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4. Areétles no sala Enrico Bert 4: Ae rates de Arittales Barco Bert MICHEL FOUCAULT i Gj. 4-5L A ORDEM DO DISCURSO ‘Aura nuvounat No Couttcr pe France, ‘RonuNcuDa 532 pe nezexano DE 1970 ‘Tradugdo: Laura Fraga de Almeida Sampaio Dightalzado com CamScanner “Taal enit: be de deers Legnaro Calg de oct owt le? deni 1970 (© Fracine Fach ¢ Dens Fou, Pate iodo ma rane pr Eons Glia a 1971 ako de exo Mare Joe Martone Indic eters Prt De Sma Tomes Macha EaigSea Loyola Rue 1622 a” 347 — Ipiranga ‘btz1-000 Sto Paulo, SP Ceiea Postal 42:35 ‘200.070 Sto Poul, SP ene (ei) 6914-1922 Fer Oi 61634275, ere page « vendas:woleyeacom br ‘omal leyolsbm.net ‘ades dries resend. Nena pre dea sho ‘oder reproduce ou tran po qatar oma ‘fos qutquer mie rnc meri, clade [otocspiaerovopa) ou rqised em gulgur sted (Banco de dador sem pemirso wad Bator ISBN; €6:15.01359:2 5 ebighreetembro do 1069 (© EDIGOES LOYOLA, Sto Paslo, Bras, 1998 xia de ein sub ep- fete ne dass fue dr f nunca nos qe deer pont Se es deo Ao vs dt rare ali ga de eval pot dhe leno tem len de to comero ponivel, Gora depeche que mo fen dear a sem none me pe cea to to ster, es, oe fends prope ase, me a Jum sem set peta, m seus ea Gir como se dh me howese dado om Si, mamendose or um isan pens Ni ei pram, come‘e ‘ou d For Pot mao de hori, ces pa ‘ops om enarads« moet win, Eos sagen arm a poder nei, Dightalzado com Camscanner vvez de ser aquele de quem parte o discurso, ex seta, antes, 2 acaso de seu desenrolar, ‘uma estrita lacuna, 0 ponto de seu desapa- recimento possivel, Gostaria de ter ats de mim (tendo tomado a palavra ha muito tempo, duplt ‘ando de antemo tudo 0 que vou dizer) uma vor que dssste:“E preciso continuar, ‘eundo posso continua, € preciso continua, € preciso pronunciar palavrasenquanto as ha, € preciso diztlas até que elas me en- conttem, até que me digam — estanho castigo, strana faa, € preciso continar, tavez ja tena acontecid, talverjé me t sham dito, talvez me tenham levad 29 li- rar de minha hiséia dant da porta que se abre sobre minha historia, eu me surpe- endera se ela se abrisse. ‘Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de mio ter de comegar, sum desejo de se encontrar, ogo de entrada, o outro lado do discurso, sem ter de con- siderar do exterior 0 que ele poderia ter de singular, de terivel, talvez de maléfico. A ‘ssh aspiragao to comum, a instituigdores- ponde de modo ironico; pois que torna os comecs solenes, cerca-os de um cfrculo de atengio e de silencio, ¢ thes impde formas situalizadas, como para sinalizi-los a dis- vancia 0 desejo diz: “Eu nfo queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que'tem de categérico e decisivo; gostaria que fosse 0 men redor como uma transparencia cal- ‘ma, profunda, indefinidamente aberta, em que 5 outros respondessem a minha ex: pectativa, e de onde as verdades se clevas- Sem, uma 2 uma; eu nlo teria senso de me deixar levar, nela e por ela, como um des- twogo feliz". Ea instituigo responde: “Voce ‘nfo tem por que temer comegar; estamos todos af para The mostrar que o discurso «std na ordem das les; que hé muito tempo se cuida de sua aparicio; que Ihe fot prepa- ‘ado um lugar que o honra mas o desarma; © que, se Ihe ocorre ter algum poder, ¢ de nbs, s6 de nds, que ele The adver ‘Mas pode ser que essa insttuighoe esse desejo nto sejam outra coisa endo duas ré- Dightalzado com CamScannee plicas opostas a uma mesma inquietago: Iinquietacto diante do que ¢ o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada (0 eserita;inquietagio diane dessa existe ia transitoria destnada ase apagae sem di- vida, mas segundo uma duraglo que no nos perience; inquictagao de sentir sob essa atividade, todavia coudiana e cinzenta, po eres perigos que mal se imagina;inqule tagio de supor lutas, vitrias, ferimentos, dominacbes, servidees, através de tants pa. lavras eujo uso ha tanto tempo redusiu as asperidades. ‘Mas, 0 que ha, enfim, de to