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Dialogos entre Histéria e Direito: o conceito de genocidio e 0 caso arménio* Heitor de A. C. Loureiro Historiador, doutorando em Historia pela Universidade Estadual Paulista “Jilio de Mesquita Filho”, campus de Franca (FCHS-UNESP), com bolsa CAPES/DS. Pesquisador do Grupo de Pesquisa “Conflitos armados, massacres e genocidios na era contemporanea” da Escola Paulista de Politica, Economia e Negécios da Universidade Federal de Sdo Paulo (EPPEN- UNIFESP), Resumo: Este artigo tem como finalidade refletir sobre 0s usos do conceito de genocidio em duas diferentes disciplinas: Historia e Direito. Para tanto, analisaremos a consolidagao do conceito nas duas areas, desde a sua concepgao por Raphael Lemkin, passando pela normatizagao na convencao para prevengao e repressao do crime de genocidio da Organizagao das Nagdes Unidas de 1948, até sua adocao elas Ciéncias Sociais, mais notadamente, pela Histéria. A anélise ter como fio condutor o massacre da populagao arménia do Império Otomano a partir de 1915, acontecimento que, mesmo cem anos apos 0 Seu inicio, continua a fomentar debates e interpretagdes sobre a aplicabilidade do conceito de genocidio. Palavras-chave: Genocidio. Arménia. Interdisciplinaridade. ‘Sumario: 1 Introdugao - 2 0 conceito de genocidio entre 0 Direito e a Historia - 3 0 caso arménio — 4 Consideragdes finais - Referéncias i ~ Introdugao Os dialogos interdisciplinares, ainda que extremamente necess4rios e frequen- temente encorajados, nem sempre sao de facil aplicagao. Nao raramente, conceitos, métodos e teorias sao divergentes — se nao autoexcludentes — quando fazemos o rico exercicio de combinar areas do conhecimento distintas para promover um enten- dimento mais completo de tematicas complexas, cuja analise monofocal pode gerar interpretagdes miopes e disformes. Um desses didlogos interdisciplinares mais proficuos — e perigosos - é aquele que se da entre dois ramos das Ciéncias Sociais, nominalmente 0 Direito e a Historia. Proficuo porque uma abordagem histérica pode dar concretude a tematicas caras ao + A ideia para este artigo nasceu de um convite para uma conferéncia no curso de Direito da Universidade Federal Fluminense - campus de Volta Redonda, feito pela Proft. Josycler Arana. Aproveito 0 ensejo para ex: pressar o meu agradecimento a professora pelo espago e estendé-lo ao Prof. James Onnig Tamdjian com quem dividi a mesa naquela oportunidade. Agradego também & amiga Prof, Maria Florencia Di Matteo Demirdjian por me fornecer publicagdes argentinas sobre teméticas relevantes para a redagdo deste texto. R. Forum de Ci. Crim. ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2,n. 3, p. 161-182, jan./Jun. 2015 161 HEITOR DE A. C. LOUREIRO Direito, como a Teoria Geral do Estado e seus tdpicos principais, a saber: nagao, Estado, governo, democracia, etc. Conferir historicidade a esses t6picos significa compreender que eles nao fazem parte do léxico do Direito como deus ex machina, mas s&o construgées histéricas passiveis de modificagdes e interferéncia pelos ato- res ao longo do tempo. Por outro lado, esse didlogo pode se mostrar particularmente ardiloso, sobretu- do por conta de termos semelhantes que geram conceitos completamente distintos em cada disciplina. Um exemplo pode ser encontrado em um dos conceitos mais fun- damentais para a Histéria, o tempo. Para Berber Bevernage, muitas vezes o conceito de tempo na Histdria e no Direito tem sentidos inversos. Segundo ele, enquanto no Direito 0 tempo pode ser um entrave na medida em que ha a possibilidade de pres- crig&o de uma determinada infragdo apés certo periodo; na Historia, diferentemente, © tempo proporciona 0 recuo necessério para que a andlise histérica se realize, além de promover a abertura de arquivos e a liberagao de documentos indispensaveis para a pesquisa. Essas duas leituras geram dois entendimentos completamente distintos. Se, por um lado, o tempo no Direito assume um carater reversivel, pois a possibili- dade de julgar um réu e, eventualmente, promover o reparo de uma infragao faz com que o tempo ainda seja um tempo presente; na Histdria 0 seu carater €, para muitos, irreversivel, isto 6, tempo passado, que nao volta e nao é passivel de ser alterado.? Contudo, 0 choque entre as duas perspectivas ocorre quando ambas as disciplinas sao convidadas a refletir sobre questdes como a chamada justica transicional, ou seja, “uma concepgao de justica associada a periodos de mudang¢a politica, caracte- rizada por respostas legais a fim de confrontar as infragdes dos regimes repressivos anteriores”.* Nesses casos, pode haver um conflito entre Histdria e Direito. Frequentemente, em nome da reconciliagdo nacional, ha uma tentativa forgada de “virar a pagina” da historia, em promover amplas anistias baseadas em leis e decretos, sem que com isso 0 tecido social devastado por anos de violéncia seja devidamente reconstituido. O problema é que essa irreversibilidade atribuida a Histéria, do tempo passado, da imutabilidade dos fatos e acontecimentos é, no entendimento de Berber Bevernage, quase inaceitavel no sentido moral, 0 que faz com que, mais cedo ou mais tarde, tenha que acontecer o enfrentamento dessa concep¢ao de tempo.* Assim, faz mais sentido encarar a Histéria nado como um tempo irreversivel, mas um tempo irrevoca- vel, no qual o passado nao passa e permanece no tempo presente, pois isso permi- tiria atacar contendas historicas que, apesar de terem acontecido ha muito tempo, 2 BEVERNAGE, Berber. History, Memory, and State-Sponsored Violence: time and justice. London/New York: Routledge, 2012, p. 2. ° Ruti Teitel apuct BEVERNAGE, B. op. cit., p. 6. + BEVERNAGE, B. op. cit., p. 2:3. 162 RR. Forum de Ci. Crim. ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 161-182, Jan,/jun. 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: O CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO ainda permanecem e afetam o presente e sao fundamentais para a consolidagao da justiga e da democracia. 2 Oconceito de genocidio entre o Direito e a Historia Outro termo utilizado amplamente por historiadores e juristas, com entendi- mentos e implicagées completamente distintos, € genocidio. Nesse caso, contudo, as diferengas no conceito de genocidio entre as duas disciplinas séo ainda mais complexas e profundas do que aquelas existentes no conceito de tempo, pois é um conceito nascido da elaboragao de um jurista, pouco tempo depois tipificado como crime pela Organizagao das Nagdes Unidas e somente apés ter um uso juridico bem definido foi adotado pelas demais Ciéncias Sociais como um conceito explicativo para fendmenos de violéncia em massa ocorridos ao longo da historia. Apesar do uso corrente que a palavra genocidio possui nos dias de hoje, seu surgimento nao se deu antes dos anos 1940. Em 1944, o jurista judeu polonés Raphael Lemkin publicou sua obra O Dominio do Eixo na Europa Ocupada,’ cujo capi- tulo IX, intitulado Genocidio, apresentava ao mundo essa palavra que unia o prefixo rego genos- ao sufixo latino -cide para gerar uma nova expressao que nomeasse adequadamente o que Winston Churchill chamou, alguns anos antes, de “crime sem nome”.