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O “XAMANISMO” NO BRASIL: AS REZAS SILENCIADAS

Adeir Ferreira Alves1

RESUMO
A palavra “xamã”, quer dizer sacerdote, curador, místico, médico. Depende de
cada cultura. Mas no Brasil quando falamos xamanismo reduzimos o significado
da palavra aos rituais dos povos chamados de “indígenas” (originários da terra).
Nesse sentido, podemos dizer que xamã é uma palavra com sentido
aproximativo do real – pelo menos conforme pensamos no imaginário coletivo.
Mas, esse termo não parece ser capaz de descrever ou traduzir tudo aquilo a
que ele se refere. E parece muito menos conseguir representar o simbólico
daquilo a que o termo se refere. Pois a realidade das culturas de cura no mundo,
sobretudo no Brasil são amplas demais para reduzirmos em breve conceito como
a este fenômeno tão imensurável. Mais do que a dificuldade semântica e
intercultural a ser abarcada por essa terminologia disseminada globalmente, há
um outro fator de ordem epistemológica e política, fundantes desses conflitos
cognitivos, e obliterados pelo senso comum e até mesmo científico, a relação de
poder e de dominação subjacente às culturas.
Palavras-chave: xamanismo; interculturalidade, decolonialidade e poder.

INTRODUÇÃO
No Brasil, conforme os dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) temos mais
de 305 etnias diferentes de povos originários dessas terras onde hoje se delimita
o território brasileiro. Temos 274 línguas faladas atualmente. Sem contar os
povos tradicionais de matriz africana (quilombolas e remanescentes de
quilombos), que conforme a Coordenação Nacional de Articulação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no total deve chegar a quase
5 mil comunidades no Brasil afora, mas a Fundação Cultural Palmares mapeou
ainda somente 3.524. Todos esses segmentos de povos tradicionais,
contabilizando outros povos, tais como: de terreiro, quebradeiras de coco,
ribeirinhos, ciganos e tantos outros catalogados pelo Centro Nacional de
Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT), têm os seus

1 Bacharel e Licenciado em Filosofia (Inst. Sto Tomás de Aquino/PUC/MG); Especialista em


Filosofia Existencial (UCB/DF), Técnico em Meio Ambiente (IFB); Mestrando em Direitos
Humanos e Cidadania (PPGDH, UnB); Professor de Filosofia da Secretaria de Educação do
Distrito Federal.
ditos saberes e práticas tradicionais, bem como suas especificidades religiosas,
que também, de certa forma, não deixa de ser em alguma medida “xamânica”.

A grande questão que se coloca aqui é da elasticidade do termo para a


abrangência quase imensurável daquilo a que ele quer se referir. No entanto,
para além da questão linguístico-semântica, há um postulado obliterado do
discurso, mas no que prepondera uma relação simétrica da relação dominador
dominado. Temos centenas de culturas e de saberes no Brasil, mas a que
predomina no nosso imaginário é aquela eurocentrista com pilares míticos
nórdicos e saberes racionalizados, edificados na ciência, e também nas religiões
de origem europeia. Tudo que foge desse modelo tende a ser visto como errado,
senso comum, sem prestígio. E quando se fala em diversas culturas e suas
relações não podemos fugir da discussão sobre as estruturas dessas relações.
É nesse aspecto que faremos a discussão em interculturalidade para
compreendermos em quais instâncias as rezas, as práticas os saberes das
culturas subjugadas à condição de dominado subsistem.

INTERCULTURALIDADE E COLONIALIDADE
Catherine Walsh (2009) ao discutir sobre interculturalidade no contexto da
América Latina organiza a abordagem em alguns conceitos básicos para
diferenciar os efeitos da relação em que o discurso demarca os espaços de
poder de um sistema de dominação entre as culturas. Por isso a autora
apresenta três perspectivas conceituais: relacional, funcional e crítica. A
Relacional camufla os conflitos entre as distintas culturas. O fato de existirem,
até mesmo num dado espaço, culturas distintas como a indígena, a negra e a
europeia, não significa que tudo está consolidado e apaziguado como pressupõe
o mito da democracia racial. Walsh apresenta o conceito Relacional como um
postulado no qual simplesmente o conflito e o sistema de dominação parecem
entre os distintos grupos. A segunda perspectiva citada por Walsh é a Funcional,
na qual reconhece as diversidades, e por isso trabalha com o ideal de inclusão
das minorias na estrutura social privilegiada. Conforme Walsh, essa segunda
perspectiva nos dá a impressão de efetivação de justiça social porque corrige as
assimetrias e desigualdades, mas não tem o sistema de regras questionado, por
isso, esse modelo é o predileto do neoliberalismo e do viés da globalização. E a
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terceira perspectiva apresentada pela pesquisadora é a Crítica. Walsh diz que a
Crítica permite diferenciar a questão das diversidades culturais da estrutura
colonial, cujo critério de poder é a raça. Assim, ela diz que essa perspectiva
permite compreender como esse critério hierarquiza as raças, colocando em
local de destaque e privilégio a raça branca. Por isso, a interculturalidade dentro
dessa terceira perspectiva ainda não existe de fato, mas é a algo que pode vir a
existir. Ainda sobre essa temática há outros autores que tratam dessa
hegemônica relação de poder, a saber, Aníbal Quijano (2005), Boaventura de
Sousa Santos (2006) e Achille Mbembe (2005), Garcia Filice (2017) e outros.

