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(Publicado em M.ª da Graça Mateus Ventura (coord.

), Os espaços de sociabilidade na
Ibero-América (sécs. XVI-XIX), Lisboa, Ed. Colibri, pp. 95-120)

Maria Alexandre Lousada


Dep. de Geografia /Centro de Estudos Geográficos, Fac. Letras, Univ. Lisboa

A rua, a taberna e o salão: elementos para uma geografia histórica das


sociabilidades lisboetas nos finais do Antigo Regime

Na segunda metade do século XVIII, ocorreu uma transformação das práticas de


sociabilidade nas principais cidades europeias. Ainda que seja possível identificar as
origens desse processo de mudança num período anterior, foi entre os finais de
setecentos e as primeiras décadas do século XIX que se afirmaram as características
centrais: tendência para a laicização do quadro global de sociabilidade, diversificação
das práticas, maior especialização dos espaços, comercialização de actividades
associadas ao lazer, criação de práticas e de espaços específicos de sociabilidade por
parte dos grupos sociais “intermédios”, alargamento e renovação das sociabilidades de
elite. Simultaneamente, nesse mesmo período, o espaço urbano modificou-se em
consequência das novas noções de público e de privado. A conjugação destas
transformações é particularmente visível em três espaços urbanos de sociabilidade: a
rua, a taberna (e estabelecimentos similares) e o salão.
Neste texto, serão abordados alguns aspectos dessas mudanças na cidade de
Lisboa, tomando como ponto de partida da observação os espaços físicos nas suas
relações com as práticas (o jogo, a bebida, o convívio, etc.) e com os grupos sociais.
Escolheram-se estes espaços pela sua natureza jurídico-política e urbanística diversa: a
rua é o espaço público por excelência, os estabelecimentos de bebidas, como a taberna e
o café, são espaços semipúblicos, o salão constitui um espaço privado.
Importa aqui reter, ainda que muito esquematicamente, as três dimensões
presentes na extensa literatura sobre as complexas noções de público e de privado: a
jurídica (propriedade pública vs. propriedade privada), a política (a esfera pública de
comunicação e expressão no sentido habermasiano, constituída pela opinião e a
associação) e a urbanística (a cena pública, o espaço urbano público, aberto e de acesso
livre). Importa também recordar que não se está perante qualidades intrínsecas do
espaço, pois que essas qualidades são o resultado de construções sociais e o produto de

1
usos sociais, e que os espaços públicos urbanos, bem como os espaços da vida social
(pública) não são necessariamente o espaço público conceptualizado por Habermas.
Sennett, por exemplo, que se tem dedicado a estudar as relações entre a a vida cívica e o
desenho físico da cidade, em particular entre o século XVIII e o XX, considera que a
palavra “público” adquiriu o seu significado moderno no século XVIII: a vida pública
passou a designar a vida social passada fora da família e dos amigos chegados, o
domínio público de contacto entre conhecidos e estranhos. Essa época também foi, por
isso, a da afirmação de novas regras de comportamento, inseparáveis da difusão da
noção de civilidade e da separação entre comportamentos públicos e privados.
Simultaneamente, surgiram os primeiros passeios públicos, bem como regulamentações
diversas no sentido de tornar as ruas livres para a circulação, os cafés tornaram-se
centros sociais, os teatros foram abertos a um público alargado através da venda de
bilhetes, as atracções e os confortos urbanos saíram do círculo restrito das elites e
difundiram-se socialmente1.
Por outro lado, no quadro da revisão historiográfica em curso sobre o século
XVIII, em que a tese da revolução ou transformação profunda é criticada e substituída
pela ideia de continuidade, evolução e permanência, também a dicotomia público-
privado tem vindo a ser questionada e com ela a cronologia que situava nesse século a
emergência de duas “esferas separadas” 2. Não só as mudanças que conduziram à
separação terão sido mais lentas e marcadas por situações de continuidade, como há que
ter em conta que essa dicotomia não abarca todas as situações. Existem outros espaços,
de características complexas e híbridas que, à falta de melhor definição, têm sido

1
Segundo Richard Sennett, The fall of public man, N. York, 1978, p.17, a difusão social foi tão alargada
que “até as classes populares começaram a adoptar alguns dos hábitos de sociabilidade” das elites. Veja-
se também, do mesmo autor, The conscience of the eye. The design and the social life of cities, N. York,
1991 e Flesh and stone. The body and the city in western civilization, N. York, 1994. Para uma leitura
geográfica comparada das perspectivas de R. Sennett e de S. Zukin sobre o espaço público na cidade
moderna, veja-se Peter G. Goheen, “Public space and the geography of the modern city”, Progress in
Human Geography, 22, 4 (1998), 479-496.
2
Os debates têm sido dominados pelos estudos de J. Habermas sobre a emergência do público ou da
esfera pública (Historia y crítica de la opinión pública. la transformación estructural de la vida pública,
Barcelona, 1986 (1ª ed. alemã, 1962), de N. Elias sobre o processo civilizacional (La civilisation des
mœurs, Paris, 1973 (1ª ed. alemã, 1939)) e da obra colectiva Histoire de la Vie Privée, Paris, 1986, sobre
a vida privada. A complexidade das fronteiras entre a vida pública e privada foi analisada, entre outros,
por Tim Meldrun, a propósito do serviço doméstico em Londres no século XVIII, num artigo onde o autor
questiona severamente os trabalhos de L. Stone sobre as mudanças ocorridas nas relações entre família,
vida privada e espaço doméstico. Tim Meldrum, “Domestic service, privacy and the eighteenth-century
metropolitan household”, Urban History, 26, 1 (1999), 27-39. Recentemente, Dana Goodman defendeu
que, no contexto do século XVIII, a dicotomia público-privado é uma “oposição falsa” (Dana Goodman,
”Public sphere and private life: towards a synthesis of current historiographical approaches to the old
regime”, History and Theory, 31 (1992), 1-20, referido por T. Meldrun).

2
designados como espaços semipúblicos (ou institucionais 3, como alguns preferem) nos
quais se incluem, por exemplo, as lojas, os teatros ou as tabernas. Este e outros casos
similares lembram que a propriedade pode não ser o factor determinante da natureza
pública ou privada de um espaço, a qual está também relacionada com a acessibilidade e
os vários condicionamentos de uso4. A questão é complexa, como se pode verificar se
pensarmos na taberna: é propriedade privada, o seu acesso pode ser tão livre quanto o da
rua, embora o dono possa impedir a entrada em determinadas circunstâncias; além
disso, há limites ao seu uso, limites temporais (horas de abertura e fecho) e
comportamentais (correr, levar animais, por exemplo); por outro lado, a sua frequência
está, em princípio, condicionada a um consumo. Em contrapartida, o argumento de que
a rua é “totalmente” pública e livre não é tão absoluto como parece. Veja-se, por
exemplo, o caso do acesso ou circulação e dos usos: o primeiro, o acesso, é
temporalmente limitado do ponto de vista social, pelo menos no que diz respeito às
mulheres, para quem, ser encontrada na rua, à noite, tem uma conotação moral
negativa5; quanto aos usos, as regulamentações e proibições relativas a determinados
comportamentos na rua, como são algumas que abordaremos de seguida, atestam a
complexidade do conceito. O debate é aqui atravessado pela questão da evolução dos
códigos de comportamento ou de civilidade e pela do controlo da violência, tanto
individual como estatal, debate que tem tido como pólos de referência as teses de
Foucault sobre a sociedade disciplinária e as de Elias sobre o processo civilizacional,
ambas centradas na problemática da construção da modernidade ocidental. Para Norbert
Elias, ocorreu uma “progressão do limiar do pudor” que se manifestou na
“«privatização» cada vez mais pronunciada e completa de todas as funções corporais
[...] no seu deslocamento para fora do campo visual da sociedade” e que deu lugar à
“formação progressiva de duas esferas diferentes da vida humana – uma íntima e
secreta, a outra aberta, um comportamento clandestino e um comportamento público”, à

3
É o caso de Michael Reed, nos capítulos em que analisa a paisagem urbana britânica entre 1540 e 1840,
ao dividir o espaço urbano em três categorias - o privado (as casas particulares), o público (basicamente,
as ruas e os largos) e o institucional (os espaços da administração, os comerciais e os culturais, nos quais
o autor inclui desde os edifícios do governo, os quartéis, asilos e hospitais, até aos bancos, mercados,
estalagens, cafés, teatros e museus). M. Reed, “The urban landscape, 1540-1700” e “The transformation
of urban landscape, 1700-1840”, Peter Clark (ed.), The Cambridge Urban History of Britain, vol. II,
Cambridge University Press, 2000.
4
O texto de Francesco Indovina “O espaço público: tópicos sobre a sua mudança”, Cidades –
comunidades e territórios, 5 (2002), 119-123, embora centrado nos problemas actuais da cidade, é uma
útil reflexão sobre a evolução da natureza e das funções do espaço público.

3
separação entre os comportamentos admitidos em público e os censurados e banidos,
remetidos para o domínio privado 6. Foucault, que se centra nas relações entre o
exercício do poder, o controlo do corpo e a vigilância do espaço, chama a atenção para o
papel da polícia, na imposição da disciplina no espaço urbano e no controlo dos
comportamentos em público, e define o objecto da actuação policial como sendo “a
poeira dos acontecimentos, das acções, das condutas, das opiniões”7. Trabalhos
posteriores mostraram que uma das tarefas da polícia era precisamente a vigilância dos
costumes, visando afastar a violência e a brutalidade e substituí-las por, como se dizia
na época, “costumes civilizados, polidos, policiados”.
Antes de prosseguirmos, importa clarificar que algumas dimensões importantes
de uma geografia histórica das sociabilidades, como sejam as relações espaço-tempo e
as resistências às mudanças, mereciam um tratamento mais desenvolvido.

