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aaa Estudos Teol6gicos foi licenciado com uma Licenca Creative Commons ~ Atribuigdo — NaoComercial - SemDerivados 3.0 Nao Adaptada http./(dx doi. org/10.22351/etv59i2.3780 METODO HISTORICO-CRITICO: UM OLHAR EM PERSPECTIVA! Historical-Critical Method yesterday and today Flavio Schmi Resumo: A origem do método historico-critico esté diretamente ligada a leitura cientifica da Biblia, Nao obstante a leitura cientifica da Biblia praticada, especialmente nos centros de formactio académica, existem intimeras outras formas de lidar com um texto biblico, inclu- sive na perspectiva cientifica, Contudo, uma certa pretensdo de hegemonia tem colocado 0 método histérico-critico no centro de intimeras polémicas, desde a relativizagaio do objeto com 0 qual 0 método se ocupa, passando pelo distanciamento provocado com a realidade eclesial, até a acusaso de ateismo. Usuarios do método histérico-critico o entendem como cientifico, racional e académico. Criticos o apontam como modemo, liberal e profano. Em- bora 0 locus privilegiado do método seja a academia ¢ os centros de pesquisa biblica, os aportes do método pretendem estar a servigo da igreja e de sua causa. Este artigo discute aspectos relacionados com 0 método histérico-critico e sua compreensto. Primeitamente investiga a origem e o desenvolvimento do método. Na sequéncia discute algumas caracte- risticas do mesmo. Por fim, aponta elementos a serem considerados na compreensdo e em- prego do método, Trata-se de um trabalho de revisto bibliografica, que tem como objetivo contribuir na discussao acerca do instrumental de estudo e interpretagao da Biblia. Palavras-chave: Método histérico-critico. Exegese, Biblia. Ciéncia. Abstract: The beginning of the Historical-Critical Method is directly linked to is di- rectly linked to the scientific reading of the Bible, Notwithstanding the scientific read- ing of the Bible practiced, especially in academic training centers, there are countless other ways to deal with a biblical text, even from the scientific perspective. However, a certain claim to hegemony has placed the Historical-Critical Method in the center of the target of countless controversies, since object relativization of the object with ‘which the method deals, passing through the distancing caused by ecclesial reality, even the accusation of atheism. Users of the Historical-Critical Method understand it as scientific, rational and academic. Critics point him out as modem, liberal and profane. Although the privileged locus of the method be the academy and the biblical research centers, the contributions of the method are intended to be of service to the Churel and her cause. This article discusses aspects related to the Historical-Critical Method and its comprehension. First investigate the origin and development of the method. Following lle lelelololelots) © artigo foi recebido em 22 de agosto de 2019 ¢ aprovado em 03 de outubro de 2019 com base nas avaliagdes dos pareceristas ad hc. > Doutor. Faculdades EST, Sto Leopoldo, RS. E-mail: Flavio@est.edu.br Flavio Schmitt Jf) discusses some of the features of it. Finally. it points out elements to be considered in Jf) Understanding and use of the method. This is a bibliographie review work which aims to contribute to the discussion about the tools of Bible study and interpretation. ‘Keywords: Historical-Critical Method. Exegesis. Bible. Science. Cc ke Introdugao ‘Muitas ¢ variadas tém sido as ctiticas desferidas contra 0 método historico- -critico.) Também nao é de hoje que essas criticas se fazem sentir. Também nao é sem. razio que, de diferentes frentes, as criticas estejam sendo desferidas. Por isso nao ha como deixar de falar de um método critico sem critica. A critica é inerente ao método. Talvez por isso mesmo os usuarios do método se sintam to confortaveis com as cri- ticas que lhes so dirigidas. Contudo, nem tudo esta resolvido ao se admitir que a critica