz é justo ou não. A minha atividade não é outra
que conversar com todos, persuadindo as pessoas a não se preocuparem tanto com o corpo e
com as riquezas, mas antes com a alma, pois é só a partir da virtude que alcançamos a
felicidade. Se agindo assim corrompo a juventude, então tais preceitos seriam nocivos, o que é
um absurdo. Por tudo isso, Atenienses, quer me condenem a morte, quer me deixem partir, não
hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de morrer muitas vezes.

Coreuta 3:

Corajoso Sócrates! O homem de valor morre uma única vez, mas o covarde morre muitas
vezes antes de morrer...

Arauto:

Que o júri delibere, e que o veredicto seja justo, para honra do tribunal heliasta e para honra de
Atenas.

[bate com o cajado. As luzes se apagam, ao fundo ouve-se um ruído de discussão)

Coreuta 4 [no escuro]:

Qual será o destino deste homem? Ah, por que ainda perguntamos, se nosso coração já está
oprimido por uma certeza que não ousamos expressar? Talvez seja destino dos homens matar
a todos os que se elevam acima da massa informe, do grande rebanho que lentamente
caminha sem saber para onde. Ah, Sócrates! Ousaste perguntar pelo caminho correto e, pior,
tiveste a coragem de buscar segui-lo.

Qual o preço que pagará por isso?

Qual?

[a música aumenta.

Arauto:

"Culpado. Culpado por corromper a juventude e zombar dos deuses da cidade. Culpado. A
pena é a morte."
[A música cessa, a luz volta. Sócrates no meio do palco]

Sócrates:

Caros irmãos Atenienses que me condenaram, talvez achem que se eu houvesse me


empenhado mais na minha defesa, pudesse ter escapado. Engano! Minha condenação veio
não por falta de empenho, mas por me recusar a dizer o que gostariam de ouvir, súplicas e
lamentos, e muitas outras coisas que estão acostumados a ouvir daqueles que imploram
perante vós. Quantos homens não trouxeram aqui mulher e filhos, fazendo cenas de causar
vergonha, como se fosse um horror terem de morrer, como se houvessem de ser imortais se
vós não os condenásseis à morte. Não é tão difícil escapar da morte assim: mais difícil e
escapar da maldade e da vileza. Se houvesse feito algo parecido, não conseguiria viver,
definharia e me extinguiria, porque tal coisa não é digna de mim. Guardem o que lhes digo: se
imaginam que matando homens evitarão que os critiquem por sua vida de ignorância e vício,
estão enganados: aprendam que em vez de tapar a boca dos outros é necessário preparar-se
para ser o melhor possível. Para vós, que me condenastes, bastam essas palavras.

Coreuta 5:

"Agora, a infelicidade dos bons faz a felicidade dos maus, que governam com leis perversas.
Desaparece a nobreza de espírito, a desmedida e a vileza triunfam sobre a justiça." 4

Sócrates:

Aos que me absolveram, deixo os pensamentos de quem se encontra nos umbrais da morte:
vós também, senhores juízes, devem se preparar para a morte tendo a certeza que não há,
para o homem bom e virtuoso, nenhum mal, quer na vida, quer depois dela, e os deuses estão
sempre atentos ao nosso destino. Guiem suas vidas pela virtude, que todo o resto virá
naturalmente.

É chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue o melhor
caminho, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade.

Coreutas 1, 2, 3, 4 e 5:

O que fizestes, Atenienses? O que fizemos? "Matastes, matastes o rouxinol das Musas, a
quem ninguém magoou!" 5 Mataste vosso filho dileto, Atenas, e, imitando-te, continuamos
ainda hoje a matar, se não de uma vez, mas aos poucos, todos aqueles que não são como
nós, que não marcham conosco e não partilham de nossas passadas.

Guardem a lembrança de Sócrates no fundo escuro de suas almas.

[Pano]

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