A rua

A rua8, espaço público urbano por excelência, manteve-se como palco de


sociabilidades populares e de interpenetração entre os domínios público e privado: lugar
de encontro, de arraiais e outras festas populares, de jogo, de acesso e prolongamento de
espaços privados. Mas foi também nesta época que devido a um novo conceito de
espaço público, a novas necessidades de circulação e, no caso particular de Lisboa, aos
problemas decorrentes do terramoto9, surgiu um leque de regulamentações que visava

5
A relação entre as mulheres e os espaços públicos é bastante complexa e tem sido objecto de inúmeros
trabalhos. Note-se, aliás, que público, quando associado à mulher, adquire um significado pejorativo (v.g.
mulher pública).
6
Norbert Elias, La civilisation des mœurs…, pp. 269, 317-318 e 343. As teses de Elias, amplamente
divulgadas entre os historiadores, têm vindo a ser alvo de reapreciação nos últimos anos. Entre os críticos
mais polémicos está Hans Peter Duerr que, em Nudez e Pudor. O mito do processo de civilização, Lisboa,
Ed. Notícias, 2002 (ed. alemã, 1988; ed. francesa, 1998), põe em causa a existência de uma singularidade
ocidental no que diz respeito aos costumes, em particular o pudor. Veja-se a virulenta crítica à obra de
Duerr (acusando-o de ignorar os processos da construção social do pudor) publicada por Étienne Anheim
e Benoît Grévin na Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, 48, 1 (2001), pp. 160-181.
7
Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, 1975, p. 215 e segs.
8
O espaço público é aqui entendido como o conjunto das ruas, travessas, largos e outros espaços abertos
da cidade. Na época aqui considerada, a responsabilidade da manutenção desse espaço (limpeza,
calcetamento, etc.) encontra-se repartida pela câmara municipal, pela intendência da polícia e pelos
particulares.
9
E não de um aumento populacional provocado pelo aumento da imigração, como sucedeu em outras
capitais europeias a partir da segunda metade do século XVIII. Ao invés, Lisboa terá conhecido um
fenómeno migratório de sentido contrário devido ao terramoto, às invasões francesas e às lutas políticas
da primeira metade de oitocentos, só se verificando uma inversão dessa tendência na segunda metade do
século XIX. Cf. Teresa Rodrigues, Nascer e morrer na Lisboa oitocentista. Migrações, mortalidade e
desenvolvimento, Lisboa, 1995.

4
impor novas regras de comportamento e de uso da rua. Na elaboração e no cumprimento
dessas regras a polícia teve um papel fundamental, como aliás sucedeu nas capitais
europeias que, à imagem e semelhança de Paris, foram dotadas de um corpo policial
moderno10. Criada em 1760, tendo conhecido, em 1780, um alargamento das suas
atribuições e, em 1801, um aumento do seu poder de vigilância com a criação da
Guarda Real da Polícia, a Intendência Geral da Polícia de Lisboa tinha uma jurisdição
alargada sobre um vasto conjunto de domínios globalmente relacionados com a
manutenção da ordem e a segurança pública 11. Entre as suas inúmeras tarefas, refiram-
se aquelas que mais directamente se relacionavam com o uso da rua pelos habitantes da
cidade e afectavam as práticas de sociabilidade: iluminação pública, controlo dos
estabelecimentos de bebidas, das hospedarias e das feiras (incluindo horários),
vigilância nocturna, manutenção das ruas limpas e livres de obstáculos. É por isso
possível, a partir da documentação policial, saber um pouco mais sobre as
sociabilidades de rua nesta época, completando e confrontando assim as conhecidas
imagens veiculadas pela literatura de viagens e pelos testemunhos dos viajantes
estrangeiros.
As constantes intervenções policiais sobre indivíduos encontrados a jogar, a
cantar, a beber ou simplesmente a conversar na rua, admoestando-os ou prendendo-os,
confirmam que a rua se mantinha como um dos espaços de encontro e de sociabilidade
dos habitantes de Lisboa e dos que a ela se dirigiam. Aguadeiros, soldados, artesãos,
criados, adultos ou rapazes, são presença constante nas partes diárias da Guarda Real da
Polícia e nos papéis dos corregedores dos bairros da capital, tanto durante a semana de

10
O papel da polícia no controlo dos comportamentos dos habitantes urbanos, assim como na
transformação do espaço citadino, durante o século XVIII e a primeira metade do seguinte, tem merecido
uma atenção crescente por parte dos investigadores. Refiram-se, entre outros, alguns dos trabalhos
pioneiros e das reflexões recentes: Arlette Farge Vivre dans la rue à Paris au XVIIIe siècle, Paris, 1979,
Daniel Roche, Le peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XVIIIe siècle, Paris, 1981, p. 278-284
(« Le peuple et les polices »), Pedro Fraile ,“Putting order into cities: the evolution of ‘police science’ in
eighteenth-century Spain”, Urban history, 25, 1 (1998) e o número da Revue d’histoire moderne et
contemporaine (nº 50,1 (2003), coordenado Catherine Clémens-Denys e Clive Emsley) sobre « Espaces
policiers, XVIIe-XXe siècles». Embora para um período posterior (segunda metade de oitocentos) devido
à criação mais tardia de uma polícia moderna, veja-se, para Inglaterra, Miles Ogborn, “Ordering the city:
surveillance, public space and the reform of urban policing in England, 1835-1856”, Political Geography,
XII, 6 (1993), 505-521, e Andy Croll, “Street disorder, surveillance and shame: regulating behaviour in
the public spaces of the late Victorian British town”, Social History, 24, 3 (1999), 250-268.
11
Sobre a Intendência Geral da Polícia continua a ser muito útil a obra de Albino Lapa, História da
Polícia de Lisboa, 2 vols., Lisboa. Veja-se também José Subtil, “Governo e Administração”, in J. Mattoso
(dir.), História de Portugal, IV vol., Lisboa, 1983, p. 176 e segs. e Maria Alexandre Lousada, “A cidade
vigiada. A polícia e a cidade de Lisboa no início do século XIX”, Cadernos de Geografia, 17, 1999 e
“The police and the uses of urban space. Lisbon, 1780-1833”, Apontamentos de Geografia do Centro de
Estudos Geográficos, Lisboa, 2003.

5
trabalho como nos dias santos e festivos. Alguns exemplos entre muitos: no dia 5 de
Janeiro de 1817, pelas 21 horas, vários galegos estavam na rua a tocar gaita-de-foles; no
dia 23 de Junho de 1825 (noite de S. João), a polícia dispersou um tocador de gaita
rodeado de “grande ajuntamento” na Praça da Figueira; no mesmo ano, um fabricante
de sedas, um empregado do terreiro e vários soldados foram encontrados em descantes
na rua da Lapa, eram dez e meia da noite12; no dia 18 de Março de 1819, “uma roda de
muita gente, rapazes e galegos”, foi surpreendida a jogar à chapa junto das bancas de
peixe da Ribeira Nova, pelas 18h; numa 5ª feira de Abril de 1820, um grupo de jovens
aproveitava a luz de um candeeiro público para jogar às cartas13.
São as classes populares quem encontramos na rua, quem faz dela lugar de
encontro e espaço de sociabilidade. Este uso social da rua vai ser afectado, tal como
outros aqui não referidos (por ex., a mendicidade), não apenas pelas mudanças
económicas, mas também pelas inúmeras regulamentações de origem camarária e
policial que proíbem antigos comportamentos e antigos usos do espaço urbano. São
recorrentes as informações dos Intendentes da Polícia sobre a utilização de ruas e praças
como local de trabalho, de descanso e de recreio, ou como o seu prolongamento, e sobre
a necessidade de as desimpedir. Aquelas que Lucas Seabra da Silva, sucessor de Pina
Manique, escreveu em 1805 (e que têm o mesmo teor de queixas anteriores e
posteriores) revelam a dificuldade em banir as práticas habituais: comunica o intendente
que o comandante da Guarda Real da Polícia, Conde de Novion, lhe dera parte de estar
a Praça do Comércio permanentemente embaraçada com estâncias de vários mercadores
de madeiras, armazéns para caixas de açúcar e couros, barracas com tabernas e
armazéns de vinhos, situação que “é bem constante, e até chega a ponto de indecência”
para “uma praça tal, que é a que está à frente desta grande capital” 14.
A rua continuou a ser palco de festividades religiosas, como as procissões (a
mais célebre, a do Corpo de Cristo), e de arraiais populares associados ao calendário
religioso (Natal, Páscoa, santos populares, etc.). Comércio de feira, música, fogo-de-
artifício, teatro e até corridas de touros eram actividades inseparáveis dos arraiais
populares, realizados na véspera da festa religiosa ou no próprio dia da celebração. As
tensões existentes em torno destas manifestações não se cingiam ao seu carácter

12
Torre do Tombo (TT), Intendência Geral da Polícia (IGP), maço 623, doc. s.n., maço 17, doc. 80 e
maço 500, docs. 15-16, respectivamente.
13
TT, IGP, maço 225, docs. 33-34 e maço 214, doc. 84, respectivamente.