rima com método histético-critico. Pelo contririo, ao admitir a critica como uma questao inerente a0 método, um largo caminho se abre A discussiio. Longe de juizos apressados, uma cri- tica ao método exige, no minimo, uma familiaridade com suas origens e as pretensbes de seus idealizadores e os objetivos que pretende alcancar. Nao se trata de ser contra ou a favor do que hoje se entende por método histo- rico-critico. Também nao é uma questéo que possa ser resolvida com preferéncias ou categorias subjetivas, por mais subjetivas que sempre sejam as op¢des humanas. Para além de paixdes e genitivos, o método histérico-critico é um convite a refiexao, a0 discernimento do que humanamente ¢ possivel conceber em termos de interpretaco, compreensio ¢ sentido da vida, e dos textos biblicos que lhe dao sustentacao. O método histérico-critico tem sido definido como um metodo exegético. E um método usado na anélise diacrénica da Biblia. Esta a servico do estudo e da inter- pretacao da Biblia e do fazer teolégico dela decorrente ‘Uma das experiéncias humanas mais degradantes para uma pessoa é ser en- ganada por uma religidio. Por serem portadoras de valores e sentidos tiltimos da vida, espera-se que as religides nao falem. Na mensagem que veiculam sao depositadas algumas das crengas ¢ valores mais nobres que um ser humano pode alimentar. Ainda que possa haver unanimidade em tomo dessa questao, o desafio maior, no entanto, esta em como proceder para que, seja de forma involuntaria ou intencional, as religides nao enganem, nao transmitam algo que nao possam sustentar a partir de seus textos. > Fitamyerrelaciona vérios artigos e livros em diferentes linguas que atacam o método histérico-critieo. CE FITZMYER. Joseph A. 4 interpretacdo da Escritura: em defesa do método histérico-critico. S40 Paulo: Loyola, 2011. p. 73. A esse jA considerdvel volume de textos podem ser acrescentados ainda os artigos de Augusto Nicodemos Lopes (LOPES, Augustus Nicodemus, O Dilema do método historico-critico na Interptetagao Biblica, Fides Reformata, Sao Paulo, ano X, n. 1, p. 115-138, 2005) e Joao Oliveira Ramos Neto (NETO, Jodo Oliveira Ramos. Os Problemas ¢ 05 Limites do Método Histérico-Critico. Theos, ‘Campinas, 6.ed., v5, 1. 2, p. 1-12, dezembro de 2009), Estudos Teoldgicos | Sao Leopoldo | v. $9 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Método histérico-critico: um olhar em perspectiva Ao chegar ao terreno da credibilidade, nao obstante todos os limites ¢ limita- Ges inerentes a esse esforco, nao ha como deixar de reconhecer o papel desempenha- do pela histéria, por mais ambigua e contraditéria que possa ser seu legado, especial- mente quando apreciado em retrospectiva ¢ num passado distante. Ao situar o papel ow relevaneia da historia para o estabelecimento de um certo nivel de seguranga na inseguranga das possibilidades de interpretagdo dos fatos e textos. o ser humano acer- ca-se de um recurso que lhe confere uma margem de sentido relativamente confiavel. O mesmo se pode dizer do método. Um método, como ponto de partida para chegar a algum lugar, como espaco cronolégico, virtual ¢ fisico a ser percorrido, ofe- rece o caminho para alcangar 0 objetivo de compreender o texto biblico. Ainda que do ponto de vista tedrico possa haver consenso acerca da impor- tancia da critica, da perspectiva historica e da importancia do método, para o enten- dimento de algo humanamente inteligivel, 0 mesmo nao se pode dizer do método historico-critico. A razio desse desencontro reside basicamente no fato do método historico-critico ressignificar 0 sentido e a finalidade da critica, do método e da his- toria. O que o método historico-critico faz, na verdade, é conferir uma epistemologia propria a critica, ao método e a hist6ria. Como mostra sua historia, 0 método historico-critico se desenvolveu langando mao de critérios e conceitos concebidos a margem da investigagao biblica. Como afir- ma Lopes, “como qualquer método de interpretacao, ele