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A CRÓNICA DE D.

JOÃO I DE FERNÃO LOPES


Capítulo II

Assunto do capítulo

Neste capítulo, Fernão Lopes narra a forma como a população de Lisboa, incitada pelos
apelos do Pajem e de Álvaro Pais para que acudissem ao Mestre, porque o estavam a matar nos
Paços da Rainha, se armou, saiu em multidão pelas ruas da cidade e se dirigiu em grande alvoroço
para aqueles, a que quis lançar fogo e arrombar as portas. Os seus intentos só foram travados
quando, aconselhado pelos seus partidários, o Mestre apareceu a uma janela à multidão, que,
reconhecendo, se acalmou, aclamando-o e insultando o conde Andeiro e a rainha.

🔺 Título

O título do capítulo (“Do alvoroço que foi na cidade cuidando que matavom o mestre, e
como aló foi Alvoro Paez e muitas gentes com ele”) apresenta as linhas gerais do texto.

🔺 Estrutura interna

. 1.ª parte – O Pajem do Mestre sai dos Paços da Rainha, em direção à casa de Álvaro Pais, e lança
o boato de que o estão a matar, conforme combinado.

. 2.ª parte – O povo sai à rua juntamente com Álvaro Pais para acorrer ao Mestre.

. 3.ª parte – A fúria do povo, agora em multidão, cresce e ele quer saber notícias do Mestre.

. 4.ª parte – O Mestre acede aos apelos dos seus partidários e surge a uma janela do Paço,
acalmando o povo.

. 5.ª parte – O Mestre desce, junta-se ao povo e despede-se da multidão.

🔺 Desenvolvimento do capítulo

. 1.ª parte (ll. 1-5) – Apelo / Convocação

. O Pajem do Mestre grita repetidamente pela cidade que querem matar D. João, informando e
incitando o povo (com o boato que lança), dando, assim, início a um plano político previamente
definido, cujo objetivo é a criação de uma atmosfera favorável à aclamação daquele como rei de
Portugal.

. O plano / a estratégia foi delineado/a pelo Mestre e por Álvaro Pais, com a colaboração do Pajem,
no sentido de intensificar a oposição popular à Rainha e ao conde Andeiro e convertê-la em revolta
a favor dos intuitos de D. João e dos seus aliados.

. Por outro lado, não restam dúvidas de que o plano foi previamente combinado, como se comprova
pela expressão “segundo já era percebido”. De facto, o Pajem estava à porta aguardando que o
instruíssem a iniciar o plano e, quando recebe a ordem, parte a cavalo, percorrendo as ruas a
galope, gritando que acudam ao Mestre, pois querem assassiná-lo.

. O referido plano estava sujeito a um secretismo total. Dele têm conhecimento somente o Pajem,
Álvaro Pais, o Mestre e os seus partidários. O objetivo é claro: anunciar o perigo que D. João corre,
para levar a população de Lisboa a apoiá-lo.

. 2.ª parte (ll. 6-21) – Movimentação e concentração

. Ao escutarem os brados do Pajem, as “gentes” saem à rua, dialogam umas com as outras,
enfurecem-se com o boato lançado, sobre o qual não refletem minimamente, e começam a pegar
em armas.

. Álvaro Pais, prestes e armado, desempenha o seu papel: junta-se aos seus aliados e ao Pajem e
cavalga pelas ruas, gritando ao povo que acuda ao Mestre, que “filho he delRei dom Pedro”.
Atente-se neste pormenor e na forma subtil como Álvaro Pais alude a D. Pedro, explorando o
simbolismo da sua figura e da sua história de amor com Inês de Castro no imaginário popular.

. Soam vozes pela cidade que matam o Mestre e o povo dirige-se, armado e apressadamente, para o
local onde ele se encontra, para o defenderem e salvarem.

. A multidão concentra-se em número muito grande: não cabe pelas ruas principais e atravessa
lugares recônditos, desejando cada um ser o primeiro a chegar ao Paço.

. Enquanto se desloca para lá, questiona-se quem desejará matar o Mestre e várias vozes anónimas
apontam o nome do conde João Fernandes, a mando da Rainha D. Leonor Teles. O clima de
agitação e excitação do povo foi preparado cuidadosamente e está a resultar em pleno.