6
profano, nem às autoridades eclesiásticas. Como ajuntamentos populares que eram,
estas festividades caíram também sob a alçada do poder civil, sendo necessária uma
autorização da polícia para a sua realização – tanto as confrarias como os grupos mais
informais de festeiros requeriam geralmente licença para levantar arraial. Acontecia
serem algumas recusadas, por causa dos “mil inconvenientes” e das “graves
consequências” que podem ter “em uma rua pública ajuntamentos e festejos”, sobretudo
devido ao lugar onde se realizam (no centro da cidade, em locais de grande
concorrência de gente) e ao público que os compõe (a “plebe rústica”, na qual o
“diferente modo de pensar e o estado de embriaguez são motivos para discórdia”). A
polícia actuou no sentido de conter e disciplinar estas práticas de sociabilidade popular
sem, no entanto, as proibir pois, nas palavras do Intendente Freire de Lima, em Maio de
1818, “não convém desgostar os moradores desta capital com a privação daquele recreio
a que são afeiçoados”15.
Por outro lado, as invasões francesas e a polarização política das décadas de
vinte e trinta, associada às lutas liberais, consubstanciaram uma apropriação política da
rua que se concretizou em manifestações, iluminações públicas, confrontos e desfiles
populares e militares, os quais, juntamente com as cortes e a actividade parlamentar,
introduziram novas sociabilidades e desenharam uma nova geografia política da cidade.
Além disso, a porta do café e da taberna, bem como as esquinas das ruas onde estão
afixados editais, avisos e pasquins, são pontos de encontro onde se estancia, se lêem e
comentam as notícias, onde nasce um rumor, onde se forma uma sociabilidade política e
uma opinião pública popular 16. A iconografia da época, ainda que parca, é um bom
testemunho dessa apropriação.
Por fim, nesta breve abordagem das sociabilidades que se desenrolam no espaço
público urbano, refira-se a nova utilização social da rua, com novos códigos de
comportamento, concretizada no passeio. Trata-se tanto do “simples passeio” em
determinados locais da cidade, como do chamado passeio público (de qualquer modo,
estamos aqui a falar do passeio urbano e não das idas às hortas e quintas dos arredores

14
Ofício de Lucas Seabra da Silva para o ministro do reino, conde de VilaVerde, em 3 de Abril de 1805,
informando que a licença das barracas armadas no Terreiro do Paço não foi dada pela Intendência, pelo
que deve ser pedida informação ao Senado da Câmara. TT, IGP, Secretarias, livro 8, fls. 130v-133.
15
As citações são retiradas dos documentos referidos em M.ª Alexandre Lousada, “Espaço urbano,
sociabilidade e confrarias. Lisboa nos finais do Antigo Regime”, Piedade Popular. Sociabilidades,
representações, espiritualidades, Lisboa, Terramar, 1999, p.556-558.
16
Sobre a formação da opinião pública em Portugal, José Augusto dos Santos Alves, A opinião pública
em Portugal nos finais do século XVIII e princípios do século XIX, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa,
1998, tese policopiada.

7
da cidade)17. Os testemunhos conhecidos (literatura de viagens e de cordel, registos
policiais) oscilam entre a afirmação de que os portugueses (e em especial as mulheres)
passeiam pouco e a revelação dos locais onde, “nas noites claras de lua, uma grande
quantidade de gente vai gozar a frescura suave que se exala do rio” 18 . Os Cais da Pedra
(Terreiro do Paço) e do Sodré e a quinta dos Paulistas, aos Prazeres, tornaram-se lugares
de passeio nas noites lisboetas. Em 1785, em ofício enviado ao ministro do reino a
propósito de uma grande barraca de madeira que se estava a construir no Cais do Sodré,
o intendente escreve que esse é um sítio “aonde se vão recrear e passear de tarde os
moradores desta Capital, e com especialidade os que são estrangeiros” 19. Dois anos
depois informa que deu ordem para que as prostitutas não estejam na “beira-mar,
passeio público, praça da Alegria, e outros sítios por onde há maior concurso de gentes
sérias que costumam ir àqueles lugares a recrearem-se”20. A prática do passeio público
urbano parece ter conquistado os lisboetas, sendo inúmeros os papéis volantes e
entremezes das duas últimas décadas de setecentos que registam a adesão ao novo
costume, como se pode ler num publicado em 1786: “não há sítio para mim mais
agradável do que este do Cais do Sodré [...] gasto por estes sítios toda a tarde, e parte da
noite, acompanhado do meu amigo, e vizinho Crispim, a que tenho introduzido este
bom gosto” 21
. Na documentação policial, mormente nos sumários de testemunhas,
encontram-se referências à prática do passeio urbano, na quinta dos Paulistas e no adro
da igreja do Loreto, por indivíduos de diferentes grupos sociais. Um negociante com
loja de droguista e morador na Rua de S. Paulo diz ao corregedor do bairro do Rossio

17
Em França e em Inglaterra, o hábito e o espaço urbano de passeio público datam do século XVII, em
Espanha terão surgido apenas na terceira década do século XVIII. Entre os numerosos trabalhos sobre o
tema, refiram-se os de Robert M. Isherwood, Farce and fantasy. Popular entertainment in eighteenth-
century Paris, N. York, 1989 para a capital francesa, Peter Borsay (“The rise of the promenade: the social
and cultural use of space in the english provincial town, c.1660-1880”, British Journal for eighteenth-
century studies, 9, 2 (1986), 125-140 para as cidades provinciais inglesas e de Edward Baker (“Larra, les
jardins publics et la sociabilité bourgeoise”, Urbi, VIII, 1983, LXXVIII-LXXXV) ou de Francisco García
Gomes (“La alameda de Málaga y el salón del Prado. Estudio comparativo”, Baetica. Estudios de Arte,
Geografia e Historia, 15 (1993), 7-19 para Espanha. Embora relativo a Nova York e ao século XIX, veja-
se o texto de David Scobey (“Anatomy of the promenade: the politics of bourgeois sociability in
nineteenth-century New York”, Social History, 17, 2 (1992), 203-227) onde o autor considera o passeio e
o passear como um episódio na construção da esfera pública burguesa e o analisa como uma sociabilidade
que constrói um espaço público de exclusão social e de mistura de sexos.
18
Carl Israel Ruders, Viagem em Portugal, 1798-1802 (trad. de António Feijó, pref. e notas de Castelo
Branco Chaves), Lisboa, 1981, p.165, a propósito do Cais do Sodré.
19
TT, IGP, Secretarias, livro 2, fl. 176.
20
TT, IGP, Secretarias, livro 3, fl. 1-3v.
21
Quem quizer rir, pague e leia, ou os freguezes do Cais do Sodré, Lisboa, Tip. Filipe da Silva e
Azevedo, 1786, pp.1-2. Citado por M.ª Antónia Lopes, Mulheres, espaço e sociabilidade. A
transformação dos papéis femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do século

8
que, “todos os Domingos e dias santos costuma ir passear”, “apenas acaba de jantar”,
para os arcos das águas livres e para junto da referida quinta, local onde “concorrem
várias pessoas, por ser um alto que descobre o mar até à barra em muitas terras, a gozar
aquela vista”22. Alguns anos antes, em 1821, quando pelas cinco da tarde de um dia de
Agosto passeavam na dita quinta, um carvoeiro e um sapateiro presenciaram insultos
entre outros homens.23 Quanto ao passeio público mandado edificar pelo Marquês de
Pombal, os referidos testemunhos dos livros de memórias e de viajantes estrangeiros são
unânimes em dizer que era pouco frequentado, apontando a sua localização (entalado
entre dois vales), as restrições ao acesso e os costumes portugueses (em particular, o das
mulheres das classes média e alta saírem pouco, o que limitava fortemente uma prática
que, nos outros países, vivia também do convívio entre sexos) como causas principais.
Ainda em 1822, Almeida Garrett, no periódico O Toucador, lamenta a pouca frequência
do Passeio Público, atribuindo-a à ausência das senhoras24. “Miserável passeiozinho”,
chamou-lhe Darymple. Será preciso esperar pela década de quarenta para que o Passeio
Público, depois de ter sido amplamente remodelado, passe a integrar as sociabilidades
lisboetas25.
Encontram-se também referências àquilo que se pode admitir serem os
primórdios de um outro género de passeio, associado à vida de café, aos teatros públicos
e ao novo comércio de lojas com montras. Ia-se apanhar o fresco do entardecer ou da
noite, e admiravam-se as fachadas, as luzes e o movimento dos cafés e teatros, as
montras das lojas com as suas mercadorias. Ruders, por exemplo, diz que as lojas das
casas das “muito belas” ruas do Ouro e da Prata “são ocupadas por estabelecimentos
onde se vêm expostas as alfaias e jóias mais preciosas, obras de ouro e prata de toda a
espécie, em armários envidraçados, suspensos dos dois lados da porta. Em frente destes
estabelecimentos há sempre muita gente pasmada”; e afirma que uma das distracções

XVIII), Lisboa, 1989, p. 158, que indica outros textos da mesma natureza sobre a prática do passeio,
incluindo os mais conhecidos de José Daniel Rodrigues da Costa.
22
Ele e um sargento de cavalaria foram presos por suspeitos no dia 13 de Fevereiro de 1831, pelas 16h,
quando se encontravam a conversar no sítio da Senhora dos Prazeres, junto à Quinta dos Paulistas. TT,
IGP, CMB, maço 221, docs. 314-315.
23
TT, IGP, CMB, maço 100, docs. 256-8.
24
Em O Toucador: periódico sem política dedicado às Senhoras Portuguesas, publicado entre Fevereiro
e Maio de 1822 por Almeida Garrett, elogia-se a moda londrina e parisiense de passear nos jardins
públicos e lamenta-se que as senhoras portuguesas não frequentem o passeio público, arrastando nessa
ausência os homens: “os homens não frequentam o Passeio porque as senhoras o abandonam e porque
assentaram consigo (bem ou mal?) que não deviam ir onde elas não fossem”. Citado por Pinto de
Carvalho (Tinop), Lisboa d’outros tempos. II. Os Cafés, Lisboa, 1991 (1ª ed. 1889), p.189-190.
25
Sobre o passeio público, veja-se o artigo, e bibliografia aí referida, de Jorge Rodrigues Ferreira,
“Passeio Público (1764-1889)”, Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, 1994.