CONCLUSÃO
É dessa feita que discutir o xamanismo apenas numa perspectiva semântica da
diversidade cultural tem bastante relevância, pois produz tolerância, diálogos,
cooperações, no entanto, não serão resolvidos os conflitos interculturais se não
questionarmos antes as estruturas mantenedoras dessas assimetrias, no caso a
chamada “colonialidade do poder” (Quijano, 2005). É dentro dessa lógica
sistemática obliterada, mas atuante que os dogmas operam, que com suas
justificativas racionalizantes produzem não somente desconhecimento acerca
das demais culturas, mas também medo, preconceito e as vezes até mesmo ódio
às culturas subjugadas. Sendo assim, funda também nesse preconceito religioso
o racismo religioso, pois as religiões, saberes, práticas e hábitos de povos
subalternizados estão relacionados à sua raça, à sua etnia, ao seu povo. Dentro
desse contexto, aquilo que consideramos certo ou errado, em geral, não é nada
mais do que preconceito de classe. Que por sua vez divide não somente
opiniões, mas pessoas da família humana.

Os nossos xamãs, pajés, médicos da mata, raizeiros, parteiras, benzedeiras,


rezadeiras estão espalhados em todos os cantos, mas ao mesmo tempo
escondidos socialmente para não serem ainda mais oprimidos pelas crenças,
doutrinas da cultura hegemônica, no caso a europeia. Em quase todo o Brasil é
muito comum vermos templos religiosos expostos em letras garrafais: católicos,
evangélicos, espíritas e também outros segmentos, embora em menor escala,
mas presente, islamismo, judaísmo, budismo, messianismo. Vemos também
centros umbandistas, mas não com esse signo doutrinário, mas nomes
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aparentemente neutros para se passar como centros espíritas. O espiritismo,
chamado de kardecismo, é bastante próximo da umbanda, é o que permite inferir
que há uma certa abrangência dessa sobre aquela, pois a Umbanda é
sincretista. Mas, levando em consideração essas observações podemos deduzir
que o espiritismo kardecista é socialmente aceito em virtude da sua origem racial
Europa (França) e também possui uma relação simbiótica com o positivismo, ao
passo que a umbanda tem suas raízes em solo brasileiro, e sua relação é
diretamente ligada aos cultos africanos e indígenas, embora tenha também uma
franca abertura ao catolicismo, espiritismo e ritos orientais. Assim, levando em
consideração todas as perspectivas da interculturalidade é possível dizer, os
nossos xamãs rezam em silêncio.

REFERÊNCIAS

FILICE, Renísia Cristina Garcia. Tecendo redes antirracistas: África(s), Brasil e Portugal. 2017. I
Congresso Internacional em Direitos Humanos e Cidadania. Mesa IV Gênero e Raça e as Lutas
Decoloniais dos Direitos Humanos e seus Desafios no Brasil e na América Latina. 2017.
Índios no Brasil: quem são? Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-
brasil/quem-sao>. Acesso em 01 de julho de 2018, às 22hs.

MBEMBE, Achille. África insubmissa: cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonia.


Tradução de Narrativa Traçada. Edições Pedagogo e Edições Mulemba: Luanda/Angola, 2005.
(1ª edição: Zimbabwe, 1987).

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder: Eurocentrismo e América Latina. In: A Colonialidade


do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-Americanas. Edgardo Lander
(org.). Colección Sur Sur. CLACSO. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, setembro de
2005. Pág. 227. In: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-
sur/20100624103322/12_Quijano.pdf. Acesso em 25 de janeiro de 2018.

Resiliência quilombola: o que é quilombo? Disponível em: <http://conaq.org.br/quem-somos/>.


Acesso em 27 de junho de 2018, às 23h.

SANTOS, Sousa Boaventura. A crise do contrato social da modernidade e a emergência do


fascismo social - (cap. 9); a reinvenção solidária e participativa do Estado (cap. 10). In: A
Gramática do Tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. La Paz: marzo de


2009. (Artigo adaptado a partir de uma apresentação no Seminario “Interculturalidad y Educación
Intercultural”, organizado por el Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello,
La Paz, 9-11 de marzo de 2009).

Brasília, julho de 2018.

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