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ERIK OLIN WRIGHT Revista Critea de CiBeclas Sect Universidade de Wisconsin-Madison Analise de Classes, Historia e Emancipagao Apesar de, am sentido estrito, 0 des- calabro des regimes comunistas nao implicar uma refutagao do marxismo enquanto teoria social, a verdade é que os acontecimentos dos finais dos anos 60 contribuiram para acentuar, no espirito de muitos intelectuais radicais, um sentimento crescente de autoquestionamento e de perpiexi- dade quanto viabilidade e 4 utili- dade futura do marxismo. Embora Continuande a acreditar que 0 mar- xismo 6 ainda hoje uma tradigao vital a partir de dentro da qual so toma possivel produzir uma ciéncia social emancipatoria, o autor considera que, ara poder continvar a desempenhar este papel, 0 marxismo tem de ser reconstruido em moldes diferentes. Para tanto, esboga neste trabalho, em tapos gerals, 0s contomos fun- damentais dessa’ reconstrucao, com especial incidéncia no problema da andlise de classes. ANTO na imprensa de massas como nos meios de comunicagao de caracter mais académico muito se ouve falar da crise do marxismo, ou até mesmo do seu colapso. E frequente ouvirmos equiparar:se o colapso de regimes governados por partidos comunistas com o colapso do marxismo enquanto teoria social. Contudo, e apesar de indubitavelmente existir uma ligagdo histérica entre o marxismo e 0 Comunismo com c maitisculo, estes nao sao permutaveis. O marxismo faz parte da tradi¢&o da teoria social, conquanto se trate de uma teoria social profun- damente incrustada em esforgos destinados a mudar o mundo. Mais ainda, trata-se de uma tradigao da teoria social dentro da qual é possivel fazer ciéncia social, ou seja, identificar quais os verdadeiros mecanismos causais e compreender-Ihes as consequéncias. O Comunismo com ¢ maiusculo, por outro lado, 6 uma forma especifica de organizac4o social, que se caracteriza pela extirpacao ou marginalizagao da propriedade privada dos recursos produ- tivos e por niveis elevados de centralizacao do poder politico e econdémico sob o controlo de aparelhos politicos relativa- Erik Olin Wright mente autoritarios — 0 partido e o Estado. Tais partidos e Estados serviram-se do marxismo como ideologia legitima- dora, mas nem a queda desses regimes, nem a sua incapa- cidade de cumprir os ideais normativos do marxismo consti- tuem, por si sd, provas da faléncia do marxismo enquanto tradigao de pratica sdcio-cientifica. Ha, na verdade, uma grande ironia na afirmagao de que a morte dos regimes comunistas assentes em economias de planeamento central implica a morte do proprio marxismo. As ideias centrais do marxismo classico, tal como foram desen- volvidas no final do século XIX, eram de molde a fazer prever que as tentativas de ruptura revoluciondria com o capitalismo levadas a cabo em paises alrasados e nao industrializados acabariam, em Ultima andlise, por nao alcangar os seus objectivos positivos. O materialismo histdrico ortodoxo insistia na ideia de que o socialismo s6 @ possivel quando o capitalismo esgota a sua capacidade de desenvolvimento das forgas de produgao — isto é, quando passa a constituir um travao ao desenvolvimento futuro da capacidade produtiva da sociedade '. Era esta a crenga de todos os marxistas, incuindo Lenine, anteriormente & Revolugaéo Russa. Da perspectiva do marxismo classico, portanto, a anomalia nao reside no facto de as economias de planeamento central do Estado burocratico terem falhado e se encontrarem num processo de transi¢ao para o capitalismo, mas antes no facto de terem conseguido sobreviver durante tanto tempo. Este aspecto ilustra bem um siléncio basico que esta presente no marxismo classico, e que € a falta de uma teoria da escala temporal das suas previsdes. Mas o que € importante assinalar, no contexto imediato, é que o colapso dos estados comunistas nao equivale a uma refutagao do marxismo; ele €, quando muito, a refutagao do voluntarismo leninista, ou seja, a refutagao da crenga de que através da vontado revolucionéria e do empenhamento organizativo é possivel construir o socialismo sobre alicerces materiais inadequados. Mas apesar de, em sentido estrito, 0 descalabro dos regimes comunistas no implicar uma refutagao do marxismo enquanto teoria social, a verdade 6 que os acontecimentos dos finais dos anos 80 contribuiram para acentuar, no espirito de muitos intelectuais radicais, um sentimento crescente de autoquestionamento e de perplexidade quanto a viabilidade € utilidade futura do marxismo. Pela minha parte, nao deixei + Para um explanagao mais clara e sistematica desta tese cléssica, veja~ se G. A. Cohen, 1985. Analise de Classes, Historia e Emancipacao de acreditar que 0 marxismo continua a ser hoje uma tradigao Vital a partir de dentro da qual se toma possivel produzir uma ciéncia social emancipatéria. No entanto, considero também que, para poder continuar a desempenhar este papel, o marxismo tem de ser reconstruido em moldes diferentes. Ao longo deste trabalho proponho-me esbogar em tragos gerais Os contornos fundamentais desta reconstrugao, com especial incidéncia no problema da andlise de classes. Antes de nos debrugarmos sobre o problema da recons- trugdio em si, torna-se primeiro necessario tragar os contornos centrais daquilo mesmo que hé para reconstruir — ou seja, © que é 0 “marxismo”? A resposta a esta questdo pode, evidentemente, transformar-se num exercicio de estupida escolastica doutrinaria: definir 0 que 6 um verdadeiro mar- xista, por oposi¢do a um falso marxista. A tradigdo manista esta pejada de destrogos das guerras travadas por causa de questdes deste género. Nao 6 minha intengao definir aqui um qualquer conjunto de crengas eventualmente necessdrio possuir-se para se ser considerado com propriedade um “marxista”, mas antes tragar as coordenadas basicas da tradigao marxista, como meio de perspectivar devidamente a tarefa de reconstrugao. Para tal, parece-me util considerar que a tradigao mar- xista se constréi em fungao de trés vértices conceptuais 2. A estes vértices, representados na Figura 1, chamarei mar- xismo como andlise de classes*, marxismo como teoria da Existem outras maneiras de definir os contomos da tradi¢ao marxista. Dum e doutro lado da barricada metodolégica, Alvin Gouldner em The Two Marxisms e Louis Althusser em For Marx, por exeriplo, consideram que a linha central de demarcagao dentro da teoria marxisia se situa entre o marxismo cientifico-determinista e 0 marxismo humanista-volunterista. Para outros, a distingao far-se-la entre “marxismo vulgar” ou grosseiro e marxismo nao reducionista. Contrastando com estas vis6es esquematicas, que analisam a tradicao marxista em termos de vinculagdes epistemoldgicas ¢ metodolégicas, a proposta de que a tradi¢ao marxista deve ser delineada em tarmos dos trés vertices aqui referidos faz ressaltar a grande preocupagao presente em diferentes estilos de marxismo. Para uma discussdo mais aprofundada destes trés vertices da teoria marxista, ver Erik Olin Wright, Andrew Levine e Elliott Sober, Reconstructing Marxism, capitulo 8. Saliente-se que nessa primeira abordagem o vértice designado “teoria da trajectéria histérica” surge sob a designacao de “marxismo como socialismo cientiico" Robert Brenner sustenta (em comunicagao pessoal) que a designagéo *analise de classes’ constitui uma caracterizagao demasiado estreita do “vértica explicativo” do marxismo. Mais concretamente, a andlise de classes nao abrangera de forma acequada 0 problema da alienacdo. Enquanto a alienaggo gerada no seio do proceso capitalista de trabalho poderia caber na andlise de classes, 0 mesmo jé no sucede com a alienagao enraizada nos mercados @ na concorréncia (também teorizada sob a rubrica “feiticismo das mercadorias"). Uma alienagao deste tipo haveria de existir mesmo se tivés- semos uma economia de mercado totalmente constituida por cooperativas Os trés vértices 5 do marxismo Erik Olin Wright traject6ria histérica, e marxismo como teoria normativa emancipatéria. Vou de seguida definir sucintamente cada um desses vértices e as respectivas interligacdes, passando entao a indicar quais sao, em meu entender, as tarefas principais de reconstrugao a levar a cabo no seu interior. Figura 1 Os trés vértices do marxismo MARXISM COMO EMANCIPACAO DE CLASSE MARXISMO COMO MARXISMO COMO. ANALISE DE CLASSES TEORIA DA HISTORIA Podemos clarificar o contraste entre marxismo enquanto analise de classes ¢ enquanto teoria da historia por meio de uma analogia da drea da