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Capttulo IT PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 1, Principios expressos ¢ implicitos. Il. Restrigdes excepcionais ao principio da legalidade: a) Medidas provisdrias: b) Estado de defesa; ¢) Estado de sitio. 1. Principios expressos e implicitos 1. Ao cabo do que foi dito no capitulo anterior, € conveniente, agora, examinar a fisionomia destes principios (componentes do re gime juridico-administrativo) no Direito brasileiro, indicando suas ratzes constitucionais expressas ou implicitas.! Para tanto, pode-se, aqui, dispensar 0 esforgo de arrumé-los em organizacio sistemética. Basta proceder-lhes o arrolamento. 2. O art. 37, caput, reportou de modo expresso & Administragiio Publica (direta e indireta) apenas cinco principios: da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiéncia (este iltimo acrescentado pela EC 19/98). Fécil € ver-se, entretanto, que intimeros outros mereceram igualmente consagracao constitucional: uns, por constarem expressamente da Lei Maior, conquanto néo men- cionados no art. 37, caput, outros, por nele estarem abrigados logica- mente, isto €, como consequéncias irrefragaveis dos aludidos prinei- pios; outros, finalmente, por serem implicagdes evidentes do préprio Estado de Direito e, pois, do sistema constitucional como um todo. ‘Vejamo-los. 1, Muitos dos prinefpios constitucionais adiante expostos encontram-se hoje afirmados explicitamence em nivel legal, desde o advento da Lei 9.784, de 29.1.1999, que “regula 0 processo administrativo no ambito da Administrag&o Publica Federal” (estudada mais adiante, no Capitulo VIII), cujo art. 2° arrola os seguintes: egalidade, finalidade, motivacto, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditétio, seguranga juridica, iteresse pico e eficiéncia, Il PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 99 1*) Principio da supremacia do interesse piiblico.. sobre o interesse privado 3. O principio da supremacia do interesse piiblico sobre 0 inte- resse privado € prinefpio geral de Direito inerente a qualquer socieda de. E a prépria condigao de sua existéncia. Assim, nao se radica em dispositivo especffico algum da Constituico, ainda que inimeros aludam ou impliquem manifestagSes concretas dele, como, por exem- plo, os princfpios da fungo social da propriedade, da defesa do con- sumidor ou do meio ambiente (art. 170, TIL, V e V1), ou tantos outros Afinal, 0 principio em causa € um pressuposto légico do convivio social. Para o Direito Administrativo interessam apenas os aspectos de sua expresso na esfera administrativa. Para no deixar sem refe- réncia constitucional algumas aplicagdes concretas especificamente dispostas na Lei Maior e pertinentes ao Direito Administrativo, basta referir os institutos da desapropriacdo e da requisigao (art. 5°, XXIV e XXV), nos quais € evidente a supremacia do interesse piblico so- bre o interesse privado. ‘Como expresso desta supremacia, a Administrago, por repre- sentar 0 interesse piiblico, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigagdes mediante atos unilaterais. Tais, atos so imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsiio le- gal de sangoes ou providencias indiretas que induzam o administra- do a acaté-los. Bastas vezes ensejam, ainda, que a propria Adminis- traco possa, por si mesma, executar a pretensao traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente As vias judiciais para obté-la. Ba chamada autoexecutoriedade dos atos administrativos. Esta, contudo, nfo ocorre sempre, mas apenas nas seguintes duas hip6teses: a) quan- do a lei expressamente preveja tal comportamento; b) quando a pro- videncia for urgente ao ponto de demandé-la de imediato, por nao haver outra via de igual eficdcia e existir sério risco de perecimento do interesse piiblico se nao for adotada. Também por forca desta posicZio de supremacia do interesse piiblico e — em consequéncia — de quem o representa na esfera ad- ‘ministrativa, reconhece-se A Administragio a possibilidade de revo- gar os préprios atos inconvenientes ou inoportunos, conquanto den- tro de certos limites, assim como 0 dever de anular ou convalidar 08 atos invalidos que haja praticado. E 0 principio da autotutela dos atos administrativos. 100 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Em todos os casos, a ameaga ou a incorreta utilizagdo de quais- quer destas prerrogativas podem ser judicialmente corrigidas, pre- ventiva ou repressivamente, conforme 0 caso, sobretudo pelo ha- beas corpus, quando ofensivas & liberdade de locomogao (art. 5, LXVII, da Constituicaio), e nos demais casos pelo mandado de se- guranga individual, ou coletivo se for a hipétese (art. 5%, LXIX € LXX), ou mesmo por medidas possessorias, tratando-se de defender ou retomar a posse. 4. O prineipio cogitado, evidentemente, tem, de direito, apenas a extensdo e compostura que a ordem jurfdica lhe houver atribufdo na Constituicdo e nas leis com ela consonantes. Donde, jamais cabe- ria invocé-lo abstratamente, com prescindéncia do perfil constitu- cional que the haja sido irrogado, e, como é dbvio, muito menos ca- beria recorrer a ele contra a Constituigdo ou as leis. Juridicamente, sua dimensio, intensidade e tonica so fornecidas pelo Direito pos- to, € s6 por este Angulo é que pode ser considerado e invocado. E l6gico, de outra parte, que sob perspectiva da Sociologia, da Ciéneia Politica ou da Moral sua configuragao far-se-ia por outros critérios, os quais, € bem de ver, teriam que ser sacados da prépria Sociologia, da Politica ou da Moral, respectivamente, pois a Cién- cia do Direito ndo teria como fornecé-los, eis que seu critério € 0 aduzido pelas prdprias normas postas. 5. Convém reiterar, e agora com maior detenga, consideragdes dantes feitas, para prevenir intelecc4o equivocada ou desabrida so- bre o alcance do prinefpio da supremacia do interesse puiblico sobre 0 interesse privado na esfera administrativa. A saber: as prerrogati- vas que nesta via exprimem tal supremacia nao sio manejaveis a0 sabor da Administrago, porquanto esta jamais dispde de “poderes”, sic et simpliciter. Na verdade, o que nela se encontram so “deveres- -poderes”, como a seguir se aclara. Isto porque a atividade adminis- trativa € desempenho de “fungao”. ‘Tem-se fungdo apenas quando alguém esté assujeitado ao dever de buscar, no interesse de outrem, o atendimento de certa finalidade. Para desincumbir-se de tal dever, o sujeito de fungao necesita ma- nejar poderes, sem os quais nao teria como atender & finalidade que deve perseguir para a satisfagao do interesse alheio. Assim, ditos poderes sao irrogados, tinica e exclusivamente, para propiciar 0 cum- primento do dever a que esto jungidos; ou seja: so conferidos co- ‘mo meios impostergaveis ao preenchimento da finalidade que 0 exer- cente de fungo deverd suprir. 11 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 101 ‘Segue-se que tais poderes so instrumentais: servientes do dever de bem cumprir a finalidade a que esto indissoluvelmente atrela- dos. Logo, aquele que desempenha fungao tem, na realidade, deve- res-poderes. Nao “poderes”, simplesmente. Nem mesmo satisfaz configuré-los como “poderes-deveres”, nomenclatura divulgada a partir de Santi Romano, Com efeito, facil é ver-se que a t6nica reside na ideia de dever, no na de “poder”. Daf a conveniéncia de inverter os termos deste binémio para melhor vincar sua fisionomia e exibir com clareza que ‘© poder se subordina ao cumprimento, no interesse alheio, de uma dada finalidade. Ora, a Administragao Publica est4, por lei, adstrita ao cumpri- mento de certas finalidades, sendo-lhe obrigatério objetiva-las para colimar interesse de outrem: o da coletividade. E em nome do inte- resse ptiblico — 0 do corpo social — que tem de agir, fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce “fungio”, institu- to —como visto — que se traduz na ideia de indeclinével atrelamento a um fim preestabelecido e que deve ser atendido para o beneficio de um terceiro. E situagio oposta & da autonomia da yontade, tfpica do Direito Privado. De regra, neste tiltimo alguém busca, em proveito proprio, os interesses que lhe apetecem, fazendo-o, pois, com plena liberdade, contanto que nao viole alguma lei. 6. Onde hé fungao, pelo contrétio, nao hé autonomia da vonta- de, nem a liberdade em que se expressa, nem a autodeterminagao da finalidade a ser buscada, nem a procura de interesses pr6prios, pes- soais. H adscrigao a uma finalidade previamente estabelecida? e, no caso de fungao ptiblica, hé submissao da vontade ao escopo pré- -tragado na Constituigao ou na lei e ha o dever de bem curar um interesse alheio, que, no caso, é o interesse ptiblico; vale dizer, da coletividade como um todo, € nao da entidade governamental em si mesma considerada. Alids, exatamente porque sio discerniveis o interesse ptiblico € 0 interesse meramente das pessoas estatais (ora coincidentes, ora antagOnicos), os autores italianos fazem acepcao, como dantes se disse (Capitulo I, ns. 43 a 47), entre interesse puiblico propriamente dito, também denominado interesse primério, e interesse secundério. 2. Para um confronto entre atividude privada e atividade administrativa, autono- mia da vontade e fungi, ef- Afonso Rodrigues Queir6, in Reflexdes sobre a Teoria do Desvio de Poder, Coimbra, Coimbra Editora, 1940, pp. 15-18. 02 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Interesse ptiblico ou primério, repita-se, € 0 pertinente & so- ciedade como um todo, ¢ s6 ele pode ser validamente objetivado, pois este é 0 interesse que a lei consagra ¢ entrega & compita do Estado como representante do corpo social. Interesse secundario é aquele que atina to s6 ao aparelho estatal enquanto entidade pe: sonalizada, e que por isso mesmo pode Ihe ser referido ¢ nele encar: nat-se pelo simples fato de ser pessoa, mas que s6 pode ser valida mente perseguido pelo Estado quando coincidente com o interesse puiblico primério. Com efeito, por exercerem funcio, os sujeitos de Administrago Pablica t8m que buscar o atendimento do interesse alheio, qual seja, © da coletividade, e nao o interesse de seu préprio organismo, qua tale considerado, € muito menos o dos agentes estatais. Visto que na ideia de fung&o 0 dever é que é predominante; vis- to que 0 poder a ele ligado cumpre papel instrumental, ancilar, per- cebe-se também que os “poderes” administrativos, em cada caso, no tém por que comparecer além da medida necessdria para o supri- mento da finalidade que os justifica. Assim, nas situagdes concretas ho de ser compreendidos, exe- geticamente reconhecidos e dimensionados, tomando-se por gabari- to m&ximo 0 quantum indispensavel para a satisfag%o do escopo em vista do qual foram institufdos Em suma: 0s “poderes” administrativos — na realidade, deveres- -poderes — s6 existir4o — e, portanto, s6 poderao ser validamente exercidos — na extensao e intensidade proporcionais ao que seja irre- cusavelmente requerido para 0 atendimento do escopo legal a que estdo vinculados. Todo excesso, em qualquer sentido, é extravasa- mento de sua configuragio juridica. E, a final, extralimitagao da com- peténcia (nome que se da, na esfera ptiblica, aos “poderes” de quem titulariza fungdo). E abuso, ou seja, uso além do permitido, e, como tal, comportamento invalido que 0 Judiciério deve fulminar a reque- rimento do interessado. 