faz uso de alguns principios e regras que sao derivados do bom senso. da razao e da légica, e que nao sao proprie- dade de nenhuma hermenéutica em particular™. O presente texto discute as possiveis origens do método histérico-critico. apre- senta suas principais caracteristicas e pondera acerca de aspectos a serem considera- dos na tentativa de vislumbrar, em perspectiva, os alcances ¢ limites do mesmo. As origens Por conta da centralidade atribuida a Esctitura no movimento da Reforma, pes- quisadores atribuem os primeiros impulsos relacionados com uma analise historica dos textos biblicos necessariamente a esse movimento. Além de desencadear uma forma diferente de acercamento ao texto. diferente do que vinha sendo praticado até entao, 0 movimento da Reforma também desencadeia uma compreenstio da Escritura que itia determinar todo um desenvolvimento posterior de leitura e interpretagao da mesma. ‘Tanto o estabelecimento de critérios para a interpretagdo biblica como a pers- pectiva critica ao proprio texto biblico adotada pelos reformadores descortinam uma forma nova de relacao e tratamento da Escritura. A Reforma, ao postular que a Escri- tura é a tmnica fonte de revelacio, “coloca-a como centro das atengdes e desencadeia com isso 0 surgimento da ciéncia biblica, Tal concentragao na Escritura leva, por * LOPES, 2005, p. 117. Estudos Teoidgicos | Sé0 Leopoldo | v. 59 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Flavio Schmitt outro lado, a um posicionamento critico frente a Escritura que desembocara na analise historico critica da biblia”*. Como é proprio de uma reflexao teolégica inserida na realidade a partir de onde adquire visibilidade, a mudanca é uma constante e necessiria. Nesse sentido, também 0 surgimento do método historico-critico esta relacionado com as mucangas que ocorrem na sociedade e no estudo da Biblia. De forma direta, “o método historico- -ctitico ¢ uma forma de tonar a interpretagao biblica compativel com o mundo e 0 modelo cientifico da época”. Para Volkmann, as “descobertas do homem, cuja mente nao cabia mais na pri- sao dos dogmas eclesisticos, levam a revolugao na cosmovisto ea uma sempre maior autonomia do pensamento humano capaz de desenvolver mais e mais a ciéncia e levar anovas descobertas” ‘Na medida em que a compreensao da natureza e da historia nao esta mais condicionada pela normatividade da Biblia, uma nova racionalidade emerge como paradigma. Contndo. esse referencial. resultante de uma nova cosmovisao gestada a partir do século XVI, ira impactar 0 estudo e a pesquisa da Biblia somente dois séculos depois. Do ponto de vista historico, além da inflexo provocada na leitura e estudo da Biblia pelo movimento da Reforma, a contribuigao dos ideais renascentistas. com sua volta s fontes (recursos ad fontes), ¢ mais tarde, do proprio movimento iluminista e © papel desempenhado pela ciéncia, sao decisivos para compreender 0 que acontece com a Biblia. Como nos diz Adolfo Sanchez Vasquez, acerca do periodo modemo, “na nova sociedade consolida-se um processo de separacdio daquilo que a Idade Mé- dia unira: a) a razo separa-se da f€ (filosofia, da teologia), b) a natureza, de Deus (ciéncias naturais, dos pressupostos teologicos), ¢) o Estado, da Igreja, d) o homem, de Deus”’. Nesse sentido, o método historico-critico tem na sua origem a influéncia de um contexto hist6rico em transformacto, particularmente do racionalismo na filosofia e do deismo na teologia. Segundo Lopes: “Da Renascenga. 0 método histérico-critico absorveu a énfase no humano em detrimento do divino. Do ceticismo francés, a duvida como pressupos- to dogmatico e metodolégico. E do Iluminismo, a razao em detrimento da revelacao”™. Como impulsos decisivos para uma mudanea de paradigma na interpretagao biblica cabe mencionar a infiuéncia de pensadores deistas como Jean Turrettini e Jo- hann Emesti, que sugerem que o texto biblico deva ser interpretado como a racionali- dade humana costuma interpretar qualquer outro livro.