® A criagao da palavra e, consequentemente, do conceito de genocidio foi fruto do desenvolvimento de anos de trabalho e reflexao sobre a violéncia em massa. Em 1921, quando ainda era um estudante da Universidade de Lviv, Raphael Lemkin tomou conhecimento da historia de Soghomon Tehlirian, jovem arménio que era julgado em Berlim por ter assassinado nas ruas da capital alema Mehmet Talaat Paxa, ex-ministro do interior do Império Otomano e principal arquiteto do exterminio sistematico de arménios durante a Grande Guerra. Intrigava 0 estudante as razdes que faziam o jovem arménio ser julgado por um homicidio, se a vitima desse crime era ninguém menos do que o responsavel pela morte de cerca de um milhdo de pessoas. Em 1933, Lemkin, entao jurista e promotor pGblico da Polénia, escreveu um texto no qual ele propunha mecanismos juridicos a serem adotados a fim de prevenir € punir crimes como aquele que havia acontecido contra os arménios otomanos, além de frear o impeto dos nazistas, recém-chegados ao poder na Alemanha. O ceticismo de seus colegas e da comunidade internacional fez com que a proposta de Lemkin fosse recusada, pois era tida como apocaliptica e pouco realista. Seis anos mais tarde, Adolf Hitler invadiria a Polénia de Lemkin e ele precisou fugir da Polénia para salvar a sua vida. Emigrou para a Suécia, onde trabalhou por um tempo antes de ® LEMKIN, Raphael. £/ Dominio del Eje en la Europa Ocupada. Buenos Aires: Prometeo Libros; Eduntref, 2009. © POWER, Samantha. Genocidio: a retorica norte-americana em questo. So Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 54. R, Forum de Ci. Crim. ~ RFOC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-182, jan./jun. 2015 163 HEITOR DE A. C. LOUREIRO se mudar definitivamente para os Estados Unidos. Em pouco tempo, se tornou con- ferencista e professor em algumas universidades norte-americanas, tendo, assim, condigdes de se dedicar 4 compilag&o dos decretos que os nazistas emitiam nos territérios ocupados, material que viria a ser parte substancial de seu livro publicado em 1944. Apés a Guerra, com um intenso e obstinado trabalho de bastidores na recém-criada Organizagao das Nacdes Unidas, Lemkin conseguiu que a entidade apro- vasse a “Convencao para a prevencao e a repressdo do crime de Genocidio” em 9 de dezembro de 1948, embora ele nao tenha logrado éxito em fazer com que seu termo fosse utilizado nos julgamentos de Nuremberg e nos Tribunais de Téquio. A convengao onusiana define genocidio, no seu artigo Il, da seguinte forma: Entende-se por genocidio qualquer dos seguintes atos, cometides com a intengao de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesdo grave integridade fisica ou mental de membros do ‘grupo; ©) submeter intencionalmente o grupo a condigao de existéncia capaz de ocasionar-Jhe a destruicao fisica total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo; ) efetuar a transferéncia forcada de criangas do grupo para outro grupo.’ Entretanto, a Convengado de 1948 somente foi aprovada apés intensos deba- tes e negociagdes de bastidores entre as nagdes, 0 que fez com que a concepgao original de Lemkin se esvaziasse em prol de uma definigao que nao melindrasse as Poténcias. E notdria, por exemplo, a nao inclusdo de grupos politicos entre aqueles que podem ser alvos do crime de genocidio, 0 que dificultaria a punigao e prevengao de massacres como aqueles que ocorreram na Unido Soviética, Camboja, e nas dita- duras latino-americanas durante os anos 1960-1970. Também recebem criticas dos estudiosos a falta de distingao entre atos de violéncia letais e nao letais bem como a fusao de matangas deliberadas e submissdo a situagdo de risco na definigao de “lesdo grave @ integridade fisica ou mental de membros do grupo”.® A visibilidade alcangada pela convencdo da ONU do crime de genocidio, chama- do por alguns de “crime dos crimes”, fez com que diversos grupos-alvos de massa- cres e violéncia em massa reivindicassem para os eventos perpetrados contra eles 0 + chttps://treaties.un.org/doc/Publication/UNTS /Volume%2078/volume-781-1021-English.pdf>, acesso em: 12 nov. 2014. * CHALK, Frank; JONASSOHN, Kurt. Historia y sociologia del genocidio: andlisis y estudio de casos. Buenos Aires: Eduntret/Prometeo libros, 2010, p. 33. ® SCHABAS, William A. Genocide in International Law. the crime of crimes. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 164 R, Forum de Cl. Crim. - RFOC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-182, jan./jun. 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: O CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO rtulo de “genocidio”, criando uma “expectativa de meméria”, nos termos de Jacques Sémelin, sobre o acontecimento em questao. Assim, além de judeus — evidentemente =, arménios, ucranianos, gregos, autéctones de paises como a Australia, passaram a definir seus passados tragicos como genocidio,*° 0 que tem causado uma série de debates sobre os usos inadvertidos desse conceito que, se do ponto de vista juridico carrega uma tipificagdo bem restrita e aplicavel apenas a poucos casos, do ponto de vista das demais Ciéncias Sociais — a Histéria entre elas — 0 conceito de genocidio vem sendo aplicado a tantos eventos que sua capacidade explicativa tem se esvaziado.* O que parece central para diversos pesquisadores é que 0 uso de um conceito oriundo do campo do Direito em analises histéricas, politicas ou sociolégicas tem causado diversos problemas metodolégicos, a comegar pela definigado do que é ge- nocidio. Se as Ciéncias Sociais tomarem a definigao onusiana como clausula pétrea, hd o perigo de invalidar algumas tentativas de caracterizar episédios de violéncia em massa como genocidio, devido 4 natureza restritiva da convengdo da ONU, na qual a intencionalidade é um ponto central, embora mensurar a intengaéo de matar na Histéria seja algo extremamente delicado.*? Além disso, os debates politicos travados nos bastidores da redagdo da convengao da ONU fazem com que esse conceito de genocidio, como vimos, exclua grupos outros que foram alvos de violéncia sistemati- ca, como os grupos politicos, sociais e de género. Nas palavras de Jacques Sémelin: “em que medida seria legitimo adotar uma norma juridica internacional, resultante de um compromisso politico entre Estados, como base de pesquisa em histéria, em sociologia ou em antropologia?”.*? Cientes das limitagGes da definigdo juridica de genocidio para compreender di- versos eventos histéricos, muitos académicos propuseram novos conceitos e tipolo- gias a fim de fazé-lo aplicavel para outros casos além do massacre de judeus durante a ll Guerra Mundial, caso paradigméatico para a elaboragao do conceito de Lemkin e, posteriormente, o onusiano. Nesse sentido, é essencial para qualquer estudioso de genocidios e massacres deixar claro em suas pesquisas com qual conceito de genocidio esta trabalhando, se esta adotando o conceito onusiano, ainda que com ressalvas — como € 0 caso de muitos académicos -, ou se propde um novo entendi- mento de genocidio, seja porque o grupo-alvo em tela nao esta contido na convengao da ONU, seja porque entende-se que essa esta demasiadamente vinculada ao Direito e perde forga ao ser transportada para as demais Ciéncias Sociais. %© SEMELIN, Jacques. Purificar e Destruir. usos politicos dos massacres e dos genocidios. Rio de Janel 2009, p. 426. + Iid., p. 429. 2 Ibid., p. 442, 3 SEMELIN, J. op. cit, p 442. HEITOR DE A. C, LOUREIRO Jacques Sémelin, Frank Chalk e Kurt Jonassohn, por exemplo, defendem o uso do termo genocidio ao invés de abandondo - como outros académicos propuseram -, ainda que o distancie do conceito onusiano e o desvincule da ideia de etnocidio, ou seja, atentados contra a cultura de um determinado grupo, conforme Lemkin elabo- rava em seu livro de 1944, Assim, Sémelin define genocidio como: “[...] 0 processo particular de destruigao de civis, visando a erradicac&o total de uma coletividade, sendo esta demarcada por critérios impostos por aqueles mesmos que a pretendem aniquilar”.** Chalk e Jonassohn tém definigao semelhante: “[...] genocidio € uma forma de matanga massiva unilateral mediante a qual um Estado ou outra autoridade buscam destruir a um grupo, tal como este e seus membros tém sido definidos pelo genocida”.*® Na acepgao desses autores, portanto, pouco importa a quantidade de pessoas mortas durante os massacres, tampouco a €poca histérica em que o exterminio acon- teceu. A ideia central, para eles, 6 que um grupo especifico, definido pelo perpetra- dor, foi alvo de politicas de exterminio que buscavam a sua destruigao. A consecugao. ou nao desse exterminio também nao é relevante para a caracterizagdo de genocidio. 