2) Principio da legalidade 7. Este € 0 princfpio capital para a configuracao do regime juri- dico-administrativo. Justifica-se, pois, que seja tratado — como 0 se- r4—com alguma extensao e detenca. Com efeito, enquanto o prin pio da supremacia do interesse piiblico sobre o interesse privado € da esséncia de qualquer Estado, de qualquer sociedade juridicamente 1 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 103 organizada com fins politicos, 0 da legalidade é especifico do Estado de Direito, € justamente aquele que 0 qualifica ¢ que lhe dé a iden- tidade prépria. Por isso mesmo é o prinefpio basilar do regime juri- dico-administrativo, j4 que 0 Direito Administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: € uma consequéncia dele. E 0 fruto da submisséo do Estado a lei. E, em suma: a consagragiio da ideia de que a Administracao Publica s6 pode ser exercida na conformidade da lei ¢ que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedigdo de comandos complementares 2 lei. Para avaliar corretamente principio da legalidade e captar-Ihe © sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é a fradu- edo juridica de um propésito politico: o de submeter os exercentes do poder em concreto — 0 administrative — a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguigdes ou desmandos. Pretende- -se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei, editada, pois, pelo Poder Legislativo — que é 0 colégio represen- tativo de todas as tendéncias (inclusive minoritérias) do corpo so- cial -, garantir que a atuagao do Executivo nada mais seja senao a concretizagao desta vontade geral. principio da legalidade contrapde-se, portanto, ¢ visceralmen- te, a quaisquer tendéncias de exacerbagao personalista dos gover- nantes. Opde-se a todas as formas de poder autoritério, desde 0 ab- solutista, contra o qual irrompeu, até as manifestagdes caudilhescas ou messianicas tipicas dos pafses subdesenvolvidos. O principio da legalidade é o antidoto natural do poder monocratico ou oligérquico, pois tem como raiz a ideia de soberania popular, de exaltagao da ci- dadania. Nesta tiltima se consagra a radical subversdo do anterior esquema de poder assentado na relago soberano-stidito (submisso). Instaura-se 0 principio de que todo poder emana do povo, de tal sorte que os cidadios é que sao proclamados como os detentores do poder. Os governantes nada mais so, pois, que representantes da sociedade. O art. 1°, pardgrafo tinico, da Constituigaio dispde que: “Todo poder emana do povo, que 0 exerce por meio de represen- tantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigao”. Além disto, é a representaco popular, o Legislativo, que deve, impessoal- mente, definir na lei e na conformidade da Constituigo os interesses piiblicos e os meios e modos de persegui-los, cabendo ao Executivo, 3. Cf, Renato Alessi, ob. cit. p. 4 ot CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO cumprindo ditas leis, dar-Ihes a concregio necessétia. Por isto se diz, na conformidade da maxima oriunda do Direito inglés, que no Es- tado de Direito quer-se 0 governo das leis, ¢ néio o dos homens; im- pera a rule of law, not of men. Assim, 0 principio da legalidade é o da completa submissio da Administraco as leis. Esta deve tio somen:e obedecé-las, cumpri- las, pé-las em pritica. Daf que a atividade de todos os seus agen- tes, desde o que Ihe ocupa a cispide, isto €, 0 Presidente da Repu- blica, até o mais modesto dos servidores, sé pode ser a de déceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das cisposigdes gerais fixa- das pelo Poder Legislativo, pois esta ¢ a posigao que Ihes compete no Direito brasileiro. Michel Stassinopoulos, em formula sintética e feliz, esclarece que, além de nfio poder atuar contra legem ou praeter legem, a Ad- ministragio s6 pode agir secundum legem.* Aligs, no mesmo sentido € a observagio de Alessi, ao averbar que a fung&o administrativa se subordina & legislativa no apenas porque 4 lei pode estabelecer proibigdes ¢ vedagdes & Administragao, mas também porque esta s6 pode fazer aquilo que a lei antecipadamente autoriza’ Afonso Ro- drigues Queiré afirma que a Administracao “é a longa manus do le~ gislador™ e que “a atividade administrativa é atividade de subsun- [40 dos fatos da vida real &s categorias legais”? 8. Estas expresses, que desenham com tanta amplitude o alcan- ce do principio da legalidade, ajustam-se com perfeigéio ao Direito brasileiro — como se dird a breve trecho. Curiosamente, entretant nem sempre retragam com exato rigor a compostura deste principio na maioria dos sistemas europeus continentais, sob cuja égide os autores citados as enunciaram. Deveras, o principio da legalidade, como € dbvio, tem, em cada pais, o perfil que Ihe haja atribuido 0 respectivo Direito Constitucional. Assim, em alguns serd estrito, a0 Passo que em outros possuird certa flexibilidade, da qual resulta, para a Administraco, um campo de liberdade auténoma, que seria juridicamente inimagindvel ante nossas Constituigoes. Tanto na Franga, por exemplo (e sobretudo nela), como na Ale- manha, na prépria Italia ou mesmo em Portugal e Espanha, a esfera 4. Traité des Actes Administratifs, Athenas, Libraivie Sirey, 1954, p. 69, ‘5. Renato Alessi, ob. cit. p. 9, 6. Estudos de Direito Administrative, Coimbra, Atlantida, 1968, p. 9 7. Reflexdes sobre a Teoria do Desvio de Poder, eit. p. 19. 1 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 105 em que a Administragio pode se manifestar com alguma desenvol- tura em relagio a lei € incomparavelmente maior do que no Brasil. Com efeito, nestes pafses, por forte tradigHio constitucional ¢ por ra- 26es hist6ricas que aqui no vém ao caso, o Executivo pode expedir, além dos regulamentos “executivos”, de mera execugéio de uma da- da lei, outras variedades de regulamentos, os quais ensejam que a Administracao discipline certas matérias ora com prescindéncia de Iei,em alguns deles, ora esforgada apenas em disposigSes legais que implicam verdadeiras delegag6es legislativas. No Brasil, o principio da legalidade, além de assentar-se na pré- pria estrutura do Estado de Direito e, pois, do sistema constitucio- nal como um todo, esté radicado especificamente nos arts. 5°, Il, 37, caput, ¢ 84, IV, da Constituigsio Federal. Estes dispositivos atribuem a0 prinefpio em causa uma compostura muito estrita ¢ rigorosa, nao deixando valvula para que o Executivo se evada de seus grilhées. E, alifs, 0 que convém a um pats de tfo acentuada tradigdo autocratica, despética, na qual o Poder Executivo, abertamente ou através de ex- pedientes pueris — cuja pretensa juridicidade nao iludiria sequer a um principiante —, viola de modo sistemitico direitos e liberdades piiblicas e tripudia & vontade sobre a repartigao de poderes.® Nos termos do art. 5°, II, “ninguém serd obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senao em virtude de lei”. Af no se diz “em virtude de” decreto, regulamento, resolugao, portaria ou que- Jjandos. Diz-se “em virtude de lei”. Logo, a Administracao no pode- 14 proibir ou impor comportamento algum a terceiro, salvo se estiver previamente embasada em determinada lei que lhe faculte proibir ou __ 8. Demonstragdo flagrante da reniténeia do autocratismo tradicional do Brasil até mesmo ~ desgragadamente ~ da inanidade dos esforgos em buscar dar foros de civilizago aos nossos costumes politicos bem se demonstra no seguinte. Recém- scida a Constituigdo de 1988, nem bem egressos do ultimo longo periodo de di- tadura, 0 ex-Chefe do Poder Executivo, o malsinado Fernando Collor, embora eleito diretamente © mal tendo acabado de jurar a Constituigio, tripadiava em abertas e publicadas sobre seus dispositivos, Contravinha is claras a tripartigdo do exercfeio do Poder e pisoteava os direitos e garantias individuais enquanto os distintos segmentos Sociaise institucionais assistiam catat6nicos ao naufrégio dos mais comezinhos prt cipios do Estado de Direito. F entio nem mesmo se podia alegar a forga dos canhies para justificar a iresistibilidade dos desmandos, que se apresentavam com a fisiono- mia de uma ditadura consentida, conquistada no grito, segundo o melhor estilo do rangoso esteredtipo de machismo latino-americano. E certo que acabou por ser defe- nestrado; nio, porém, em razdo dos agravos 3 democracia, e sim por falta de decoro cenvolvimento em uina vaga de corrupe%o matizada por tons novelescos e, bem por isto, prestantes para galvanizar a opinito piblica, com os efeitos daf decorrentes.. 106 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. impor algo a quem quer que seja. Vale dizer, ndo Ihe é possivel ex- pedir regulamento, instrugo, resolugao, portaria ou seja 14 que ato for para coartar a liberdade dos administrados, salvo se em lei j& existir delineada a contengao ou imposigao que 0 ato administrativo venha a minudenciar. Além dos arts. 52, II, ¢ 84, IV, donde resulta a compostura do principio da legalidade no Brasil, 0 art. 37 faz sua expressa proc magiio como canone regente da Administracao Publica, estatuindo: “A Administragao Pablica direta ¢ indireta de qualquer dos Poderes da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municipios obede- ceré aos princfpios da legalidade, impessoalidade, moralidade, pu- blicidade e eficiéncia (...)”. Portanto, a fungio do ato administrativo s6 poderd ser a de agre- gar 8 lei nivel de concregao; nunca Ihe assistir4 instaurar originaria- mente qualquer cerceio a direitos de terceiros. Para reforgar ainda mais o entendimento deste caréter subalte no da atividade administrativa, basta examinar atentamente o art. 84, TY, da Lei Magna. De acordo com ele, compete ao Presidente da Repiblica “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execugdo”. Eviden- cia-se, destarte, que mesmo os atos mais conspfcuos do Chefe do Poder Executivo, isto é, os decretos, inclusive quando expedem regulamentos, s6 podem ser produzidos para ensejar execucao fiel da lei. Ou seja: pressupdem sempre uma dada lei da qual sejam os {fiéis executores: 9. Nos dois versfculos mencionados estampa-se, pois, e com inobjetavel clareza, que administraco € atividade subalterna & lei; que se subjuga inteiramente a ela; que est4 completamente atrelada lei; que sua fungiio é to s6 a de fazer cumprir lei preexistente, e, pois, que regulamentos independentes, autdnomos ou autorizados so visceralmente incompatfveis com 0 Direito brasileiro? 