3.ª parte (ll. 22 a 43) – Manifestação

. O povo, unido em defesa do Mestre e com o sentimento de vingança, inquieta-se e enfurece-se


diante das portas cerradas do Paço.

. Perante afirmações de que o Mestre tinha sido morto, são sugeridas diversas ações tendentes a
forçar a entrada no Paço: arrombar as portas cerradas, lançar fogo ao edifício para queimar o
conde e a Rainha, escalar os muros com escadas.

. Gera-se uma grande confusão e o povo não se entende acerca da atitude a adotar, enquanto várias
mulheres transportam feixes de lenha e carqueja para queimar os muros dos Paços e a Rainha, a
quem dirigem muitos insultos.

. Dos Paços, vários bradam que o Mestre está vivo e o conde Andeiro morto, mas a “arraia miúda”
não acredita e quer provas concretas, isto é, vê-lo, de que é assim. Receando que o povo, devido à
sua fúria e ao desejo de vingança, invada o palácio, se torne incontrolável e o destrua, aconselham
D. João a mostrar-se-lhe.

. 4.ª parte (ll. 44 a 59) – Aclamação

. O Mestre mostra-se a uma grande janela e fala ao povo, que fica extremamente emocionado /
perturbado ao constatar que está efetivamente vivo e o conde morto, quando muitos criam já no
contrário. Essa fala tem como finalidade tranquilizar o povo e dar-lhe esperança, mostrando-se seu
aliado (a apóstrofe “Amigos…”).

. Nesta fase do texto, é apresentado uma imagem muito negativa de D. Leonor Teles, vista
popularmente como adúltera e traidora, chegando a ser acusada pela morte de D. Fernando (ll. 53-
54). O narrador não deixa grandes dúvidas: se a população tivesse entrado no Paço, teria
assassinado a Rainha.

. 5.ª parte (ll. 59 a 80) – Dispersão

. O Mestre, consciente da sua segurança e, no fundo, de que o plano arquitetado tinha resultado na
perfeição, desce e cavalga com os seus, acompanhado pelos populares, que lhe perguntam o que
quer que façam. D. João responde que não precisa mais deles e dirige-se para o Rossio ao
encontro do conde D. João Afonso, irmão da Rainha, enquanto é saudado pelas “donas ca çidade”.

. Quando se prepara para comer com o conde, vêm dizer-lhe que tencionam matar o Bispo de
Lisboa, por isso faria bem em lhe acudir. No entanto, aconselhado pelo Conde, acaba por não o
fazer.

🔺 Personagens

Na Crónica de D. João I, encontramos atores individuais e atores coletivos.


As primeiras figuras do texto são individuais – o Pajem e Álvaro Pais –, aquelas que
põem a ação em movimento, porém a seguinte é coletiva, sem nome que a identifique, por duas
razões: por um lado, trata-se de um coletivo e, por outro, é a gente simples do povo de Lisboa (do
mesmo modo e também por isso, o Pajem não possui nome). É o povo, enquanto ator, coletivo que
domina a ação.
No que diz respeito às personagens individuais, umas estão presentes e outras ausentes:

. Presentes:
- O Pajem e Álvaro Pais, no início do capítulo;
- O Mestre de Avis, mencionado deste o início na boca de outras personagens, surge fisicamente
apenas na parte final do capítulo;
- O conde D. João Afonso, que se encontra com o Mestre na parte final do capítulo;
- Outros fidalgos: Afonso Eanes Nogueira, Martim Afonso Valente, Estevão Vasques Filipe e Álvaro
do Rego.

. Ausentes:
- O conde Andeiro, que se sabe ter sido morto;
- A rainha, retratada muito negativamente;
- O bispo de Lisboa, acusado de traição e que será morto.

A caracterização das personagens é feita de forma indireta: são as suas palavras e,


sobretudo, as suas ações que permitem caracterizá-las.

🔺 Caracterização do povo, a "arraia miúda"


O povo, a “arraia miúda”, personagem coletiva, preparado psicologicamente, constitui o
escudo defensor do Mestre para o assassínio do conde Andeiro, para sustentar o ato e suportar as
suas consequências, problema que a lealdade ao Mestre e a bravura do povo resolveram.