3 Ocaso arménio A redefinigao do conceito de genocidio foi acompanhada, evidentemente, por uma revisao dos casos mais conhecidos de massacres e exterminio para tentar |é-los por esse prisma. No caso dos massacres perpetrados pelo governo otomano contra 0 povo arménio e outras minorias cristas, ainda que, no campo do discurso politico, militantes e ativistas passassem a empregar o termo para angariar publicidade e visibilidade 4s suas causas, na seara académica foram necessarias muitas paginas e inGmeros debates para defender a aplicabilidade do conceito de genocidio a outros casos menos documentados ou conhecidos que o Holocausto. O fato do préprio Lemkin ser familiar ao massacre de arménios e a mengao feita pela comissao de direitos humanos da ONU ao massacre como “o primeiro genocidio do século XX"** — passagem essa excluida do relatério final por pressdo da Turquia - facilitam a aceitagao em definilo como genocidio, nao obstante a pressao politica, diplomatica e académica feita pela RepUblica da Turquia para mitigar a dimensdo genocida dos acontecimentos iniciados em 1915. Do ponto de vista das Ciéncias Sociais, académicos como Leo Kuper afirmam que os relatos de espectadores estrangeiros, os testemunhos de sobreviventes e “ Ibid., p. 470. 88 CHALK, F.; JONASSOHN, K. op. cit., p. 48. 4 KUPER, Leo. Le concept de génocide et son application aux massacres des Arméniens en 1915-1916 par les Tures. In: Tribunal Permanent des Peuples. Le Crime de Silence: le génocide des Arméniens. Paris: Flammarion, 1984, p. 317-318. 166 R, Frum de Ci. Crim, ~ RFCC | Belo Horzonte, ano 2, n. 3, p. 161-182, an./jun, 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO outros documentos so o suficiente para comprovar abundantemente o crime de genocidio e a categorizagao do caso arménio enquanto tal.t” Isso nao quer dizer que esse acontecimento histdrico esteja livre de ser capitalizado politicamente pelas partes interessadas. Ha que se ficar atento aos usos politicos dos massacres e genocidios, conforme alerta Sémelin, pois a associagao de um morticinio em massa com 0 conceito de genocidio cria, além de “expectativas de memérias”, uma obriga- ¢ao moral — e um pretexto legal — a intervir'® e também demandas por reparagdes. Assim sendo, é preciso ficar atento aos usos inadvertidos e estritamente politicos do termo “genocidio” a diversos casos de exterminio em massa, para evitar 0 risco de esvazié-lo enquanto um conceito analitico das Ciéncias Sociais. Contudo, esse cuidado faz com que o historiador, muitas vezes, tenha um papel semelhante ao de um burocrata de uma repartigao pUblica qualquer, que passa os dias com um carimbo na mao, deferindo ou indeferindo os inimeros pedidos que passam pela sua mesa. Ao se debrugar sobre um caso e decidir se aplica-se ou nao o conceito de genocidio, 0 analista deve procurar nao desqualificar ou diminuir 0 massacre em tela, mas pre- servar 0 conceito em questao desse esvaziamento que inviabilizaria a continuidade de sua aplicagdo. Essa tarefa nem sempre é facil — como também nao é simples a tarefa de um burocrata parecerista, diga-se de passagem. Jacques Sémelin cita dois casos extremos de aplicagao do conceito de genocidio por cientistas sociais que servem para ilustrar essa complexidade: enquanto para Israel Charny 0 conceito de genocidio se aplica a dezenas de acontecimentos no século XX — incluindo o desastre nuclear em Chernobyl -, Stephen Katz considera que 0 Gnico genocidio do século foi aquele praticado pelos nazistas contra a populacao judaica da Europa.*? Ambas as interpretagdes sao problematicas. Enquanto o primeiro faz de genocidio um sinénimo de mortes de seres em grandes quantidades, o dltimo transforma-o em um termo intercambiavel com Holocausto e nada mais. Do ponto de vista juridico, estudiosos ainda tentam ponderar alguns aspectos, como se, por exemplo, 0 caso arménio pode ser categorizado como genocidio, uma vez que 0 crime de genocidio data de 1948, enquanto os massacres de arménios se deram entre 1915 e 1923, o que contrariaria o “principio da reserva legal”, ou seja, que “nao ha crime sem lei anterior que o defina”. Também ha aqueles que alegam que o Império Otomano nao existe mais, sendo a atual Repiblica da Turquia um pais distinto, o que impossibilitaria imputagdo de culpa ou politicas reparatérias. Para ambas as objegdes, ha decisdes judiciais que afirmam que eles nao sao obstaculos para definir 0 caso arménio como genocidio ou mesmo como crime contra a humanidade. De acordo com 0 veredito do Tribunal Permanente dos Povos em 1984, * bid., p. 316. 38 SEMELIN, J. op. cit., p. 426-427. * SEMELIN, J. op. cit., p. 430. R. Forum de Ci Chim. RFOC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-282, jen, /jun, 2015 167 HEITOR DE A. C. LOUREIRO em julgamento — a ser analisado mais detalhadamente a seguir — que analisou se as deportagSes e massacres de arménios no Império Otomano constituiram genocidio tal como é definido pela Convengao da ONU, ambos os argumentos sAo insuficientes para descaracterizar o crime de genocidio no caso arménio. Primeiro porque o proprio texto da Convencdo de 1948 afirma em seu preambulo a existéncia de genocidios durante toda a historia, admitindo, assim, que o crime pode ter acontecido antes da aprovacao da Convengao. Além disso, ainda que o crime de genocidio nao existisse enquanto figura juridica, as praticas levadas a cabo pelo governo otomano contra a Sua populagao j4 eram condenaveis, no tempo de suas aplicagdes, em “normas &ticas e morais imperativas”, 0 que culminou com a declaragao dos paises aliados de que o Império Otomano seria responsabilizado pelos “crimes contra a humanida- de” praticados durante a Guerra.” Também parece aos juristas que compuseram 0 Tribunal Permanente dos Povos nessa sesso que é infundada a tentativa de alegar descontinuidade do pais, pois as transformagdes pelas quais passaram o Império Otomano, culminando na Repiblica da Turquia, nao sao suficientes para prejudicar a identidade juridica desse Estado e, por isso, “o atual governo turco esta obrigado a assumir esta responsabilidade”.2* De fato, a responsabilidade da Turquia vai além daquela atribuida pela continui- dade entre a moderna repiblica e o Império Otomano. A negagao do genocidio armé- nio — e do massacre de outras minorias cristas, como gregos e assirios — para muitos nao é uma fase posterior ao genocidio, mas parte dele. Assim sendo, ao negar os massacres, 0S subsequentes governos turcos continuam a perpetrar o genocidio, o que faz com que alguns intelectuais classifiquem-no como o “mais longo genocidio da histéria”.2? Ha que se pensar nas motivagdes que a Turquia tem para transformar a negacao em uma politica de Estado, diferentemente do que fez a Alemanha, por exemplo, que incentivou a justica transicional e investiu na preservacgdo da meméria dos genocidios ocorridos durante os anos de nazifascismo como uma forma de preve- nir novos crimes contra a humanidade.”* Essa postura negacionista pode ser explica- da, em grande parte, pela ostensiva politica de expropriagao econémica dos arménios do Império Otomano levada a cabo na década de 1910, que transferiu propriedades e fontes de renda dessa comunidade a populagao muculmana que havia sido expulsa dos Bales no contexto de independéncia dessa regio, enquanto os antigos donos 3 TRIBUNAL PERMANENT DES PEUPLES. Le Crime de Silence: le génocide des Arméniens. Paris: Flammarion, 1984, p. 343. 2. ‘TRIBUNAL PERMANENT DES PEUPLES. op. cit., p. 346. 22 CAMPOLINA MARTINS, Antonio Henrique. Arménia, um povo em luta pela liberdade: 0 mais longo genocidio da histéria. Dossié - Direitos Humanos. In: Etica e Filosofia Politica. Juiz de Fora: UFJF, v. 3, n. 1, 1998, p. 139-159. 23 WATENPAUGH, Keith David, “The origins of Armenian Genocide denial and League of Nations’ humanitarianism 1920-1922". In: Armenian Review. v. 52, n. 1-2, 2010, p. 45. 168 R, Forum de Gi, Crim. ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2, 3, p. 164-182, jan /jun, 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: © CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO desses bens eram deportados para o meio do deserto ou eram mantidos em condi- gdes subumanas em campos de refugiados.”