® 5 VOLKMANN, Martin; DOBBERAHN, Friedrich Erich: CESAR, Ely Eser Barreto. Método histérico- eritico. So Paulo: CEDI, 1992. p. 12 ® VOLKMANN; DOBBERAEN. CESAR, 1992, p. 26. SANCHEZ VASQUEZ, Adolfo. Erica, Rio de Janeiro: Civilizasdo Brasileira, 1978. p. 247. 5 LOPES, 2005, p. 118 Em seu Tratado sobre 0 Método de Interpretagao da Biblia, Jean Turrettini defende seu ponto de vista. Johann Emesti sugere considerar a diferenca histérica entre os testamentos. Cf. VOLKMANN: DOBBERAHN; CESAR, 1992, p. 27. Estudos Teoldgicos | Sao Leopoldo | v. $9 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Método histérico-critico: um olhar em perspectiva O rompimento definitive com a tutela doutrinaria da tradic&o ortodoxa € de- sencadeado por aquele que € considerado 0 pai do método historico-critico. Ao partir da premissa de que palavra de Deus ¢ Escritura nao sao idénticas e que o canon nao é incontestavel, Johann Semler (1725-1791) desencadeia um processo de secularizacao da leitura do texto biblico, cujo prazo de validade ainda nao esta esgotado., Para esse autor, importa analisar e perscrutar o texto em seu significado histérico. Somente num segundo momento, cabe dizer 0 contetido dos textos para os dias atuais. ‘As premissas de Semler”, inspiradas nos ares da Revolusao Francesa que esta- va por vir, colocam outro horizonte para a anallise dos textos biblicos. Além de sugeris que os textos devam ser analisados em perspectiva histérica, propoe que o texto seja compreendido em sua insergao histérica, como testemunho de um tempo passado. Essa énfase no aspecto historico leva Semler a distinguir entre Antigo e Novo Tes- tamento como duas grandezas diferentes. Da mesma maneira, propée distinguir os tempos ¢ grupos entre os escritos da cristandade primitiva. Com Semler, “o proprio autor do texto biblico passa a ser objeto da pesquisa histdrica”"’ ‘A partir de Semler, a pesquisa biblica passa a considerar que: ~ a Biblia como livro nao é a Palavra inspirada de Deus: — 0 cdnone de livros sagrados ¢ uma grandeza histérica que deve ser analisada criticamente; — cada um dos livros deve ser visto em sua insergao historica e como testemunho dessa historia passada, Assim como antes de Semler houve impulsos em direcao ao estabelecimento de um método historico e eritico, depois de Semler essas contribuigdes passaram a ser ainda mais abundantes ¢ consistentes. Nos séculos XVII e XVIII, 0 método histérico-ctitieo desenvolveu-se mais, pelo esforco do jurista e tedlogo holandés Hugo Grotius, do oratoriano e biblista francés Richard Simon e do fil6sofo holandés Baruch Spinoza — portanto, pela obta de um protestante, um catélico e um judeu. Estudos posteriores tornaram possivel uma distincho maior entre autores e redatores da Biblia, bem como a detemminagao dos primeitos destinatirios e seus contextos de vida. Alem disso. os estudos historico-criticos trouxeram uma nova maneira de compreender a Biblia em sua dimensao histérica. literaria e teologica © Na Mstizutio ad Doctrinam Ciristianaom Liberaliter Discendum Tnstituigdo de uma maneira mais liberal de aprendizado da doutrina crist3, de 1774, em lugar de uma doutrina uniforme da Biblia, Semler armumenta 1 favor da polifonia dos escritores biblicos, orundos de diferentes épocas e tradigdes. VOLKMANN, DOBBERAHN: CESAR, 1992, p 48 8 -VOLKMANN: DOBBERAHN: CESAR, 1992, p.29. ® VOLKMANN; DOBBERAHN: CESAR, 1992, p. 29. © FITZMYER, 2011. p. 76 Estudos Teoldgicas | $20 Leopoldo | v. 59 | n.2 | p.3 338 | jul/dez. 2019 3 30 Flavio Schmitt A influéncia do pensamento iluminista, especialmente nos estudos relaciona- dos com o Jesus historico (Hermann Samuel Reimarus, Ferdinand Christian Baur, David Friedrich Strauss, Bruno Bauer), bem como as contribuicdes da pesquisa ¢ descobertas arqueolégicas ainda estao a ecoar no estudo histérico critico da Biblia. Caracteristicas O método historico-critico apresenta-se, por um lado, como método exegético ¢ teolégico e, por