medicina. Considerem-se as se- guintes disciplinas: a endocrinologia e a oncologia. A endo- crinologia 6 aquilo a que se poderia chamar uma “disciplina de variaveis independentes”. Um endocrinologista pode permitir-se estudar um vasto leque de problemas — sexua- lidade, personalidade, crescimento, evolugao de doengas, etc. — desde que explore a relacao existente entre o sistema endécrino e cada um desses aspectos que se propde explicar. A endocrinologia revela-se disciplinada quanto as suas variaveis explicativas — as do sistema hormonal — mas. promiscua no que se refere as varidveis dependentes. Além disso, em endocrinologia n&o constitui motivo de embaraco descobrir-se que, no caso da pesquisa de certos problemas, as hormonas até nem s&o muito importantes. No dominio da pertencentes aos trabalhadoras e por eles dirigidas. Segundo Brenner, a alienagao gerada pelo mercado €, dentro do marxismo, um principio ‘explicativo t20 poderoso quanto o da exploracdo gerada pela classe. Dai que proponha que em vez de “andlise de classes” se utlize o conceito de “relagées de propriedade sociais", expressdo abrangente capaz de captar a logica explicativa central do marxismo. A anélise de classes é, assim, um de entre 08 diversos aspectos da andlise das relacies de propriedade sociais. No uso que aqui fago dos termos, a anélise da concorrénoia do mercado no interior do capitalismo é tratada como sendo uma dimensao da andlise de classes, nomeadamente como a andlise das formas de interaceo concorrencial entre agentes situados dentro de classes especiticas — 05 mercados de trabalho no que se refere A classe operdria, e mercados de mercadorias no que respelta a classe capltalista Anélise de Classes, Histéria e Emancipagao endocrinologia, pode considerar-se um avanco nos conheci- mentos disponiveis tanto 0 saber-se o que é que as hormo- nas n&o explicam como saber quais os aspectos por elas explicados. A oncologia, pelo contrario, é uma “disciplina de variaveis dependentes”. Um oncologista pode estudar qual- quer causa de cancro imaginavel — toxinas, factores gené- ticos, virus, até mesmo estados psicolégicos. A oncologia revela-se disciplinada quanto a sua variavel dependente, mas promiscua quanto as variaveis independentes. E no dominio da oncologia também nao constituird razdo para qualquer embaraco a descoberta de que certas causas potenciais de cancro se acabam por revelar de escassa importancias. Nestes termos, 0 marxismo enquanto andlise de classes assemelha-se @ endocrinologia — sera um marxismo de variaveis independentes — e 0 marxismo enquanto teoria da historia assemelha-se @ oncologia — um marxismo de variaveis dependentes. Enquanto autores de andlises de classe, os marxistas podem abalangar-se ao estudo de praticamente tudo. E possivel fazer-se uma andlise de classe da religi&o, da guerra, da pobreza, do gosto, ou da crimina- lidade. A semelhanga do que acontece na endocrinologia, a descoberta de que o factor classe nao é muito importante para certos problemas no deveria constituir causa para qualquer embaracgo — 0 que em si mesmo seré j4 também um avango no conhecimento que temos do fenémeno classe. Por exemplo, num estudo recente sobre a relacdo entre classe e diviséo sexual do trabalho doméstico nos Estados Unidos e na Suécia, e apesar de porfiados esforgos da minha parte no sentido de mostrar que a questao da classe era importante, concluf que em ambos os paises a composi¢ao de classe do agregado tinha muito pouco a ver com a distribuigao das tarefas domésticas entre marido e mulher. Tanto os maridos “yuppies” como os maridos operarios faziam muito pouco em casa. O artigo dai resultante, intitu- lado “Os N&o-Efeitos do Factor Classe sobre a Divisao do Trabalho Sexual em Casa” (Wright, 1992), constitui, espero, um contributo para a andlise de classes, em virtude de ajudar a Clarificar os limites do alcance explicativo do factor classe. A variavel dependente que verdadeiramente mais se distingue dentro do marxismo 6 a da historia, ou, para dizer talvez de uma forma mais exacta, a da trajectoria historica. Na sua forma mais ambiciosa, tratar-se-a da trajectoria temporal global correspondente a historia da humanidade, desde a pré-histéria da civilizagéo humana até ao presente Erik Olin Wright e daqui até ao futuro. Na sua forma mais modesta, sera a trajectéria do desenvolvimento capitalista, desde as suas origens no seio das sociedades feudais pré-capitalistas e passando pelo seu desenvolvimento dinamico até ao colapso final. Em ambos os casos, 0 marxismo procura teorizar as tendéncias intrinsecas do devir histérico que levam este a seguir uma trajectoria particular apontada numa direcgao especitica 4, O terceiro vértice da tradigao marxista — e, em certos aspectos, 0 menos elaborado dos trés — 6 0 marxismo enquanto teoria normativa emancipatoria. Tem havido, na verdade, marxistas — incluindo, aqui e além, o proprio Marx — que negam por inteiro a importancia da teoria moral. Nao obstante, a dimensao emancipatéria do marxismo 6 impor- tante e ajuda a enquadrar muito daquilo que verdadeiramente 6 proprio da andlise marxista de classe e das teorias mar- xistas da historia. O Amago da teoria emancipatéria do marxismo 6 a ideia de que a realizagdo completa da liber- dade, da dignidade e do potencial humanos s6 pode ser alcangada em condigées de “auséncia de classes” — visao esta que 6 a de uma sociedade radicalmente igualitaria em termos de poder e de bem-estar material, onde foi eliminada a explorago, em que a distribuigdo se baseia no principio “a cada um segundo as suas necessidades, de cada um conforme as suas capacidades”, e na qual o controlo sobre 0s recursos produtivos basicos da sociedade cabe & comu- nidade e nao a propriedade privada. Este ideal emancipatorio e igualitario tem sido prosse- guido de muitas e diferentes formas. Umas vezes a énfase recai nos aspectos comunitarios do ideal, outras vezes na questo da auto-realizagao e da liberdade individual, e outras ainda na quest&o do igualitarismo material e do fim da exploragdo. Nas versées mais fortes da viséo marxista emancipatéria, a auséncia de classes é a condigao neces- “'Nostes termos, o marxismo 8, nas suas tentativas de explicar a mudanga histérica, muito mais ambicioso do que a biologia evolucionista darwiniana. Nunca foi intenego de Darwin tratar a trajectéria da historia bloldgica como se nela houvesse uma tendéncla de desenvolvimento particularmente direccionada. A trajectéria resulta da associagao aleatoria entre, por um lado faotores ambientais de cardcter acidental, e por outro leis de adaptagao de natureza universal. O marxismo cldssico, ao invés, sustenta que @ histéria humana em geral — ou pelo menos a histéria do capitalismo ‘am particular — possui uma trajectéria que é relativamente determinada. Neste sentido, a teoria marxista da histéria assemelha-se mais a teoria do desenvolvimento de um organismo singular do que taoria da evolugao. Para uma comparagao sistematica da teoria marxista do materialismo historico com a teoria darwiniana da evolugao bioldgica. v. 0 meu trabalho Reconstructing Marxism, capitulo 8. Analise de Classes, Histéria e Emancipagao sdria e suficiente para a realizagao dos objectivos emancipa- térios. Porém, a maioria dos marxistas contemporaneos assumira uma posi¢ao mais modesta, ao verem a auséncia de classes como condig&o necessaria mas nao suficiente, @ abrindo assim caminho, num projecto de emancipagéio huma- na plena, a que se passe a considerar o papel auténomo do género sexual e de outros aspectos nao relacionadas com a classe. Em qualquer dos casos, o que torna especifica- mente marxista a abordagem marxista destas questoes normativas 6 a vinculagao @ auséncia de classes enquanto condigao necessaria para realizagao destes valores. A politica operaria — ou seja, a organizagao colectiva das forgas sociais em defesa dos interesses da classe operdria — tem tradicionalmente constituido o elo unificador que une os trés vértice do marxismo. A teoria normativa emancipatéria define os valores ultimos de uma politica operdria radical; a teoria da historia traga os objectivos gerais e de longo prazo; € a analise de classes faculta a base para as suas estra- tégias. Se do que se trata é de transformar activamente o mundo e nao apenas de o interpretar, entao aquilo que o marxismo visa é sobretudo usar a andlise de classes como meio de compreender os processos politicos com vista A concretizagao de objectivos emancipatérios que sejam histo~ ricamente