9. Nao se imagine que o art. 84, VI (com a redagio que Ihe deu a EC 32, de 11.9:2001) contere ao Presidente da Repiblica uma esfera de iberdade que excepcio- na o que se disse. Ali se estaui que o Chefe do Executivo pode “dispor, mediante ‘decreto, sobre: a) organizacio e funcionamento da Administragdo Federal, quando ‘fo implicar aumento de despesa nem criagdo ou extinggo de 6rpios piblicos; b) extinglo de fungGes ou cargos pablicos, quando vagos".E claro que a disciplina re- Sultane do exereicio desta competéncia nko poderd implicar imposigao a terceiros de obrigapées de fazer ou deixar de fazer, pois a tanto se oporia o art. 3, Il, j4 mencio- nado. Logo, © que 0 art. 84, VI, faculta € que 0 Executivo proceda, no interior dos 11. PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 107 E preciso cuidado, pois, para niio incidir no equivoco — frequen- te entre n6s — de falar do Direito alienfgena, abeberado em doutrina- dores europeus, imaginando que as ligdes neles ensinadas & vista dos respectivos sistemas constitucionais tém aplicacdo possivel em nos- so Direito, e ~ mencionando-os ou nfo ~ transplantar conceitos ex6- genos que nfo se afinam com a Lei Magna do pais."" E o que, lamen- ‘esquemas jd legalmente tragados de maneira genérica, quer no que stina a compe féncias, quer no que atina & organizapao hdsica na lei formulada, a ulteriores subdi- visdes, isto & patigées na intimidade dos mesmos 6redos, de tal sorte que 3 atibui- jes, jf estatufdas em lei para aquele drg%o, sejam internamente distribuidas, pois, pode criar Grgios novos nem extinguir os preexistentes. Competéncias outras nao podem ser instituidas ex novo, pois, se 0 fossem, os poderes nelas previstos, quando exercidos, gerariam para os assujeitados obrigagSes de fazer ott deixar de fazer em Virtude de regulamento e nao de lei, Quanto as disposigses sobre o funcionamento da Administraco Federal, nfo passam de simples manifestagio de poder hierérquico,o qual, € bem de ver, s6 pode ser exercido em consonancia com a legalidade. A novi- sade esté em que pode extinguir cargos ou fungSes, desde que vagos. 10. Tais equivocos seriam particularmente nocivos e perigosos, pois quaisquer engangs dos quais resultem mais poderes para o Executivo so muito bem-aceitos no Pals. E que o Brasil mal conhece institulgoes politicas demacriticas. Desde 1500 — quando foi descoberto — até o presente no experimentou mais do que pouquissimos anos de cambaleante democracia politica, o que ocorren entre 1946 € 1964, e desde 1986 (democracia social, até 0 advento das espetaculares realizagées do governo do Presidente Lula, no teve um tinico dia). Com efeito, durante 0 periodo colonial e imperial € 6bvio que no se cogitava de democracia. Durante a Replica Velha, sabi- damente, também no houve espago para sua implantagio © as eleigées “a bico de pena’ cuidavam zelosamente de impedir-Ihe o nascimento. Sobrevindo a Revolugso de 1930 e subsequente implantagso da ditadura getulista, o Pais continuou insciente do que seria este regime, s6 conhecido nos palses civilizados. Finalmente, com a Consttuigdo de 1946 desvendou-se para nés o mundo até entio desconhecido da de- mocracia. Contudo, em 1* de abril de 1964 0 Golpe Militar se encarregou de desvane- cer estes sonhos, implantando nova ditadura (a das generais), que se manteve até 1986, em seu final disfarcada por configuraco mais branda. S6 a, entio, iriareencetar-se a experiéncia democritica, e ainda assim tisnada por uma infindavel sucessio de decre- tosleis, primeiramente, e depois de medidas provisérias, uns e outras de inconstit- cionalidade Sbvia, mas sempre recebidos com exemplar naturalidade por todo o Pats. Registre-se que o peniiltimo Chefe do Poder Exccutivo, o segundo Fernando, do inicio de seu primeiro mandato até o més de agosto de 1999, expedin 3.239 medidas provisérias (inconstitucionalmente, é claro), que corresponde a uma média de qua- ‘© 2,8 medidas provisérias por dia itil de governo (isto 6, excluidos feriados, sabaclos te domingos). Inversamente, no perfodo foram editadas pelo Congresso apenas 854 leis (entre ordindrias e complementares). Vé-se, pois, que o Parlamento foi responsé- vel tio 56 por pouco mais de uma quarta parte das “leis”, pois os quase 3/4 restantes so obra exclusiva do Executivo, De resto, dentre as 3.239 medidas provisorias refe- fdas, apenas 89 delas ou seja, 2,75% ~ foram aprovadas pelo Congresso e conver- tidas em lei. Em suma: vigoraram entre nés 97.25% de medidas provisdrias nao aprovadas pelo Congresso, em despeito de o Texto Constitucional literalmente deter- hos. CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO tavelmente, se passa, ¢.g., quando aqui se faz menedo a regulamentos independentes, auténomos ou expedidos para execugdo de leis em geral, e nfo de uma dada e especifica lei principio da legalidade, no Brasil, significa que a Administra- jo nada pode fazer sendo o que a lei determina. Ao contrario dos particulares, 05 quais podem fazer tudo o que a lei nao profbe, a Administragio 86 pode fazer o que a lei antecipa- damente autorize. Donde, administrar € prover aos interesses pabli- cos, assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposig6es. Segue-se que a atividade administrativa consiste na produgio de decisdes e comportamentos que, na formagao escalona- da do Direito, agregam nfveis maiores de concregdo ao que jai se contém abstratamente nas leis. 10. A integral vigéncia do principio da legalidade pode sofrer transitéria constrigdo perante circunstancias excepcionais mencio- nadas expressamente na Lei Maior. Isto sucede em hipéteses nas ‘minar, como joi dito ¢ reiterado, que tats medidas, se nao aprovadas pelo Congresso em 30 dias, perdem a eficdcia desde 0 inicio de sua expedi¢do. Com a Emenda Constitucional 32, de 11.12.2001, todas elas foram salvaguardadas, o que, provavel: ‘mente nio teria sido estabelecido se nao existisse a consciéneia de que eram incons- titucionais. O art. 2* da sobredita Emenda dispés: “As medidas provis6rias editadas, em data anterior & da publicacio desta Emenda continuam em vigor até que medida proviséria ulterior as revogue explicitamente ou até deliberagio definitiva do Con- ‘gresso Nacional". © governo do Presidente Lula continuou com a mesma pritica re- ugnante 20 Direito, Diante deste panorama devastador, mesmo o mais tolerante dos Juristas serd forgado a coneluir que, no Brasil, pelo menos até ento, 6 por eufemis ‘mo se pode falar em Estado Constitucional de Direito e, pois, em Democracia, pois, nem mesmo o 6rgiio maximo encarregado de defender a Constituigéo — isto €, 0 Su- premo Tribunal Federal ~ fulminava estas medidas provis6rias grosseiramente in- constitucionais. No desejando contrariar o Poder Executivo, fazia piruetas exegeti- ‘cas para se eximir de examinar-Ihes o ajustamento & Lei Magna. ‘Assim, nio é de surpreender que exista uma espontinea e ingénua tendéncia de reconhecer a0 Executivo poderes muito maiores do que os que Ihe derivavam da Constituiga0. Também por isso a Administracio Publica sempre foi autoritdria © sempre esbanjou exibi¢do de poderes que nunca teve, nem mesmo em face dos docu ‘mentos autocréticos que Ihe municiavam 0 despotismo nos perfodos mais obscuran- tistas, Por tudo isto, 0 principio da legalidade administrativa esteve quase sempre submergido ou periclitante. Logo, sobre ser juridicamente inexato, é também de manifesta inconveniéncia deformar a fisionomia que tem em nossas Constituigbes pela importago de instituros (como certos regulamentos do Direito europev) que, em face de tradigo diversa, em seus paises de origem nao oferecem perigo ou male: ficio algua para democracias experientes, nas quais existe conscincia de cidadania © da utllidade da tripartigdo do exereicio do Poder. |l- PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 109 quais a Constituig&o faculta ao Presidente da Reptiblica que adote providéncias incomuns e proceda na conformidade delas para en: frentar contingéncias andmalas, excepcionais, exigentes de atuagio sumamente expedita, ou eventos gravissimos que requerem atuagio particularmente enérgica. E 0 caso tao 86 das “medidas provisorias” (previstas no art. 62 ¢ pardgrafos), da decretago do “estado de defe- sa” (regulado no art. 136) e do “estado de sitio” (disciplinado nos arts. 137 a 139). Delas se falard ao final do capitulo. 3°) Principio da finalidade IL. Por forga dele a Administragao subjuga-se ao dever de alve- jar sempre a finalidade normativa, adscrevendo-se a ela, O nunca assaz citado Afonso Queiré averbou que “o fim da lei é 0 mesmo que © seu espirito € 0 espirito da lei faz parte da lei mesma”. Daf haver colacionado as seguintes excelentes observagSes, colhidas em Ma- galhes Colago: “o espirito da lei, o fim da lei, forma com o seu texto um todo harménico ¢ indestrutivel, ¢ a tal ponto, que nunca poderemos estar seguros do alcance da norma, se nao interpretarmos © texto da lei de acordo com o espirito da lei”. Em rigor, o principio da finalidade nao é uma decorréncia do prinefpio da legalidade. E mais que isto: é uma ineréncia dele; est4 nele contido, pois corresponde & aplicaco da lei tal qual €; ou seja, na conformidade de sua raziio de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a pritica de ato desconforme com sua finalidade nao é aplicar a lei; é desvirtud-la; € burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daf por que 08 atos incursos neste vicio - denominado “desvio de poder” ou “desvio de finalidade” — sd nulos. Quem desatende ao fim legal desatende & propria le O que explica, justifica e confere sentido a uma norma é preci- samente a finalidade que a anima. A partir dela é que se compreende a racionalidade que Ihe presidiu a edi¢do. Logo, é na finalidade da lei que reside o critério norteador de sua correta aplicago, pois é em nome de um dado objetivo que se confere competéncia aos agentes da Administragao. Bem por isso Caio Técito apostilou, com louvé- vel exatidao: “A destinagao da competéncia do agente precede a sua investidura. A lei ndio concede autorizaco de agir sem um objetivo 11, Reflexes sobre a Teoria «Cit. p. 72. 110 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO proprio. A obrigagao juridica nao é uma obrigagzio inconsequente; ela visa a um fim especial, presume um enderego, antecipa um al- cance, predetermina 0 préprio alvo”.” Cire Lima, avisadamente, j4 advertira que € trago caracterfstico da atividade administrativa “estar vinculada a um fim alheio & pessoa e aos interesses particulares do agente ou do Otgilo que a exercita”.!® De resto, aduziu ainda: “A re~ lagdo de administragdo somente se nos depara no plano das relaces juridicas, quando a finalidade, que a atividade de administragao se propde, nos aparece defendida e protegida pela ordem juridica con- tra 0 proprio agente e contra terceiros”."