* Em suma, reconhecer que 0 genocidio foi parte de uma politica de “redistribuigao forgada de renda”,?° seria assumir os riscos de arcar com uma politica compensatdria que ameagaria a burguesia nacional que impulsionava 0 nacionalismo turco no apagar das luzes do império e no raiar da repiblica.?° A negagao do genocidio esta no cerne da identidade nacional turca.?” Do ponto de vista historiografico, nao se trata mais de provar se ocorreu ou nao o genocidio contra a populagao arménia otomana. Afora alguns poucos aca- démicos que se arriscam a relativizar os acontecimentos de 1915, a historiografia atual sobre 0 tema nao esta debatendo se o genocidio ocorreu, mas como e por que ocorreu e, principalmente, quais foram as suas consequéncias. Nas palavras de Donald Bloxham, “o assassinato orquestrado dos arménios € tomado como um dado, um ponto de partida para a discussao e nao o ponto de chegada”.?* Contudo, numa perspectiva juridica, a auséncia de tribunais como os de Nuremberg, Téquio, ou aqueles para a’antiga lugoslavia e Ruanda, cortes com respaldo internacional, da espaco para interpretagdes distintas utilizadas largamente por juristas contrarios as reivindicagdes arménias no sentido de afirmar que essas nado tém fundamento, pois nao haveria tribunais que entendessem o massacre de arménios enquanto um ge- nocidio, apontando responsabilidades e propondo reparagdes. Porém, desde o final da Grande Guerra até hoje, alguns processos judiciais envolvendo, diretamente ou nao, oS massacres dos arménios otomanos tiveram lugar em diferentes tribunais. A analise desses casos oferece um rico aporte legal sobre como o genocidio arménio foi objeto de discussGes juridicas desde seu acontecimento. O primeiro desses julgamentos ocorreu entre 1919 e 1920 no Império Otomano. Derrotado na Grande Guerra, o Comité Unido e Progresso — partido politico chauvinis- ta e secular que dominou a politica otomana de 1908 a 1918 - foi alijado do poder. Um novo governo de carater liberal foi estabelecido em Istambul, buscando reverter algumas das politicas implementadas pelos paxaés Mehmet Talaat e Ismail Enver, principais lideres otomanos durante os anos de conflito. Como parte dessa politica, um tribunal militar foi instaurado para julgar os crimes de guerra cometidos contra a populacdo arménia por autoridades otomanas. Baseado em testemunhas e nos do- cumentos produzidos pela burocracia otomana com 0 intuito de tonar a matanca em larga escala possivel, o tribunal condenou as ciipulas do Comité Unido e Progresso 2 cf. UNGOR, Ugur Umit; POLATEL, Mehmet. Confiscation and Destruction: the Young Turk seizure of Armenian Property. Nova York/Londres: Continuum, 2014. 2 DADRIAN, Vahakn N. Configuracién de los genocidios del siglo veinte. In: FEIERSTEIN, Daniel (Org.). Genociaio: La administracién de la muerte en la modernidad. Buenos Aires: Eduntref, 2005, p. 94-95. 2° BLOXHAM, Donald. The Great Game of Genocide: imperialism, nationalism, and the destruction of the Ottoman ‘Armenians. Nova York: Oxford University Press, 2005, p. 14. 2 bid., p. 207. 28 BLOXHAM, D. op. cit, p. 20. R. Forum de Ci, Grim. - RFOC | Belo Horizonte, ano 2,n. 3, p. 161-282, jan. /jun, 2035 169 HEITOR DE A. C. LOUREIRO e do Exército pela organizagado de deportagdes e assassinatos. A pena aplicada foi a capital, mas in absentia, pois Talaat, Enver e outros haviam fugido do pais, com apoio logistico alemao, aliado de primeira hora do Comité. Os que permaneceram no im- pério ndo tiveram suas penas executadas, pois pouco tempo depois Mustafa Kemal as tropas nacionalistas turcas tomaram o poder e anularam as sentencas dos julgamentos de Istambul, que permaneceram um bom tempo nos bastidores, até que, recentemente, dois historiadores turcos — um deles de origem arménia — recuperaram dos arquivos as acusagées e vereditos desse tribunal, além das noticias veiculadas na imprensa otomana sobre o desenrolar dos trabalhos da corte.?9 O segundo julgamento a ser analisado esta intrinsecamente relacionado com 0 primeiro. Em 15 de margo de 1921, 0 jovem arménio Soghomon Tehlirian alvejou fatalmente Mehmet Talaat Paxa nas ruas de Berlim. Um sobrevivente do genocidio, cuja familia foi dizimada por grupos armados patrocinados pelo governo otomano, matou 0 algoz de todo 0 seu povo. Preso em flagrante, Tehlirian foi levado a julgamen- to na Repiblica de Weimer e absolvido. Os autos do processo foram publicados em muitos paises — inclusive em portugués® — e o julgamento virou até cena de cinema,** ajudando a consolidar na cultura nacional arménia o imaginario do que os ativistas da causa arménia costumam chamar de “julgamento moral do genocidio arménio”. No caso de Tehlirian, foram as testemunhas as principais fontes da defesa para provar que 0 jovem arménio nao havia cometido um homicidio comum, mas havia, na verda- de, executado 0 arquiteto do plano que intentou exterminar 0 seu povo. Contando com 0 testemunho de alem&es que estavam no Império Otomano a época dos aconteci- mentos, como o militar Armin T. Wegner, responsavel por grande parte dos registros fotograficos que existe dos acontecimentos de 1915,°? ou Johannes Lepsius, intelec- tual que foi o principal denunciante dos crimes otomanos contra as minorias cristas durante a Grande Guerra, o jiri decidiu absolver 0 arménio, acatando os argumentos da defesa que Tehlirian agiu em resposta ao assassinato de sua familia e de seu povo. Ignorou-se no tribunal, todavia, o fato do réu nao ter agido sozinho. Tehlirian fazia parte da “Operagao Némeses’”, plano arquitetado pela Federacao Revolucionaria Arménia para matar os principais envolvidos no genocidio. Foi a Federagao, inclusive, quem pagou pelos advogados de Tehlirian, que habilmente conseguiram convencer o jari de que o réu nao tinha plena consciéncia de seus atos durante o crime, pois havia sido acometido por uma crise convulsiva minutos antes, consequéncia dos golpes na 2 DADRIAN, Vahakn N.; AKCAM, Taner. Judgment at Istanbut: the Armenian Genocide trials. Nova York: Berghahn Books, 2011, %° Um genocidio em julgamento: 0 processo Talaat Paxé na Repiblica de Weimer. Sao Paulo: Paz e Terra, 1994. % No filme Mayrig, de 1991, do cineasta franco-arménio Henri Verneuil, a cena inicial é 0 veredito do julgamento de Tehlirian e a repercussao de sua absolvicdo entre os arménios que chegavam ao porto de Marselha. = Cf. The Armenian Genocide Museum-Institute. Disponivel em: , acesso em: 19 jan. 2015. 170 Forum de Ci, Crim, = RFC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-282, jan. jun, 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO cabeca que sofrera durante as deportagdes.*? Porém, publicagdes posteriores mos- traram que Tehlirian tinha instrugdes claras de como atirar em Talaat Paxa e de deixar ser levado pelas autoridades policiais alemas, numa estratégia para dar visibilidade ao caso. Para os arménios, o que Tehlirian e seus companheiros fizeram foi executar a sentenga dada pelo tribunal de Istambul nunca executada devido & fuga dos réus.** O julgamento de Tehlirian repercutiu muito mais além do que entre os refugia- dos arménios espalhados pelos quatro cantos do mundo, que tentavam reconstruir suas vidas apds o genocidio e que tiveram na atitude do jovem compatriota algum tipo de consolo. O caso de Tehlirian foi um prato cheio para a imprensa europeia & €poca. Em Lviv, atual Ucrania, 0 entao estudante Raphael Lemkin acompanhava com atencdo e consternacao os desdobramentos do caso. Ele nado compreendia como o crime do arménio poderia ser maior do que o cometido por Talaat Paxa. Na ocasiao, Lemkin questionou um professor: “E um crime Tehlirian matar um homem, mas nao é um crime seu opressor matar mais de um milhao? Isso 6 uma tremenda incoeréncia”. A essa pergunta, 0 professor teria respondido: “Pense num granjeiro e suas galinhas, Ele as mata, e isso é da conta dele. Se vocé interferir, estaré invadindo”.