possiveis. As interligagdes entre estes vértices fazem parte essen- cial daquilo que é mais caracteristico do marxismo enquanto empreendimento intelectual ®. Considere-se a andlise de classes: 0 que 6 que na andlise marxista das olasses 6 mais distintivamente ‘marxista’? Nao é a ideia de que capitalistas e trabalhadores existem numa relacdo de classe que assenta na propriedade dos meios de produgao e na venda da forga de trabalho, nem tao pouco é a tese de que tal relagdo 6 geradora de desigualdades materiais e de conflitos. Tudo isso 5 Nem todos os marxistas aceitardo esta caracterizagao do “terreno do marxismo”. Alguns marvistas, especialmente aqueles que trabalham em teorizagSes de tradigdo mais hegeliana, levaniarao objecgdes a uma linguagem que fala de “mecanismos”, de *varidveis independentes” e de “dependentes variéveis’. Em vez disso, consideram que os conceltos centrais do marxismo se acham enraizados numa nocao de totalidade que n&o pode ser significa tivamente decomposta em “causes” e “efeitos”. Mesmo assim, no proprio marxismo hegeliano a andlise de classes ocupa um lugar de destaque na ‘conceptualizagao da totalidade, sendo objectivo fulcral da teorizaggo da lotalidade a compreensto do “desenrolar da histéria” a caminho da emanci- apo do proletariado. Pode, por isso, considerar-se que o marxismo hegeliano a todos estes trés vertices, se bem que com uma atitude filosdtica mente ao problema da construeao teérica muito diferente daquela de que me sirvo neste trabalho. gées entre os trés vertices 10 Erik Olin Wright ja se encontra na andlise das classes de Weber. A proprie- dade crucial da andlise marxista das classe que a diferencia da anélise weberiana é a sua ligagdo ao problema normativo da emancipagao de classe e uma teoria da trajectéria historica. A teoria normativa emancipatéria esta directamente implicita num dos conceitos fundamentais da andlise marxista das classes: o de exploragao. A “exploracao” 6, simultanea- mente, um conceito explicativo e um termo dotado de uma carga moral. Enquanto conceito explicativo, “exploragao” pretende identificar um dos mecanismos centrais por meio do qual a estrutura de classe explica 0 conflito de classe. Considera-se que em parte as relacées de classe explicam © conflito porque as classes, mais do que terem simples- mente interesses materiais diferentes que podem eventual- mente entrar em conflito, apresentam interesses materiais que pelo facto de se basearem na exploragao sao intrinse- camente antagénicos. \dentificar tais relagoes de classe como relagdes de exploragéo implica, além disso, um juizo moral sobre as desigualdades geradas no &mbito dessas relagées. Exploragao, aqui, nao define unicamente uma “transferéncia de trabalho" de um grupo social para outro, mas antes uma transferéncia que se considera injusta ou ilegitima. O ideal emancipatério do igualitarismo radical — que pde termo & exploragao de classe — encontra-se, assim, implicito na prépria conceptualizagao da classe. Poder-se-ia, evidentemente, elaborar uma forma de andlise das classes em que o conceito de auséncia de classes constituisse unicamente um ideal normativo de igua- litarismo radical, sem precisar de acreditar na possibilidade de se alcangar esse ideal normativo. Conferir-se-ia assim & andlise de classes uma vantagem moral, mas nao haveria qualquer sugestao de que esta alternativa ao capitalismo era posta activamente pelo proprio capitalismo. E aqui que entra a ligago entre a analise das classes e a teoria da trajectéria histérica. A teoria da histéria procura mostrar que ha, ineren- tes ao capitalismo, tendéncias que propdem o socialismo como alternativa. Tais propostas assumem varias formas, algumas delas altamente deterministas (0 capitalismo acaba necessariamente por se destruir a si proprio por via das suas contradigdes e 6 inevitavelmente superado pelo socialismo), outras apresentando-se como versdes mais brandas, que afirmam que o desenvolvimento do capitalismo apenas coloca a possibilidade do socialismo, tornando porventura essa possibilidade cada vez mais viavel, mas nem por isso Andlise de Classes, Historia © Emancipagéo cada vez mais necessaria. De qualquer das maneiras, esta ligagdo entre andlise das classes, emancipacdo de classe © traject6ria historica afigura-se crucial para aquela que é a forga critica e verdadeiramente caracteristica do marxismo: a analise de classes nao se resume a uma condenacao moral do capitalismo alicergada na sua ligagao a um ideal eman- cipatério; ela 6 também uma critica empirica do capitalismo alicergada na sua prépria constatagéo da produgao histérica de alternativas reais. No marxismo classico, estes trés vértices tedricos refor- gam-se mutuamente de uma forma extremamente estreita. O marxismo enquanto emancipagao de classe identificava a doenga do mundo em presenca. O marxismo enquanto analise de classes fornecia o diagnéstico das causas. E enquanto teoria da trajectéria histérica, tratava de identifi- car a cura. Sem a andlise de classes e sem a teoria da histéria, a critica emancipatéria do capitalismo nao passaria de uma condenagao de ordem moral — aquilo aque Marx desdenhosamente designou por “socialismo utdpico” —; & sem 0 objectivo emancipatorio, a andlise de classes nao passaria de uma mera especialidade académica. Os trés vértices constitulam uma teoria unitaria em que a andlise de classes fornecia os principios explicativos necessdrios © su- ficientes para a teoria da trajectéria historica conducente a um futuro emancipatério. O enorme atractivo do marxismo advinha-Ihe, em parte, da unidade destes trés elementos, pois no seu conjunto eles facultavam uma base aparente- mente firme onde alicergar a convicgao de que a eliminagao das misérias e opressdes do mundo existente nao seria mera fantasia utépica, mas antes um projecto politico praticavel. Nos anos mais recentes, a par de um aprofundamento consideravel da compreensao que temos de cada um destes trés vertices considerados separadamente, tem-se verificado uma erosao gradual da sua unidade e grau de imbricacao. Hoje em dia, sao relativamente poucos os marxistas que ainda acreditam que a andlise de classes pode fornecer, por si s6, um conjunto de causas suficiente para se compreender a trajectéria histérica do capitalismo, e menor ainda 6 o numero daqueles que defendem que esta trajectoria historica de molde a fazer pensar que a probabilidade do socialismo tende intrinsecamente a aumentar na medida do desenvolvi- mento do capitalismo. De um paradigma de ciéncia social englobante e relativamente estanque, que aspirava a explicar todos os fendmenos sociais que se revelassem relevantes 11 12 Erik Olin Wright O actual desafio ao marxismo para uma transtormagdo social de sentido emancipatério, o marxismo evolui presentemente em direcgao a um quadro conceptual mais solto, capaz de dar conta de toda uma série de mecanismos causais especfficos que ajudam a explicar aqueles fenémenos. Este enfraquecimento do grau de integracao das suas componentes tedricas contribuiu para o sentimento de crise intelectual vivido na tradigao marxista. Mas a perda de firmeza da estrutura tedrica do marxismo nao tem que ser lida como sinal do seu colapso iminente; muito pelo contrario, um quadro menos rigido pode abrir novas vias de desen- volvimento tedrico no interior de cada um dos vértices da tradig&o marxista. Tal reconstrugo torna-se particularmente importante dado o clima intelectual criado pelo descalabro das economias de planeamento central que vigoraram sob a direcgao de partidos comunistas. Embora seja defensdvel a ideia de que o descalabro das economias planificadas vem ao encontro das previsdes do marxismo classico, estas grandes mudangas histéricas nao deixam de colocar um desafio aos trés vértices do marxismo. Tanto o ideal emancipatério marxista como a teoria da historia e a andlise marxista das classes dependem, de uma forma ou de outra, do facto de o socialismo se afigurar como alternativa plausivel ao capitalismo. Se o colapso destes fegimes deita por terra os argumentos teéricos aduzidos quanto viabilidade de se transcender a propriedade privada e as relagdes de classe capitalistas, entao estes elementos do marxismo encontram-se, de facto, seriamente ameagados. Embora em si mesmo o descalabro das economias de planeamento central néo prove que nao existem alternativas emancipatérias viaveis para o capitalismo, potencialmente esse colapso vem por em causa quaisquer pretensdes nesse sentido, tornando-as dependentes do diagnéstico