* Assim, o ptinefpio da finalidade impde que o administrador, a0 manejar as competéncias postas a seu encargo, atue com rigorosa obediéncia a finalidade de cada qual. Isto é, cumpre-Ihe cingir-se nao apenas & finalidade propria de todas as leis, que € 0 interesse puibli- co, mas também a finalidade especifica abrigada na lei a que esteja dando execugao. Assim, hd desvio de poder e, em consequéncia, nulidade do ato, por violagao da finalidade legal, tanto nos casos em que a atuago administrativa ¢ estranha a qualquer finalidade publica quanto naqueles em que “o fim perseguido, se bem que de interesse piiblico, no € o fim preciso que a lei assinalava para tal ato”."" E que a lei, ao habilitar uma dada conduta, o faz em vista de um certo esco- po. Nao Ihe € indiferente que se use, para perseguir dado objetivo, uma ou outra competéncia, que se estribe em uma ou outra atribuicao conferida pela lei, pois, na imagem feliz do precitado Caio Técito: “A regra de competéncia ndo é um cheque em branco”.'° Em suma: a finalidade legal é um elemento da propria lei, € jus- tamente o fator que proporciona compreendé-la. Por isso nao se pode conceber o principio da legalidade sem encarecer a finalidade quer de tal principio em si mesmo, quer das distintas leis em que se expressa. 12. Pelo quanto se disse, jé se nota que a raiz constitucional do prineipio da finalidade enconira-se na prdpria consagragio do prin- cipio da legalidade,, estampado no art. 37 da Lei Magna. Na verdade, 86 se erige o principio da finalidade em princfpio auténomo pela necessidade de alertar contra 0 risco de exegeses toscas, demasiada- 12, Direito Administrative, $80 Paulo, Saraiva, 1975, pp. 80 € 81 13. 0b. cit.,p.21 14, Ob. cit. p. 52. 15. Jean Rivero, Droit Administratif,2*ed., Pais, Dalloz, 1962, p.225,n. 260. 16. Ob. cit. p. 5. Il- PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 111 mente superficiais ou mesmo ritualfsticas, que geralmente ocorrem por conveniéncia e ndo por descuido do intérprete. Pode-se dizer, contudo, que ha outro dispositivo constitucional que lhe serviria de referéncia espectfica, embora implicita. E 0 art, 5°, LXTX, no qual se prevé o mandado de seguranga. Ali se diz cabivel sua concesstio con- tra ilegalidade ou “abuso de poder”. Abuso de poder é o uso do poder além de seus limites. Ora, um dos limites do poder é justamente a finalidade em vista da qual caberia ser utilizado. Donde, 0 exercicio, do poder com desvirtuamento da finalidade legal que o ensancharia estd previsto como censurdvel pela via do mandado de seguranga. 4°) Principio da razoabilidade 413. Enuncia-se com este principio que a Administracao, ao atuar no exercicio de discrigao, teré de obedecer a critérios accitaveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosa das finalidades que presidiram a outorga da competéncia exercida. Vale dizer: pretende-se colocar em claro que fio serfio apenas inconvenientes, mas também ilegitimas — e, por tanto, jurisdicionalmente invalidaveis ~, as condutas desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas com desconsideracdo as situa- Ses e circunstfncias que seriam atendidas por quem tivesse atribu- tos normais de prudéncia, sensatez.e disposicao de acatamento as finalidades da lei atributiva da discricao manejada. Com efeito, 0 fato de a lei conferir ao administrador certa liber dade (margem de discricao) significa que Ihe deferiu 0 encargo de adotar, ante a diversidade de situagdes a serem enfrentadas, a provi- déncia mais adequada a cada qual delas. Nao significa, como € evi- dente, que Ihe haja outorgado o poder de agir a0 sabor exclusive de seu libito, de seus humores, paixGes pessoais, excentricidades ou cri- térios personalfssimos, e muito menos significa que liberou a Admi- nistrago para manipular a regra de Direito de maneira a sacar dela efeitos nao pretendidos nem assumidos pela lei aplicanda. Em outras palavras: ninguém poderia aceitar como critério exegético de uma lei que esta sufrague as providéncias insensatas que o administrador quei- ra tomar; é dizer, que avalize previamente condutas desatrazoadas, pois isto corresponderia a irrogar dislates & propria regra de Direito. Deveras: se com outorga de discrigiio administrativa pretende-se evitar a prévia adogdo em lei de uma solucao rfgida, nica — e por isso incapaz de servir adequadamente para satisfazer, em todos os casos, 0 interesse publico estabelecido na regra aplicanda —, € porque uz (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO através dela visa-se & obtengilo da medida ideal, ou seja, da medida que, em cada situaco, atenda de modo perfeito & finalidade da lei. E 6bvio que uma providéncia administrativa desarrazoada, in- capaz de passar com sucesso pelo crivo da razoabilidade, no pode estar conforme a finalidade da lei. Donde, se padecer deste defeito, serd, necessariamente, violadora do principio da finalidade. Isto equivale a dizer que seré ilegitima, conforme visto, pois a finalidade integra a propria lei. Em consequéncia, sera anulavel pelo Poder Ju- dicidrio, a instancias do interessado. 14, Fécil € ver-se, pois, que © principio da razoabilidade funda- menta-se nos mesmos preceitos que arrimam constitucionalmente 08 prinefpios da legalidade (arts. 52, II, 37 € 84) e da finalidade (os mesmos e mais 0 art. 58, LXIX, nos termos j4 apontados). Nao se imagine que a corregdio judicial baseada na violagao do principio da razoabilidade invade 0 “mérito” do ato administrativo, isto €, 0 campo de “liberdade” conferido pela lei & Administracdo para decidir-se segundo uma estimativa da situagio e critérios de conveniéncia e oportunidade. Tal no ocorre porque a sobredita “li- berdade” € liberdade dentro da lei, vale dizer, segundo as possibi- lidades nela comportadas. Uma providéncia desarrazoada, consoante dito, ndo pode ser havida como compor:ada pela lei. Logo, é ilegal: € desbordante dos limites nela admitidos. Certamente cabe advertir que, embora a discricionariedade exis- ta para que o administrador adote a providéncia étima para 0 caso, intimeras vezes, se ndo na maioria delas. nem ele nem terceiro pode- riam desvendar com certeza inobjetavel qual seria esta providéncia ideal. E exato, pois, que, existindo discri¢a0, € ao administrador ~ e ndo ao juiz.— que cabe decidir sobre qual seria a medida adequada. Sem embargo, o fato de nio se poder saber qual seria a decisio ideal, cuja apreciagio compete 2 esfera administrativa, nio significa, entretanto, que no se possa reconhecer quando uma dada providén- cia, seguramente, sobre nao ser a melhor, ndo é sequer comportada na lei em face de uma dada hipétese. Ainda aqui cabe tirar dos ma- gistrais escritos do mestre portugués Afonso Rodrigues Queiré a se- guinte ligo: “O fato de ndo se poder saber 0 que uma coisa € nao significa que no se possa saber o que ela nao é”. Examinando 0 te- ma da discrigdo administrativa, o insigne administrativista observou que ha casos em que “s6 se pode dizer 0 que no conceito nao esta abrangido, mas nao o que ele compreenda”. Referindo-se aos dois tipos de conceitos demarcadores da competéncia para a pratica de 11- PRINCTPIOS CONSTITUCIONAIS BO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 113 atos administrativos, disse: “no primeiro pode dizer-se 0 que ela no segundo apenas 0 que ela nao €”."7 5*) Principio da proporcionalidade 15. Este princfpio enuncia a ideia— singela, aliés, conquanto fre- ‘quentemente desconsiderada — de que as competéncias administrati- vas s6 podem ser validamente exercidas na extensiio e intensidade correspondentes ao que seja realmente demandado para cumprimen- to da finalidade de interesse piblico a que estiio atreladas. Segue-se que os atos cujos contetidos ultrapassem 0 necessério para alcangar 6 objetivo que justifica o uso da competéncia ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do ambito da competéncia; ou seja, superam 0s limites que naquele caso Ihes corresponderiam. Sobremodo quando a Administraco restringe situacdo juridica dos administrados além do que caberia, por imprimir as medidas tomadas uma intensidade ou extenso supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de sua conduta. E que ninguém deve estar obri- gado a suportar constrigdes em sua liberdade ou propriedade que no sejam indispens4veis & satisfagao do interesse publico. Logo, o plus, 0 excesso acaso existente, no milita em benefi- cio de ninguém. Representa, portanto, apenas um agravo indtil aos direitos de cada qual. Percebe-se, entio, que as medidas despropor- cionais ao resultado legitimamente alvejavel so, desde logo, con- dutas il6gicas, incongruentes. Ressentindo-se deste defeito, além de demonstrarem menoscabo pela situagdo juridica do administrado, traindo a persisténcia da velha concepgao de uma relagdo soberano- -stidito (ao invés de Estado-cidado), exibem, ao mesmo tempo, sua inadequagdo ao escopo legal. Ora, jé se vi que inadequacao & fina- lidade da lei € inadequagao A propria lei. Donde, atos desproporcio- nais sfo ilegais e, por isso, fulmindveis pelo Poder Judicidrio, que, sendo provocado, deverd invalid4-los quando impossivel anular uni- camente a demasia, 0 excesso detectado. 16, Para José Roberto Pimenta Oliveira, em sua aprofundada e notével monografia sobre 0 principio da razoabilidade e o da propor cionalidade, hé uma fungibilidade entre eles. Anota, como &s vezes © faz a doutrina, que: “E possfvel verificar que do mesmo modo em 17. Reflexdes sobre a Teoria .., cit. p-79. ua (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVE que 0 ‘direito administrativo’ existente no Ambito da common law desenvolveu historicamente a nogao juridica do razodvel, enquanto standard, na sindicabilidade judicial da discrigdo administrativa nos quadros do rule of law, os sistemas da familia juridica romano-ger- ‘manica (civil law) encontraram na nogéo do proporcional equiva- lente instrumental axiol6gico para promover a contencdo da arbitra- riedade no exercicio dos poderes administrativos no seio do Estado de Direito”: ‘Sem em nada contender esta indicagiio das origens de cada qual, estamos em que tais princfpios no se confundem inteiramente. Pa- Tece-nos que 0 principio da proporcionalidade nio € senZo uma fa- ceta do principio da razoabilidade. Merece um destaque proprio, uma referéncia especial, para ter-se maior visibilidade da fisionomia especifica de um vicio que pode surdir e entremostrar-se sob esta feigdo de desproporcionalidade do ato, salientando-se, destarte, a possibilidade de corrego judicial arrimada neste fundamento. Cos- tuma-se decompor o principio da proporcionalidade em trés elemen- tos a serem observados nos casos concretos: a adequagao, a necessi- dade ¢ a proporcionalidade em sentido estrito. Conforme expresses de Canotilho, a adequacio “impée que a medida adotada para a rea- lizago do interesse piblico deve ser apropriada & prossecucao do fim ou fins a ele subjacentes”; o principio