perigaso no fato de as pessoas falarem e de seus dis- ‘cursos prolferarem indefinidamente? Onde, final, estd 0 perigo? Eis a hipotese que gostaria de apresen- tar esta noite, para fixar 6 lugar — ou tal- vez 0 teatro muito provisdrio — do taba- Tho que faco: suponho que em toda socie- dade a produgio do dlseurso ¢ a0 mesmo tempo controlada, selecionada, organizada « redistribuida por certo mimero de proce dimentos que tem por funcio conjurar seus poderes e perigos, dominar sew aconteci- mento aleatorio, esquivar sua pesada e te- rmivel maerialidade. [Em uma sociedade como a nossa, co- nhecemos, ¢ certo, procedimentos de exclue sao. O mais evidente, 0 mats familiar tam- bém,é 2 interdico, Sabe-se bem que nao se tem o dieito de dizer udo, que nao se pode falar de tudo em qualquer circunstincia, que qualquer um, enfim, nto pode falar de qual- quer coisa. Tabu do objeto, ritual da cir- cunstinca, direito privilegiado ou exelusi- vo do sujeito que fala: temos af o jogo de ues tipos de interdigoes que se eruzam, se reforgam ou se compensam,formando uma grade complexa que nao eessa de se modi- ficar. Notaia apenas que, em nossos dias, as epides onde a grade € mais cerrada, onde (65 buracos negros se muliplicam, sto as regides da sexualidade e as da politica: como se 0 discurso, longe de ser esse elemento ‘ransparente ou neutro no qual a sexualida- Dightalzado com Camscanner de se desarma ea politica se pacific, fosse tum dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temiveis poderes. Por mais que o discutso seja apa rentemente bem pouca coisa, a interdigbes que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligagdo com o desejo e com 0 poder. Nisto nlo hi nada de espantoso, visto que 0 discurso — como a psieanlise nos mos- trou — no ¢ simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) 0 deseo; é, também, aquilo que € objeto do deseo; e visto que — isto a historia nao cessa de nos ensinar 0 discurso nio é simplesmente aquilo ‘que taduz as luas ou os sistemas de domi- rnagao, mas aquilo por que, pelo que se uta, © poder do qual nos queremos apoderst. EExiste em nossa sociedade outro prin- cipio. de exclusio: nfo mais a interdcto, mas uma separagio € uma rejeigdo. Penso tna oposicio raxio € loucura. Desde a alta ade Média, olouco ¢ aquele cujo dscurso into pode cizcular como o dos outros: pode ‘corer que sua palavra seja considerada nla endo sea acolhida, nao tendo verdade 0 nem importinca, na podendotetemunhar na justca,ndo podendo autenicar um ato, ou um conte, no podendo nem mesmo, no sactificio da misa,permiir a ansubs- tanciagdo fazer do pio um corpo; pode corer também, em contapanida, que se the auribua, por oposilo a todas as ous, cstranhos poderes,o de dizer uma verdade escondida, 0 de pronunciar 0 futuro, © de nxergar com toda ingenuidade aquil que a sabedria ds ours no pode perceber curioso consatar que durante séculos na Europa a palava do louco nto ea ouvida, ou eno, se era ouvda, ea eseutada como uma palava de verdade. Ox cata no nada —teeitada to logo profrida; ou eno nla se decirava uma ras ingen ou astuciosa, uma razto mais azdvel do que a das pes soas razodves. De qualquer modo, excuida ou steretamente investi pela ao, no sen ldo restito, da ao exist. Era através de suas plas que se econheca@loucura do louco; eas erm o lgar onde se exeria separacio; mas nio eram nunca recolhidas nem estas Jamas, antes do fim do sécu- lo XVII, um médicoteve aida de saber 0 un Digtalzado com CanSeanner {que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fara a diferenca. Todo este imenso discurso do louco retornava a0 ruido; a palavra so Ihe era dada simbolica- ‘mente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciiado, visto que represen: tava ato papel de verdade mascarada Dir-se-4 que, hoje, tudo isso acabou ov ‘esta em vias de desaparecer; que a palavra do louco nio esta mais do outro lado da separagio; que ela nao é mais mula e nto. -aceta; que, 20 contrario, ela nos