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Jardim Francês e Inglês
Jardim Francês e Inglês
Abril de 2004
1 Longo XVIII
Ao final do século XVIII toda a economia e política européias se transformariam ra-
dicalmente. É o século das contradições, movimentado por conflitos religiosos, por
insurreições camponesas e pelo crescimento econômico. É uma sociedade rural, aris-
tocrática e católica em constante conflito com outra, urbana, burguesa e protestante.
Ao observarmos a arte desse período, entretanto, nossa primeira impressão é de imo-
bilidade ou de crise. O Rococó é frívolo segundo os defensores do Neoclássico que,
por sua vez, é idealista e frio segundo os defensores do Modernismo. Uma análise con-
temporânea não pode ceder às facilidades de uma visão unilateral. Chegaríamos a uma
concepção ridícula que faz da arte do século XVIII um hiato, que os livros de história
da arte consideram genericamente apenas como um período de crise. Na verdade o que
vemos é um momento como o que antecede à ebulição, quando o sistema poderia pas-
sar por estático, não fosse o ruído das moléculas se agitando pelo calor. Ao observar
o movimento interno das forças artísticas contraditórias que se desenvolveram durante
o "longo" século XVIII, encontraremos diversos indícios de que a aparente crise é na
verdade um processo de maturação dos diversos desenvolvimentos da técnica e expres-
são artísticas desde, talvez, o século XIII. Estes indícios são especialmente essenciais
para compreender a relação dos artistas com a paisagem num século que, apesar de ter
sido responsável pelo conceito de "jardim paisagístico", é tão carente de pinturas de
paisagem.
O final do século XVII é marcado por um declínio geral da pintura como arte autô-
noma devido tanto ao pleno desenvolvimento do Barroco nos países católicos, quanto
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Este artigo foi escrito sob supervisão da Profa Mabe Bethônico (EBA-UFMG), originalmente para o
MuseuMuseu/Paisana http://www.ufmg.br/museumuseu/paisana e pode também ser aces-
sado em meu site pessoal: http://www.dedalu.art.br/colunas/200504.php. Versão para
impressão preparada usando LATEX e LYX.
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Figura 1: Vista do grande canal de Figura 2: Altdorfer, “S. Jorge”. 1510. Fonte:
Versalhes e da floresta alinhada a ele. WebMuseum, http://www.puc-rio.
Fonte: Chateau de Versailles, http:// br/wm/ (espelho).
www.chateauversailles.fr/.
deira função e finalidade das formas barrocas: o apelo máximo à emoção através do
movimento e da variedade. Durante o período em redor de 1700, os artistas tinham
trânsito livre para a alegria e para a extravagância, mas não havia muito espaço para as
artes individuais.
Na Itália, apenas um grupo de artistas conseguiu atuar fora da "orgia decorativa",
os pintores e gravadores de panoramas que serviam de souvenirs, principalmente em
Veneza. É o caso de Canaletto (Giovanni Antonio Canal, 1697-1768), cuja luz ga-
nha nova qualidade quando verdadeiramente atraído por uma cena1 (figura 3), ou de
Francesco Guardi (1712-93), que tinha gosto pelos movimentos e evocava idéias com
algumas pinceladas vigorosas e efeitos audaciosos (figura 4). Na França, Jean-Antoine
Watteau (1684-1721) foi provavelmente o único comparável aos mestres do início do
XVI, sua concepção de uma vida alheia a privações, sua predileção por cores e deco-
rações delicadas (figura 5 na página seguinte) cairia no gosto da aristocracia que nesta
época já trocava a decoração pesada do Barroco pela relativa leveza do Rococó.
Figura 3: Canaletto, "Grande Canal, do Pa- Figura 4: Guardi, "Regata no Canal da Gui-
lácio Flangini ao Palácio Bembo", c. 1740. decca", c. 1784. Fonte: Die Pinakotheken im
Fonte: The Minneapolis Institute of Arts, Kunstareal, http://www.pinakothek.
http://www.artsmia.org/. de/.
Só no final do século XVII, o desejo de Petrarca de fruir a paz dos campos, expresso
nas pinturas de Simone Martini (1284-1344) sob a forma de microtheos3 (figura 6),
estava definitivamente livre das noções perturbadoras que impunham "jardins fecha-
dos". E essa natureza sem ameaças só poderia ganhar plena representação graças ao
completo domínio da atmosfera, da luz suave, das transições de planos, de todos os as-
pectos técnicos e expressivos da pintura de paisagem que se desenvolveram até Jacob
van Ruysdael (1628-82, alemão, atuante na Holanda) (figura 7).
mento e à meditação. Os homens ricos, por sua vez, não tinham mais interesse por
palácios, mas por country houses, projetadas segundo regras de "bom gosto" que res-
peitavam leis da arquitetura clássica. O temperamento geral do País opunha-se à fanta-
sia e às emoções irreprimidas e, por isso, havia pouquíssimas encomendas de pinturas,
em sua maioria, apenas retratos. Além disso os cavalheiros elegantes, orgulhosos de
seu "conhecimento", preferiam mestres italianos reconhecidos aos artistas nacionais.
Jardins como os de Versalhes eram considerados absurdos e artificiais. Homens
como Willian Kent (1685-1748), que imitou estreitamente a "Villa Retonda" de An-
drea Palladio (1508-80) em sua "Chiswick House" (1725), inventaram então os "jar-
dins paisagísticos", jardins criados como pinturas e que, por isso, seduziriam pintores
como Claude Lorrain (Claude Gellée, 1602-82, francês) (comparar figuras 8 e 9).