que se fizer sobre quais foram exactamente as razoes pelas quais as economias de planeamento central chegaram & crise e a0 impasse a que chegaram. Ja muito antes da actual tentativa de construgéo do capitalismo que os neo-maristas se haviam mostrado bastante criticos em relagao a Unido Soviética. O cerne da critica neo-marxista padrao girava em toro do problema da democracia: na auséncia de democracia merecedora desse nome, nao havia como construir nem manter instituigdes econdmicas de tipo socialista. Assim, muitos neo-marxistas Anélise de Classes, Histéria e Emancipagao Figura 2 Raz6es tradicion: avancadas pelo marxismo a favor do socialismo \ sentiram que uma democratizacao profunda das instituigdes sociais e politicas seria capaz de gerar uma nova viabilidade para 0 projecto socialista, pelo menos num contexto de forgas de produgo altamente desenvolvidas. Mais do que consi- derar que o problema principal residia na auséncia da pro- priedade privada de capital, defendemos que o problema residia, isso sim, na auséncia de democracia operaria. Tanto na Russia como na Europa de Leste quase nin- guém acredita nisto. E 0 que 6 mais, muitos intelectuais radicais do Ocidente que partilham dos valores igualitarios tradicionalmente associados ao marxismo acham-se hoje igualmente cépticos quanto & viabilidade do socialismo demo- cratico, ja para nao falar do comunismo §. Mesmo acreditando que a evidéncia empirica continua a apresentar-se muito ambigua quanto a estas questdes e que 0 socialismo demo- cratico continua a ser uma alternativa desejavel e viavel ao capitalismo, torna-se ainda assim dificil manter os conceitos de socialismo e de comunismo com a mesma certeza que outrora caracterizou o marxismo. Sem estes conceitos, no entanto, é toda a empresa da analise marxista das classes que vacila. O marxismo classico encontrou uma solugao brilhante para o problema de conferir credibilidade ao socialismo enquanto forma de produgdo social: inverteu o problema, @ © Nao se trata aqui do socialismo enquanto projecto pol da sua Viabilidade enquanto altemativa bem sucedida e sustentavel ao capitalismo desenvolvido, debaixo de todas e quaisquer condigées historicas plausiveis. 13 14 Erik Olin Wright procurou provar a inviabilidade do capitalismo a longo prazo. A historia — bastante nossa conhecida, nos termos em que a ilustra a Figura 2 — baseia-se em duas cadeias causais, ambas bem enraizadas na dinamica interna do desenvol- vimento capitalista. Uma cadeia causal vai das contradigdes do desenvolvimento capitalista até & taxa de lucro descen- dente, passando daqui até ao agrilhoamento das forcas de produgao no interior do capitalismo e, consequentemente, a insustentabilidade deste a longo prazo; a outra cadeia causal vai do crescimento da classe operaria até ao crescimento da capacidade em agentes capazes de transformar o capita- lismo. O coincidir destas duas cadeias causais torna dese- jdvel © possivel que se dé uma ruptura do capitalismo. Se esta historia estivesse correcta, nao se tornaria talvez tao importante ter uma teoria positiva de socialismo como alternativa ao capitalismo. Se o capitalismo 6 incapaz de se reproduzir no longo prazo e se surgirem agentes (trabalha- dores) dotados de um interesse claro no controlo democratico da produgao social e de capacidade para tomar o poder, talvez entéo o problema de demonstrar a viabilidade do socialismo possa ser colocado entre paréntesis. Infelizmente, ja nenhuma das duas cadeias causais deste raciocinio parece segura, inclusivamente para muitos dos teéricos que ainda trabalham dentro da tradigao marxista. A tese da irreprodutibilidade do capitalismo a longo prazo — ou seja, a tendéncia enddgena e intrinseca no sentido de crises cada vez mais profundas e por fim catastréficas, enraizadas na diminuigéo da taxa do lucro — 6 sem duivida problomatica, como problematica é também a tese de que o capitalismo produz uma classé de proletarios suficientemente homogénea que Ihe ha-de servir de coveira. Neste contexto, portanto, o fracasso das economias planificadas e 0 facto de muitas pessoas nessas sociedades comegarem a abracar 0 capitalismo é algo que perturba os socialistas democraticos. Muito embora tais sociedades nao fossem socialistas no sentido de os recursos produtivos da sociedade serem controlados democraticamente pelos traba- Ihadores, 0 facto 6 que elas tinham acabado com a proprie- dade capitalista, pelo que 0 seu fracasso é condizente com a tese de que a propriedade privada do capital é essencial com vista a obteng&o de incentivos e a eficiéncia em economias desenvolvidas. O futuro do marxismo enfrenta, assim, dois desafios significativos. Em primeiro lugar, existe o desafio tedrico Anélise de Classes, Histéria e Emancipagao colocado pelos desenvolvimentos registados no ambito da teoria social radical, incluindo a propria tradigao marxista, desenvolvimentos esses que conduziram a uma rejei¢do de vers6es totalizantes do marxismo. Em segundo lugar, existe © desafio politico apresentado pela dramatica evolugao hist6rica vivida nos Ultimos anos, a qual pde em causa a viabilidade de uma teoria critica normativamente estribada no socialismo. Algumas pessoas poderao pensar que estes desafios acabardo, em dltima anélise, por conduzir a uma dissolugaéo do marxismo enquanto tradigao intelectual coe- rente. Existem, sem duvida, vozes, no campo pés-marxista e pds-modemo, que rejeitam toda e qualquer pretensao explicativa da analise das classes com o fundamento de que € epistemologicamente ilegitima, e que sustentam que as tentativas para reconstruir 0 marxismo mais n&o so do que esforgos agonizantes por parte de gente renitente e incapaz de enfrentar os factos. Em minha opiniao ha que resistir a estas vozes de desespero. Se por um lado pode nao haver como regressar as certezas confiantes do marxismo enquanto paradigma englobante de todas as coisas, 6, por outro lado, também verdade que qualquer tentativa séria no sentido de compreender as causas da opressao com vista a potenciar os projectos politicos apostados na eliminagao dessas mesmas causas deve incluir, no seu programa de acgao, a andlise de classes. E para tal, torna-se essencial proceder a uma reconstrug&o do marxismo. De seguida abordarei sumariamente formas de reequa- cionamento possivel das tarefas postas a cada um dos vértices da tradigao marxista, apds 0 que me deterei com mais atengao sobre certos problemas relacionados com a analise de classes. O marxismo enquanto teoria da trajectoria histérica A fungdo central da teoria da trajectoria histérica dentro do marxismo consiste em facultar uma base para a tese segundo a qual o socialismo — e em ultima andlise 0 comu- nismo — nao se ficam por ser apenas ideais morais, sendo antes alternativas empiricamente viaveis ao capitalismo. Se a trajectoria historica foi tomada como explanandum, tal néo se deve a uma sua eventual importancia intrin- seca enquanto objecto de curiosidade intelectual, mas téo somente ao facto de facultar os alicerces para o socialismo cientifico. Reconstrucao dos vértices do marxismo 15 16 Erik Olin Wright Do que se trata, entao, é da questa de saber ge 6 possivel satisfazer esta fungao sem contemplar os problemas levantados pela tentativa de construir uma teoria da histéria to ambiciosa. Apresentam-se como particularmente promis- soras duas derivagdes do modelo tradicional 7. Na primeira, pode deslocar-se o explanandum da trajectdria histérica para a possibilidade hist6rica. Em vez de se tentar explicar a trajectéria global da historia humana ou mesmo a trajectoria do capitalismo em termos de uma sequéncia mais ou menos determinada de estadios, pode revelar-se mais Util centrarmo- nos nos modos como certas condigdes historicas especificas, ora abrem, ora fecham quadros de futuro alternativos. Uma teoria da possibilidade historica poderia evoluir para uma outra teoria, mais forte, das trajectérias histéricas, mas a verdade é que ela nao presume que as sequéncias sigam uma trajectéria Unica, por oposig¢ao a toda uma diversidade de trajectérias possiveis. Quanto 4 segunda, em vez de se entender a variagdo histérica em termos de modos de produ- ¢ao discretos e qualitativamente descontinuos, como acon- tece no marxismo classico, a variagdo historica pode ser analisada em termos de padrées de decomposi¢ao mais complexos e da recombinagao de elementos dos modos de produgao. Consideremos 0 capitalismo @ 0 socialismo. O capitalismo 6 uma sociedade em que os capitalistas detém os meios de