Os traços que o caracterizam são os seguintes:

* a curiosidade (“As gentes que esto ouviam saíam aa rua para ver que cousa era.”);

* a indignação, a revolta, o desejo de vingança e a agressividade;

* a determinação e a disponibilidade ("correndo a pressa"; "desejando cada um de seer o primeiro";


"poerem fogo aos paaços e queimar o treedor e a aleivosa");

* o empenhamento na defesa do Mestre, o carinho e a solidariedade ("se moverom todos... morte");

* a mobilização e a unidade na ação – age como um todo e acorre aos Paços para acudir ao Mestre
("todos feitos dum coraçom, com talente de o vingar"): traziam lenha, queriam carqueja para lançar
o fogo ao Paço ou uma escada para verem o que se passava dentro;

* a impaciência solidária ["as portas (...) çarradas (...) britassem"];

* a agitação, o crescendo da fúria popular, a fim de garantir a integridade física do Mestre;

* a desorientação própria de quem age sem pensar e a turvação resultante da ansiedade (realismo
psicológico);

* a precipitação, a ausência de reflexão / moderação e o descontrolo emocional (comportamento que


se acentua após a chegada aos Paços e antes da aparição do Mestre);

* a desconfiança;

* o alívio, a comoção, a alegria e a satisfação da missão cumprida;

* o poder (“não lhes poderiam depois tolher de fazer o que quisessem”; “E sem dúvida, se eles
entraram dentro, nom se escusara a rainha de morte, e fora maravilha quantos eram da sua parte e
do conde poderem escapar”).

O povo é um dos protagonistas do capítulo, uma personagem coletiva que garante a


defesa do Mestre, influencia o curso da História de Portugal. Determinadas ações são individuais e
anónimas, como gritar, ir buscar lenha ou pegar em armas.
É uma personagem coletiva dado que partilha um conjunto de características comuns
(lisboetas e patriotas) e um objetivo comum (apoiar o Mestre), agindo como um todo, coletivamente.

🔺 Personagens individuais
. Pajem: informa o incita o povo, gritando e lançando o boato que alguém quer matar o Mestre,
como previamente combinado.

. Álvaro Pais

Álvaro Pais é o estratego que conduz o povo para um fim preconcebido: preparar
psicologicamente o povo a aceitar e mesmo aplaudir o assassínio do conde de Andeiro. O pajem,
com quem colaborou na divulgação do boato da morte do Mestre, dirigiu-se a sua casa, porque
tudo estava previamente combinado ("segundo já era percebido"). Fernão Lopes não deixa dúvidas:
Álvaro Pais foi o cérebro que tudo planeou, nada deixando ao acaso.
Ele mesmo insiste na divulgação do boato junto do povo, de modo a “convocá-lo” e a criar
um clima favorável à aceitação do Mestre, da morte do conde Andeiro e à sua confirmação como
legítimo herdeiro do trono português.
Álvaro Pais é uma figura com visão política e inteligência; é matreiro, astuto, manipulador,
mentiroso até (por exemplo, grita que matam o Mestre, quando, na verdade, é este quem assassina
o conde Andeiro; grita, igualmente, excitando e iludindo as pessoas), para atingir os seus fins.

. Mestre de Avis

* É querido pelo povo, que o apoia politicamente e vê como garantia da independência nacional;

* É humano, ponderado, refletivo e dialogante, não obstante a impulsividade revelada com o ímpeto
de ir salvar o bispo de Lisboa quando lhe anunciam que a se preparam para o matar;

* Adapta-se às circunstâncias, aceitando as instruções dos que lhe são próximos e retribui
afetuosamente o carinho do povo;

* São-lhe associadas as ideias de predestinação e proteção divinas, como se pode comprovar por
expressões textuais que mostram a crença do povo de que tinha tido a proteção divina, dado ter
sobrevivido ao suposto atentado: “E per vontade de Deos”; “Beento seja Deos que vos guardou de
tamanha traiçom”; “

* É o autor da morte do conde Andeiro nos Paços da Rainha;

* É uma figura carismática e populista (mostra-se à população para obter o seu apoio);

* É, de certa forma, uma personagem dual: é amigo do povo e seu herói, mas revela alguma fraqueza
e incapacidade para tomar decisões autonomamente, dependendo da opinião dos seus
conselheiros.