9
das senhoras é “passear de carro parando às portas das lojas para ver tecidos e jóias” 26.
Num requerimento enviado ao Intendente, em Junho de 1822, para que possam
continuar a sua venda depois do toque das avé marias, doze vendedoras de frutas e
doces no sítio do Loreto (ao Chiado), justificam o pedido, dizendo que “quando
verdadeiramente fazem alguma vendagem daqueles géneros é em o bocado da noite em
que ali se demoram, pelas transitações de numerosas famílias que por ali giram em seus
passeios”27. Os dois tipos de passeio darão lugar, na segunda metade do século XIX, à
expressão “fazer o Chiado”, em que ver e ser visto em público se torna um dos ritos de
sociabilidade. Não se pode aqui ignorar a importância do progressivo calcetamento das
ruas28, nem da iluminação pública, a qual, inaugurada em 1780, devido ao empenho do
Intendente da Polícia Pina Manique, contribuiu certamente para um aumento da
utilização e do tráfego nocturno das ruas29.
Em síntese, os elementos de geografia histórica da rua lisboeta aqui
brevemente esboçados revelam que, nos finais do século XVIII, os usos sociais da rua
estavam a mudar. Um conjunto de novas regras e de intervenções no espaço público
urbano (iluminação pública, numeração das ruas e portas, calcetamento, horas de
despejo de lixos, etc.), a própria criação de uma rede policial de vigilância, alteraram os
comportamentos considerados apropriados em espaço público 30. As transformações do
espaço urbano e dos seus usos estão relacionadas, tanto com as mudanças económicas e

26
Carl I. Ruders, Viagem em Portugal...., p. 35 e 168.
27
TT, IGP, CMB, maço 101, docs. 121-123.
28
O calcetamento das ruas era uma condição importante para a prática do passeio e a sua falta contribui,
juntamente com outros factores, é certo, para explicar a tardia adopção desta prática por parte dos
portugueses, em particular das mulheres, dada a sujidade que implicava. Na “Memoria sobre o methodo
de limpar, e conservar limpa a cidade de Lisboa”, publicada no Investigador Portuguez em Inglaterra,
vol. VI, Londres, 1813, p. 46-56, o cirurgião António d’Almeida escreve que, por causa das lamas e da
falta de calcetamento das ruas de Lisboa, “há excepção de bem poucas ruas, nas restantes só se pode
andar por necessidade e saltando de pedra em pedra; daqui vem a grande repugnância que tem os
lisbonenses por hábito, ao passeio, particularmente as mulheres”. Ratton, que nas suas Recordações
sugere alguns sítios da cidade para o estabelecimento de passeios públicos (como, por exemplo, no
Campo de Santana), diz que o passeio público (para o qual, aliás, contribui com o arvoredo) era “o único
refúgio que têm os habitantes de Lisboa para passearem livres de lama”. O que, acrescente-se, parece não
ter sido suficiente para que fosse frequentado nos finais do século XVIII. (Recordações de Jacome Ratton
sobre Ocorrências do seu tempo em Portugal de Maio de 1747 a Setembro de 1810, Lisboa, 1992,pp.
235, 237-8).
29
Sobre a iluminação pública em Lisboa, veja-se F. Inácio dos Santos Cruz, Notícia histórica da
iluminação da cidade de Lisboa, Lisboa, 1840 e José Estevam, “A iluminação da cidade”, Revista
Municipal de Lisboa, 79 (1958), 5-22. Acerca da relação entre iluminação pública e práticas culturais de
origem cortesã, veja-se Craig Kolslofsky, “Court culture and street lighting in seventeenth-century
Europe”, Journal of Urban history, 28, 6 (2002), pp. 743-68.
30
Embora diga respeito ao século XX e à realidade americana, e preocupado com a utilização política do
espaço urbano, veja-se a metodologia seguida por D. Mitchell na apreensão da construção legal do espaço
público com base na legislação e nas decisões dos tribunais, em “Political violence, order, and the legal

10
demográficas como com as novas práticas de sociabilidade, os novos códigos de
civilidade e o impacto de instituições como a polícia (para já não falar da igreja). Por
um lado, os espaços impõem constrangimentos aos comportamentos - no passeio
público, por exemplo, não se deve examinar “com demasiada curiosidade as árvores, as
flores, as estátuas, as fontes, os bustos, ou cousa alguma, para não mostrar a pequenez
do nosso espírito”31. Por outro lado, a polícia, ao vigiar e proibir antigos usos do espaço,
ao impor novas regras e novas condições temporais e espaciais, contribuiu para a
mudança das práticas e dos espaços de sociabilidade e dos padrões de comportamento
público.

Tabernas e cafés

"Eu gosto de Café, eu conheço por experiência as suas virtudes [...]. Contudo,
sendo tão conhecidas as virtudes deste vegetal, para mim é uma bebida detestável [...]
quando me vejo obrigado a tomá-lo em casa [...]. O Café para ser uma divinal bebida, e
para mim um milagroso fármaco, ou o elixir da imortalidade, há-de ser tomado no
Botequim, e naqueles Botequins, que nós agora temos de mais soberba arquitectura, de
mais finos, lavrados, e polidos mármores, de mais levantadas colunatas [...]. Isto é que é
Café, isto é que é bebida celeste [...]. Então que diferença específica há no Café caseiro
do Café da Águia negra?[...]
Quando entro em um dos nossos mais afamados Botequins [...] ali está tudo; se
não vejo o Francez [...] vejo o afrancezado, parece que lhe mordeu a Tarantula nas
nádegas, tal é a inquietação com que se mexe, e remexe, com que fala, com que
discorre, com que gesticula [...]. Além para aquele canto está o Hespanhol [...]. Está
para um canto o Inglês taciturno, e pensativo [...]. Além naquele canto está o Alemão
falando [...]. Além a outro canto está o Italiano discorrendo com viveza Pantomínica
[...]. Mas isto ainda não é tudo, o mais é o que eu escuto aqui numa banquinha ao pé de
mim, são dois altercantes [...]. A cabeça de um, marra na cabeça de outro [...]. Ora quem
poderá duvidar que cada sorvo de Café que eu vou engolindo, açucarado com estes
diálogos, seja o mais estomacal, aromático, e saboroso? Agora é que eu vou sabendo

construction of public space: power and the public forum doctrine”, Urban Geography, 17, 2 (1996), 152-
178.
31
João Rosado de Villa-Lobos e Vasconcelos, O Perfeito Pedagogo na arte de educar a mocidade,
Lisboa, 1816, (1ª ed. 1782), p.181, citado por Nuno Madureira, Cidade: espaço e quotidiano (Lisboa,
1740-1830), Lisboa, 1992, p.139.

11
porque há homens que se não tiram do Botequim desde pela manhã até duas horas
depois da meia noite!
Eis que entra um daqueles embonecrados Orates depositários e confidentes de
todos os segredos da cidade [...]. Dez bocas a uma só voz lhe perguntam que há de
novo, que há de novo, que há de novo? [...].
Eu não só vazaria uma chícara, mas um chocolateira em peso, sempre com o
mesmo prazer [...]"(32).

No período que temos vindo a analisar, as lojas de bebidas e de comes e bebes


conhecem, a par de uma significativa difusão, uma especialização progressiva (taberna,
casa de pasto, restaurante, botequim, café, etc.); são espaços públicos comerciais,
fisicamente locais de convívio e sociabilidade (masculina), entre a rua, a casa e o
trabalho, que se tornaram também lugares importantes de debate público. As diferentes
perspectivas dos estudos sobre estas lojas reflectem a complexidade destes espaços, as
suas múltiplas funções e a sua diversidade. Regra geral, as abordagens mais conhecidas
relacionam as tabernas com a cultura popular e os cafés com a emergência da esfera
pública e de um ambiente de consumo mais requintado, de matriz burguesa. São, por
exemplo, e para nos atermos apenas àqueles que se debruçam especificamente sobre o
mundo das tabernas e dos cafés, entre meados do século XVIII e meados do século
seguinte, os casos dos trabalhos de Peter Clark sobre os estabelecimentos de cerveja
britânicos33, de Thomas Brennan34, de Langle 35 ou de Haine36, acerca das lojas de
bebidas parisienses, de Bonnet Correa, sobre os cafés literários espanhóis 37 .
A primeira observação a reter refere-se ao número e variedade destes
estabelecimentos: entre 1783 e 1833, abriram as suas portas em Lisboa cerca de 2500
lojas (quase 2800 se incluirmos o termo da cidade), sendo possível afirmar que, no ano
de 1825, os habitantes e os forasteiros tinham à sua disposição mais de 1600

32
Semanario de Instrucção, e Recreio, nº 18, 30 de Dezembro de 1812, "Artigo IV. Variedades. O caffé".
33
Peter Clark, The English Alehouse: a Social History, 1200-1830, Londres, Longman, 1983.
34
Thomas Brennan, Public Driking and Popular Culture in Eighteenth-century Paris, Princeton,
Princeton University Press, 1988.
35
Henry-Melchior de Langle, Le petit monde des cafés et débits parisiens au XIXe siècle, Paris, PUF,
1990.
36
W. Scott Haine, The world of the Paris café. Sociability among the French working class, 1789-1914,
Baltimore-Londres, The John Hopkins Univ. Press, 1996.
37
Antonio Bonet Correa, “Les cafés littéraires en Espagne du XVIIIe au XXe siècle”, in La sociabilité à
table..., Rouen, 1992, p. 293-300.