produgdo e os trabalhadores possuem a sua forga de traba- tho; 0 socialismo é uma sociedade em que os trabalhadores detém colectivamente os meios de produgao, embora individualmente continuem a possuir a sua forga de trabalho. Nas concepcdes marxistas tradicionais dos meios de produgo vigora apenas uma destas duas situagdes, excepto talvez em perfodos de transig&o instdvel. (Numa sociedade socialista pode, evidentemente, haver ainda vestigios de algumas empresas capitalistas, da mesma forma que numa sociedade capitalista podem existir algumas empresas estatais e inclusivamente empresas que sejam propriedade dos trabalhadores; em todo 0 caso, no entanto, toda e qualquer unidade de produgao seria sempre, ou capitalista, ou socialista). Ha uma conceptualizacao alternativa que encara a cate- goria “propriedade” como sendo constitufda por um conjunto complexo de direitos e de poderes e que acalenta a possi- 7 Para um tratamento alargado destas de outras modificagées do materialismo histérico classico, veja-se Reconstructing Marxism, capitulo 5. Andlise de Classes, Historia e Emancipagéo bilidade de se poder separar esses direitos e poderes, isto 6, a possibilidade de que estes nao formem necessariamente um todo unitario. Dentro de um dado sistema de produgao, certos direitos podem ser socializados, ao passo que outros permanecem privados. Por isso, as empresas podem, a titulo individual, caracterizar-se por uma forma de propriedade mista. Até mesmo nos Estados Unidos, patria por exceléncia de um capitalismo relativamente puro, certos aspectos dos direitos 4 propriedade privada encontram-se parcialmente socializados através, por exemplo,da legislagao relativa a sauide e & seguranga, bem como da protec¢ao ambiental. Uma situagdo deste tipo pode ser designada por “interpene- tragao” de modos de produgéo. Em vez de se considerar a trajectéria histérica do capitalismo, primeiro que tudo, em termos da ruptura capitalismo versus socialismo, esta forma de pensar a estrutura econémica abre a possibilidade a um conjunto muito mais vasto de variag6es entre capitalismos e socialismos, no qual padrdes de interpenetragao diferentes passam a assumir 0 destaque de problema a analisar. Assim, ao analisar-se o desenvolvimento histérico das sociedades capitalistas, a questao fundamental passa a ser a tentativa de teorizar 0 desenvolvimento de diferentes trajectérias (no plural) de tais interpenetragdes dos modos de produgdo. O marxismo enquanto teoria da emancipagao de classe A mudanga, verificada na explicagao da variagao histérica, de uma sequéncia de modos discretos de produgéo para padrdes de interpenetragao de modos de produgao, sugere uma mudanga paralela na“teoria normativa da emancipacao de classe. Em vez de se encarar a “auséncia de classes” como o principio normativo pratico pelo qual se rege a teoria marxista, poderia antes pensar este principio em termos de “menor presenga do factor classe”. Isto implica que em vez de apontarmos para um estado final idealizado devemos, antes, pensar em termos de um processo variavel. Os capitalismos variam quanto ao grau de exploragdo e de desigualdade que caracteriza as suas estruturas de classe na medida em que o sistema de producao seja interpe- netrado por elementos socialistas. Pode restringir-se em maior ou menor grau a propriedade privada de capital através do fortalecimento democratico dos trabalhadores, através do controlo socializado de varias dimensdes dos direitos de propriedade. A auséncia de classes continua ainda a ser uma 17 18 Erik Olin Wright viséo utopica. Contudo, a norma operativa que fornece a base para a critica empirica das instituigoes existentes 6 a reducao do factor classe. Uma énfase na diminuigao do factor classe abro igual- mente caminho a uma variedade muito mais ampla de mode- los tedricos de objectivos emancipatorios praticos. Atentemos em dois exemplos recentes. Uma das propostas para a reforma do Estado providéncia dentro do capitalismo avan- cado consiste em substituir a maior parte dos programas de apoio ao rendimento por aquilo a que se chama um “subsidio de rendimento basico” (“basic income grant”, ou simples- mente BIG), a atribuir sem condigdes ®. A ideia é bastante simples: todo o cidadao recebe um subsidio de subsisténcia no valor do rendimento basico considerado suficiente para um padrao de vida “historica e moralmente digno”, sem por tal facto estar sujeito a condigdo de prestagdéo de qualquer contributo para a sociedade. O subsidio de rendimento basico, a exemplo da concessao de uma instrugdo basica e dos cuidados basicos de satide, é um simples direito de cidadania. A sua concessao quebra efectivamente o elo entre 0 arredamento dos meios de produgao e o arredamento dos meios de subsisténcia que, no capitalismo, constitui a marca definidora da proletarizagao. Na esteira de Marx, os marxistas sempre partiram do principio de que inerentemente ao capita- lismo estava a ideia de que, em virtude de estarem arredados da propriedade dos meios de produgao, os trabalhadores também estariam afastados dos meios de subsisténcia, vendo-se por isso obrigados a trabalhar para ganharem a vida. E isto que se segnifica quando se designam os opera- rios por “proletarids”. Aquilo que a proposta “BIG” pretende conseguir € uma erosao sinificativa do caracter coercivo do capitalismo, ao tornar 0 trabalho muito mais voluntario e ao desproletarizar assim, pelo menos parcialmente, a classe trabalhadora. E ébvio que existem muitas objecgdes possi- veis a este projecto, tanto do ponto de vista ético como do ponto de vista pratico. A questo, aqui, estd em que este tipo de proposta se abre no ambito de uma teoria reconstrufda de emancipacao das classes, a partir do momento em que oO cerne normativo passa a ser entendido, nao exclusivamente © Um ensaio de Robert Van dar Veen e de Philippe Van Paris, publicado ‘om 1986 sob 0 titulo “Uma Via Capitalista para 0 Comunismo", Theory and Society 15, pp.635-55, originou uma controversia particularmente viva sobre {a questo do rendimento minimo. Uma estimulante coleceo de ensaios em que se faz a avallacdo cas questoes normativas e praticas relacionadas com © rendimento minimo é Philippe Van Parijs (org.), Arguing for Basic Income: Eihical Foundations for a Basic Reform,1992. Andalise de Classes, Histéria © Emancipagao em termos de auséncia de classes, mas mais em termos de uma diminuigao do factor classe. Uma segunda ilustragdo dos novos tipos de modelos de objectivos emancipatérios encontra-se representada no controverso trabalho de John Roemer sobre o problema da propriedade publica e o significado da palavra “socialismo”. Roemer afirma que é inconcebivel uma sociedade tecnologi- camente avangada poder funcionar com a minima eficiéncia necessaria quando os mercados de bens de consumo e de capital nao assumem nela um papel de vulto. Dai este autor achar que a ideia do socialismo de planificagao centralizada nao tem qualquer viabilidade. Mas como é que é possivel ter mercados auténticos, especialmente de capital, sem ter propriedade privada? Como é que a ideia de “socialismo de mercado” se pode tornar coerente? A proposta que Roemer apresenta 6, no fundo, muito simples. Em resumo, ela traduz- -se em criar, numa mesma sociedade, dois tipos de dinheiro: dinheiro para a aquisi¢ao de bens de consumo e dinheiro para a aquisigao de direitos de propriedade em empresas (dinheiro-acgSes). Comega-se por distribuir 0 dinheiro-acgdes de forma igual por toda a populagéo adulta, criando-se mecanismos préprios para que os individuos de cada novo grupo de adultos que se venha a constituir possam receber a sua parte per capita do dinheiro-acgdes. Os dois tipos de dinheiro néo sao convertiveis; nao é possivel trocar por dinheiro-acg6es a riqueza que eventualmente se possua em dinheiro destinado a compra de bens. Com isso se impede que pessoas que recebam um saldrio elevado nas respec- tivas profissées se torem proprietarios ricos. E permitido comprar e vender acgdes com dinheiro-acgées, © dai a razéio de existir uma bolsa de valores. As empresas adquirem capital novo através de empréstimos obtidos junto dos bancos, que sao propriedade publica. A ideia aqui exposta apresenta muitos outros pormenores e subtilezas de elaboracaéo, mas essencialmente do que se trata 6 da criagdo de um mecanismo em que seja impossivel as pessoas enriquecerem e tornarem-se proprietarios ricos dos meios de produgdo. A propriedade 6 “socializada” no sentido em que cada pessoa se aproxima da parcela por capita que lhe cabe na propriedade dos meios de produgao @ em que as instituigdes de crédito sao controladas de ma- neira democratica. Quanto ao mais, os mercados funcionam apenas com as formas de regulamentaco que é habitual encontrar-se nas economias capitalistas. 