Rainha D. Leonor Teles: o narrador coloca, estrategicamente, na boca do povo a acusação de que é
uma traidora e adúltera, chegando a ser acusada da morte de D. Fernando.

🔺 Narrador

. O narrador deste capítulo alterna entre a objetividade e a subjetividade:


- regista acontecimentos históricos e factuais (objetividade);
- analisa criticamente e interpreta os factos narrados (subjetividade);
- compreende a importância dos fatores psicológicos nos fenómenos históricos (subjetividade) (por
exemplo, o sentimento de crise nacional gerado pela perda iminente da independência nacional).

. Contrariando aquilo que proclamara no “Prólogo” a esta crónica, Fernão Lopes manifesta empatia
com o povo e apresenta um retrato bem negativo de D. Leonor, “negando” assim a sua proclamada
imparcialidade.

. Outros momentos em que a sua imparcialidade é posta em causa são os seguintes:


- a subjetividade do discurso;
- a sua ideologia e emotividade;
- os seus comentários ocasionais;
- a solidariedade com o povo e a cidade de Lisboa;
- a expressividade da linguagem e os recursos expressivos.

. Por outro lado, trata-se de um narrador omnisciente, dado que conhece os acontecimentos que
relata, bem como as emoções de alguns intervenientes e as suas intenções secretas.

Espaços
. Abertos, públicos, frequentados pelo povo e pelos intervenientes que com ele interagem: ruas da
cidade de Lisboa.
. Fechado, privado, de acesso condicionado: o palácio, frequentado pelos nobres e pelos detentores
do poder.
. Janela do palácio, em que o Mestre surge e se mostra ao povo, apaziguando a sua fúria, e é por ele
aclamado.

🔺 Relação ação / espaço – concentração do espaço

Cada momento corresponde a um espaço específico: ruas entre o Paço e a casa de Álvaro Pais;
ruas de Lisboa; em frente do Paço, mas centrado na janela onde assoma o Mestre.

O espaço evolui da dispersão para a concentração: o povo salta das ruas da cidade para a rua
principal, que conduz ao Paço da rainha e ali se concentra em torno do Mestre.

🔺 Tom dramático e dinâmico:


alternância discurso indireto (narrador) / discurso direto (fala das personagens ¹ só discurso
indireto (texto pesado e sem vida);
funções da linguagem (fala das personagens): emotiva, apelativa e fática;
gradação crescente na expressão da emotividade do povo, que culmina com o aparecimento do
Mestre (clímax).
Esta alternância entre as duas modalidades do discurso confere, de facto, dinamismo,
veracidade, veracidade e dramatismo ao discurso e ao que é narrado, pois, através do discurso
direto, temos acesso às falas “reais” dos intervenientes. Desta forma, para além de obtermos maior
dinamismo na narração, Fernão Lopes cumpre a sua missão de relatar a verdade dos
acontecimentos.

🔺 Linguagem e recursos estilísticos

- Narração – contar um facto histórico:


. uso de verbos de movimento (“saíram”, “atravessavom”, etc.): conferem dinamismo à ação;
. uso do pretérito perfeito e imperfeito, tempos próprios da narração;
. estrutura frásica:
- coordenação: exprime a sequência de ações;
- subordinação: exprime as causas (orações causais) e as motivações dessas ações;
. expressões que marcam a mudança de espaço (à porta, pela rua, ali, i, pera u, pera alá, acima,
dentro, pera os paços) e o decurso do tempo (ante que, entom, logo à pressa);
. orações temporais-causais de tipo latinizante ("Como lhe disseram" significa "depois de lhe
terem dito e por lhe terem dito"; "como foram às portas do paço" significa "quando chegaram às
portas do paço e por terem chegado às portas do paço") com o intuito de unir o espaço e o tempo
por um vínculo de causalidade;
. uso de nomes que transmitem agitação (“arroído”, “alvoroço”, “torvaçam”).