12
estabelecimentos de comes e bebes38. Se algumas tiveram uma existência curta, outras
conheceram uma vida longa que em alguns casos se prolongou pelo século XIX dentro.
Quanto à variedade, detectaram-se diferentes géneros de lojas de comes e bebes, sendo
os principais tabernas, armazéns de vinhos, tendas, vendas, cafés, botequins, casas de
pasto. Podemos agrupar estas casas em cinco tipos: as que se destinam ao consumo de
vinho e aguardentes (e certas comidas) no local, como as tabernas; as que vendem vinho
por grosso, mas onde se pode também consumir vinho, como os armazéns de vinho; as
que vendem géneros vários ligados à alimentação e sua confecção (hortaliças, carvão,
velas, etc., e, claro, vinho) nas quais também se consome in loco; aquelas onde se
consomem bebidas alcoólicas finas (licores), refrescos, chá e o líquido que lhes dá o
nome, café, podendo servir certo tipo de alimentos, como torradas e bolos; as casas de
pasto ou de povo, que se destinam a servir refeições, sendo as bebidas o
acompanhamento. Os números compulsados permitem duas conclusões: as lojas de tipo
tradicional, dos velhos hábitos de bebida 39 – tabernas, armazéns, tendas – dominam
claramente este universo dos espaços de sociabilidade; as lojas de tipo novo, os cafés e
botequins têm já uma expressão relevante.
Com um padrão de distribuição razoavelmente disperso por toda a cidade, a
geografia destas lojas apresenta uma faixa de maior densidade em toda a linha
ribeirinha, com particular incidência entre o Cais de Santarém e o Cais do Tojo à
Boavista. Em segundo lugar, as lojas de comes e bebes concentravam-se no lado
ocidental da cidade, aí sobressaindo três núcleos: baixa-chiado-bairro alto, S. Bento e
em torno da calçada da Ajuda. Como pólos secundários, registam-se a Graça, a
Mouraria e o Castelo. Ou seja, as maiores concentrações situavam-se perto dos
principais cais e mercados da cidade. A faixa ribeirinha e a baixa eram o centro dos
circuitos económicos fundamentais, comércio retalhista incluído. Área de comércio e de
indústria artesanal (que os arruamentos pombalinos reforçaram), local de circulação
diária, não admira que fosse procurada para a instalação de lojas de bebidas, tabernas e
casas de jogo. Certas actividades e espaços, como os teatros, os quartéis e, depois de
1820, as Cortes, constituíam também um forte factor de atracção. Embora com uma

38
O número peca por defeito, dado que se refere a uma relação de lojas de bebidas elaborada pela
Intendência Geral da Polícia, em 1825, à qual faltam as informações relativas a algumas freguesias, entre
elas as de S. Julião, S. Paulo, Sta. Justa e Mártires, nas quais existia um número considerável de tabernas
e de cafés. Acerca dos números indicados, veja-se M.ª Alexandre Lousada, Espaços de sociabilidade em
Lisboa...., pp. 182-200.
39
Veja-se, a este propósito, Pedro Andrade, “O beber e a tasca – práticas tabernais em corpo vínico”,
Povos e Culturas, 3 (1988), 223-263.

13
intensidade menor, sucedia o mesmo nas principais vias de acesso terrestre à capital. Se
analisarmos a distribuição dos diferentes tipos de estabelecimentos, verifica-se que as
lojas de serviço mais indiferenciado, como as tendas, se localizam sobretudo nas vias de
acesso à cidade ou mais afastadas do centro, enquanto que os cafés e botequins se
concentram, no final do período em estudo (1831), junto do Cais de Sodré, nos largos
do Calhariz e do Loreto, no Rossio e no largo de Belém. Já as tabernas e os armazéns de
vinho obedecem ao padrão de distribuição global. No conjunto, pode afirmar-se que
estas lojas – e sobretudo aquelas que adquiriram certa notoriedade, como as célebres
Nicola, Marrare, Casaca, Marcos Filipe, Maneta, José Gordo, Mal Cozinhado 40 - não
estavam adstritas (apenas) ao quadro temporal e espacial residencial. Serviam também,
e em alguns casos sobretudo, os que trabalhavam, se deslocavam em negócios ou
estavam simplesmente de passagem nas áreas onde se localizavam.
Lugares privilegiados de encontro e da prática de um conjunto diversificado de
actividades, a frequência das tabernas e dos cafés é ditada por diferentes categorias de
razões, ligadas no essencial ao preço, à qualidade dos géneros servidos, ao ambiente
material e a diferentes necessidades que, conjugadas, explicam os vários significados
sociais, a geografia e os ritmos horários de frequência. A taberna e a casa de pasto, por
exemplo, tinham um papel muito importante na alimentação das classes populares. Mas,
tal como sucedia com os botequins, conheciam um movimento intermitente de gente, a
todas as horas do dia e da noite, que aí entrava a gozar uma pausa no trabalho ou no
caminho, conversava e bebia um copo de vinho, aguardente ou cerveja (nas tabernas,
tendas e armazéns de vinho), ou tomavam café, chá, chocolate, capilé ou licor (nos cafés
e botequins). O mestre cordoeiro João Vicente, por exemplo, ia “muitas vezes beber
vinho” à taberna que existia defronte da sua oficina. O serrador José Fumegas foi
encontrado pelas 11h da manhã num armazém de vinho, a “beber com os seus
camaradas”, durante uma pausa da obra da serração 41. Aí também de podia arranjar
trabalho e ajustar o preço, como fazia em 1832 o catraeiro António de Carvalho, que se
deslocava a uma loja de vinhos e aguardentes no Cais do Sodré “para ver se lhe dão a
ganhar pelo tráfico de catraeiro”42.

40
Sobre estes cafés (requintados) e tabernas (mal afamadas) veja-se o insubstituível Pinto de Carvalho
(Tinop), Lisboa d’outros tempos ...
41
TT, IGP, maço 93, docs. 354-5 e maço 623, doc. s.n..
42
TT, IGP, maço 234, doc. 69-70.

14
Lugares de encontro e de convívio, os cafés e as tabernas foram parte activa da
nova vida e da nova cultura política de finais do século XVIII43. Este é um dos aspectos
mais conhecidos da existência dos cafés e que, para Lisboa, se encontra bem
44
documentado no livro de Tinop . A forte vigilância de que foram alvo logo no tempo
de Manique, que para lá enviava espiões com o fito de saberem quem eram os
simpatizantes das novas ideias francesas, manteve-se, pelo menos, até ao final da guerra
civil. A literatura da época e os processos políticos durante o reinado de D. Miguel,
atestam o papel que já nessa altura os cafés e as tabernas desempenhavam na vida
política, como centros de discussão, de conspirações, como tribunas políticas
influenciadoras da opinião pública 45.
Juntamente com as bebidas, e certamente mais do que a discussão política, o
jogo era uma das grandes atracções das tabernas e dos cafés. Bem podia o regimento
dos taberneiros de 1797 estabelecer que “nenhum taberneiro consentirá nas suas
tabernas qualidade alguma de jogo às pessoas que a elas forem comer” 46. Era letra
morta, pois o jogo era uma paixão a que todos se dedicavam, do criado ao aristocrata,
passando pelas gentes de ofício. Para além de o praticarem na rua e em casa,
deslocavam-se à taberna ou ao café para uma partida de laranginha, de cartas ou de
bilhar, consoante o seu estatuto social, o seu gosto pessoal e o estabelecimento onde se
encontravam. A documentação permitiu identificar, entre estabelecimentos de bebidas e
casas de jogo, 377 locais, onde se jogava e/ou que possuíam equipamento de jogos (por
exemplo, mesa de bilhar, campo para laranginha), só na cidade de Lisboa, e mais 41 no
termo, cujo padrão de distribuição geográfica acompanhava o das tabernas e cafés 47. Foi
também possível detectar que, tal como sucede com outras práticas de lazer, também o
jogo era regido por códigos sociais que atribuíam a cada grupo social um espaço e um

43
As relações entre a actividade política, a formação da opinião pública e os cafés, na segunda metade do
século XVIII, têm sido estudadas com particular ênfase no caso de Paris e de Londres (veja-se as obras já
referidas de Habermas, Sennet, Th. Brennan, Haine, Clark, etc., sobre a opinião pública ou sobre o mundo
das lojas de bebidas).
44
Que se baseou em documentação da Intendência Geral da Polícia. Pinto de Carvalho (Tinop), Lisboa
d’outros tempos...
45
Cf. Jorge Hugo Pires de Lima, Processos políticos do reinado de D. Miguel. Sumários, Coimbra, 1972
e José Augusto dos Santos Alves, A opinião pública em Portugal ....
46
O regimento dos taberneiros de 1572 encontra-se transcrito em E. F. Oliveira, Elementos para a
História do Município de Lisboa..., t. XVI, p.489 n. a 491, o de 1797 em F. P. Langhans, As corporações
dos ofícios mecânicos. Subsídios para a sua história, Lisboa, 2º vol., 1946, p.427.
47
Sobre a distribuição espacial das casas com jogo na Lisboa primo-oitocentista veja-se M.ª Alexandre
Lousada, Espaços de sociabilidade ..., pp. 216 e segs.

15
tipo de jogo particulares48. Assim, os jogos de força e destreza, como a laranginha e o
chinquilho, conheceram um processo de deslizamento social que terá certamente
influenciado o modo de jogar: sob a designação de bola ou péla eram praticados pelos
alunos do Colégio dos Nobres e tinham-se popularizado nos finais do século XVIII.
Junto com outros jogos de malha, a polícia encontrava artesãos, aguadeiros, moços de
fretes e criados de servir, jogando na rua, em tabernas, armazéns de vinho e tendas,
sobretudo nas áreas periféricas da cidade ou nos arredores49. Com efeito, a sua
distribuição geográfica mostra que os estabelecimentos onde foi encontrada gente a
jogar laranginha ou chinquilho se encontravam dispersos pela cidade e praticamente
ausentes das áreas nobres. Eram também os jogos mais frequentes no termo, o que
confirma o seu carácter popular e rusticizante. Quanto ao bilhar, tanto a sua sociologia
como geografia são distintas. Posto em verso por Nicolau Tolentino, em 1778, objecto
da publicação de tratados e de peças de teatro, nos finais do século XVIII o bilhar já
tinha saído para fora do círculo restrito da corte. Era um jogo tipicamente urbano,
praticado no interior de uma sala e adequado ao espaço e à clientela dos cafés. Entre
1810 e 1833 foi possível recensear cento e sete locais com mesa de bilhar, concentrados
no Cais do Sodré -S. Paulo, entre o Loreto e S. Roque e no Rossio e imediações. O seu
sucesso criou mesmo um mercado potencial para empresários no sector do jogo e
possibilitou a abertura de casas de jogo especializadas. Mas os jogos mais difundidos
nas tabernas, armazéns e cafés eram os de cartas e dados. Aguadeiros, soldados e
marujos aí se entretinham, entre si ou na companhia de artesãos, funcionários e
caixeiros. A variedade de jogos era grande, desde a popular bisca ao aristocrático e
burguês whist. Detectou-se a existência de, pelo menos, cento e quinze tabernas e casas
de jogo que possuíam licença para ter jogo de cartas. A maior ciência requerida em
jogos como o voltarete e o whist (jogos que conheceram uma grande voga na Europa, a
partir da segunda metade de setecentos) explica que as respectivas licenças fossem
apenas pedidas por um número restrito de estabelecimentos, regra geral pelas lojas de