19 20 Erik Olin Wright Sera isto 0 socialismo? Sera que assim se avanga nos objectivos emancipatorios que os socialistas tradicionalmente desde sempre defenderam? Trata-se de questées impor- tantes e controversas. De novo ha que dizer, porém, a semelhanga do que sucede no caso do “BIG”, que modelos deste tipo entram no ambito de uma teoria normativa da emancipagdo das classes a partir do momento em que as nossas preocupagées se deslocam para a ideia de dimi- nuigao do factor classe. O marxismo enquanto andlise das classes Para se compreender as tarefas que uma reconstrugao da andlise das classes tem pela frente, sera util estabelecer uma distingao entre dois entendimentos daquilo que a andlise das classes pode, de forma realista, esperar conseguir. Consideremos 0 problema que é explicar varios aspectos da opressao sexual, como seja por exemplo a divisdo desigual do trabalho no lar. Uma das perspectivas possiveis sustenta que os marxistas deveriam aspirar a uma teoria geral das classes especificamente voltada para a questao do género, que seria portanto também uma teoria das desigualdades entre os dois sexos. Retomando a analogia entre o marxismo e a medicina, tal seria 0 mesmo que propor uma teoria endocrinolégica do cancro que considerasse que as hormo- nas eram o factor mais determinante do cancro. Da mesma maneira, uma teoria das classes aplicada 4 opressdo de um dos sexos implica que o factor classe seja de algum modo entendido como a causa mais profunda ou importante da opressao sexual. Tal nao implica necessariamente que todos 0s aspecios referentes a opresso baseada no género sexual se possam explicar pelo factor classe, mas tao somente que, a um nivel de abstracgao adequado, a classe é capaz de explicar as propriedades mais importantes da opresséo “sexual, A perspectiva alternativa a esta é a de que o marxismo se deveria deter sobre a andlise de classes da opressao sexual sem fazer juizos prévios quanto & viabilidade ou inviabilidade final de uma teoria das classes perfeitamente elaborada. Uma analise de classes implica que se examinem n&o s6 as conexées causais entre classe e género sexual mas também os seus impactos mUtuos em diversas frentes do esforgo explicativo, como sejam as ideologias do género sexual, a pobreza feminina ou a violéncia sexual. Isso implica Historia e Emancipagao um reconhecimento provisério de que os processos relacio- nados com o género sexual se encontram enraizados em mecanismos causais auténomos que se nao podem reduzir ao factor classe, e que a tarefa da andlise das classes consiste em aprofundar 0 nosso entendimento das interac- goes desses mecanismos na explicagao de fenémenos sociais especificos. Note-se que pode bem suceder que, das descobertas que vierem a lume da andlise de classes da opressao sexual, acabe por se tornar possivel construir uma teoria de classe dessa mesma opressdo. Apesar de tal eventualidade parecer pouco provavel, dado 0 nosso conhe- cimento actual destes processos, ela nao esta, no entanto, logicamente excluida. Reconstruir a andlise de classes implica, por isso, que de uma crenga aprioristica no primado do factor classe nas explicagdes do social se passe a uma outra atitude, mais aberta no que se refere a exploracdo da importancia causal daquele factor. Podera parecer que esta forma de tratar a analise de classes relega o factor classe para 0 estatuto de apenas um entre muitos. Sera que isto nado leva a uma espécie de pluralismo causal caracteristico de certas corren- tes da teoria social “pés-moderna”, em que tudo é causa de tudo e em que a nada se confere uma importancia explicativa particular? ° Uma conclusao deste tipo seria aceitavel se aqui tivessemos chegado ha pouco vindo do espago sideral e nunca houvessemos estudado nada acerca da vida social entre os humanos. O que acontece, porém, é que sabemos bastante acerca da vida em sociedade, tanto pela observacao corrente como através da investigagao sistematica, e uma das coisas que sabemos 6 que o factor classe se reveste de uma extrema importancia para a compreensao de muitos fenémenos sociais. A classe é um poderoso factor causal devido ao modo como determina 0 acesso aos recursos materiais, afectando assim 0 uso que fazemos do tempo, os recursos que temos disponiveis para a realizagdo dos nossos interesses pessoais, e a natureza das nossas experiéncias. de vida nas esferas do trabalho e do consumo. O factor classe molda, assim, profundamente, nao so os interesses materiais como também as capacidades de accao. N&o se pretende, com isto, sugerir que a classe é universalmente 0 elemento determinante mais importante de tudo o que 6 social, mas tao somente afirmar que ela 6 presumivelmento ® Ou, no dizer de certas versdes da teoria social pés-modema, nada explica nada e tudo se resume a uma questao de perspectiva, 21 22 Erik Olin Wright importante para um vasto leque de fendmenos. Mais concre- tamente, 0 factor classe revela uma probabilidade para desempenhar um papel especialmente importante na explica- ¢ao das possibilidades da emancipagao humana e dos obstaculos que a esta se colocam, uma vez que, seja pratica- mente qual for a equag&io que se faga do problema, a emancipacao exige que se proceda a reorientagdes de fundo no que respeita ao uso da mais-valia, do tempo, e dos recursos materiais da sociedade. Tais projectos envolvem, Por isso, inevitavelmente e de uma forma central, uma poli- tica de classe — ou seja, lutas politicas em torno de relagées de propriedade e do controlo da mais-valia social. A tarefa central da andlise de classes consiste, entaéo, em conferir uma maior precisdo a estrutura casual dos fendmenos de classe e a relagao entre a classe e outros fenémenos sociais relevantes para os fins normativos do marxismo. Elementos de uma andlise das classes reconstruida © meu trabalho sobre a reconstrugdo da andlise de classes tem girado em torno de um modelo relativamente simples de interligagdes que unem os conceitos centrais & andlise das classes: a estrutura das classes, a formacao das classes € a luta de classes. O modelo encontra-se ilustrado na Figura 3. A ideia basica é que as estruturas de classe impéem limites nao so as formagoes de classe (i.e., a orga- nizagdo colectiva das forgas de classe) como também as lutas de classe, sem contudo constituirem o seu Unico factor determinante; que.as formagdes de classe seleccionam as lutas de classe dentro dos limites impostos pelas estruturas de classe; e que por sua vez as lutas de classe tém impactos transformadores, quer sobre as estruturas de classe, quer sobre as formagées de classe '°. Este modelo nao é pura- mente estrutural, uma vez que as praticas conscientes dos actores — as lutas de classe — transformam as estruturas sociais que limitam essas praticas. Por outro lado, contudo, nao se trata também de um modelo centrado nos agentes, uma vez que se considera que essas lutas se véem sistema- licamente constrangidas pelas estruturas em as pessoas vivem e agem. As estruturas limitam as praticas, mas dentro desses limites as praticas transformam as estruturas. *© Pode considerar-se o modelo representado na Figura 3 0 macromodelo tulcral da andlise de classes. Existe um micromodelo paralelo que liga as posi¢des de classe & consciéncia de classe e as prdlicas de classe dos individuos. Andlise de Classes, Historia e Emancipagao Figura 3 Modelo da estrutura das classes, da formacao das classes e da luta de classes Luta de classes transtoma transforma ‘te selecciona evita Estrutura das classes. © Formapo das classes Este modelo define, quando muito, todo um programa de problemas a resolver. preciso preencher de contetido cada um dos termos, e elaborar mecanismos para cada uma das conexdes nele especificadas. No trabalho que eu proprio tenho desenvolvido acerca destas questdes, a preocupagao principal tem-se centrado sobretudo num dos elementos do modelo: a estrutura das classes. E minha tese que, para se conseguir uma base sdlida com vista a entender a relacao entre a estrutura das classes e a formacao das classe e destas duas com a luta de classes, é necessario, antes de tudo, que tenhamos um conceito coerente de estrutura de classe. JA escrevi também que os conceitos marxistas tradicionais de estrutura de classe enfermavam de dois grandes problemas. Em primeiro lugar, eram demasiado abstractos para muitos dos problemas empiricos. © conceito marxista convencional de estrutura de classe postula classes antagénicas e polarizadas, definidas no quadro de modos de produgao puros — escravos e proprietarios de escravos, senhores e servos, capitalistas e operarios. Contudo, no caso de muitos problemas empiricos concretos muitas das posi- goes na estrutura de classe, e especialmente aquelas um tanto livremente designadas por “classe média”, nao parecem encaixar nessa visdo tao polarizada das classes. Em segundo lugar, os conceitos marxistas tradicionais de estru- tura de classe tendiam para uma dimensdo demasiado “macro”. Descreviam as estruturas globais das sociedades, mas nao as projectavam adequadamente ao nivel das vidas das pessoas individuais. Foi, por isso, meu objectivo criar um conceito marxista de estrutura de classe que ligasse os niveis concretos e “micro” da andlise aos conceitos mais abstractos e de nivel “macro”. 