° Obcecado pelo caso Tehlirian e pelos assassinatos em massa, em 1933, Lemkin — a essa altura, j4 um respeitado advogado — escreveu uma proposta de lei num congresso de juristas patrocinado pela Liga das NagGes para prevenir os crimes de “barbarie” - “destruigao premeditada de coletividades nacionais, raciais, religio- sas e sociais” — e “vandalismo” - “destruigao de obras artisticas e culturais que sejam a expressao do génio particular dessas coletividades”.*° A proposta do jurista judeu-polonés foi recusada em grande medida por parecer contraproducente aos seus colegas a ideia de que poderia haver um plano sistemético de destruigao de uma co- letividade. Poucos anos depois, como bem sabemos, Hitler invadiria a Polénia com as suas tropas, iniciando a I! Guerra Mundial e a destruigao sistematica de minorias na Europa. Poucos dias antes, em discurso as suas tropas, ele teria dito “Quem hoje em dia ainda fala do massacre dos arménios?”.*” Em 1942, o fuhrer devolveu & Turquia as cinzas de Talaat Paxa. Da proposta de Lemkin de 1933 para a formulagao de genocidio contida em seu livro publicado em 1944%* e na Convengao de 1948 da ONU muita coisa mudou. Tanto 0 livro de Lemkin quanto a Convengao estavam muito marcados pela experiéncia = POWER, S. op. cit., p. 42-43, © assassinato de Talaat Paxé e a operagdo Némeses foram celebrados em misicas e clipes ao longo dos ‘anos. Cf: , acesso em: 19 jan. 2015. POWER, S. Op. cit, p. 42. Ibid., p. 48. = *Wer redet heute noch Von der Vernichtung der Armenier?". Vahakn Dadrian pondera se a frase foi de fato dirigida por Hitler aos seus comandados no dia 22 de agosto de 1939, ou se ela foi inserida posteriormente verso escrita do discurso. DADRIAN, V. Op. cit., 2005, p. 37-42. 58 LEMKIN, R. Op. cit. ae R, Forum de Cl. Crim. — RFCC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 161-182, jan/jun. 2025 4714 HEITOR DE A. C. LOUREIRO nazista na Europa durante a II Guerra, diferentemente da proposta de 1933, inspirada largamente nos massacres otomanos. 0 jugo de Hitler levou o exterminio em massa a um nivel muito mais sofisticado do que aquele alcangado pelo Comité Uniao e Progresso no Império Otomano. 0 exterminio de judeus e a sua categorizagao como crime de genocidio promo- veu, algum tempo depois, um reajuste de terminologias entre os militantes da causa arménia. Imediatamente apés o término da II Guerra, poucos intelectuais categoriza- vam o massacre de arménios dessa forma, mas isso mudou drasticamente em 1965, quando uma grande manifestacao em Yerevan, capital da Arménia Soviética, fomenta- da pelo governo central marcou 0 50? aniversario de inicio dos morticinios. A partir de entao, cresceram as reivindicagdes para que os massacres de arménios no Império Otomano fossem conceituados como genocidio, dentro dos marcos da definigaéo onu- siana de 1948. A estratégia de Moscou, ao estimular que os arménios soviéticos reivindicassem os territ6rios perdidos para a Turquia apds o rompimento do Tratado de Sévres de 1920, consistia em melindrar o pais vizinho, membro da OTAN e cabeca de ponte das poténcias ocidentais no Oriente Médio, a fim de frear quaisquer atitudes do governo turco que pudessem colocar em risco as posigGes soviéticas no Caucaso. A partir de entao, a disputa pela aplicabilidade do conceito de genocidio no caso arménio se tornou mais intensa. De um lado, arménios soviéticos e da diaspora pres- sionavam suas respectivas areas de influéncia para obterem resolucdes de governos nacionais e de organismos multilaterais em favor do reconhecimento do genocidio arménio; de outro, a RepUblica da Turquia financiava publicagdes editoriais e centros de pesquisas ao redor do mundo para neutralizar as investidas arménias, ao mesmo tempo em que a diplomacia coordenada por Ancara trabalhava para destacar a singu- laridade da “Soluc&o Final” no caso judeu durante a Il Guerra Mundial numa tentativa de enfraquecer a experiéncia arménia de algumas décadas antes.*° Nos anos 1970-80, essa disputa, que até entao estava nos campos da acade- mia e da diplomacia, tomou contornos mais dramaticos. Extenuados pelo jogo politico que girava em torno do /obby arménio, por um lado, e da negagao como politica de Estado na Turquia, por outro, grupos dissidentes de partidos politicos arménios que operavam em diferentes paises decidiram partir para a luta armada como forma de propaganda da causa. Entre 1973 e 1985, cerca de 50 diplomatas turcos foram mortos durante agdes armadas que visavam representacdes diplomaticas turcas pelo mundo.** A mais famosa delas, em outubro de 1983, terminou com a morte dos cinco militantes arménios que tomaram a embaixada da Turquia em Lisboa. 3 BLOXHAM, D. Op. cit., p. 215-216. * Ibid. p. 216. ** BLOXHAM, D. Op. cit., p. 219. 4172 R, Forum de Ci. Crim, ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2,n. 3, p. 461-482, jan./jun. 2035 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO Ainda que a estratégia dessas células arménias possa ser questionada ~ assim como foi a Operagao Némeses e a execugao de Talaat Paxa por Soghomon Tehlirian - 0 fato € que as atengdes do mundo se voltaram para a causa arménia naquele perfodo. Enquanto o governo da Turquia se colocava em uma situagdo de fragili- dade perante a opiniao piblica, utilizando da condenagao do chamado “terrorismo arménio” para desqualificar as demandas daquele povo, os arménios aproveitavam a visibilidade causada pelos ataques para criar instituigdes educacionais e de pesquisa que fornecessem insumos para o debate, esperando fazer, assim, 0 contraponto ao esforgo estatal turco. Em 1984, toda essa disputa politico-historica chegou novamente ao campo juridico, mas dessa vez por meio de um tribunal internacional que compds um jari com académicos e juristas de diversos paises para a segao especial dedicada ao geno- cidio arménio. Na ocasiao, o Tribunal Permanente dos Povos — tribunal de “opiniao” fundado em 1979 na Italia, como um desdobramento do Tribunal “Russel” para o Vietna — decidiu por analisar 0 caso arménio a fim de estabelecer se era comprovado que os arménios haviam sofrido um processo de violéncia no Império Otomano, se tal fato constituia genocidio conforme estabelecido pela ONU em 1948 e, caso positivo, quais seriam as consequéncias desses eventos para a comunidade internacional para as partes envolvidas.*? Com a recusa da Repdblica da Turquia em participar do julgamento, o tribunal optou por analisar documentos que expunham a visdo do governo turco sobre os acontecimentos e cotejalos com a opiniao de especialistas no assunto, bem como com as decisdes tomadas em Istambul nos julgamentos de 1919 e em Berlim no caso Talaat Paxé de 1921. No veredito, o Tribunal Permanente dos Povos levou em conta os esforgos do governo turco em negar os acontecimentos de 1915 como uma justificativa para que o massacre fosse revisitado 4 época do julgamento, mesmo 69 anos apés o seu inicio. Com isso em mente, os peritos a servico do Tribunal buscaram documentacao em arquivos alemaes, norte-americanos e britanicos para avaliar a dimensao dos massacres, cotejados com os argumentos turcos que alegavam uma superestimagao das cifras de arménios no Império Otomano, bem como atribuiam a culpa das mortes por confrontos causados pelos grupos revolucionarios e nacionalistas arménios, além de negarem a premeditagao das deportagdes e assassinatos.** Seguindo a Carta das Nagdes Unidas, a Convengao sobre Prevengao e Punigdo do Crime de Genocidio da ONU — de 9 de dezembro de 1948 e ratificada pela propria Turquia em 1950 -, a Declaragao Universal dos Direitos dos Povos (Argel, 4 de julho de 1976) e diante dos fatos apontados, o Tribunal declarou que “a intengdo particular de destruir um grupo 2 TRIBUNAL PERMANENT DES PEUPLES. Op. cit., p. 18. “TRIBUNAL PERMANENT DES PEUPLES. Op. cit., p. 336-337. RR. Forum de Ci. Crim. - RFOC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-182, jan./jun, 2015 173 HEMTOR DE A. C, LOUREIRO enquanto tal, que é especifico do crime de genocidio, esta também confirmada”.