outro, como uma epistemologia. Como método exegético, desddo- bra-se em passos metodolégicos a serem desenvolvidos no estudo e analise do texto biblico. Como epistemologia, retine um conjunto de pré-conceitos que determinam os pressupostos tedricos Jevados em consideracao no processo de acercamento e intera- cdo com o texto. O método como exegese O método histérico-critico, do ponto de vista da exegese, € historico porque lida com eventos histéricos que. no caso da Biblia, datam de muitos anos anteriores a0 nosso tempo. Além disso, retrata a historicidade da formasao do proprio texto. Por conta desse distanciamento temporal, a busca pela historicidade dos textos proteze- -0 contra uma eventual manipulagao do seu sentido por interesses ou interpretacées subjetivas ou ideologicas. O método historico-critico é um mérodo por pressupor que para chegar ao en- tendimento de algo é preciso seguir por um caminho. E através de um metodo. no procedimento proprio da ciéncia. que a verificacao histérico-critica revela toda a sua cientificidade. Ao fazer do texto um objeto de investigacao, o metodo histotico-critico recorre ao métado para compreendé-lo. © método tem no horizonte a busca pelo sentido do texto em sua origem his- torica. Por ser um texto de um contexto diferente do atual, o método historico-critico E um método histérico, em primeiro lugar, porque lida com fontes historicas que, no caso da Biblia, datam de milénios anteriores a nossa era. Em segundo lugar, porque ana- lisa estas mesmas fontes dentro de uma perspectiva de evolugao historica, procurando determinar 0s diversos estigios da sua formagao e crescimento, até terem adquirido sua forma atual. E, em terceiro hugar, porque se interessa substancialmente pelas condiedes histéricas que geraram estas fontes em seus diversos estagios evolutivos™. Sobre uma historia do método, ver DOBBERARN, Friedrich Erich. Sobre a Historia do Método Histérico- Critica. In: VOLKMANN; DOBBERAHN; CESAR, 1992, p. 37 © WEGNER, Uwe. Bregese do Novo Tesramerto: Manual de Metodologia. $d Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 17. Estudos Teoldgicos | Sao Leopoldo | v. $9 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Método histérico-critico: um olhar em perspectiva E critico na perspectiva do discemimento. Na linha dos teéricos da suspeita, recomenda nao tomar como ébvias as categorias com as quais opera. Pressupée um juizo fundamentado na racionalidade, especialmente onde as fontes histéricas apre- sentam Iactnas o testemnho biblico por vezes se mostra diversificado e contradi- torio, Nao ha como negar que os “textos biblicos possuem uma historia de redacao e tradi¢Ao que dificultam a interpretacao e a compreens’o de sua mensagem™”. Segundo Carson, Aesséncia da critica, no melhor sentido dessa palavra to mal usada, é a justificagto de opinides. Uma interpretacao critica das Escrituras ¢ aquela que possui justificacao adequaca—lexical, eramatical, cultural. teolégica, geografica ou de qualquer outro tipo. Em outras palavras, exegese critica neste sentido é aquela que da boas razbes para as escolhas que faz ¢ as posicdes que adota’®. Como método exegético, 0 método Janga mao de passos a serem seguidos. Desta forma, o método historico-critico alimenta-se de procedimentos e recursos pre- sentes nos mais remotos tratamentos dispensados a textos escritos ¢ incorpora proce- dimentos novos para a época em que passa a ser empregado no acesso a Biblia Como afirma Fitzmyer, “alguns elementos do método historico-critico foram de- senvolvidos por fildlogos e comentadores gregos dos escritos de Homero e outros classi- cos [...]"