da necessidade ou da me- nor ingeréncia possivel coloca a t6nica na ideia de que “o cidadao tem direito 4 menor desvantagem possivel” e o princfpio da propor- cionalidade em sentido restrito é “entendido como principio da justa medida. Meios e fins so colocados em equagdo mediante um juizo de ponderagao, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou nao desproporcionado em relagao ao fim. Trata-se, pois, de uma questo de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcangar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relagdo &s vantagens do fim". Posto que se trata de um aspecto especifico do prinefpio da zoabilidade, compreende-se que sua matriz constitucional seja a mes ma. Isto é, assiste nos préprios dispositivos que consagram a sub- missio da Administrago ao cnone da legalidade. O contetido substancial desta, como visto, nao predica a mera coincidéncia da 18. Os Princ(pios da Razoabilidade ¢ da Proporcionalidade no Direlto Adm nistrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 2006, p. 192 19. J. J. Gomes Canotitho, Direito Constitucional ¢ Teoria da Constituigao, ‘7ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 269 e 270. I- PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 115 conduta administrativa com a letra da lei, mas reclama adesio ao espfrito dela, & finalidade que a anima. Assim, o respaldo do princf- pio da proporcionalidade nao é outro sentio o art. 37 da Lei Magna, conjuntamente com os arts. 5°, IT, ¢ 84, TV. O fato de se ter que bus- cé-lo pela trilha assinalada nao o faz menos amparado, nem menos certo ou verdadeiro, pois tudo aquilo que se encontra implicado em um principio é to certo e verdadeiro quanto ele. Disse Black que tanto faz. parte da lei o que nela se encontra explicito quanto o que nela implicitamente se contém.” 6%) Principio da motivagdo 17. Dito princfpio implica para a Administragao 0 dever de ju tificar seus atos, apontando-Ihes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlagao légica entre os eventos e situagdes que deu por existentes e a providéncia tomada, nos casos em que este dltimo aclaramento seja necessério para aferir-se a consonancia da conduta administrativa com a lei que Ihe serviu de arrimo. A motivagdo deve ser prévia ou contemporanea & expedicao do ato. Em algumas hipéteses de atos vinculados, isto é, naqueles em que hé aplicagao quase automatica da lei, por ndo existir campo para interferéncia de juizos subjetivos do administrador, a simples men- do do fato e da regra de Direito aplicanda pode ser suficiente, por estar implicita a motivagiio. Naqueloutros, todavia, em que existe discricionariedade administrativa ou em que a prética do ato vincu- lado depende de aturada apreciagao e sopesamento dos fatos ¢ das regras juridicas em causa, é imprescindivel motivagao detalhada. E ‘© que Sucede, por exemplo, na tomada de decisdes em procedimen- tos nos quais exista uma situago contenciosa, como no chamado processo administrativo disciplinar. Idem em certos procedimentos em que varios interessados concorrem a um mesmo objeto, como nas licitagdes 18. © fundamento constitucional da obrigagao de motivar esta — como se esclarece de seguida — implicito tanto no art. 12, IT, que indica a cidadania como um dos fundamentos da Reptiblica, quanto 20. Henry Campbell Black, Handbook on Construction and Interpretation of Law, St. Paul, Minn., West Publishing Co., 1896, p. 62: “It is a rule of construction that which is implied in a statute is as much a part of it as, what is expressed”. 6 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO no pardgrafo tinico deste preceptivo, segundo o qual todo o poder emana do povo, como ainda no art. 58, XXXV, que assegura 0 direi to A apreciacao judicial nos casos de ameaga ou lest de direito. E que o principio da motivacao é reclamado quer como afirmagiio do direito politico dos cidadios ao esclarecimento do “porqué” das ages de quem gere negdcios que lhes dizem respeito por serem titu- lares tltimos do poder, quer como direito individual a nao se assujeita- rem a decisdes arbitrarias, pois s6 tém que se conformar as que fo- rem ajustadas s leis. Por isso RamG6n Real disse que o dever de motivar € exigéncia de uma administragaio democratica” — e outra ndo se concebe em um Estado que se declara “Estado Democritico de Direito” (art. 18, ca- put) ~, pois 0 minimo que os cidados podem pretender é saber as razGes pelas quais so tomadas as decisdes expedidas por quem tem de servi-los De outra parte, niio haveria como assegurar confiavelmente 0 contraste judicial eficaz das condutas administrativas com os prine/- pios da legalidade, da finalidade, da razoabilicade e da proporciona- lidade se no fossem contemporaneamente a elas conhecidos e ex- plicados os motivos que permitiriam reconhecer seu afinamento ou desafinamento com aqueles mesmos prineipios. Assim, 0 adminis- trado, para insurgir-se ou para ter elementos de insurgéncia contra atos que © afetem pessoalmente, necessita conhecer as razdes de tais atos na ocasizio em que so expedidos. Igualmente, o Judiciério nao. poderia conferir-thes a real justeza se a Administragao se omitisse em enuncid-las quando da prtica do ato. E que, se fosse dado ao Poder Ptiblico aduzi-los apenas serodiamente, depois de impugnada a conduta em jufzo, poderia fabricar razGes ad hoc, “consteuir” mo- tivos que jamais ou dificilmente se saberia se eram realmente exis. tentes e/ou se foram deveras sopesados A época em que se expediu 0 ato questionado Assim, atos administrativos praticados sem a tempestiva e sufi- ciente motivagio so ilegitimos € invalidaveis pelo Poder Judiciario toda vez que sua fundamentacdo tardia, apresentada apenas depois de impugnados em juizo, nao possa oferecer seguranga e certeza ce que 0s motivos aduzidos efetivamente existiam ou foram aqueles que embasaram a providéncia contestada 21. Alberto Ramén Real, “La fundamentacién del acto administrativo”, RDP 6/i7. 11 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 117 7) Principio da impessoalidade 19. Nele se traduz a ideia de que a Administragao tem que tratar a todos os administrados sem discriminagdes, benéficas ou detrimen- tosas. Nem favoritismo nem perseguigSes sao tolerdveis. Simpatias ou animosidades pessoais, politicas ou ideolégicas no podem inter- ferir na atuagio administrativa e muito menos interesses sectérios, de facgSes ou grupos de qualquer espécie. O princfpio em causa nao 6 seniio 0 proprio principio da igualdade ou isonomia. Est4 consa- grado explicitamente no art. 37, caput, da Constituigao. Além disso, assim como “todos sto iguais perante a lei” (art. 52, caput), a fortio- riteriam de sé-lo perante a Administragao. No texto constitucional hé, ainda, algumas referéncias a aplica- Ges concretas deste principio, como ocorre no art. 37, I, a0 exigir que © ingresso em cargo, Fungo ou emprego piiblico depende de concurso piiblico, exatamente para que todos possam disputar-Ihes 0 acesso em plena igualdade. Idem, no art.37, XXI, ao estabelecer que os contratos com a Administracao direta ¢ indireta dependerdo de licitagao publica que assegure igualdade de todos os concorrentes. O mesmo bem juri- dico também esté especificamente resguardado na exigéncia de licita- fo para permissies e concessGes de servigo piblico (art. 175) 8) Princtpio da publicidade 20. Consagra-se nisto o dever administrativo de manter plena transparéncia em seus comportamentos. Nao pode haver em um Es- tado Democratico de Direito, no qual 0 poder reside no povo (art. 1°, pardgrafo nico, da Constituigao), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam, e muito menos em relagao aos sujeitos individualmente afetados por alguma medida. Tal principio esta previsto expressamente no art. 37, caput, da Lei Magna, regulamentado por uma importantissima lei, a de n. 12.527, de 18.11.2011 ” ademais de contemplado em manifestagdes especificas do direito & informagao sobre os assuntos publicos, quer pelo cidadao, pelo 86 fato de sé-lo, quer por alguém que seja pesso- almente interessado. E 0 que se Ié no art. 58, XXXII (direito a infor- magio) e XXXIV, “b”, este iltimo para 0 caso especifico de certidio 22. V., a respeito, entre outros, 0 excelente artigo de Weida Zancaner em obra coletiva intitulada Acesso @ Informacao Publica, organizada por Rafael Valim, Belo Horizonte, Forum, 2012 (no prelo). ne. (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO (a ser expedida no prazo maximo de 15 dias, conforme a Lei 9.051, de 18.5.1995) para defesa de direitos ¢ esclarecimento de situagoes de interesse pessoal. Além disso, o mesmo art. 52, no inciso LXXII, confere a garantia do habeas data para assegurar judicialmente 0 conhecimento de informag@es relativas ao impetrante que constem de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de Ambito public, bem como para retificagao de dados que neles es- tejam armazenados. Na esfera administrativa o sigilo s6 se admite, a teor do art. 52, XXXII precitado, quando “imprescindivel a seguranga da Sociedade e do Estado” De acordo com a precitada Lei 12.527, 0 direito A informagao incide sobre quaisquer entidades governamentais, bem como entida- des privadas que recebam recursos piiblicos, ressalvadas apenas as estatais exploradoras de atividade econdmica, na forma do art. 173 da Constituicao Federal, no que estiverem elas vinculadas as exigén- cias de sigilo comercial necessério ao éxercicio da competigo em- presarial ‘Tém direito ao sobredito acesso, ademais gratuito ~e a ser sa- tisfeito no prazo maximo de vinte dias prorrogdveis, motivadamen- te, por mais dez — quaisquer cidados ou pessoas juridicas. Com- preende-se no conceito de informagao, de acordo com o art. 42 da Jei em causa, entre outros, “dados, processados ou nao, que podem ser utilizados para a produgao e transmissio de conhecimento, con- tidos em qualquer meio, suporte ou formato”. Independentemente de solicitagdo de quem quer que seja, ficam obrigados a divulgar € disponibilizar as informagdes de interesse coletivo ou geral os 6r- gilos e entidades que as detenham, com ressalva apenas do direito A intimidade e dos elementos que possam comprometer a seguran- a nacional. Como conclui Weida Zancaner em magnifico artigo sobre 0 te- ma, da integra da lei deflui o claro objetivo de tornar transparente toda a atividade estatal, inclusive seus planos de governo e a forma de implementé-los, fazendo-o através de facil acesso deles a toda a Sociedade. Pretende-se, dessarte, romper com a cultura de sigilo co- mum no Poder Puiblico, sobretudo nos chamados “anos de chumbo”, isto €, os da ditadura militar, substituindo-a pela cultura da transpa- rencia. Daf, a mais extrema importancia desta lei, que pode vir a ser um marco de uma nova era administrativa no Pais. 11 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 119 9%) Principios do devido processo legal e