- Descrição – descrição do movimento popular, físico e psicológico (exímio pintor da psicologia da


"arraia miúda"):
. realismo descritivo e visualismo (pormenores realistas; descrição perfeita e objectiva, sugestão
de simultaneidade; sugestão de movimento ...);
. visualismo impressionista:
-» perifrástica (começou de ir; não quedava de ir; começou de se juntar): sugere a rápida
determinação e disponibilidade do povo;
-» gerúndio: dizendo, bradando;
-» pretérito imperfeito: estavam, saíam, matavam;
-» advérbios e expressões adverbiais (rijamente a galope; asinha; agindo; correndo à pressa; de
desvairadas maneiras; conhecendo-o todos claramente; olhavam contra ele): sugerem ação,
movimento e tensão;
-» arcaísmos pleonásticos: olhai e vede; era maravilha de ver; entrar dentro; sobir acima; desceo
afundo: reforçam, na sua maioria, o efeito visual da ação; constituem um apelo aos sentidos;
. expressões que realçam a curiosidade, a ansiedade e a impaciência do povo: as gentes saiam à
rua ver que cousa era; alvoraçaram-se; certificavam; britassem as portas; aficavam; acendia; o
arroído;
. adjetivação expressiva: lugares escuros, espantosas palavras, portas çarradas, desvairadas
maneiras, aleivosa, todos feitos dum coração (povo unido numa só vontade);
. subordinação: orações subordinadas causais, temporais e consecutivas – ligam os factos no
tempo, mediante relações de causalidade;
ironia popular: "Oh, que mal fez! que matou o traedor";
. gradação ascendente da emoção do povo: ouve o apelo e acorre ® desorientação, curiosidade
pela sorte do Mestre e ódio ao conde e à rainha ® perturbação do povo ® reconhecimento do
Mestre e sua aclamação;
. expressões que sugerem uma certa predestinação divina em favor do empreendimento do Mestre:
"per vontade de Deus"; "ca eu vivo e são som a Deos graças."; "bendito seja Deus que vos guardou
desse traedor"; "Bento seja Deus que vos guardou de tamanha traição";
-mudança contínua de planos, do geral para o particular e do particular para o geral:
- alternância de falas particulares e falas do povo;
- alternância da atuação de personagens individuais e da personagem coletiva (o povo).
Mesmo na atuação do povo há várias formas e graus: por vezes o povo age em conjunto
["A gente começou de se juntar todos feitos dum coração" ¹ "tais i havia (...) deles bradavam, outros
se aficavam, uns vinham com feixes de lenha, outros traziam carqueja" – são grupos organizados
no meio da multidão].
. sensações:
- auditivas: "Soarom as vozes do arroído"; "braadando"; "com espantosas palavras"; "ali eram
ouvidos braados de desvairadas maneiras"; "braadavom"; "era o arroído tam grande que se nom
entendiam uns com os outros", etc.;
- visuais: "se moverom todos com mão armada, correndo a pressa"; "era tanta que era estranha
cousa de veer"; "as portas do Paaço que eram já çarradas".
A linguagem sensorialista torna os relatos mais realistas, transportando o leitor para o
local dos acontecimentos, como se os estivesse a presenciar, “vendo” e “ouvindo” o que se passou.

. Comparação: "assi como viuva que rei nom tinha, e como se lhe este ficara em logo de marido, se
moverom todos com mão armada, correndo... escusar morte": sugere a ligação, o carinho e o
empenhamento do povo na defesa do Mestre, que não queria perder, aproximando-o de uma figura
familiar. Por outro lado, esta comparação sugere o desgoverno e desproteção a que a cidade
(representada pela mulher) ficaria sujeita sem rei, tal como acontece com as viúvas.

. Metáforas:
- "Cada vez se acendia mais": contribui para recriar a tensão que vai aumentando em volta do Paço;
o alvoroço popular vai aumentando de intensidade, provocando ruído, agitação e movimento entre
a população, tal como sucede com uma fogueira que se acende e vai aumentando de intensidade;
acresce que esta fogueira já estava acesa há algum tempo, estando prestes a atingir o seu clímax.
- “Todos feitos de um coraçom”: sublinha a união do povo e a comunhão de sentimentos.