** Sobre as alegacées turcas, o Tribunal entende que sao “desprovidas de fundamen- to”, pois “o genocidio € um crime que nao pode, com efeito, incorrer nem em des- culpa, tampouco em justificativa”.“® Assim sendo, o Tribunal Permanente dos Povos decidiu que: - As populagdes arménias constituiram e constituem um povo cujos direitos fundamentais, individuais e coletivos deveriam e devem ser respeitados em conformidade com o direito internacional. - 0 exterminio das populagdes arménias por meio de deportagdo e massacre constitui um crime imprescritivel de genocidio nos moldes da Convengo de 9 de dezembro de 1948 para a prevencdo e repressao do crime de genocidio; como condenacao desse crime, essa Convengao é declaratéria do direito no qual consta as regras ja em vigor a época dos fatos incriminados; - 0 governo dos Jovens Turcos € culpado por esse genocidio, no que concerne aos fatos perpetrados entre 1915 e 1917; - O genocidio arménio e também um “crime internacional” cujo Estado turco deve assumir a responsabilidade, sem poder alegar, para se furtar, uma descontinuidade na existéncia desse Estado; - Essa responsabilidade implica sobretudo a obrigacéo de reconhecer oficialmente a realidade desse genocidio e do consequente prejuizo causado ao povo arménio; - A Organizagao das Nagées Unidas e cada um de seus membros estao no direito de reclamar reconhecimento e de assistir 0 povo arménio nes- se objetivo.© Por ser um “tribunal de opiniéo”, sem nenhum tipo de legitimidade juridica, o seu veredito permaneceu como um documento moral em favor da causa arménia. Entretanto, a reuniao de tantos intelectuais de renome em torno do julgamento do caso arménio ajudou a sensibilizar a opinido pUblica para essa questao e distanciala da imagem negativa causada pelas agdes armadas arménias. Apés isso, os pedidos de reconhecimento do genocidio em diversos espagos politicos pelo mundo se inten- sificaram. Ainda em 1984, uma resolugao conjunta da Camara dos Representantes dos EUA solicitou que o dia 24 de abril de 1985 fosse declarado como o “dia nacional de rememoragao da desumanidade do Homem para com 0 Homem”,‘” apés intensas disputas entre parlamentares influenciados pelos lobbies de arménios e turcos, ge- rando texto lacénico. Uma resolugao do Parlamento Europeu de junho de 1987 teve tom menos conciliador e definiu que: + ibid, p. 344, * Ibid., p. 345, * ibid. p. 348. 47 chttp://www.genocidemuseum.am/eng/U em: 23 jan. 2015. House_of_Representatives_Joint_Resolution_247.php>, acesso 174 R, Forum de Ci. Crim, ~ RFOC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 161-182, Jan./jun. 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO [...] os tragicos eventos entre 1915-1917 envolvendo os arménios que viviam em territ6rio do Império Otomano constituem genocidio no sentido da Convengao pela Prevengao e Punigao do Crime de Genocidio adotada pela Assembleia Geral das Nagdes Unidas em 9 de dezembro de 1948.** Donald Bloxham destaca que essa crescente onda de conscientizagao europeia no que tange a causa arménia e a nao observancia aos direitos humanos na Turquia colaborou para frustrar os planos turcos de ingresso no que na época era chamado de Comunidade Econémica Europeia, antecessora da Unido Europeia. Nao obstante essa derrota politica, 0 pais intercontinental nao deixou de ter um peso relevante na geopolitica ocidental, sobretudo no contexto de incertezas da virada dos anos 1980-90." Com o fim da URSS, da Guerra Fria e com a independéncia da Arménia todo 0 tabuleiro geopolitico foi alterado, assim como as estratégias dos arménios para obterem o reconhecimento. A partir de 1991, a existéncia de um Estado arménio auténomo fez com que os trabalhos politicos feitos pelas comunidades diaspéricas ao redor mundo pudessem ter um centro nevralgico, ainda que, nado raramente, 0 go- verno em Yerevan e a diaspora discordassem drasticamente nos métodos e objetivos utilizados para angariar apoio 4 causa. Apesar dos grandes problemas enfrentados pela recém-independente repiiblica, como um terremoto de grande magnitude que destruiu uma importante cidade no crepiisculo dos anos soviéticos e um conflito territorial com o vizinho Azerbaijao — que acarretou o fechamento da fronteira armé- nio-turca por decisao unilateral de Ancara, em apoio aos aliados azerbaijanos em 1993 -, os anos 1990 foram promissores para a divulgagdo da causa e obtengao de reconhecimento governamental do genocidio arménio. Na Europa, Grécia, Chipre e Bulgaria reconheceram os acontecimentos de 1915 como genocidio, langando mao da demanda arménia para causar certo desconforto 4 Turquia, adversaria historica dos trés paises® - sobretudo do pais insular, cuja parte setentrional foi ocupada pelo exército turco nos anos 1970. Na América Latina, 0 reconhecimento do genocidio tomou um caminho distinto. Com comunidades significativas presentes na Argentina e Uruguai e, em menor grau, no Brasil, Venezuela, Chile e México, os arménios gozavam de certa liberdade e au- tonomia para reivindicar seus direitos junto aos paises onde residiam, uma vez que © subcontinente estava 4 margem do tabuleiro geopolitico, distante dos interesses imediatos da Turquia ou das poténcias ocidentais. O Uruguai foi 0 primeiro pais no mundo a passar uma resolugao legislativa que menciona os massacres de 1915. Em 20 de abril de 1965, os parlamentares uruguaios aprovaram o texto da Lei n? 13.326, -, acesso em: 23 jan. 2015. “© BLOXHAM, D. Op. cit, p. 224. * Ibid., p. 223. R. Frum de Ci Crim, ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2,n. 3, p. 461-182, jan. /jun, 2035 175 HEITOR DE A. C. LOUREIRO que decreta o dia 24 de abril como “dia de rememoragdo dos mértires arménios”, obrigando o servigo radiofénico estatal a fazer mengao aqueles acontecimentos na ‘sua programagao nesse dia, além de decretar ponto facultativo aos funcionérios pu- blicos de origem arménia na referida data.°* A grande concentragao de arménios e descendentes na capital dessa pequena repiblica platina certamente colaborou para © pioneirismo, em que pesem as profundas cisdes que marcam a coletividade de Montevidéu. A onda de regimes autoritarios entre os anos 1960-80 nao permitiu que outros paises sul-americanos seguissem o exemplo uruguaio. Apenas depois da redemocra- tizagao do subcontinente a causa arménia foi reinserida com vigor na pauta politica. 0 senado argentino aprovou texto nesse sentido em 1993, ratificado por outras reso- lugdes semelhantes nos anos 2000. Chile, Venezuela e, mais recentemente, Bolivia trilharam o mesmo caminho.*? A falta de articulagao da coletividade arménia do Brasil junto as esferas politicas nacionais depois da redemocratizagao — nao obstante a consecugao da alteragao do nome de uma estacdo de metré na capital paulista para “Estado Arménia” em 1985 e a aprovacao da Lei n° 6.468, de 19.05.1989, que institui o dia 24 de abril como o “Dia da Solidariedade para com 0 Povo Arménio”®* na Assembleia Legislativa do Estado de Sao Paulo — nao permitiu que a demanda do reconhecimento chegasse aos poderes Legislativo e Executivo federais, embora as entidades da coletividade lutem, com apoio da Reptblica da Arménia, diuturnamente para que isso acontega o mais rapido possivel. Coube entao a Argentina ser o palco das principais disputas concernentes @ causa arménia na América do Sul, 0 que ocorreu nao s6 nos ambitos politicos conven- cionais, dentro dos tramites do Legislativo e do Executivo, mas também se expandiu para o campo do Judiciario, por meio da impetragao de um “juizo pela verdade” de autoria de um cidadao argentino de origem arménia. Esse dispositivo, criado para es- clarecer desaparecimentos e assassinatos politicos no periodo de regime autoritario, entre 1976 e 1983, foi utilizado astutamente por Gregorio Hairabedian e sua filha e advogada, Luisa,®° para solicitar ao Estado, no final do ano 2000, que os provesse com informagdes sobre o que havia acontecido com os seus familiares, que nao ha- viam sido mortos pelos agentes da repressao argentina, mas pelo governo otomano em 1915 em terras a milhares de quilémetros distantes do Rio da Prata. A iniciativa 51 , acesso em: 23 jan. 2015. ° , acesso em: 23 jan. 2015. 