®. Essa heranga metodologica herdada dos gregos influenciou a maneira dos pais da igreja*® de lidarem com os textos hebraicos do Antigo Testamento ¢ gregos do Novo Testamento. O percurso historico, passando pelo Renascimento, Reforma e Modemidade, pemnite afirmar que 0 método histérico-critico é resultado de todo um esforco por tomar compreensivel, em cada novo contexto, 0 que as palavras de Biblia dizem. Como ponto de partida, o método vale-se de dois elementos preliminares da fi- lologia classica. O primeiro trata da pergunta pela autenticidade do escrito (relaciona- da com a autoria, epoca, lugar, data de composicao, contetido, estilo, forma literaria, ambiente, destinatirios). © segundo elemento diz respeito a critica textual (pergunta pela transmissao do texto na lingua original e nas vers6es). Relacionado com a filologia, também esta a importancia dada pelo método his- torico-critico a tradugao do texto biblico. Embora os autores que discomem sobre 0 metodo histérico-critico nao tenham se debrucado sobre o papel da tradugao dos textos "© A expresso “mestres da suspeita” foi cumhada pelo filésofo francés Paul Ricoeur (1913-2005) para designar os pensadores Marx, Nietzsche e Freud Segundo Ricoeur, foram esses trés pensaciores que suspeitaram das ilus6es da consciéncia. RICOEUR, Paul. Da iterpretacdo: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977 " JUNGES, Fabio César: KONZEN, Leo. © método histérico-critioo de Interpretaedo biblica. Vivéncias, Santo Angelo, v. 4,1. 5, p. 101-113, out. 2007. p. 101. "8 CE CARSON, D. A 4 exegese e suas falécias. Sio Paulo: Vida Nova, 1992. p. 14 © FITZMYER, Joseph A. 4 Biblia na Igreja. S80 Paulo: Loyola, 1997. p. 19. © Zenédoto de ffeso, diretor da biblioteca de Alexandria em 284 a C., compilou um Glossciio, estudo das palavras dificeis, de Homero. A Héxapla de Origenes nao deixa de ser um esforgo critico, Estudos criticos semelhantes foram desenvolvidos por Jerénimo e Agostinho (De Docirina Chvistiana e De Consensu Evangelistarwm), FITZMYER, 1997, p. 20 Estudos Teoidgicos | Sé0 Leopoldo | v. 59 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Flavio Schmitt em hebraico € grego para o metodo historico-critico, ela ¢ pressuposta, Nao somente € pressuposta como parte do metodo, como recebe importancia decisiva, principalmente a partir do resgate das linguas biblicas na época da Reforma, como nas observagées de Schleiermacher acerca da importancia da filologia na interpretacao do texto. Com o desenvolvimento da critica hist6rica, outras ferramentas foram sendo agregadas ao método. A propria critica literdr'ia, representada nos elementos prelimi: nares anteriormente apontados, tem seu papel relacionado com a critica historica. Ao perceber que o autor do texto se valeu de recursos literarios proprios de sua lingua ¢ época, ainda que o aspecto histérico nao tenha sido sua preocupacao principal, essa presenea afeta o julgamento histérico do proprio texto. Outro elemento importante da critica histérica esti relacionada com a critica das fontes. As teorias cientificas acerca das fontes do Pentateuco ¢ dos evangelhos, por exemplo, abarcam um universo de compreensao que somente um estudo critico, cientifico e académico é capaz de comportar. Ainda que ao final 0 método diacréni- co nao disponha de mais material do que aquele que também esta disponivel para qualquer método sincrénico, a perspectiva historica da abordagem do texto conduz a resultados diferentes na compreensao e interpretagao do texto. Na critica das formas, 0 que a rigor nao deixa de ser também uma critica literd- ria, e que alcanca identidade na expresso Formigeschichte, reside um dos aportes mais significativos ao estudo cientifico da Biblia e, ao mesmo tempo, um de seus calcanhares de Aquiles. Ao argumentar que 0 texto biblico ¢ resultado da justaposieao de unidades literdrias originalmente autonomas (pericopes), e que para estudo e compreensao de um texto é preciso decomp6-lo em tantas partes quantas for divisivel. 