leva es preita; que nds af buscamos um sentido, ‘ou o eshoco ou as ruinas de uma obra; € {que chegamos a surpreendé-La, essa palavra do Jouco, naquilo que nés mesmos atcul ‘mos, no distirbio mimisculo por onde 29 lo que dizemos nos escapa. Mas tanta aten- ‘¢40 nao prova que a velha separagio nao voga mais; basta pensar em todo o aparato de saber mediante © qual deciftamos essa palavea; basta pensar em toda a rede de Insuituigdes que permite a alguém — médi- co, psicanalista — escutar essa palavra e que permite ao mesmo tempo 20 paciente vir 2 teazer, ou desesperadamente reter, 5u25 po bres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a separacio,longe de estar apa- ada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas, por meio de novas institu des € com efeites que ndo sto de modo gum os mesmos. E mesmo que o papel do, médico no fosse sendo prestar ouvido a tuma palava enfim live, 6 sempre na ms- rutengao da cesura que a escuta se exerce. Escuta de um discurso que € investido pelo desejo, € que se eré — para sua maior cexaltagao ou maior angistia — carregado de teriveis poderes. Se €necesstioosilén- cio da rato para curares monstrs, basta que o silencio esteja alert, eis que a se- paragio peemanece “Talver sejaariscado considerar a opo- sigdo do verdadeiro e do falso como um tercero sistema de exclusio, ao lado daque- les de que acabo de falar. Como se poderia rzoavelmente comparar a fora. da verdade com separages como aque, separagbes que, de sada, sto arbiaras, ou que, 20 menos, se orgunizam em tomo de contngencias his- B Dightalzado com Camscanner torcas; que nao sto apenas modifesves, mas «sito em perpévo deslocamento; que sto susteniadas_por todo um sistema de insti- es que as impoem e reconduzemy enfim, que no se exercem sem presto, nem sem ao ‘menos uma parte de violencia Certamente, se nos situamos no nivel de uma proposicio, no interior de um dis- ‘curso, a separagio entre o verdadeito e 0 falso ndo ¢ nem arbitréria, nem modificavel, nem institucional, nem ‘violenta, Mas se nos situamos em outra escala, se levanta: ‘mos a questio de saber qual fol, qual é constantemente, através de nossos discur- 0s, essa vontade de verdade que atravessout tantos séculos de nossa historiaou qual é, fem sua forma muito gerl, 0 tipo de sepa raglo que rege nossa vontade de saber, en Uo € talvez algo como um sistema de ex: clusto (sistema histrieo, instcucionalmen- te constrangedor) que vemos desenharse. Separacio historicamente constiuida, com certeza. Porque, ainda nos poetas gre: 05 do século VI, 0 discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado do terma —, 4 o discurso verdadero pelo qual se inka res- peito¢ teror, aquele ao qual era preciso submeterse, porque ele reinava, er 0 dis curso pronunciado por quem de direto conforme o ritual requeido; era o discurso ‘que pronunciava a justia e atribuia a cada qual sua parte; era 0 dscurso que, profeti- zando 0 futuro, nZo somente anunciava © ‘que ia se passar, mas contribula para a sua realizaeao, suscitava a adesto dos homens € se tramava assim com o destino. Ora, cis aque urn século mais tarde, a verdade a mais elevada jd ndo residia mais no que era 0 discurso, ou no que ele fia, mas residia no que cle dia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, ef- ca ¢ justo, de enunciago, para 0 proprio ‘nunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relagio a sua referencia. Entre Hesodo e Platdo uma cera dvisto se esta beleceu, separando o discuso verdadeiro © discuto falso;separagto nova visto que, doravante, o dscurso verdadeio no ¢ mais © discurso precioso e desetve,visto.que ‘lo € mais o discurso ligado a0 exercicio do poder. O sofisa € enxotado. 