da ampla defesa 21. Os referidos princfpios, da mais extrema importancia ~ e que viemos a incluir nesta relagdo por oportuna adverténcia de Wei- da Zancaner —, consistem, de um lado, como estabelece o art. 5, LIV, da Constituigao Federal, em que “ninguém ser privado da li- berdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e, de outro, na conformidade do mesmo artigo, inciso LV, em que: “aos litigan- tes, em proceso judicial ou administrativo, e aos acusados em geral sio assegurados 0 contraditorio e ampla defesa, com os meios e re- cursos a ela inerentes”. Esto af consagrados, pois, a exigéncia de um processo formal regular para que sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer que seja e a necessidade de que a Ad- ministragdo Publica, antes de tomar decisdes gravosas a um dado sujeito, ofereca-Ihe oportunidade de contraditério e de defesa am- pla, no que se inclui o direito a recorrer das decisdes tomadas. Ou seja: a Administracaio Puiblica no poder proceder contra alguém passando diretamente & deciso que repute cabivel, pois teré, desde logo, 0 dever juridico de atender ao contido nos mencionados versi- culos constitticionais. Note-se que “privar” da liberdade ou da propriedade nao € ape- nas simplesmente elidi-las, mas também o é suspender ou sactificar quaisquer atributos legitimos inerentes a uma ou a outra; vale dizer: a privago no precisa ser completa para caracterizar-se como tal. Assim, para desencadear consequéncia desta ordem, a Administra- ‘¢&o teré que obedecer a um processo regular (0 devido processo legal), © qual, evidentemente, como resulta do inciso LV do art. 5®, deman- da contradit6rio e ampla defesa. Os prinefpios aludidos no devem ser tomados de maneira to desatada que impecam a adogao imediata de providéncias da mais extrema urgéncia requeridas insubstituivelmente para salva- guardar interesses ptiblicos relevantes que, de outra sorte, ficariam comprometidos. Entendé-los de maneita to radical implicaria olvidar a sempre Iembrada lico de Carlos Maximiliano: “Deve o Direito ser interpre- tado inteligentemente, ndo de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniéncias, vé ter a conclusdes inconsisten- tes ou impossi 23. Hermenéutica e Aplicasdo do Direito, 15+ ed, Forense, 1995, p. 103. 20 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVE Deles decorre, entretanto, que, nos casos em que a urgéncia de- mande postergacio provisdria do contraditério e ampla defesa, a Administraciio, de regra, ndio poderd por si mesma tomar as provi- déncias constritivas — e seria inconstitucional lei que a autorizasse ~, pois deveré recorrer a0 Poder Judiciério, demandando que as deter- mine liminarmente. Deveras, € neste foro, imparcial e isento, que haverdo de ser consideradas as medidas pretendidas a serem cautelarmente impos- tas & margem de contraditério e ampla defesa. Admitir-se-4, contudo, ago imediata da prépria Administragdo sem as referidas cautelas apenas e to somente quando 0 tempo a ser consumido na busca da via judicial inviabilizar a protegao do bem juridico a ser defendido. Finalmente, toda providéncia administrativa destarte adotada, além de cifrar-se ao indispensavel, s6 perdurard, tratando-se de medida de efeito continuado, pelo tempo inafastavelmente necessdrio e, em qualquer caso, sera de imediato sucedida pela instauragao do devido. processo, do contraditério e da ampla defesa. E légico, ademais, que qualquer demasia ou excesso acarretarao responsabilidade do Esta- do e do agente que haja procedido com dolo ou culpa. 22. A origem longinqua do “devido processo legal” (o due process of law), como se sabe, remonta 4 Magna Carta que Jodo-sem-Terra, em 1215, foi compelido a conceder aos bardes. Em seu art. 39 este documento feudal assegurava que nenhum homem livre teria sua li- berdade ou propriedade sacrificadas salvo na conformidade da law of the land. Tratava-se, na verdade, de uma defesa contra o arbitrio real e a consagracio de um direito a julgamento, efetuado pelos pro- prios pares, na conformidade do Direito costumeiro (a “lei da ter~ 1a”), ou seja: 0 Direito assente e sedimentado nos precedentes judi- ciais, os quais exprimiam a common law. Esta expresso law of the land, cerca de um século depois, sob Eduardo Il, em 1354, no Statute of Westminster of the Liberties of London, foi substituida por due process of law. Ao transmigrar-se para as coldnias americanas nelas prevale- ceu, antes ¢ depois da Independencia, a expresso law of the land, até a Constituigao de Nova York de 1821, que foi a primeira a incor- porar em seu texto a dicedo due process of law. Esta tiltima termino- Jogia, entretanto, que seria, a final, definitivamente consagrada, ja havia entrado na Constituicao norte-americana, através da Emenda V, aprovada em 1789 e ratificada pelos Estados em 15.12.1791. Ini- cialmente concebida como garantia puramente processual (procedu- 11 - PRINCIPIOS CONSTTUCIONAIS DO DIREITO ‘omer ral due process), evoluiria a0 depois, mediante const na da Suprema Corte norte-americana, para converter-se em garantia também substancial (substantive due process), conforme abertura possibilitada pela Emenda XIV (equal protetion of the laws), abri- gando e expandindo a ideia de resguardo da vida, da liberdade ¢ propriedade, inclusive contra legislagao opressiva, arbitréria, caren- te de razoabilidade* Demais disto, como anota Carlos Roberto Siqueira Castro: “Do campo processual penal e civil a garantia do devido proceso legal alastrou-se aos procedimentos travados na Administracdo Publica, impondo a esses rigorosa observancia dos princfpios da legalidade da moralidade administrativa. Por sua crescente e prestigiosa aplica- 0, acabou por transformar-se essa garantia constitucional em prin- cipio vetor das manifestagdes do Estado contemporaneo ¢ das tela- Ges de toda ordem entre o Poder Pablico, de um lado, ¢ a Sociedade € 08 individuos de outro” De seu turno, Ada Pellegrini, citando Comoglio, expée que, na conformidade da li¢do do autor. entre as consequéncias do elemen- to “igualdade”, insito na nogio de devido processo legal, contam- -se as de que: “os princfpios constitucionais de probidade proces- sual aplicam-se sempre que o individuo possa sofrer uma perda quanto & vida, 2 liberdade ou A propriedade, independentemente da natureza do 6rgiio perante o qual a deprivation deva concretamen- te efetivar-se”; e, demais disto, que, “consequentemente, a cléusu- la é requisito de constitucionalidade no tocante a qualquer proce- dimento (mesmo administrativo, tributério ou arbitral) pelo qual 24. Cf., 20 respeito, na doutrina nacional, entre outros, dos quais recolhemos estas anotagdes: Ada Pellegrini Grinover, As Garantias Constitucionais do Direito de Agdo, S40 Paulo, Ed. RT, 1973, Capitulos I, II e Mf; Carlos Roberto Siqueira Castto, O Devido Processo Legal ¢ a Razeabilidade das Leis na Nova Constituigao do Brasil, Rio de Janeiro, Forense, 1989, Capitulos Ile II; Adhemar Ferreira Ma- ciel, “Due process of law”, in Perspectivas do Direito Publico, obra coletiva de Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pp. 409-418; Liicia Valle Figueiredo, “Principios constitucionais do proces- 50”, RIDP 1/118, 1993; “O devido processo legal e a responsabilidade do Estado ”.RTDP 11/5, 1995, “Estado de Direito e devido proceso legal", RTDP 15/35, 1996; Dinoré Adelaide Musetti Grotti, "Devido processo legal e o procedimento administrative", RTDP 18/34, 1997; Carmen Lucia Antunes Rocha, “Prineipios constitucionais “do processo administrative no Direito brasileiro”, RTDP 17/6, 1997; e Geraldo Brindeiro, “O devido processo legal e o Estado Demoeritico de Diteito”, RTDP 19/50, 1997. 25. Ob. cit., pp. 40.e 41. m (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO possa ocorrer a perda de direitos individuais constitucionalmente garantidos”.* Compreende-se que tenha ocorrido a completude desta traje- t6ria no Estado de Direito, pois é de sua esséncia o enquadramento da conduta estatal dentro de limites jurfdicos, tanto materiais co- mo formais. O proprio do Estado de Direito é subordinar o exer- cicio do poder piiblico a obediéncia de normas adrede concebidas para conformar-lhe a atuago, prevenindo, destarte, seu uso desa- tado ou descomedido. Deveras, o propésito nele consubstanciado €0 de oferecer a todos os integrantes da Sociedade a seguranga de que nao serao amesquinhados pelos detentores do Poder nem sur- preendidos com medidas e providéncias interferentes com a liberda- de e a propriedade sem cautelas preestabelecidas para defendé-las eficazmente. Tal enquadramento da conduta estatal em pautas balizadoras, como se disse e é universalmente sabido, concerne tanto a aspectos materiais — pelo atrelamento do Estado a determinados fins anteci- padamente propostos como os validamente perseguiveis — quanto a aspectos formais, ou seja, relativos ao preestabelecimento dos meios eleitos como as vias idéneas a serem percorridas para que, através, delas ~ e somente através delas ~, possa o Poder Puiblico exprimir suas decisées. Estes tiltimos dizem com a prévia definig&o dos pro- cessos que canalizardo as manifestagdes estatais. A indicagao das formas adequadas para aportar nos fins buscados define 0 modus procedendi obrigatério para o Poder Ptiblico, com 0 qué sua atuacdo fica inserida na intimidade de uma trilha cujo percurso correto € a maior garantia para o cumprimento dos bens juridicos que o Estado de Direito visa a resguardar. Nao por acaso disse Ihering: “Inimiga jurada do arbitrio a forma 6a irmi gémea da liberdade”” Na mesma linha de ideias, vale colacionar algumas judiciosas averbagdes da eminente publicista Carmen Lticia Antunes Rocha: “A historia do processo retrata a prépria hist6ria do homem em sua luta pela democratizagdo da relag&o do poder e com o poder. (...). processo reflete uma forma de convivéncia estatal civilizada se~ gundo pardmetros previamente determinados pelo Direito posto & 26. Ob. cit. pp. 40 € 41 27. L'Esprit du Droit Romain, 3 ed., revista e corrigida, t. 3, Paris, Libraivie Mareseq Aing, 1887, p. 164. 