Lorrain, apesar de pintar diretamente da natureza, subordinava toda a percepção e co-
nhecimento das aparências ao sentimento poético total, sendo por isso considerado
herdeiro da poesia de Giorgio de Caltefranco Giorgione (1477-1510, italiano). Para
parecer "natural", um jardim deveria aparentar-se justamente às paisagens pintadas de
forma mais idealista, àquelas que seguiam o preceito "Ut pictura poesis" (Horácio) e
que remetiam ao mito da "Idade de Ouro". A própria noção de natureza se transforma:
só é verdadeira aquela na qual o homem atua para devolver-lhe a primordialidade per-
dida.
Figura 8: Vista do parque de Stourhead, Figura 9: Lorrain (ou Gellée), "Agar e Is-
planejado em 1741. Fonte: Great Buildings, mael no deserto", c. 1668. Fonte: Die Pi-
http://www.greatbuildings. nakotheken im Kunstareal, http://www.
com/. pinakothek.de/.
Sir Joshua Reynolds (1723-92) foi o primeiro pintor inglês a satisfazer a sociedade
elegante setecentista. Fundador da Royal Academy of Art, acreditava que a verdadeira
arte é a dos grandes mestres renascentistas e defendia ser possível ensinar regras de
suposto "bom gosto" e procedimento correto desde que houvesse meios e instalações
para o estudo das obras-primas italianas. Sua maior luta seria contra a desvalorização
do artista (trabalho manual) enfatizando a invenção poética existente, por exemplo, na
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obra de Nicolas Poussin (1594-1665), severo e cartesiano pintor francês que procurava
dar forma lógica à desordem natural através do equilíbrio de elementos horizontais e
verticais (figura 10).
Não espanta, portanto, sua rivalidade com Thomas Gainsborough (1727-88), que
preferia o estudo do modelo às idealizações e que, por isso, considerava desnecessário
o estudo dos italianos. Ambos sentiam-se infelizes com as encomendas de retratos,
mas enquanto Reynolds queria pintar cenas históricas, Gainsborough queria distrair-se
com as paisagens. A quantidade de contratos para retratos levou o secretário deste
último a escrever:
Para satisfação pessoal, entretanto, ele criou diversos esboços de cenas muito adequa-
das à época do jardineiro-paisagista; não eram panoramas desenhados diretamente,
mas "composições" paisagísticas para evocar e refletir uma poesia (figura 11). Desde
então a pintura e a própria paisagem estarão irremediavelmente ligadas à uma inter-
pretação "pinturesca"4 que se espalhará por toda a Europa no final do século XVIII,
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Preferi usar este arcaísmo em vez de "pitoresco" para evitar a acepção atual da palavra. Para este
período o significado mais correto seria: aquilo que, em respeito aos padrões do estilo, pode ser pintado.
Essa diferenciação é muito importante; já que poderíamos utilizar pitoresco para descrever até mesmo o
Impressionismo.
2 A EBULIÇÃO 7
2 A ebulição
Já em meados do século XVIII, o pintor inglês Willian Hogarth (1697-1764) prenun-
ciava a ebulição que se concretizaria após a Revolução Francesa de 1789. Insatisfeito
com a preferência de seus conterrâneos pela pintura dos grandes mestres italianos, pro-
curou desenvolver um novo tipo de pintura que atraísse o público puritano, postulando
sua utilidade edificante. Durante toda sua vida combateu as regras do "bom-tom" sem
obter qualquer êxito, continuando irremediavelmente desmerecido como pintor. A
mentalidade geral de seus contemporâneos não admitia novas práticas e o único tipo
de discussão possível até o final do século seriam as querelas entre idealistas e natu-
ralistas, como entre Gainsborough e Reynolds, que eram pólos muito próximos: os
partidários dos grandes temas poéticos admitiam ser essencial o estudo da natureza e
os defensores da imitação concordavam com a superioridade da beleza das obras da
antiguidade clássica.
Mas na passagem do século a tradição artística começou a ser fortemente abalada,
assim como ocorreu com todas as tradições. A noção de "estilo" como único modo de
fazer torna-se anacrônica numa época que está demolindo todos os pressupostos. A
Era da Razão culminaria com a primazia da consciência individual, que gerava maior
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tor, entretanto, chegou a exigir que suas obras fossem apresentadas lado a lado com as
de Lorrain em uma de suas exposições nacionais.
Figura 13: Constable, "Branch Hill Pond, Figura 14: Turner, "Vapor numa tempestade
Hampstead Heath" Fonte: The Artchive, de neve", 1842. Fonte: The Artchive, http:
http://www.artchive.com/. //www.artchive.com/.
Em meio à ebulição de fins do "longo século XVIII" os artistas pela primeira vez
puderam realmente optar ou por criar paisagens poéticas ou se ater aos fatos da natu-
reza. E por mais que nosso gosto contemporâneo tenda a considerar menor a criação
de todo o período que abordamos, uma coisa é clara: o século XVIII é mais que apenas
uma transição cronológica para o XIX, é o século no qual a razão cozinhou todos os
ingredientes que derrubariam definitivamente os "muros" que cercavam a paisagem.
Referências
1 CLARK, Kenneth. Paisagem na arte. 2. ed. Lisboa: Ulisseia, 1949.
4 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.