48
Nicole e Yves Castan, Vivre ensemble. Ordre et désordre en Languedoc au XVIIIe siècle, Paris, 1981,
p. 43-44, detectaram que no Languedoc tardo-oitocentista os nobres e os burgueses jogam em casa, no
café e nos bilhares, enquanto o resto da população vai jogar aos cabarets ou às casas mal-afamadas dos
arredores urbanos, "onde em rigor os filhos-família se vão encanalhar".
49
A laranjinha mantém-se como um jogo popular, embora actualmente seja praticado sobretudo em
associações recreativas. Veja-se, numa perspectiva antropológica, Graça Índias Cordeiro “Jogo,
sociabilidade e cultura: o ritual da laranginha em Lisboa”, Estudos em homenagem a Ernesto Veiga de
Oliveira, Lisboa, INIC, 1989, 281-303. Sobre a ligação entre a taberna e o jogo, Pedro de Andrade, “O
beber e a tasca...”, p. 243-247.

16
bebidas frequentadas por uma clientela mais instruída, como eram o Botequim da Parras
ou o Marrare.

Estabelecimentos comerciais, lugares de consumo, as tabernas e os cafés


constituem um “quadro de relações sociais livremente escolhidas” 50 e afirmam-se
claramente como espaços públicos de sociabilidade informal cuja frequência se terá
tornado, nesta época, uma norma da vida social masculina 51. Devido à sua natureza
pública e às características físicas dos seus ambientes, os que lá vão devem adequar os
seus comportamentos ao carácter do local. O modo de estar numa taberna ou num café
são diversos, mesmo que os clientes sejam os mesmos (ainda que geralmente o não
sejam). Os manuais de civilidade passam a incluir recomendações sobre a conduta a ter
nesses novos espaços públicos que eram os cafés, em tudo similares às escritas por João
Rosado Villa-Lobos e Vasconcelos, em O Perfeito Pedagogo na arte de educar a
mocidade: “Como a casa [o café ou botequim] é do povo ali não há precedência; todo o
lugar é bom. Porém contudo devo sempre cortejar com gravidade quem está na casa,
quando entro; e corresponder com a mesma quando sou cortejado. Se me quiser
demorar, e prender conversação com quem entra, o devo fazer com muita reflexão; não
só por ser um lugar público; mas também por ignorar o carácter da Pessoa; e sobre tudo
o seu génio e inclinações”52.
Embora não tenhamos números para períodos anteriores, não deixa de ser
sintomático que, ao visitar Lisboa em 1730, Saussure tenha considerado (ainda que
provavelmente com algum exagero) ser “assombroso que numa cidade tão grande e tão
comercial como é Lisboa não haja hospedarias nem botequins, tais como existem em
França, na Holanda, em Inglaterra e noutros países. Não existem aqui mais que duas
péssimas tascas, estabelecidas numa rua à beira do Tejo e que pertencem a uns
irlandeses”53. Ora, em 1801, Ruders informa nas suas cartas que “em inumeráveis sítios
da cidade há estabelecimentos chamados Lojas de Café, com portas envidraçadas para a

50
A expressão é de Joffre Dumazedier e Annette Suffert (“Fonctions sociales et culturelles des cafés.
Enquête dans une agglomération urbaine: Annecy et ses environs”, L’Année Sociologique, 1962, p.216), a
propósito das funções sociais e culturais dos cafés, numa cidade francesa, na primeira metade do século
XX. Os autores defendem que os cafés, “instituições de lazer popular”, ao contrário da imagem muito
difundida de “instituições radicalmente más”, do ponto de vista moral e social, são um factor de
integração urbana e de desenvolvimento da vida social.
51
Sobre a presença das mulheres nas tabernas e nos cafés, M.ª Alexandre Lousada, Espaços de
sociabilidade ..., pp.232-242.
52
O Perfeito Pedagogo ..., 2 ª edição, 1816, p. 191.
53
César de Saussure, “Cartas escritas de Lisboa no ano de 1730”, public. em O Portugal de D. João V
visto por três forasteiros (trad., pref. e notas de Castelo Branco Chaves), Lisboa, 1983, p. 266.

17
rua [...]. Muitas dessas lojas só são frequentadas por gente da pior espécie. Outras há,
porém, ao que parece, com clientela mais decente”54. A sua geografia histórica é,
contudo diversa: a taberna, que tem uma origem muito antiga, durante o século XVIII,
prolifera do ponto de vista territorial e institucionaliza-se como um espaço de
sociabilidade popular; o café, surgido no século XVII, afirma-se durante setecentos
como um espaço de sociabilidade burguesa que se difundirá no século seguinte. Ambos
são também, sobretudo se não exclusivamente, espaços masculinos constitutivos da
esfera pública (também ela masculina) que emergiu nesta mesma época.

A assembleia, ou o salão à portuguesa

O salão aristocrático-burguês, de matriz francesa, para o qual os “organizadores”


(frequentemente mulheres55) convidavam poetas, literatos, publicistas e amigos
estrangeiros, era uma espécie de academia informal, que contribuía de forma “intensa
para a difusão de uma cultura geral e para o fomento da amizade entre pessoas cultas” 56.
Ou seja, o seu fim não era a mera tagarelice do convívio social, mas a discussão, a
conversação culta sobre literatura, poesia, temas filosóficos, ciências, etc.. Alguns, pela
influência e notoriedade que alcançaram, funcionaram como espaços públicos de
discussão, tendo contribuído para a formação da esfera pública. De qualquer modo, no
fundamental, trata-se de um espaço privado, de origem familiar, que se abre ao convívio
social, embora restrito a círculos fechados. Em Portugal, tanto quanto se conhece, este
modelo de salão teve uma existência escassa, sendo os da marquesa de Alorna, de
Francisca Possolo, do Conde de Sabugal e do morgado de Assentiz os únicos que estão,
e mesmo assim sumariamente, documentados57. Isso não significa, no entanto, que a

54
C. I. Ruders, Viagem em Portugal ..., p.227.
55
Embora nem sempre seja a organizadora, ou a figura dominante, do salão, a mulher é uma presença
indissociável desta prática de sociabilidade. Sobre o salão como lugar de “convergência das ambições
femininas e filosóficas”, D. Goodman, “Enlightenment Salons: the convergence of female and
philosophic ambitions”, Eighteenth-Century Studies, 22, 3 (1991), 330-350.
56
Ulrich im Hof, A Europa no século das luzes, Lisboa, 1995, p. 107, onde se pode ler uma curta mas boa
síntese sobre os salões do iluminismo.
57
Os de Possolo, Sabugal e Assentiz a partir das memórias de António Feliciano de Castilho - Júlio de
Castilho, Memórias de Castilho, Lisboa, 1881, t. I, p. 207-216 e t. II, p. 83-92 e 197- 213, A.F.de
Castilho, Castilho pintado por ele próprio, Lisboa, 1909, vol. I, p. 39-41. O da Marquesa de Alorna, a
partir das memórias do neto, D. José Trazimundo, marquês de Fronteira e de Alexandre Herculano.
Elaborado com base nestes textos, veja-se M.ª de Lurdes Lima dos Santos, Para uma sociologia da
cultura burguesa em Portugal no século XIX, Lisboa, 1983, p. 129-130 e Intelectuais portugueses na
primeira metade de oitocentos, Lisboa, 1988, p. 279-299. Terão existido outros salões literários como,
por exemplo, o de D. Joana Isabel Forjaz, brevemente referido por Graça Silva Dias, “Um discurso do
celibato no século XVIII em Portugal”, Análise Social, XXII, 92-93 (1986), p. 745.

18
prática de receber em casa um grupo de amigos, ultrapassando assim o núcleo familiar,
e ainda que sem a presença de literatos, não se tenha instalado na sociedade
portuguesa58. Chamava-se assembleia, partida (quando o jogo era a actividade
dominante) ou função, designações que reforçam o seu carácter de convívio e
divertimento, em prejuízo da dimensão literária que se encontrava associada ao salão
francês. A prática foi vista como uma novidade e satirizada em textos como a
“Assembleia ou Partida” de Correia Garção e “A Função” de Nicolau Tolentino 59. Nos
dicionários do século XVIII e da primeira metade de oitocentos, assembleia é
geralmente definida como “junta de pessoas convocadas para divertimento, e
convivência”, surgindo também como sendo também sinónimo de baile 60; partida,
embora utilizada em muitos textos da época para qualificar as reuniões ou assembleias
onde o jogo dominava, só tardiamente surge nos dicionários com essa acepção 61; quanto
a função, se antigamente era usada para as festas religiosas, nos finais do século XVIII a
palavra remete para “festa ou festim em casa ou nos templos” 62. São diferentes palavras
que, designando basicamente a mesma realidade, reflectem as diferenças da prática
dominante da reunião e da sua composição social. Quanto ao vocábulo salão, os
dicionários dizem-nos apenas que se tratava de uma “sala grande”, não o associando
ainda a uma forma específica de sociabilidade.
Não cabe no âmbito desta abordagem analisar as possíveis relações de
continuidade entre o salão, os saraus literários e musicais de setecentos (formalizados
ou não em academias literárias) e os outeiros freiráticos 63. No caso do salão francês, se