11 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINI TRATIVO BRASILEIRO (23 observancia de todos. A civilizagdo é formal. As formas desempe- nham um papel essencial na convivéncia civilizada dos homens; elas delimitam espagos de aco ¢ modos inteligiveis de comportamen- to para que a surpresa permanente nao seja um elemento de tensio constante do homem em seu contato com 0 outro e em sua busca de equilfbrio na vivéncia com 0 outro e, inclusive, consigo mesmo”. E, pouco além: “Fora daf, nao ha solugao para a barbarie e para a des- crenga no Estado. Sem confianga nas instituigdes juridicas, no ha base para a garantia nas instituiges politicas. O processo é, pois, uma garantia da democracia realizivel pelo Direito, segundo 0 Di- reito € para uma efetiva justiciabilidade” 2° 10°) Princtpio da moralidade administrativa 23. De acordo com ele, a Administracao e seus agentes tém de atuar na conformidade de prinefpios éticos. Viol4-los implicard vio- lago ao proprio Direito, configurando ilicitude que assujeita a con- duta viciada a invalidacao, porquanto tal principio assumiu foros de puta juridica, na contoriuidade do art, 37 da Constituigio. Cou preendem-se em seu Ambito, como € evidente, os chamados prin- cfpios da lealdade e boa-fé, to oportunamente encarecidos pelo mestre espanhol Jesiis Gonzales Perez em monografia preciosa” Segundo os cAnones da lealdade e da boa-fé,a Administragao haveré de proceder em relacio aos administrados com sinceridade e Iha- neza, sendo-Ihe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malicia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimi- zat o exercicio de direitos por parte dos cidadaios. Por forga mesmo destes principios da lealdade e boa-fé, fir- mou-se 0 correto entendimento de que orientagdes firmadas pela ‘Administrago em dada matéria nao podem, sem prévia e publica noticia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situago dos administrados ou denegar-Ihes pretenses, de tal sorte que s6 se aplicam aos casos ocorridos depois de tal noticia. Acresga-se que, nos termos do art. 85, V, da Constituigao, aten- tar contra a “probidade na administragdo” ¢ hipétese prevista como crime de responsabilidade do Presidente da Reptiblica, fato que en- 28. *Prinefpios constitucionais do proceso administrative no Direito brasilei- RIDP 1715-7, 1997. 29. El Principio General de la Buena Fe en el Derecho Administrativo, Madsi, 1983, i (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO seja sua destituigao do cargo. De resto, 0s atos de improbidade admi- nistrativa dos servidores puiblicos “imporao a suspensao dos direitos politicos, a perda da fungao ptiblica, a indisponibilidade dos bens ¢ © ressarcimento ao erério, na forma e gradagdo previstas em lei, sem prejuizo da ago penal cabivel” (art. 37, § 4). Além disto, 0 principio da moralidade administrativa acha-se, ainda, eficientemente protegido no art. 58, LXXIIL, que prevé 0 cabi- mento de aco popular para anulagio de “ato lesivo ao patriménio piiblico ou de entidade de que o Estado participe, & moralidade ad- ‘ministrativa, a0 meio ambiente (...)” ete. Marcio Cammarosano, em monografia de indiscutfvel vaior, sustenta que 0 principio da moralidade néio é uma remisséo 4 moral comum, mas esté reportado aos valores morais albergados nas nor- mas juridicas.° Quanto a nés, também entendendo que nao é qual- quer ofensa & moral social que se considerard id6nea para dizer-se ofensiva ao principio juridico da moralidade administrativa, enten- demos que este seré havido como transgredido quando houver vio- Jago a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a.um bem juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforgo 0 principio da legalidade, dando-lhe um ambito mais compreensivo do que normalmente teria. 11*) Principio do controle judicial dos atos administrativos 24, No Direito brasileiro, ao contrério do que ocorre na maioria dos paises europeus continentais, h4 unidade de jurisdigiio. Isto é, nenhuma contenda sobre diteitos pode ser exclufda da apreciagio do Poder Judicidrio, conforme o art. 5, XXXYV, da Constituicao. Assim, niio ha 6rgaos jurisdicionais estranhos ao Poder Judicidrio para de- cidir, com esta forga especifica, sobre as contendas entre Admini tragdo e administrados. E ao Poder Judiciario e s6 a ele que cabe resolver definitiva- mente sobre quaisquer litigios de direito. Detém, pois, a universa- Tidade da jurisdigao, quer no que respeita A legalidade ou a con- sonancia das condutas puiblicas com atos normativos infralegais, quer no que atina & constitucionalidade delas. Neste mister, tanto anularé atos invalidos, como impora & Administragao os comporta- 30. O Principio Constitucional da Moralidade eo Exerefeio da Fungdto Adri nistrativa, Belo Horizonte, Forum, 2006. 11 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 125 mentos a que esteja de direito obrigada, como proferird e impord as, condenagées pecunidrias cabiveis. 128) Principio da responsabilidade do Estado por atos administrativos 25. De acordo com nosso Direito, a responsabilidade do Estado € ampla e generosamente contemplada no préprio Texto Constitu- cional. O art. 37, § 6°, estabelece que: “As pessoas jurfdicas de Di- reito Pablico e as de Direito Privado prestadoras de servigos pti- blicos responderdo pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado 0 direito de regresso contra 0 res- ponsdvel nos casos de dolo ou culpa”. A dicgdo deste preceito autoriza as seguintes conclusses: a) a responsabilidade do Estado aplica-se indistintamente a quaisquer das funges publica, nao estando restrita a danos prove- nientes de atos administrativos; b) posto que existe direito de regresso contra o agente responsé- vel nos casos de dolo ou culpa ~ e nfo em outros —, € porque cabe responsabilizacdo estatal também em hipéteses nas quais inexista dolo ou culpa. Isto €, esté acolhida, conforme pacifico entendimen- to jurisprudencial (assentado em textos constitucionais anteriores desde 1946 e nisto nao discrepantes do atual), a responsabilidade objetiva do Estado; ©) dita responsabilidade objetiva, entretanto, s6 estd consagra- da constitucionalmente para atos comissivos do Estado, ou seja, pa- ra 0s comportamentos positivos dele. Isto porque 0 texto mencio- na “danos que seus agentes causarem”. A omissao, rigorosamente falando, nao é causa de dano, conquanto seja certo que condiciona ¢ irresistivelmente sua Ocorréncia nos casos em que, se houvesse a gio, o dano seria evitado. Assim, parece-nos —e também nisto aca- tamos reverentemente os ensinamentos doutrinarios sempre lumino- sos de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello"! ~ que a regra em nosso Direito Constitucional é a da responsabilidade objetiva para os com- portamentos comissivos do Estado e, salvo casos excepcionais, res- ponsabilidade subjetiva (por culpa do servigo) para 0s comporta- 31. Prineipios Gerais de Direito Administrative, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, 1974, pp. 478 e ss., notadamente pp. 486 ¢ 487, 126 (CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO mentos omissivos: a saber, quando 0 Estado, devendo legalmente agir para evitar um dano e, podendo fazé-lo, nao 0 fez ou nao o fez tempestiva ou eficientemente; d) estes mesmos critérios de responsabilidade concernem tam- bém ~ como esté explicito no referido art. 37, § 6 — as pessoas de Direito Privado prestadoras de servigo ptiblico. 132) Princtpio da boa administragdo 26. A Constituigao se refere, no art. 37, a0 principio da eficién- cia. Advirta-se que tal principio nao pode ser concebido (entre nés nunca € demais fazer ressalvas Sbvias) sendo na intimidade do prin- cipio da legalidade, pois jamais uma suposta busca de eficiéncia justificaria postergagaio daquele que € o dever administrativo por exceléncia, O fato € que o princfpio da eficiéncia nao parece ser mais do que uma faceta de um prinefpio mais amplo j4 superior- mente tratado, de hd muito, no Direito italiano: 0 principio da “boa administraco” Este tiltimo significa, como resulta das ligdes de Guido Falzone, em desenvolver a atividade administrativa “do modo mais congruente, mais oportuno e mais adequado aos fins a serem alcangados, gragas & escolha dos meios da ocasidio de utilizé-los, concebfveis como os mais idéneos para tanto”. Tal dever, como assinala Falzone, “nao se poe simplesmente como um dever ético ‘ou como mera aspiragao deontolégica, send como um dever atual ¢ estritamente juridico”.* Em obra monogréfica, invocando ligées do citado autor, assinalamos este cardter ¢ averbamos que, nas hipste- ses em que hé discrigao administrativa, “a norma s6 quer a solugzo excelente.» Juarez Freitas, em oportuno e atraente estudo — no qual pela primeira vez entre nds € dedicada toda uma monografia ao exa- me da discricionariedade em face do direito & boa administracao —, com precisiio irretocével, afirmou 0 cardter vinculante do direito fundamental & boa administragaio.° 32. Consulte-se a0 respeito a excelente monografia de Guido Falzone, 1! Dove: re di Buona Amministrazione, Milo, Giuffre, 1953 33. Ob. cit, p. 64, 34. Ob. cit. p87, 35. Disericionariedade e Controle Jurisdicional, 2 ed., 11 tir, Malheiros Bul tores, 2012, p. 37. ‘36. Discricionariedade Administrativa e 0 Direito Fundamental & Boa Adminis tragito Publica, 2*ed.,Malheiros Editores, 2009, p. 42. I1-PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO. 127 14%) Princlpio da seguranca juridica 27. Este principio nao pode ser radicado em qualquer dispositi- ‘vo constitucional especffico. E, porém, da esséncia do préprio Direi to, notadamente de um Estado Democritico de Direito, de tal sorte que faz parte do sistema constitucional como um todo. Enquadra-se, entdo, entre os principios gerais de Direito, dos quais o nunca assaz citado Eduardo Garcia de Enterria disse, com irretocdvel perfeig&o: “Conviene recordar a este propésito que los principios generales del Derecho son una condensacién de los gran- des valores juridicos materiales que constituyen el substractum del ordenamiento y de la experiencia reiterada de la vida juridica. No consisten, pues, en una abstracta ¢ indeterminada invocacién de la justicia o de Ia conciencia moral o de la discrecién del juez, sino, més bien, en la expresién de una justicia material especificada técni- camente en funcién de los problemas juridicos concretos y objetiva-~ da en la légica misma de las instituciones”.” Deveras, principios gerais de Direito so vetores normativos subjacentes a0 sistema ju{dico-positivo, nao porém como um dado externo, mas como uma ineréncia da construcdo em que se corpori- fica 0 ordenamento. E que 0s diversos institutos nele compreendidos — quando menos considerados em sua complexidade integra — reve lam, nas respectivas composturas, a absorgao dos valores substan- ciados nos sobreditos princfpios. Com efeito, nas palavras de O. A. Bandeira de Mello, tais prin- cfpios “se infiltram no ordenamento jurfdico de dado momento his- *6rico” ou traduzem “o mfnimo de moralidade que circunda o pre- ceito legal, latente na formula escrita ou costumeira”, so “as teses juridicas genéricas que informam 0 ordenamento juridico-positivo ‘do Estado”, conquanto nao se achem expressadas em texto legal es- pecffico. No exemplario de tais princfpios gerais 0 autor menciona, entre outros, o de que ninguém deve ser punido sem ser ouvido, o do enriquecimento sem causa, 0 de que ninguém pode se beneficiar da propria malicia etc.** Ora bem, é sabido ¢ ressabido que a ordem jurfdica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas 37. Curso de Derecho Administrativo, obra conjunta com Tomés-Ramén Fer- néndez, ‘Thomson-Civitas, Madri, 14" ed., vol. 1, 2008, p. 484. 