0 método histérico- -critico corre o risco de ir tao fiundo ao poco, a ponto de esquartejar textos ¢ unidades literarias de tal maneira, que sua unidade se perde no horizonte da compreensao. Os esforcos de Hermann Gunkel no estudo dos livros de Génesis ¢ Salmos” ¢ de Martin Dibelius e de Rudolf Bultmann®’ com os evangelhos sinéticos seguramente aportaram novas luzes acerca da natureza literaria dos textos biblicos. Ao identificar formas e géneros literarios (Gattungen), os estudos também permitem identificar fa- ses no processo de surgimento do texto biblico. Além de identificar diferentes formas e formatos de texto, nesse proceso tambem € investigado seu lugar vivencial, seu Sitz im Leben. Nessa diregao, a critica da forma tem entre seus objetivos “descobrir as formas originais dos textos biblicos, ainda em sua fase oral de transmissao, antes de serem submetidos a escrita™*, ' VOLKMANN; DOBBERAHN; CESAR, 1992, p. Como representante da Religionsgeschichaliche Sciuule Escola da Historia das Religiges, Gunkel submeteu © texto biblico a uma anélise literéria aplicdvel a qualquer outro texto literério. GUNKEL, Hermann Genesis. 6 Aufl. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1963, ® DIBELIUS, Martin. Die Formengeschichte des Evangeliums. 3. éurchges. Au‘. mit einem Nachtrag von Gethard Iber ed. Tubingen: J.C. Mohr, 1959. BULTMANN, Rudolf Karl. Die Geschichte der synoptischen Tradition, 7. durchgesehene Aufl. Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, * LOPES, 2005, p. Estudos Teoldgicos | Sao Leopoldo | v. $9 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019 Método histérica-critico: um olhar em perspectiva Diferente € o tratamento dispensado pelo método histérico-critico no que diz respeito aos aspectos redacionais de um texto. Na busca por determinar como os au- tores biblicos, no uso de material da tradicao, fizeram mudangas, revisoes, redacdes @ intervengoes de acordo com seu interesse teoldgico e literério, surgin a critica re- dacional. O objeto da historia da redagao (Redaktionsgeschichte) est presente na linguagem e no estilo do autor biblico. ‘Ao voltar sua atengao aos redatores, aqueles que utilizaram fontes orais e es ctitas e deram forma final ao texto. a critica da redacao parte do pressuposto que 08 evangelistas, por exemplo, sao redatores que organizam o material disponivel de acordo com determinado ponto de vista e intencionalidade. Outros aspectos ligados ao método histérico-critico continuam sendo acres- centados ao método por diferentes pesquisadores. Nessa perspectiva, cabe mencionar a anélise retorica a andlise narrativa. ‘Na América Latina, particularmente no que diz respeito a leitura sociologica da Biblia’ ¢ leitura popular da Biblia’’, tem havido um intercambio construtivo na inte- racao entre os elementos de analise histérico-critica e a leitura sociolégica e popular. O método como epistemologia Possivelmente a formulacao mais clara dos pressupostos tedricos do método historico-critico tenham sido elaborados por Emst Troeltsch. Embora do ponto de vista da hist6ria do desenvolvimento do método Troeltsch entre em cena somente no final do século XIX, sua contribuicio sistematiza impulsos que j4 vinham sendo elaborados ha mais tempo. No tratado Sobre 0 Método Historico e Dogmditico da Teologia, em 1900*, Troeltsch destaca os trés principios do pensar histérico-ctitico: ~a critica, ou seja, a diivida metédica —aanalogia, a chave para a critica em todo acontecimento hist6rico: —acorrelacdo, a inter-relagao entre os fendmenos da vida intelectual ¢ histérica. Troeltsch parte do principio que no campo histérico s6 existem juizos prova- veis. Segundo ele. % Fitemyer destaca a importincia do aspecto histérico ¢ critico para a anélise retérica e namrativa, Cf FITZMYER, 1997, p. 398s. 2 A leitura sociolégica tem no aspecto histérico e no acereamento critico ao texto um de seus pilares CE WEGNER. Uwe. 4 Leitura Biblica por meio do Método Sociolégico. $40 Paulo: CEDI, 1993. 28 P. (Mosaicos da Biblia; 12). Disponivel em: . Acesso em: 30 jul. 2019. WEGNER. Uwe. Exegese do Novo Tesiamento: Manual de Metodologia. S30 Leopoldo: Sino- dal, 1998. Estudos Teoidgicos | Sé0 Leopoldo | v. 59 | n.2 | p. 325-339 | jul/dez. 2019

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