58
Cf. Maria Alexandre Lousada “Sociabilidades mundanas em Lisboa. Partidas e assembleias, c. 1760-
1834”, Penélope. Fazer e Desfazer a História, 19-10 (1998), 129-160.
59
Após 1834, o salão – ou assembleia – terá tido uma difusão razoável na sociedade lisboeta, segundo se
depreende dos testemunhos, entre outros, de Almeida Garrett, Bulhão Pato ou Gomes de Amorim; data,
aliás, de 1834, a primeira litografia conhecida onde se retrata uma assembleia ou salão literário em Lisboa
(litografia de Joaquim Pedro Caldas Aragão, existente na Biblioteca Nacional e muito reproduzida).
60
A primeira definição é a que se encontra nas várias edições do Diccionario da lingua portuguesa ... de
António de Morais Silva (1813, 1823 e 1831). A associação com baile surge no Novo Diccionario critico
e etymologico da lingua portuguesa ...., de Francisco Solano Constâncio, cuja primeira edição data de
1836. No dicionário publicado pela Academia das Ciências, em 1783, assembleia é “congresso, junta de
muitos em determinado lugar para fazer ou tratar alguma coisa”, ou seja, ainda não aparece como
sinónimo de reunião social mundana.
61
A designação provém do jogo (número de jogos que é preciso jogar, dizem Bluteau e Morais Silva).
Apenas na edição de 1890, Morais acrescenta que a palavra designa também “reunião familiar, em que o
principal entretenimento é o jogo”.
62
Assim é definida nas várias edições do dicionário de Morais. Na edição de 1890, o autor acrescenta
“funçanata, patuscada” e na entrada deste vocábulo define-o não apenas como “festa familiar ou de pouca
solenidade”, mas também como a pessoa “que é dada a funçanatas, funções, divertimentos, etc.; o que
anda habitualmente por funções, divertimentos”.
63
As academias literárias foram uma importante forma de sociabilidade aristocrática de pendor cultural,
que conheceu uma expressiva difusão até meados do século XVIII. Quanto aos outeiros, consistiam em

19
alguns, como Chaussinant-Nougaret, o consideram uma herança da tradição
aristocrática de Antigo Regime, “uma forma arcaizante da vida de sociedade”
interrompida pela Revolução e reconstituída a partir do Consulado, numa versão “sem
espírito”, intelectualmente vazia, dominada pela dança, a música e o jogo, outros, como
A. Daumard, negam que os salões sejam uma simples sobrevivência do Antigo Regime
e chamam a atenção para a “marca de sociabilidade original” que a burguesia lhe
imprimiu durante a primeira metade do século XIX64. De qualquer modo, em Lisboa, a
crer em testemunhos tão diversos como o do Abade Correia da Serra ou de Francisco
Coelho de Figueiredo, o desejo de um maior convívio e o abandono dos velhos
“costumes mouriscos” difundiu-se após o terramoto de 175565. A influência estrangeira,
através da tropa e dos negociantes, quer franceses quer ingleses, e muito provavelmente
dos portugueses que viveram noutros países, também terá actuado no mesmo sentido 66.
O estudo da introdução, da difusão e das práticas desta forma de sociabilidade oferece
inúmeras dificuldades decorrentes da natureza privada e informal do fenómeno. Fontes
como diários e memórias, que relatem o novo costume, são escassas e as conhecidas,
por isso invariável e constantemente citadas como Fronteira, Beckford ou Bombelles,
ainda que constituam testemunhos privilegiados, são excepcionais e apenas permitem
um conhecimento do que se passava no interior da nobreza; além disso, são leituras
filtradas por um olhar estrangeiro ou coadas pelo passar dos anos nas memórias de um
aristocrata português criado num ambiente familiar muito particular (Fronteira, neto da
marquesa de Alorna). Autorizam, no entanto, afirmar que a alta nobreza lisboeta, ou

reuniões poéticas que tinham lugar nos conventos de freiras, tendo sido muito comuns durante o século
XVIII. CF. João Palma-Ferreira, Academias literárias dos séculos XVII e XVIII, Lisboa, 1982, e Jacinto
do Prado Coelho, “Outeiro”, Dicionário de Literatura, 3ª ed., Porto, 1985, vol. III.
64
Chaussinant-Nogaret, «La ville jacobine et balzacienne» in G. Duby, Histoire de la France Urbaine,
t.3, La ville classique, Paris, 1981, p.609, e Adeline Daumard, «La vie de salon en France dans la
première moitié du XIXe siècle » , Étienne François (dir.), Sociabilité et société bourgeoise en France, en
Allemagne et en Suisse, 1750-1850, Paris, 1986, 81-92.
65
Correia da Serra, num artigo sobre Lisboa, escrito em 1781 para a Encyclopedie e que acabou por não
ser publicado, afirmava que após o terramoto, “les gents [...] se sont accoutumés à la vie sociale et ont
quité en partie le genre de vie un peu moresque de nos ancêtres” (in Catherine Petit, “Notice inédite sur
Lisbonne en 1781”, Bulletin des Etudes Portugaises et Brésiliennes, t. XXXV, Lisboa, Institut Français
de Lisbonne, 1974, pp.93-120). Francisco Coelho de Figueiredo, irmão de Manuel de Figueiredo e
responsável pela publicação da sua obra teatral, nas recordações que publicou, em 1815, atribuiu também
ao terramoto (bem como à influência dos estrangeiros) a maior liberdade de convívio das mulheres
portuguesas (cit. por M.ª Antónia Lopes, Mulheres, espaço e ..., p. 69.
66
A literatura de cordel é aquela onde são mais frequentes as referências, e as críticas, à adopção das
modas estrangeiras, fossem elas no domínio do vestuário, das reuniões onde participavam as mulheres, ou
da alimentação. Ratton, nas já referidas e muito citadas recordações, atribui à família Cruz, de que
Anselmo José, que viveu em Itália e casou com uma italiana, foi um dos membros mais proeminentes, a
introdução de “uma certa sociabilidade e polidez, que dantes não havia” entre os negociantes, e destaca

20
pelo menos parte dela, adquirira o gosto e o costume de conviver em casa uns dos
outros, onde conversava, jogava, ouvia e tocava música, dançava, representava, comia.
Testemunham também que esse convívio não só se tornou mais intenso no início do
século XIX como se alargou socialmente, deixando de constituir uma originalidade. O
Marquês de Fronteira, que ao referir-se ao salão da Marquesa de Alorna, sua avó, dizia
ser “um espectáculo curioso” e “excessivamente original”, a reunião de “poetas,
legistas, elegantes, freiras”, que “conversavam, cantavam cavatinas, tocavam viola,
recitavam poesia”, recorda por outro lado como nos anos vinte eram frequentes as
reuniões nos palácios das famílias aristocráticas, reuniões nas quais “a aristocracia se
misturava com a democracia”67.
No processo de difusão desta nova prática de sociabilidade entre a nobreza de
corte, não deve ser ignorada a saída da família real para o Brasil, em 1807, a qual terá
contribuído para a sua consolidação entre aqueles que ficaram e os que foram
regressando, nem o impacto da influência, antes e depois daquela data, dos salões de
embaixadores estrangeiros como Lannes, Bombelles e Junot 68. A literatura de cordel
(em particular a teatral) e a poesia constituem, por seu turno e até à data, a melhor fonte
de informação disponível sobre a adopção da nova prática pelas classes médias.
Apresentam-na, ridicularizada, como uma nova moda, rapidamente perfilhada pelos
grupos sociais “inferiores”, preferida pelas mulheres e pelos casquilhos e peraltas;
criticam-na como moda de França ou mania de fidalgo – “as assembleias fervem por
Lisboa”, “grandes e pequenos/ todos querem gozar as sãs delícias, / do suave prazer da
companhia”, “não se via a mulher como hoje a vejo, / mil funções se não viam”, “nova
comédia de um engenho portuguez denominada assemblea”, “é ópio dar funções em dia
de anos”, são alguns títulos ou extractos dessa literatura da época, que se repetem até à
exaustão69. Fontes de outra natureza, como os orçamentos familiares de diferentes
grupos sociais, ao darem a conhecer as despesas com traje, trem de louça, alimentos,

também o papel de Pombal na promoção, entre a “ordem superior”, do “espírito de convivência, que tinha
observado nos países estrangeiros”.
67
Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, ditadas por
ele próprio em 1861 (ver. e coord. de E. de Campos Andrada), Coimbra, 1928, partes 1 e 2, p. 178 e 191.
68
Acerca dos bailes e das reuniões dadas por estes embaixadores, Marquis de Bombelles, Journal d’un
ambassadeur de France au Portugal, 1786-1788, Paris, 1979, Duchesse de Abrantes, Souvenirs d’une
ambassade e d’un séjour en Espagne et en Portugal, de 1808 a 1811, Paris, 1927, e João Pinto de
Carvalho (Tinop), Lisboa de Outrora (public. póstuma, cord. e rev. de Gustavo de Matos Sequeira e Luís
de Macedo), 1º vol. Lisboa, 1938.
69
Para não referir os muito conhecidos (e já referidos) textos de Correia Garção (“Assembleia ou
partida”) e de Nicolau Tolentino (“A Função”). M.ª Antónia Lopes, em Mulheres, espaço e ...,