38, Principios Gerais de Direito Administrativo, 3 ed.,2*tr., vol. I, Malheiros Euitores, 2010, pp. 420 ¢ 421. 18 CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIV possam se orientar, sabendo, pois, de antemio, 0 que devem ou 0 que podem fazer, tendo em vista as ulteriores consequéncias imputé- veis a seus atos. O Direito propde-se a ensejar uma certa estabilida- de, um minimo de certeza na regéncia da vida social. Daf o chamado prinefpio da “seguranea jurfdica”, o qual, bem por isto, se nao é 0 mais importante dentro todos os princfpios gerais de Direito, é, in- disputavelmente, um dos mais importantes entre eles. Os institutos da prescrigiio, da decadéncia, da preclusao (na esfera processual), do usucapidio, da irretroatividade da lei, do direito adquirido, sao expres- sOes concretas que bem revelam esta profunda aspiraco & estabili- dade, A seguranga, conatural ao Direito. Tanto mais porque intimeras, dentre as relagdes compostas pelos sujeitos de direito constituem-se em vista do porvir e nao apenas da imediatidade das situagdes, cum- pre, como inafast4vel requisito de um ordenado convfvio social, li- vre de abalos repentinos ou surpresas desconcertantes, que haja uma certa estabilidade nas situagdes destarte constitufdas. Esta “seguranga jurfdica” coincide com uma das mais profun- das aspiragdes do Homem: a da seguranga em si mesma, a da cer- teza possivel em relagdo ao que 0 cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. E a insopitavel necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estavel, ou relativamente estdvel, 0 que permite vislumbrar com alguma previsibilidade 0 futuro; € ela, pois, que enseja projetar e iniciar, consequentemente —e nao aleatoriamente, ao mero sabor do acaso ~, comportamentos cujos frutos sao esperaveis a médio e longo prazo. Dita previsibili- dade €, portanto, o que condiciona a ago humana. Esta é a norma- lidade das coisas. Bem por isto, o Direito, conquanto seja, como tudo o mais, uma constante mutagdo, para ajustar-se a novas realidades e para melhor satisfazer interesses publicos, manifesta e sempre manifestou, em épocas de normalidade, um compreensivel empenho em efetuar suas inovag&es causando o menor trauma possivel, a menor comogao, as relagdes juridicas passadas que se perlongaram no tempo ou que de- pendem da superveniéncia de eventos futuros previstos. Por forga mesmo deste princfpio (conjugadamente com os da presungao de legitimidade dos atos administrativos e da lealdade & boa-fé), firmou-se o correto entendimento de que orientagées firma- das pela Administragtio em dada matéria nfo podem, sem prévia e piiblica noticia, ser modificadas em casos concretos para fins de sancionar, agravar a situacdo dos administrados ou denegar-lhes pre- 1 PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 129 tensdes, de tal sorte que 86 se aplicam aos casos ocorridos depois de tal noticia.” 28. Ao cabo desta exposigao, nada mais resta sendo arrolar sim- plesmente os principios enumerados e suas bases constitucionais: 1) Principio da supremacia do interesse piiblico sobre o interes- se privado (fundamenta-se na prépria ideia de Estado); 2) Principio da legalidade (arts. 5*, 11, 37, caput, ¢ 84, 1V); 3) Principio da finalidade (radica-se nos mesmos fundamentos do prinefpio da legalidadey; 4) Principio da razoabilidade (estriba-se também nos dispositi- vos que esteiam os princfpios da legalidade e finalidade); 5) Princfpio da proporcionalidade (por ser aspecto especifico da razoabilidade, também se apoia nos citados fundamentos); 6) Princfpio da motivagdo (arts. 1°, I ¢ parégrafo tinico, e 5°, XXXV); 7) Principio da impessoalidade (arts. 37, caput, e 5*, caput); 8) Principio da publicidade (arts. 37, caput, 5®, XXXII e XXXIV, “b”); 9) Prinefpios do devido processo legal e da ampla defesa (art. 5°, LiVeLv); 10) Princtpio da moralidade administrativa (arts. 37, caput © $4, 85, V,e 5°, LXXIID; 11) Principio do controle judicial dos atos administrativos (art. 5°, XXXV); 12) Prinelpio da responsabilidade do Estado por atos adminis- trativos (art. 37, § 6%); 13) Principio da eficiéncia (art. 37, caput) e 14) Princtpio da seguranca jurédica. 39. Registre-se que 0 tema da seguranga juridica foi magistralmente tratado, como de hébito, aids, pelo notavel publicista gauicho Almiro do Couto e Silva em artigo precioso denominado “O prinefpio da seguranga juridica (protect & confianga) no Direito Pablico brasileiro e 0 direito da Administragio Publica de anular seus proprios atos administrativos: prazo decadencial do art. 54 da Lei de Processo Ad- ‘inistrativo da Unido (Lei n. 9.784/1999)", publicado na Revista da Procuradoria- Geral do Estado do Rio Grande do Sul 27/33 € ss... 57, supl. 130 ‘CURSO DE DIREITO ADMI sTRATIVO I. Restrigées excepcionais ao principio da legalidade a) Medidas provisérias 29. “Medidas provisérias”, como resulta das alteragdes introdu- Zidas no art. 62 e pardgrafos, da Constituigao, pela Emenda Consti- tucional 32, de 119.2001, sto providéncias (como o préprio nome diz, provisdrias) que o Presidente da Repiblica poder expedir, com ressalva de certas matérias nas quais ndo so admitidas, “em casos de relevancia e urgéncia”, e que terdio “forca de lei”, cuja eficécia, entretanto, serd climinada desde o inicio se o Congresso Nacional, a quem sero imediatamente submetidas, niio as converter em lei den- tro do prazo — que ndo correré durante 0 recesso parlamentar ~ de 120 dias contados a partir de sua publicagao. © que as regula, entio, € o art. 62, agora compreensivo de doze parégrafos.® 40. Este € 0 teor do art. 62 ¢ seus parigrafos: “Art. 62. Em caso de relevancia e urgéncia, 0 Presidente da Repiiblica poderé adotar medidas provis6rias, com forga de lei, devenda submeté-las de imediato 20 Congresso Nacional. § 1°. vedada a edigo de medidas provisérias sobre matéria: I~ relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos politicos, partidos politicos ¢ dreito leitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; ¢) organizacao do Poder Judicifrio e do Ministério Pablico, a carreira ¢ a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orgamentérias, orgamento e créditos adicionais e suplementa- res, ressalvado 0 previsto no art. 167, § 3%; IT — que vise & deteneZo ou sequestro de bens, de poupanea popular ou qualquer outro ativo financeiro; III ~ reservada a lei complementar; IV — jé disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Na- cional e pendente de sancio ou veto do Presidente da Reptblica. § 22. Medida provi- s6ria que implique instituigo ou majoragio de impostos, exceto os previstos nos ars. 153, I, IL, IV, V, ¢ 154, II, s6 produziré efeitos no exereicio financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até 0 Gltimo dia daquele em que foi editada. § 3%. As ‘medidas provis6rias, ressalvado 0 disposto nos §§ 11 e 12 perderao eficécia, desde 2 cedigio, se no forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogivel, nos termos do § 72, uma vez por igual perfodo, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relagdes juridicas delas decorrentes. § 4°. O prazo a que se refere 0 § 3° contar-se-4 da publicagao da medida provisdria, suspendendo-se durante (08 perfodos de recesso do Congresso Nacional. § 58, A deliberagao de cada uma das Casas do Congress Nacional sobre o mérito das medidas provisdrias dependers de julzo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionals. § 6°. Se a ‘medida provisoria ndo for apreciada em até quarenta e cinco dias contados de sua publicagao, entraré em regime de urgencia, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votagdo, todas as demais deliberages legislativas da Casa em que estiver tramitando. § 7. Prorro- gar-se-4 uma tinica vez por igual perfodo a vigéncia de medida proviséria que, no prazo de sessenta dias, contado de sua publicagfo, nfo tiver a sua votagao encerrada IL- PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIRO 131 ‘Vejamos as caracteristicas que Ihes so de reconhecer ante o teor dos versiculos mencionados e em face do préprio sistema cons- titucional como um todo. 30. Conquanto c § 3° do art. 62 reporte-se a uma perda de eficd- cia das medidas provisorias desde a edigdo, se niio forem converti- das em lei no decurso de uma dilaco de 60 dias, esta consequéncia na verdade s6 ocorre, como acima averbamos, se, vencido 0 trans- curso de 120 dias, ainda ndo tiver havido a conversdo. Isto porque © proprio pardgrafo zm aprego estatui que os mencionados 60 dias so prorrogaveis, nos termos do § 7°, por igual perfodo, uma tinica, vez, Ora, este tiltimo, conforme se depreende de sua linguagem, tor- na referida prorrogacao automdtica caso 0 Congreso Nacional nfo haja encerrado em 60 dias a votagiio que rejeitaré ou converterd em ei a medida proviséria, com o que eleva o prazo fatal de perda de eficécia por decurso de prazo para 120 dias." E Sbvio, de outra par- te, que, independentemente de quaisquer destes prazos, tao logo as tenha conhecido, o Parlamento poder rejeité-las mediante corres- pondente tramitagZo A deliberagaio do plendrio de cada uma das Casas do Con- gresso sobre o mérito de medida proviséria dependeré de jufzo pré- vio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais (§ 5°) e iniciar-se-4 na Camara dos Deputados (§ 8°), sendo antes prece- dida de parecer emitido por Comissao Mista de deputados € sena- dores (§ 9°). nas duas Casas do Congresso Nacional. § 8°. As medidas provisGrias tetfo sua vote ‘lo iniciada na Camara dos Deputados. § 9°, Caberé A comissio mista de Deputados ¢ Senadores examinar as medidas provis6rias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas, em sesso separada, pelo plendrio de cada uma das Casas do Con- aresso Nacional, § 10.F vedada a reedigo, na mesma sesso legislativa, de medida proviséria que tena sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficacia por decurso de prazo. § 1, Néo editado 9 decreto legislativo a que se refere 0 § 3° até sessenta dias ap6s 4 rejeicHo ou perda de eficécia de medida proviséria, as relagGes juridicas cons ‘utuidas ¢ decorrentes de tos praticados durante sua vigencia conservar-se-to por ela regidas. § 12. Aprovado projeto de lei de conversfo alterando 0 texto original da aiedida provis6ria, esta manter-se-4 integralmente em vigor até que seja sancionado bu vetado o projeto.” 41, Poder-se-ia perguntar por que, entio, o texto falou em 60 diss, 20 invés de 120. A tinica resposta que nos acode a6 espirito é que a mengiio A metade do prazo real teria sido feita com o intento de ilu a opiniao piblica e inimeros congressistas ouco avisados, para dar a impressio de que apenas se estava a dobrar, 20 invés de uadruplicar, como de fato ocorreu, © prazo previsto anteriormente & Emenda Cons~ titucional que modificou 0 tratamento da matéria,

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