23 24 Erik Olin Wright Paso agora a ilustrar este problema da formagéio de conceitos através de trés quest6es conceptuais especificas: © problema da classe média, 0 problema da (chamada) subclasse e 0 problema das aliangas de classe. A classe média A “classe média” levanta um problema imediato a andlise marxista das classes: se 0 conceito abstracto de estrutura de classe 6, todo ele, construido em tomo da ideia de classes polarizadas, o que é que significa estar no “meio”? Quando, Nos anos 70, comecel a debrugar-me sobre este problema, no existia, em meu entender, nenhuma resposta satisfatoria para esta questao. Propus ent&o um conceito novo, que permitisse lidar com estes tipos de lugar: o de /Jugares contraditérios de classe. A logica subjacente era bastante simples. Todas as tentativas prévias feitas no sentido de resolver o problema levantado pela classe média partiam do pressuposto de que um determinado micro-/ugar situado no interior da estrutura das Classes (lugar esse preenchido por um individuo) tinha forgosamente de estar numa classe e numa Unica apenas. Assim, a classe média era tratada, ora comb se fizesse parte da classe oporaria (sondo portanto uma nova classe operdria), ora como se pertencesse a pequena burguesia (uma nova pequena burguesia), ora ainda como se, por direito proprio, se tralasse de uma classe inteiramente nova (uma classe simultaneamente voltada para actividades liberais e fungdes de gestao). Defendi que nao era necessario aceitar tal pressuposto. Por que no aceitar a possibilidade de algumas posigées de classe — certos trabalhos e profissdes efectivamente desemponhados por pessoas concretas — se acharem situadas am mesmo tempo em mais do que uma classe? Os gestores, por exemplo, poderiam ser considerados como sendo simullaneamente capitalistas e trabalhadores: capitalistas, na medida em que mandavam no trabalho dos operdarios, e trabalhadores na medida em que nao eram detentores dos moios de produgaio © em que vendiam a sua forga de trabalho aos capitalistas. A ideia de lugares contraditérios de classe parecia proporcionar uma solugdo mais coerente para o problema da classe média, solugéo essa que era consistente, quer com © conceito abstracto de polarizagao das classes, quer com as complexidades concretas das estruturas de classe real- mente existentes. Esta abordagom acarretava, porém, uma Anélise de Classes, Histéria © Emancipagao série de problemas conceptuais importantes "!. Esse facto fez com que, em meados dos anos 80, ou apresentasse uma segunda solugo para o problema da classe média. Esta solugéio girava em torno do conceito de “exploragao”. Em tragos gerais, pode definir-se exploragao como sendo um Processo em que um grupo tem a capacidade de se apropriar de parte da mais-valia social produzido por um outro grupo Defendi, entdo, que toda e qualquer sociedade se caracteriza por uma diversidade de mecanismos de exploragao. As sociedades capitalistas nao se limitam a ter formas marcada- mente capitalistas de exploragao assentes na propriedade dosigual dos meios de produgéio, uma vez que encerram também aquilo a que, com base no trabalho de John Roemer, chamei “exploracao pela qualificagao” e “exploragdo pela capacidade de organizagao” (Roemer, 1982). No caso da exploragdo pela qualificagao, os possuidores de certas quali- ficagdes ou capacidades invulgares conseguem incluir nos seus salarios uma renda. Do que se trata, basicamente, 6 de uma componente do salario que se situa acima e para ld dos custos inerentes A produgio e reprodugaéo dessas mesmas capacidades '2. Essa componente corporiza, assim, uma parte da mais-valia social. Na exploragdio pela capacidade de organizago, os gestores tém a possibilidade de se apropri- ar de parle da mais-valia gragas ao poder que detém dentro das estruturas burocraticas da producao capitalista. Usando esta nogao de mecanismos de exploragdo diferenciados, poder-se-ia definir “classe média” como sendo aquelas posigdes no interior da ostrutura das classes que se véem exploradas ao nivel de um dos mecanismos de exploragao mas que a outro nivel surgem como exploradoras. Os em- 11 Os problemas em causa encontram-so tratados em pormenor no capitulo 2 do meu livro Glasses (Wright, 1985). De entre eles, 0 mais impor- tante consistia no facto de, dentro do conceito de “localizagdes contraditorias”, a dominagao supsttulr a exploracdo enquanto cero Cental para as posigoes fe classe *2 Nao 6 facil definir com rigor 0 conceito de “mais valia’. A ideia conven- ional, na tradicao marxista, 6 que o produto social total pode ser dividido em duas partes. Uma delas — 0 produto necessdrio — corresponde a parte Necessdria para cobrir todas os custos da produpao, inclusivamente os custos envolvidos na propria produgéo de trabalhadores (ou “valor da forga de trabalho", como era tradicionalmente designada pelos manxistas). A mais-valia 6, assim, a ciferenca entre o produto total © 0 produto necessério. A dificuldade Gesta definigéo surge quando se tenta definir com preciséo 0 que Sao os “oustos da produgao da forca de trabalho’. Se esses custos forem tomados como equivalentes aos salétios empiricos dos empregados, entéo, por cefini- 0, nenhum empregado pode ser um explorador. Se, no entanto, se consi- Gerar que os saldrios podem potencialmente conter “rendimentos” advindos de varios tpos de odstéculos @ entrada nos mercados de trabalho, os saldrios Poderéo, nesse caso, conter porg6es de mais-valia. 25 26 Erik Olin Wright pregados técnicos e os ligados as actividades liberais, por exemplo, podem ser considerados explorados do ponto de vista capitalista, mas exploradores de qualificagdes especi- ficas. Pode, por isso, dizer-se que eles constituem “posigdes contraditérias dentro das relagdes de exploracao” Ambas as propostas rompem com a ideia de que cada lugar de classe se deve revestir de um cardcter homogéneo, e deste modo elas introduzem uma complexidade concreta bem maior do que era apandgio dos antigos conceitos de “lugar de classe”. A outros titulos, porém, ambas as propos- tas adoptam ainda uma viséo bastante restrita do que significa ocupar um “lugar” de classe. Mais concretamente, ambas definem o lugar de classe em termos estaticos @ testringem este conceito ao emprego ou ocupagéio. Para se chegar a um micro-conceito perfeitamente desenvolvido e elaborado de como a vida de cada individuo se liga as estruturas de classe, ha que romper com estas restrigdes, para o que se deve desenvolver a ideia de posicdes de classe mediadas e de posigdes de classe temporaimente situadas "3. conesito de lugar de classe mediada reconhece que as. pessoas se acham ligadas a estrutura de classe através de telagdes sociais que nao os seus “empregos” imediatos. As pessoas vivem em familias, e por via das suas relagdes sociais com os respectivos cénjuges, pais e outros membros da familia, podem estar ligadas a diferentes capacidades e interesses de classe. Este problema é particularmente relevante no caso dos agregados familiares em que marido © mulher, participando embora ambos da forca de trabalho, podem, no ontanto, ocupar profissdes de classes diferentes. Uma professora casada com um executivo tem um lugar de classe “mediado” que 6 diferente do de uma professora casada com um operdrio fabril. No caso de certas categorias de pessoas — as donas de casa e as criangas, por exem- plo —, as posigées de classe mediadas podem ser 0 modo decisivo.como as suas vidas se ligam ao factor classe. Ja para outras pessoas, as posigdes de classe mediadas podem ser menos relevantes. Em qualquer dos casos, a diversidade de padrées assumida pelas posigées de classe mediadas 6, potencialmente, uma forma importante de variagdo das estru- turas de classe. 