21
mobiliário (comprados ou alugados70) possibilitariam um conhecimento mais seguro do
novo costume. Os inventários orfanológicos indicam que, nas primeiras décadas de
oitocentos, ocorreu um conjunto de transformações na organização do espaço doméstico
e um aumento dos consumos em mobiliário, louças e roupa nas classes médias 71.
A história das transformações da casa – que é sobretudo a de uma diversificação
e especialização da divisão interior, do mobiliário e dos objectos – mostra como os
quartos de dormir, as salas e a cozinha (e o corredor, que ainda não era comum)
reflectem as novas noções (ou a difusão delas) de privado e de público, as novas
práticas de sociabilidade e o nascimento da cultura do consumo. “A linha fronteiriça
entre a esfera privada e a esfera pública atravessa a casa” 72. Estudos recentes têm vindo
a rever as origens destas mudanças, recuando-as para o século XVII e pondo assim em
causa a cronologia tradicional que as situava no século XVIII73. O pouco que se
conhece sobre esta evolução nas casas lisboetas não permite confirmar a existência de
uma mudança anterior aos finais de setecentos, o que condiz com aquilo que se sabe
acerca da alteração das práticas de sociabilidade e de consumo. Terá sido no último
quartel do século XVIII que, no interior da casa urbana, do nobre, do negociante, do
funcionário e do militar (do artesão um pouco mais tarde), se regista, com amplitude
diversa é certo, mas de qualquer modo a tendência está presente, o aparecimento ou a
valorização de “divisões onde se pratica uma sociabilidade formal” e de móveis ligeiros
de apoio, como tamboretes, bancas de chá e de jogo74.

referenciou e utilizou uma boa colecção de textos de literatura de cordel que abordam o novo costume das
assembleias. Ver também M.ª Alexandre Lousada, “Sociabilidades mundanas...”.
70
Na referida literatura de cordel, encontram-se alusões mais ou menos directas ao aluguer ou
empréstimo de louças e móveis para a realização da assembleia. Atente-se, por exemplo, na parte do
drama “Assembleia ou Partida” de Correia Garção, em que dois galegos transportam, para a casa do
anfitrião, castiçais, açucareiro, bule, cafeteira e três dúzias de chávenas. Ou em um dos inúmeros textos
de José Daniel Rodrigues da Costa, onde se pode ler “He ópio dar funções em dia de annos/Que os
mesmos que as disfrutam/começão a indagar na mesma hora/Se os móveis são de casa, ou de fora./ Se as
xícaras do chá são irmãs todas/Se as luzes são de cera [...]” (Ópios que dão os Homens e as senhoras na
cidade de Lisboa huns aos outros ..., Lisboa, 1786, p.10).
71
Nuno Luís Madureira, Inventários. Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do
Antigo Regime, Univ. Nova de Lisboa, Lisboa, mimeog., 1989, e Cidade: espaço e quotidiano (Lisboa,
1740-1830), Lisboa, 1992.
72
J. Habermas, Historia y crítica ..., p. 83.
73
Entre a extensa, metodologicamente variada e regionalmente diversa literatura sobre as mudanças no
espaço habitacional e as origens do consumo moderno refiram-se, Paul Glennie e Nigel Thrift,
"Modernity, urbanism, and modern consumption", Environment and Planning D: society and space, vol.
10, 1992, 423-443, Daniel Roche, Histoire des choses banales. Naissance de la consommation dans les
sociétés traditionnelles (XVIIe- XIXe siècles), Paris, Fayard, 1997, Rafaella Sarti, Vita di casa. Abitare,
mangiare, vestire nell’Europa moderna, Roma-Bari, Laterza, 1999, e Lena Cowen Orlin (ed.), Material
London, ca. 1600, Filadelfia, Univ. of Pennsylvania Press, 2000.
74
Nuno Luís Madureira, Cidade: espaço e quotidiano..., pp. 113-150 e 194-200.

22
Ou seja, é possível afirmar que nos finais do século XVIII, em Lisboa, o salão –
se tomado numa acepção muito lata de convívio social num espaço privado familiar –
emerge e instala-se como uma prática de sociabilidade dos grupos sociais privilegiados
que se estende àqueles que possuem meios (casa incluída) para tal e aderem
culturalmente ao novo estilo de vida. Em conjunto com os teatros e os cafés, a
assembleia é um dos símbolos das novas sociabilidades e da nova cultura urbana que se
desenrola também, deste modo, em espaço privado. Ilustrativo do novo hábito e das
diferenças entre o convívio em casa e nesse antigo espaço de reunião que era a taberna é
o diálogo entre uma criada e a sua senhora, que se pode ler numa comédia da época: a
criada está muito enganada se pensa que uma assembleia é “quando em se ajuntando
quatro homens, e duas mulheres em qualquer taverna, ou qualquer logia térrea a
jogarem o truque ou a bailharem Aravanca ao som de uma viola, já dizem que estiverão
em huma assemblea”; porque esta é a que a senhora vai dar na sua “casa onde se
handem a juntar pessoas de qualidade, onde se há de jogar o iste, o quinze, o trinta e
hum, onde se há de dançar uma roda de minuetes, e depois a contradançar-se aonde se
há de tomar chá, vós já ouvistes falar em chá?” 75. Sintomaticamente, na mesma altura,
apareceram em Lisboa os primeiros clubes mundanos que tomaram o nome de
Assembleia, locais de uma sociabilidade vocacionada para a conversa, o jogo e a dança,
em ambiente cuidado, de entrada restrita e paga76.

Conclusão

O passeio público, o salão e o café consubstanciam as novas práticas, os novos


valores e os novos espaços de sociabilidade. Está-se perante um novo estilo de
sociabilidade, indissociável da identidade urbana e materializado na criação e difusão de
novos espaços urbanos, quer públicos quer privados. Por outro lado, os antigos espaços
transformam-se mercê dos novos usos, como sucedeu, ainda que lentamente, com a casa
(divisões e mobiliário) ou a rua.

75
Nova comedia de hum engenho portuguez denominada assembleia, Lisboa, 1781, p. 4, citado por M.ª
Antónia Lopes, Mulheres, espaço e..., p. 85, n. 11.
76
A mais antiga de que há conhecimento era conhecida por Casa de baile dos ingleses, Casa de
assembleia de ingleses e hamburgueses ou Assembleia do Bairro Alto e terá funcionado entre 1761 e
1767. A primeira Assembleia Portuguesa (era a sua designação oficial) surgiu em 1819. Sobre estas
assembleias públicas, veja-se M.ª Alexandre Lousada, “Sociabilidades mundanas...”, p. 141-150 e
bibliografia aí citada.

23
É certo que se mantêm muitas das sociabilidades tradicionais e do “velho estilo”
de convivência. A rua, por exemplo, mantém-se como um dos espaços de sociabilidade
da população urbana, sobretudo como ponto de partida e palco das sociabilidades
populares77. Aí se vivem acontecimentos familiares e públicos de carácter profano ou
religioso (baptizados, casamentos, festas dos santos populares, carnaval, etc.). Mas a
partir da segunda metade do século XVIII, as ruas passaram a estar sujeitas a um maior
controlo “exterior” (exercido em grande parte pela polícia, então criada) que pretendeu
tornar as ruas e as praças menos “caóticas”, mais livres para a circulação, mais limpas,
mais iluminadas, com menos pedintes, menos vendedores ambulantes. Ou seja, uma
actuação que restringia os direitos tradicionais de presença e de uso, de forma a limitar a
sua apropriação privada, transformando-as de acordo com a nova noção de espaço
público urbano78.
Quanto aos cafés e às tabernas, espaços de fronteira entre o público e o privado,
existia uma hierarquia de estabelecimentos, de acordo com a localização, o ambiente, a
clientela, o tipo e a qualidade dos géneros. Os primeiros proporcionavam uma
sociabilidade mais elegante, mais tranquila e certamente mais culta, entre poetas,
literatos, advogados, professores e negociantes que aí se reuniam. As segundas, mais
ruidosas, fisicamente menos cuidadas, eram sobretudo frequentadas pelas classes
populares, que aí se deslocavam para beber um copo de vinho ou de aguardente, jogar
cartas, dados ou chinquilho, descansar do trabalho, conversar antes do regresso a casa,
ao fim do dia. Ambos desempenharam também um papel importante como espaços de
discussão, conspiração e mobilização política, contribuindo, assim, para a formação da
opinião pública.
Em síntese, se os laços familiares, de vizinhança e de trabalho continuaram a
enquadrar as práticas e os espaços de sociabilidade, a difusão de novos valores e de
novas formas de sociabilidade foi acompanhada da criação de novos espaços físicos e

77
Tal como sucedeu em outras cidades da Europa do Sul, nomeadamente em Espanha. Cf., por ex., A.
Bonet Correa, “La Puerta del Sol de Madrid, centro de sociabilidad”, L. Alvarez, A .Collantes de Teran e
Fl. Zoido, “Plazas, plaza mayor y espacios de sociabilidad en la Sevilla intramuros”, e J. Bosque Maurel e
B. Vincent, “Los centros de sociabilidad en Granada”, in “Plazas” et Sociabilité en Europe et Amerique
Latine, Publications de la Casa de Velásquez, Paris, 1982, p. 69-116, e Manuel Morales Muñoz, “La
sociabilidad popular en la Andalucía del siglo XIX: elementos de permanencia y de tradición”, Baetica.
Estúdios de Arte, Geografia e Historia, 15 (1993), p. 383-395,
78
Sobre as várias formas de controlo do espaço e os vários direitos espaciais, a tipologia desenvolvida por
Kevin Lynch (A boa forma da cidade, Lisboa, 1999, p.195-209) pode ser muito útil na análise das
transformações das ruas e praças ao longo dos séculos XVIII e XIX. Lynch distingue cinco direitos
espaciais – de presença, uso, apropriação, modificação e disposição – e chama a atenção, quer para o

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sociais, durante a segunda metade do século XVIII. Caracterizados por um ambiente
material e humano particular, o salão, o passeio e o café tornaram-se símbolos da
espacialidade79 oitocentista e da nova cultura urbana.

facto de estes direitos não serem nem inseparáveis nem inevitáveis, quer para os problemas da
congruência do uso e do controlo de um espaço.
79
Sobre o conceito de espacialidade como espaço socialmente produzido que existe simultaneamente
enquanto forma substancial (espacialidade concreta) e enquanto “um conjunto de relações entre
indivíduos e grupos” veja-se Edward Soja, Postmodern Geographies. The reassertion of space in critical
theory, Londres, 1989, em particular o cap. 5.

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