. Hipérbole:
-» realça o grande alvoroço e o tumulto da multidão: "e em todo isto era o arroído atam grande que se
nom entendiam uns com os outros";
-» caracteriza o comportamento das multidões: "E tanta era a torvaçam deles (...) que taes avia i que
aperfiavom que nom era aquele".

. A capacidade mobilizadora do discurso direto (diálogo), onde se misturam as funções apelativa,


fática e emotiva, alternando com a informativa:
a) o apelo de Álvaro Pais, com recurso ao presente do conjuntivo com sentido de imperativo e à frase
exclamativa;
b) a força da interpelação dos populares, com recurso ao presente do indicativo ("matom", "é") e ao
pretérito perfeito ("çarrou") e de curtas e incisivas frases interrogativas;
c) o desafio do povo aos "do Mestre", através do presente do indicativo ("se vivo é"), do imperativo
("mostrae-no-lo") e do futuro do indicativo ("vee-lo--emos");
d) a intervenção apaziguadora do Mestre, iniciada por um vocativo ("Amigos"), continuada por um
imperativo ("apacificae-vos") e concluída com a primeira pessoa do presente do indicativo do verso
ser ("som"), a que dois adjectivos ("vivo e são") servem de predicativo;
e) finalmente, esfriados os ânimos, o comentário em jeito de antecipação, no pretérito perfeito ("fez",
"matou") e no presente ("creedes", "há-de vir") do indicativo.

Interrogações e repetição: "U matom o Meestre? que é do Meestre?"; "Quem çarrou estas
portas?".

. Apóstrofes:
- “Ó Senhor, como vos quiserom matar…”: acentua o respeito, a veneração e a amizade do povo
para com o Mestre e o alívio pela proteção de Deus o ter livrado da traição do conde Andeiro.
- “Amigos…”: a amizade entre o Mestre e o povo.

. Antítese: “… o Mestre era vivo, e o Conde Joam Fernandez morto…”.

. Exclamações.

. Campo lexical de «revolta»: braados, britassem, queimar, treedor, doestos, motim, etc.

. Pormenor:
- do vestuário de Álvaro Pais: "está prestes e armado com uma coifa na cabeça, um cavalo que anos
havia que non cavalgava";
- da "janela que vinha sobre a rua" para recriar o espaço e nos fazer comungar de todo aquele
ambiente.

Fernão Lopes socorre-se, na crónica, da chamada técnica da reportagem, cujos


principais traços são os seguintes:
. a minúcia e o realismo com que relata os acontecimentos, como se os tivesse presenciado;
. o posicionamento no próprio momento em que ocorrem os factos testemunhados por si e
indiretamente pelo narratário;
. o objetivismo: o cronista relatava apenas o que vê e ouve – os gestos, as atitudes e as palavras dos
intervenientes;
. as anotações de cenário, que sugerem o ambiente em que se movem as figuras históricas.
Desta forma, o cronista aproxima o leitor dos acontecimentos, levando-o a compreendê-
los melhor e a identificar-se com os intervenientes.

As descrições pormenorizadas dos lugares onde têm lugar as ações, em planos


narrativos gerais e particulares, configuram aquilo que se pode designar por visão
objetiva ou cinematográfica. De facto, a narração segue uma técnica semelhante à do cinema,
constituída por uma sucessão de planos, espaços e atores:
Plano 1
. Espaço: porta do Paço da Rainha e ruas de Lisboa.
. Ator: pajem.
. Local onde se dirige: casa de Álvaro Pais.

Plano 2
. Espaço: ruas de Lisboa.
. Atores: pajem, Álvaro Pais e povo.
. Estado de espírito: revolta e preocupação.

Plano 3
. Espaço: portas do Paço da Rainha.
. Atores: povo e Mestre.
. Estado de espírito: vingança.

Plano 4
. Espaço: janela do Paço.
. Atores: Mestre e povo.
. Estado de espírito: emoção, alívio e contentamento.

Plano 5
. Espaço: ruas do Paço.
. Atores: Mestre, donas e povo.
. Atitude do povo: disponibilidade para apoiar a causa do Mestre.