1s Dightalzado com Camscanner Essa diviso historia dew sem davida sua forma geral & nossa vontade de saber. Mas nio cessou, contudo, de se deslocar: 2 grandes mutagSes cientificas podem talvez ser lias, as vezes, como consequencias de ‘uma descoberta, mas podem também ser lidas como a aparigio de novas formas na vontade de verdade, Ha, sem duvida, uma vontade de verdade no século XIX que nto coincide nem peas formas ue poe em jogo, rem pelos dominios de objeto aos quais se dirige, ner pelastécnicas sobre as quais apoia, com a vontade de saber que caracte- rza a cultura clissca. Voltemos um pouco tris: por volia do século XVI ¢ do século XVII (na Inglaterra sobretudo), aparece ‘uma vontade de saber que, antecipand-se 4 seus contedidos atuats, desenava plans de objetos possveis, observives, mensurd> veis, classfiedveis; uma vontade de saber que impunha a0 sujito cognoscente (e de certa forma antes de qualquer experiénci) certa posigio, certo olhar ¢ cera funio (ver, em vez dele, verficar, em ver de eo rmentar); uma voutade de saber que pres- ccrevia (¢ de um modo mais geral do que 6 qualquer instrumento determinado) o nivel téenico do qual deveriam investir-se 05 co- nhectmentos para serem verificveis € utes Tudo se passa como se, a partir da grande diviso platonic, a vontade de verdade t- vesse sua propria histéria, que no é a das verdades que constrangem: historia ds pla- nos de objetos a conecer, historia das fun- 60es ¢ posicdes do sujeito cognoscente,his- {oria dos investimentos materais, técnicos, Insirumentais do conhecimento, (Ora, essa vontade de verdade, como os ‘outros sistemas de exclusio, apoia-se sobre lum suport institucional: € a0 mesmo tem- po reforeads e reconduaida por todo um ompacto conjunto de priticas como a pe- dagogia, ¢ claro, como o sistema dos livros, a edicdo, das biblioecas, como as socieda- des de sabios outrora, os laboratotios hoje Mas ela € mbém recondusida, mais pro- fandamente sem divida, pelo modo como © saber € apicado em uma sociedade, como Evalofizado,disribuido, repartido ede certo ‘modo atrbutdo. Recordemos aqui, apenas a Utulo simbéico, o velho principio grego: " Dightalzado com Camscannee ue a aritmetica pode bem ser o assunto das cidades democrticas, pois ela ensina as relagdes de igualdade, mas somente a geome- tria deve ser ensinada mas oligarquiss, pois demonstra as proporgdes na desigualdade. Enfim, erio que essa vontade de ver dade assim apoiada sobre um suportee uma distibuilo institucional tende a exercer sobre os outros discursos — estou sempre falando de nossa Sociedade — uma espécie de pressio e como que um poder de coer Go. Penso na mancira como a literatura ‘cident teve de busear apoio, durante st clos, no natural, no verossinil, ma sincer- dade, na ciéncia também — em suma, 20 Aiscurso verdadero. Penso, igualmente, na maneira como as pritcas econdmicas, c- difieadas como precitos ou teeitss,even- tualmente come moral, procuraram, desde o stculo XVI, fundamentarse,racionaliar “see justfcar-e a partir de uma teora das Tiquezas e da producio; penso ainda na ‘maneira como um coajunto to prescritivo Gquanto o sistema penal procurou seus s0- portes ou sua justificacz, primeira, € certo, 18 en Dightalzado com CamScanner fem uma teoria do dicito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociologico, psicol6gico, médico, psiquitrico: como se 4 propria palavta da lei nao pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senso ppor um discurso de verdade, Dos trés grandes sistemas de exclusio que atingem 0 discurso, a palavea proibida, 4 segregacdo da loucura e a vontade de verdade, foi do terceiro que falei mais lon- sgamente. E que, ha séculos, os primeicos ‘nfo cessaram de orientar-se em sua ditecto: que, cada vez mais, oterceito procura reto- ‘md-los, por sua propria conta para, ao mes- ‘mo tempo, modificé-los e fundamenté-los; € que, se 0s dois primeires nao cessam de se tomar mals frigeis, mais incertos na ‘medida em que sto agora atravessados pela vontade de verdade, est, em contrapartida, no cessa de se reforgar, de se tomar mais profunda € mais incontomdvel, E, contudo, € dela sem duivida que ‘menos se fala. Como se para n6s a vontade

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