53 , acesso em: 23 jan. 2015. % , acesso em: 23 Jan. 2015. 5 Apés o falecimento inesperado de Luisa Hairabedian, em 2004, seu filho Federico Gaitan Hairabedian também advogado, assumiu a causa. Em marco de 2005 foi criada em Buenos Aires a Fundacién Luisa Hairabedian para promover debates acerca de direitos humanos e genocidios na Argentina. Cf. , acesso em: 26 jan. 2015. 176 R. Férum de Ci. Crim. ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 161-4182, jan./jun. 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO de Hairabedian foi oficialmente abragada, cinco anos mais tarde, pela coletividade arménia da Argentina, em uma rara demonstracao de uniao. Apés muitos percalgos processuais e profundas incursGes em arquivos estran- geiros em busca de documentacao que provasse os acontecimentos entre 1915 e 1923, além do testemunho de cidadaos argentinos, sobreviventes e descendentes dos massacres, e de um membro do Tribunal Permanente dos Povos na sesso que apreciou 0 genocidio arménio, 0 juiz federal Norberto Oyarbide declarou que: [...] 0 Estado turco cometeu delito de genocidio contra 0 povo arménio, no periodo entre os anos de 1915 e 1923. [...] que se foi comprovado com idéntico rigor probatério, a preexisténcia e 0 carater de vitimas das familias paterna e materna de Gregorio Hairabedian, integrantes do povo arménio residente em territério do Império Otomano e logo Estado da Turquia.°* A vitéria dos Hairabedian e da comunidade arménia da Argentina foi recebi- da com grande empolgacao pelas coletividades arménias espalhadas pelo mundo € propagandeada como um reconhecimento judicial e isento, baseado em intensa e detalhada pesquisa histérica, desprovido de estratagemas politicos e lobby e além da influéncia do governo turco. O Juicio por la Verdad del Genocidio Armenio (2001- 2011) foi visto também com particular interesse pela academia, sendo alvo de estu- dos hist6ricos e juridicos por conta de sua especificidade.*” Consideragées finais Os vereditos do Tribunal Permanente dos Povos nos anos 1980 e da Justica argentina em 2011 reforgam a necessidade de uma abordagem interdisciplinar na tentativa de estabelecer um didlogo entre Direito, Histéria, memdria e verdade em sociedades que passaram por periodos de violéncia em massa e suspens&o dos direitos fundamentais de seus cidadaos. Para Sévane Garibian, doutora em Direito Penal pelas Universidades de Paris X e de Genebra, esses processos preenchem uma lacuna na histéria, provendo o grupo-alvo com reconhecimento por suas perdas e, do ponto de vista legal, da certa existéncia para vitimas que desapareceram, oficializan- do 6bitos e “matando os fantasmas” que ainda rondam.®* HAIRABEDIAN, Gregorio. Recordar Opinando sobre e! Genocidio de Armenios: razones, fundamentos y motiva- clones de la causa judicial contra el Estado turco. Buenos Aires: Ediciones Ciccus, 2044, p. 184, A sentenca completa pode ser encontrada em: , acesso em: 26 jan. 2015. 5" Cf. especialmente GARIBIAN, Sévane. Ghosts Also Die: Resisting Disappearance through the ‘Right to the Truth’ and the Juicios por la Verdad in Argentina. In: Journal of International Criminal Justice. Oxford, v. 12, n. 3, 2014. S* GARIBIAN, S. op. cit. p. 24. R. Forum de Ci. Crim. ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2,n. 3, p. 161-482, jan /jun, 2035 477 HEMTOR DE A. C, LOUREIRO No caso arménio, nado obstante os cem anos que nos distanciam do inicio dos massacres no Império Otomano, essa abordagem interdisciplinar € de fundamental importancia. A politica negacionista da Turquia nessa matéria é um grande obstacu- lo ao desenvolvimento da democracia plena naquele pais. Amparados pelo obscuro artigo 301 do Codigo Penal, o governo langa mao de processos judiciais para atacar aqueles que, de alguma forma, ofendem ou insultem a nacao turca. Apesar de al- gumas emendas realizadas recentemente, sobretudo apés 0 assassinato de Hrant Dink em 2007 - cidadao turco de origem arménia, fundador e editor-chefe de um jornal bilingue em Istambul, era uma das principais vozes de conciliagao entre os dois paises — esse dispositivo permanece como uma ameaga 4s vozes dissidentes da historia oficial.5° Em suma, revisitar a historia é, para a RepUblica da Turquia - e outros paises cujo periodo autoritario nao passou por uma devassa antes da alegada redemocratizacao — essencial para a consolidac&o da democracia e das liberdades individuais. Assim, enganam-se aqueles que pensam que as questdes do passado estao presas no passado, ou que contendas desse tipo sao apenas da alcada das partes envolvidas, sem qualquer implicagao para os demais. Enquanto este texto é escrito, uma agao sera julgada novamente pela Grande Segao da Corte Europeia de Direitos Humanos, por conta de um fato ocorrido na Suiga em 2005, envolvendo o genocidio arménio, reconhecido naquele pais e cuja negacao é passivel de punigao.® Naquele ano, Dogu Peringek, conhecido politico nacionalista turco e membro do sugestivo “Comité Talaat Paxa”, proferiu palestras em Berna e Lausanne nas quais ele declarou que o genocidio arménio era uma “fabricagao”. Suas declaragdes fizeram com que ele fosse processado, em 2007, pelo Estado suigo, julgado com base na legislagao antirracismo do pais e condenado. Peringek recorreu a Corte Europeia de Direitos Humanos, alegando que a Suica estava cerceando seu direito a liberdade de ex- pressdo, 0 que foi acatado pela corte. Em 2014, pressionado por organismos de direitos humanos internacionais, por setores da comunidade arménia e também por organizagdes turcas que pediram para tomar parte no processo como terceira parte interessada, 0 Estado suigo resolveu apelar da decisao e um novo julgamento esta marcado para comegar em janeiro de 2015. Na opiniao da Human Rights Association, entidade turca que apoia a condenagao de Peringek, a negagao do genocidio fomenta 0 6dio contra a populacao arménia da Turquia. Junto com a Hafiza Merkezi — The Truth Justice Memory Center, outra organizagao de direitos humanos baseada na Turquia e ® Cf. ALGAN, Billent. The Brand New Version of Article 304 of Turkish Penal Code and the Future of Freedom of Expression Cases in Turkey. In: German Law Journal. v. 9, n. 12. © Ha disoussdes entre cientista sociais sobre a validade desse tipo de legislagdo que transforma em crime @ negagao de um genocidio, ou até mesmo em decretos que reconhecem que um determinado caso genocidio. A polémica reside na validade da determinagao estatal de uma “verdade histérica’. Cf. SEMELIN, J. Op. cit, p. 426-427. 178 R. Forum de Ci Crim. = RFCC | Belo Horizont, ano 2, n. 3, p. 161-182, jan /jun. 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: 0 CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO com 0 International Institute for Genocide and Human Rights Studies, com sede em Toronto, Canada, a Human Rights Association declarou, as vésperas do julgamento da apelac&o suiga que: A hostilidade para com os arménios nao esta confinada a meras pala- vras, mas também tira vidas. Nesse contexto de discriminagao e ddio étnico, arménios foram atacados e Hrant Dink, fundador e diretor do Agos, foi vitima de um assassinato cujos perpetradores ainda tém que serem levados a justiga. O militar arménio Sevag Sahin Balikg! foi exe- cutado a tiros por outro soldado em Batman, durante o servigo militar, especificamente no dia 24 de abril, a data que marca universalmente a rememoragao pelo comeco do genocidio arménio. Os procedimentos judi- ciais foram publicamente desacreditados quando a imprensa indicou que comandantes pressionaram os subordinados para testemunhar que o incidente havia sido um “acidente”. Ademais, os “protestos Hodjali” em 27 de fevereiro de 2012, ocorridos na Praga Taksim, que contaram com a participagao do Ministro de Assuntos Interiores como orador no qual era possivel ver faixas com os dizeres “vocés todos sao arménios, vocés todos sao bastardos”. Num periodo de dois meses entre 2012 e 2013, © distrito de Samatya em Istambul, o qual é densamente povoado por arménios, presenciou ataques similares e sucessivos a idosas arménias = dentre elas, Maritsa Kiigiik, que teve ossos esmagados e 0 corpo intei- ro esfaqueado. Em 23 de fevereiro de 2014, faixas com os dizeres “vida longa aos Ogiin Samasts [jovem ultranacionalista que executou Hrant Dink - nota do autor], malditos sejam os Hrant Dinks” foram expostas livremente em frente ao jornal Agos. Em suma, a negacao do genocidio é 0 carro-chefe de uma ameaga san- cionada pelo Estado ao direito fundamental a existéncia sob a qual os arménios continuam a viver na Turquia.