Plano 6
. Espaço: Paço do Almirante.
. Atores: Mestre, partidários e fidalgos.
. Ação: refeição do Mestre e decisão de os fidalgos matarem o bispo de Lisboa.

Em conclusão, podemos afirmar que Fernão Lopes marca o primeiro grande momento da
prosa portuguesa. São, sobretudo, admiráveis os seus quadros descritivos dos grandes
movimentos populares. Nas suas crónicas, há verdadeiros painéis, onde a arraia miúda se
manifesta em toda a sua pujança emocional. A grande força desta prosa está sobretudo na
organização das ideias, segundo planos espácio-temporais, que nos dão a visão do conjunto sem
esquecer o rigor dos pormenores, e tudo isto numa linguagem que, sendo por vezes arcaizante, é
dotada de uma vivacidade e visualismo admiráveis.

🔺 O texto como documento da época em que se integra

1. Pelo conteúdo:
* o contexto histórico (a crise de 1383-85):
- o assassinato do conde Andeiro;
- a movimentação do povo de Lisboa para apoiar o Mestre, liderado por Álvaro Pais;
* a componente política do episódio:
- a criação de uma atmosfera favorável à aclamação do Mestre como rei de Portugal;
- a legitimação de uma dinastia nacional, embora por via bastarda.

2. Pela forma:
* o texto como exemplo da fase arcaica da língua:
- o hiato: "braadar", "Meestre", "tiinha", "veer", "principaes", "seer", "aas", "paaço";
- a terminação -om na terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo ("atravessavom",
"certificavom", "estavom", etc.), do pretérito perfeito ("moverom", "forom", "começarom") e do
presente do indicativo ("matom");
- as terminações -om e -am em vez de -ão : "nom", "atam", "entom", "tam", "torvaçam";
- a nasalação de determinantes e pronomes indefinidos: uu, uus, neua, neuua;
- o uso de arcaísmos: per, u, i, ca;
- o uso do ç em início de palavra: "çarradas", "çarrou";
- o pleonasmo: "sobir acima", "entrar dentro".

🔺 D. João I, Mestre de Avis e rei de Portugal

Filho bastardo do rei D. Pedro I e de uma dama galega de nome Teresa Lourenço, D.
João nasce em Lisboa, em 11 de abril de 1357. Aos seis anos é armado cavaleiro por D. Pedro e
levado para Avis, onde passa a adolescência. D. Pedro faz-lhe doação de casas em Avis, ao lado
de outros bens. O jovem mestre de Avis continua em terras alentejanas e a sua influência vai
crescendo, acompanhando de perto os atos da governação de D. Fernando.
Preso no castelo de Évora na Primavera de 1382, devido a intrigas contra D. Leonor
Teles/conde de Andeiro, é solto por D. Fernando, seu irmão, garças à eficaz intervenção do conde
de Cambridge, chefe do contingente inglês em Portugal. Virá a ser amigo do duque de Lencastre e
casará com a sua filha D. Filipa. Morto D. Fernando em 22 de outubro de 1383, o partido do conde
de Andeiro, amante de D. Leonor Teles, toma o poder. D. João é envolvido nos acontecimentos que
levam ao assassinato, praticado por si, do conde de Andeiro em 6 de dezembro de 1383. É
aclamado pelo povo de Lisboa Regedor e Defensor do Reino. Nas Cortes de Coimbra, de 6 de abril
de 1385, é aclamado rei de Portugal, não por méritos seus, mas sobretudo por influência de
homens de coragem como Nun'Álvares Pereira ou João das Regras.
Em fevereiro de 1387, casa-se com D. Filipa de Lencastre, dando origem à
chamada Ínclita Geração. Viveu um longo período de paz interna e externa, preparando as
expedições marítimas. Conquistou Ceuta em 1415.
Faleceu em Lisboa, a 14 de agosto de 1433. Foi autor do Livro da Montaria, obra literária
notável do século XV. Casou todos os seus filhos e filhas, à exceção de D. Henrique e de D.
Fernando, e deu a todos, como também aos netos, casa opulenta.