18 Para um tratamento mais alargado dos conceitos de posicao de classe mediada e temporalmente sityada, v. 0 meu artigo (cap? 8 de Wright ot al, 1989) “Rethinking, Once Again, the Concept of Class Structure’. Analise de Classes, Historia e Emancipacao Os lugares de classe temporalmente situados tém a ver com 0 facto de muitas profissdes e empregos se incrustar- em em trajectorias de carreiras que implicam, de varias for- mas, alteragdes da natureza das classes. Muitos gestores, por exemplo, comegam como empregados ligados a tarefas que nao tém a ver com a administragaéo. Mas o facto de se encontrarem na calha de uma carreira de administragao allera os interesses de classe associados ao seu lugar, que é um lugar estaticamente definido. Mais ainda, muitos empregados pertencentes a classe média tém no seu salario uma renda (i.e., proventos acima daquilo que é necessario para a reprodugao a sua forga de trabalho) de tal ordem elevada que lhes permite converter em capital uma parte significativa das suas poupangas, através de varios tipos de investimento. Uma tal capitalizagao das rendas do emprego constitui, em si, um tipo especial de dimensdo temporal para as posigdes de classe, uma vez que permite que os empregados pertencentes a classe média, quando muito bem Pagos, acabem, com o passar do tempo, por associar directa- mente os seus interesses de classe aos interesses da bur- guesia. Nao quer isto dizer que estes se tornam capitalistas, mas sim que o seu lugar de classe assume, com o tempo, um caracter cada vez mais capitalista. Todas estas complexidades s&o tentativas de definir de forma sistematica, e de maneiras que enriquegam 0 modelo geral de determinagao representado na Figura 3, as ligagdes existentes entre as vidas das pessoas concretas e a estrutura de classe. Nesse modelo, considera-se que as estruturas de classe impéem limites ao processo da formagao de classes. Esta limitagdo pode ocorrer através de dois mecanismos bdsicos: no primeiro, as estruturas de classe moldam os interesses materiais dos individuos, tomando assim mais ou menos dificil agrupar certos conjuntos de posig6es de classe segundo organiza¢ées colectivas; e no segundo, as estru- turas de classe moldam o acesso aos recursos materiais, afectando desse modo os tipos de recursos passiveis de ser brandidos pelas organizagées colectivas no interior das lutas de classes. Tanto os conceitos de classe média propostos como os conceitos de posi¢des de classe mediadas e de posigdes de classe temporalmente situadas visam a obtengao de um mapa mais exacto e nitido da natureza dos interesses materiais e dos recursos a que os individuos tém acesso por virtude da sua ligacao a estrutura das classes, facilitando desse modo a analise do processo de formacao das classes. aT 28 Erik Olin Wright A subclasse Um segundo problema que a andlise das estruturas de classe levanta e que assumiu particular importéncia nos Ultimos anos é a questo da “subclasse”. O conceito foi Popularizado pela obra de William Julius Wilson sobre a interconexdo entre raga e classe na sociedade americana (Wilson, 1982; 1987). Wilson afirma que, tendo os obstaculos juridicos & igualdade racial desaparecido e tendo, por outro lado, aumentado as diferenciagdes de classe entre a popu- lag&o negra, a estrutura determinante fundamental das vidas de muitos afro-americanos deixou de ser a raga enquanto tal para passar a ser a classe. Mais especificamente, sustenta este autor que se tem assistido a um crescimento substan- cial daquilo a que se pode chamar uma subclasso urbana constituida por pessoas sem qualquer qualificagdo vendavel no mercado, pessoas essas com ligagdes muito ténues & forga de trabalho e que vivem nas zonas degradadas dos centros das cidades, arredadas do curso maioritario da vida e das instituigses americanas. Como conferir a este conceito alguma precisdo, no quadro de uma analise marxista de classe reconstruida? Uma das estratégias para 0 conseguir consiste em introduzir uma distingdo entre aquilo que podemos designar por opressdo econémica nao-exploradora e opressdo econdémica explora- dora (ou simplesmente “exploragao’). Para chegar a esta distingao, torna-se primeiramente necessario definir 0 con- ceito geral de opressao econémica. Numa primeira aproxima- Gao, pode definir-se “opressio econdémica” como sendo aquela situagao em que (a) o bem estar material de um grupo de pessoas esta relacionado de forma causal com as privagdes materiais de um outro, ¢ (b) em que essa relagdo causal implica uma coagao moralmente condendvel. Estamos perante uma definicao bastante complexa. Sem o critério (b) dir-se-ia que quem perde a um jogo de poker pode ser considerado “oprimido”. E sem o critério (a), 0 que temos 6 uma exclusao gratuita do ponto de vista econémico — o excluir alguém do acesso a determinados recursos sem que com isso advenham beneficios materiais para ninguém. “Opressao econémica” é, assim, uma situagaéo em que os beneficios materiais de um grupo sao adquiridos a custa de um outro, @ em que a coagao injusta 6 um elemento essen- cial do processo que 0 permite. Como 6 dbvio, a introdugao da clausula (b) faz com que os juizos formulados acerca da Analise de Classes, Histéria e Emancipagao natureza opressora de uma qualquer desigualdade especifi- ca se tornem altamente discutiveis, dado que de um modo geral subsistira sempre polémica quanto a justeza moral das exclusées que servem de suporte as desigualdades em questao 14. Definida nestes termos, a opresséo econémica pode assumir muitas formas. A distingao entre opressao econé- mica exploradora © ndo-exploradora reveste-se de particular relevancia para a andlise das classes. A exploragdo econd- mica é uma forma especifica de opresséo econémica carac- terizada por um tipo especial de mecanismo através do qual © bem-estar dos exploradores se prende com as privagdes dos explorados através de uma relacao de causalidade. Na exploragao, o bem-estar material dos exploradores depende causalmente da capacidade destes para se apropriarem do fruto do trabalho dos explorados. O bem-estar do explorador depende, por conseguinte, do esforgo do explorado, e nao apenas das privagées por este sofridas. Numa opressao econémica de tipo nao-explorador, nao se verifica qualquer transferéncia do fruto do trabalho do oprimido para o opres- sor; 0 bem-estar do opressor depende, nao do esforgo do oprimido, mas antes da exclusdo deste no que se refere ao acesso a certos recursos. Em ambas as situagoes, as desi- gualdades em questao entroncam na propriedade e no controlo dos recursos produtivos. A diferenga crucial entre exploragao e opressao nao- -exploradora consiste em que, numa relagao de exploracao, os exploradores precisam dos explorados, os exploradores dependem do esforco dos explorados. No caso de opressao nao-exploradora, os opressores dar-se-iam por felizes se os oprimidos pura e simplesmente desaparecessem. A vida teria ‘argumentar que o critério (b) no traduz de maneira suficientemente forte aquilo que habitualmente se diz ser uma relaczo ‘econémica opressora. O termo opressao implica garalmente mais do que uma lesigualdade moraimente ilegitima, sugerindo antes uma desigualdade que implica também algum tipo da relacao de poder entre 0 opressor @ 0 oprimido. O ludibrio numa troca econémica (ou mesmo a batola num jogo de poker) poderd, de acordo com algumas interpretagdes de (b), ser considerado uma forma de opresséo, uma vez que tem como resultado que as vitimas do engano se velam excluidas dos recursos econdmicos. No entanto, apesar de ser, por certo, moraimente ilegitimo na maior parte das circunstancias, 0 ludibrio, nao sera considerado, em geral, como uma forma de oprassao, uma vez que no existe necessariamente nonhuma relag3o de podor de dominagzo nem de subordinagao entre quem engana e quem é enganado. Para reforcar (b) poder-se-4 aduzir como critério adicional a ideia de que a exclusdo em questdo seja apciada pela coagdo, sobretudo sob a forma de protecgdo dos direitos de propriedade. Em todo 0 caso, para os objectivos vertentes nao precisamos de afinar esta definigao, porquanto o principal é conferir alguma claraza 2 distingo entre explorapao e oprassao ndo-exploradora. 29

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