®* A declaragao conjunta desfralda uma série de consequéncias diretas da poli- tica de negagao do genocidio para a sociedade turca e mostra assim a atualidade da discussdo sobre os acontecimentos de 1915 no Império Otomano em todos os cantos do mundo, pois questdes de direitos humanos atravessam fronteiras, gerando imbréglios em locais muito além daqueles onde tiveram origem. — mundialmente co- nhecido, por exemplo, 0 caso do magistrado espanhol que pediu, em 1998, a prisdo do general e ex-presidente chileno Augusto Pinochet por violagao de direitos humanos durante o regime de excecdo entre 1973 € 1990. Mas o que o caso arménio pode oferecer como ligdo para o estudo juridico € que nao importa a distancia temporal que ha entre o acontecimento histérico e as tentativas de julgamento, é possivel e ne- cessério desvelar as infracdes aos direitos fundamentais a fim de discutir eventuais reparagdes materiais e morais. © , acesso em: 27 jan. 2015. R. Forum de Cl Crim, - RFOC | Belo Horizonte, eno 2, n. 3, p. 164-182, jen, /jun. 2015 179 HEITOR DE A. C. LOUREIRO Do ponto de vista historiografico, sobretudo no caso em tela, uma aproximagao com 0 Direito pode problematizar 0 emprego do conceito de genocidio, levando em conta as implicagGes juridicas que rondam o seu uso e mostrando em que medida o conceito utilizado em determinada pesquisa dialoga ou nao com a definigao onusia- na. Ademais, as apreciagoes judiciais e as dezenas de documentos e depoimentos utilizados no desenrolar do processo geram um corpus documental importante para a pesquisa histérica, além dos préprios autos dos processos serem por si s6 fontes relevantes, sobretudo em um acontecimento cujo recuo temporal 6 demasiado longo, 0 que impossibilita a coleta de depoimentos de sobreviventes € 0 acesso a documen- tos que jé se perderam. Em suma, o didlogo entre Historia e Direito nos estudos de genocidio pode colaborar para uma compreensao mais ampla do fenémeno da violéncia que atinge grupos inteiros, causando grandes perdas humanas e materiais e, qui¢a, promover debates que ajudem a criar mecanismos de prevengao e punigao desse tipo de delito. Mas é justamente ai que reside o dilema do pesquisador que se debrucga sobre geno- cidios e massacres, pois quanto mais estuda esse tipo de acontecimento, segundo Jacques Sémelin, na expectativa de prevenir futuras infragdes dos direitos humanos, mais cético fica o académico acerca da viabilidade de tal objetivo.*? Nas palavras do pesquisador francés: “As ciéncias sociais, entao, tem uma fraca capacidade adivi- nhatéria: como pensar que se podem aplicar as ‘ligdes’ da Historia a novas crises, que se apresentam sob uma luz obrigatoriamente diferente e cujas evolugdes perma necem imprevisiveis?”.®° Caracteriza-se, assim, 0 que Sémelin chama de “ideologia do prevencionismo”, na qual os cientistas sociais acreditam que suas pesquisas sao dedicadas a prevenir genocidios, quando, na verdade, a utilidade dessas reside na visibilidade dada a um determinado caso.%* Sendo assim, para além dos estudos das causas, é necess4rio monitorar os sinais de genocidio, tais como a propagagdo do discurso de édio ou a segregagaio de determinados grupos em uma sociedade, para que assim seja aventada a possibilidade de uma intervengao multilateral de acordo com os marcos do direito internacional. Contudo, da possibilidade para a ago ha um longo caminho cujos obstaculos muitas vezes demoram para serem vencidos, custando assim milhares de vidas. Entre parti- darios de intervengdes internacionais para interromper ciclos de violéncia - 0 que, do ponto de vista pragmatico, seria menos custoso economicamente do que remediar a posteriori — e os que acreditam que agdes desse tipo sao ferramentas pds-colonia- listas de dominagao de paises periféricos pelas poténcias, muitas alternativas sao ponderadas sem que necessariamente sejam colocadas em pratica. Nem mesmo ® SEMELIN, J. Op. cit., p. 502. ® Ibid., p. 510. % Ibid. p. 510515. 180 R, Forum de Ci. Crim, ~ RFCC | Belo Horizonte, ano 2, n. 8, p. 164-182, jan./jun, 2015 DIALOGOS ENTRE HISTORIA E DIREITO: O CONCEITO DE GENOCIDIO E 0 CASO ARMENIO esforcos juridicamente mais sdlidos como a doutrina da Responsibility to Protect (R2P), que advoga que a soberania nacional pode ser relativizada em casos de ge- nocidio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e limpeza étnica, conseguiu apontar quais seriam as condigGes praticas para a intervengao da comunidade inter- nacional em caso de necessidade.** Para Sémelin, “apenas uma politica de preven- Gao que ataque em profundidade as causas estruturais dos conflitos pode ter alguma possibilidade de impedir um genocidio”.®* Todavia, a agdo egoista de Estados no sistema internacional nao permite que os paises que tém condigdes para prevenir genocidios e punir genocidas fagam algo nesse sentido, convertendo as promessas de “nunca mais”, sempre feitas apés grandes catastrofes humanitarias, em palavras vazias, destruidas pela ocorréncia de um novo — ou velho — massacre,*” que eventual- mente pode ser considerado um genocidio nos termos onusianos, baseados, por sua vez, na elaboragao e experiéncia de Raphael Lemkin, cujos primeiros esforgos foram em observéncia tentativa de exterminio das minorias cristés do Império Otomano durante a | Guerra Mundial. Resumen: Este articulo tiene como objetivo reflexionar sobre el concepto de genocidio desde dos disciplinas diferentes: la Historia y el Derecho. Analizamos el desarrollo y consolidacién del concepto en ambas areas, desde la concepcién de Raphael Lemkin, la estandarizaci6n en la Convencién para la Prevenci6n y la Sanci6n de! Delito de Genocidio de la Organizacién de las Naciones Unidas en 1948, hasta su adopcién por las ciencias sociales, especialmente por la Historia. El trabajo tiene como hilo conductor la masacre de la poblacién armenia de! Imperio Otomano desde 1915, un evento que, incluso cien afios después, sigue generando debates ¢ interpretaciones sobre la aplicabilidad de! concepto de genocidio. Palabras clave: Genocidio. Armenia. Interdisciplinaridad. Abstract: This paper aims at analyzing the uses of the concept of Genocide in two different academic disciplines: History and Law. For this purpose, it will be examined the development of this concept in both areas, since its creation by Raphael Lemkin, and the regulation through the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide at the United Nations in 1948, to its adoption by Social Sciences, more specifically by History. The analysis’ guideline is the massacre of Ottoman Armenians since 1915. On the eve of the commemoration of the 100" anniversary of the Armenian Genocide, it keeps stimulating debates about the application of the concept of genocide. Key words: Genocide. Armenia. Interdisciplinary. Referéncias ALGAN, Billent. The Brand New Version of Article 301 of Turkish Penal Code and the Future of Freedom of Expression Cases in Turkey. In: German Law Journal. v. 9, n. 12. % SEMELIN, J. Op. cit, p. 512-514 ° Ibid. p. 508. ° Ibid. p. 519. R. Forum de Cl, Crim. RFOC 1 Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 164-182, jn./jun. 2015 181 HEITOR DE A. C. LOUREIRO BEVERNAGE, Berber. 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Frum de Cl Crim. ~RFCC | Belo Horizonte, ano 2, n. 3, p. 161-182, jan/jun. 2025

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