🔺 Lisboa, "mãe e ama dos feitos"

O sentimento geral que anima a Crónica de D. João I é o amor da terra, a base do novo
direito, incompatível com o direito senhorial. Fernão Lopes sente o amor da terra como os homens
das vilas, e assim como em nome dele estes atacavam e incendiavam os castelos, assim Fernão
Lopes castiga duramente os seus alcaides e processa a nobreza portuguesa em geral, acusando-a
de "desnaturada". Esta terra que merece todo o amor dos seus naturais aparece-lhe especialmente
personificada na cidade de Lisboa, que ele qualifica de “mãe e ama dos feitos” que levaram à vitória
do mestre de Avis. É decerto caso único entre todos os cronistas medievais este atribuir a uma
cidade coletivamente o papel principal nos acontecimentos que levam à derrota do invasor.
É graças a esta mentalidade, a este ponto de vista de quem mora não no castelo, mas ao
rés da praça, que nós possuímos este monumento literário, certamente singular, que é a história de
uma revolução popular medieval feita com consciência de revolucionário. Fernão Lopes é já único
quando conta metodicamente e fazendo-nos acompanhar os múltiplos e complexos fios da intriga,
como foi preparado e como se desencadeou, nos conselhos secretos e na praça pública, o golpe
revolucionário que Álvaro Pais gizou em sua casa e que o povo consumou apinhado junto aos
paços da rainha. Esta parte da Crónica de D. João I é uma estupenda lição sobre a arte de
desencadear uma revolução popular, nos seus diversos aspetos, desde o pretexto à criação do
clima emocional, e passando pelos slogans eficazes como esse de "acudi ao Mestre que é filho de
el-rei D. Pedro", que associa a personalidade do chefe proposto à popularidade do rei que
precedera os tempos calamitosos de D. Fernando. Mas mais significativo é que o nosso Autor se
integra na consciência da massa insurrecionada e é capaz de traduzir comoventemente o seu
estado de espírito. [...]
É esta integração nos movimentos massivos que dá à sua pena um entusiasmo épico
quando se ocupa de tais assuntos. É então que ele atinge os momentos supremos da sua prosa, ou
melhor, que transpõe os limites da prosa para entrar nos da poesia épica.
Em troca, mostra-se frio e objetivo, embora sempre eloquente, quando fala de pessoas e
casos individuais. Então o entusiasmo cede o lugar a uma análise sem ilusões,
impressionantemente despreconceituosa e desmascaradora. Herói para ele, só o povo e Nuno
Álvares. Do Mestre depois rei para baixo há só criaturas humanas que obedecem
fundamentalmente a dois estímulos: o medo e a ambição, às vezes também a concupiscência.

António José Saraiva, As Crónicas de Fernão Lopes


As duas partes da Crónica

Há diferenças assinaláveis entre as duas partes da crónica de D. João I. Dois anos de


Histórica ocupam em 193 capítulos, na 1.ª parte, perto de 400 páginas, igual extensão dada a 26
anos de História, na 2.ª parte. Este facto tem implicações visíveis no discurso e na técnica narrativa.
Na 1.ª parte, o cronista sente dificuldades pois há muitas ações simultâneas: o
desencadear da agitação do povo, a forte movimentação das forças portuguesas e castelhanas no
Centro e Sul do país, as peripécias políticas de D. Leonor Teles. É o período do país sem rei. Na 2.ª
parte, a matéria é mais simples e quase se resume à invasão de Portugal pelo rei de Castela, à
batalha de Aljubarrota e ao regresso do rei castelhano à sua terra. Assim, a 1.ª parte apresenta
uma certa dispersão e a ação está organizada à volta de certos núcleos: escolha do Mestre para
Regedor e Defensor; generalização da revolta nas províncias, a partir de Lisboa; conspiração
contra D. Leonor Teles e contra o rei de Castela; cerco de Lisboa; combates do Mestre na província
e eleição do rei.
Impelido pelos acontecimentos, o ritmo narrativo é muito vivo. Fernão Lopes tira partido
genial desta técnica, o que confere à leitura um enorme prazer. Faz frequentes intervenções
pessoais.
O povo é o herói, na 1.ª parte; na 2.ª, é o rei D. João I que governa, calmo, depois da
estrondosa vitória de Aljubarrota, onde o herói é Nuno Álvares Pereira.

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