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17 Identidade de lugar Ada Raquel Tebveira Mourdo Sylvia Cavateante Entendimento geral Identidade de lugar é uma subestrurura da identidade pessoal construida a partir da interacéo do individuo com seu: entorno fisico e social. A construglo da identidade de lugar esté relacionada & percepeio de um conjunto de cognigées € a0 estabelecimento de vinculos emocionais e de pertencimen- {0 relacionadas aos entornos significaivos para 0 sujito Identidade, processo complexo ‘A nogio de identidade refere-se ao conjunco de elemen- tos ~ biologicos, psicoldgicos, sociais ete. préprios de uma pessoa ea representacio que ela tem de si mesma, Estes dois aspectos esto em continua interag&o e se modifica perma- nentemente. A identidade, portanto, no é um estado fixo, ‘mas se constitui em um processo dinamico ¢ mutével que ‘corre ao longo da vida dos sueitos, a partir de suas vivencias, envolvendo comportamentas cognitivos, materiais e atos de investimento emocional, tendo em vista a satisfagao de suas necessidades e desejos. A construgio da identidade é um processo que se passa ‘em varios niveis. Falar simplesmente de identidade nio é 208 suficiente para expressar sua totalidade. Além de sua quali cago como icentidade pessoal, referente aos aspectase atri- butos especificos de cada individuo, a identidade constitui-se também como identidade social, traduzindo o pertencimen- todo individuo a grupos ou categorias especificas, como, por exemplo: identidade éiniea, identidade profissional, identi- dade feminina e tantas quantas afliagdes a grupos especifi- cos possamos imaginar. © lugar no qual o individuo nasceu, o lugar onde vive ou os lugares onde viveu e que se tornaram importantes para ele constituem referéncias para a construco identitaria realiza- dda 20 longo da vida do sujeito, na busca por sua individuali- zagiio. A Psicologia Ambiental, ciéncia que estuda as relagdes reciprocas entre as pessoas e o ambiente, interessa-se, por tanto, pela “dentidade de lugar” e pela “identidade social ur ‘bana’, principalmente em estudos especificos de vinculagio ‘a0 ambiente, Ambas as expressoes situam e levam em conta a construgao da identidade como um processo localizado em um espago sociofisico. Assim, a construgio da identidade esté relacionada tanto a aspectos temporais, ao desenrolar da vida dos sujeitos, quanto a aspectos espaciais, mais propriamente ‘ao lugar ou lugares aos quais as pessoas se sentem vincula- ‘das a partir de um processo de apropriagéo essencial& iden- tifleagdo ou construgio de sua identidade. Formagao e definicao da identidade de lugar A consciéncia da individualidade é um processo de cons- truco que se passa ao longo da vida, mas que atua de forma {ntensa nos anos formativos. A diferenciagio “eu/outro" leva a0 desenvolvimento de uma identidade prépria, O outro ou a 208 alteridade pode ser uma pessoa, um grupo ou mesmo um ce- nati fisico, No processo de individualizagio, a crianga nao se diferencia somente de sua mile, como aquela que supre sas necessidades, mas igualmente ds espagos que vivencia, que The pertencem e the trazem satisfagies, contribuindo para definir suas experiéncias fisieas e sua consciéncia como individuo, De acordo com psicélogos ambientais © geégrafos, ques- tes referentes & nossa identidade ~“quem somos nds’ ~est8o intimamente relacionadas & pergunta “onde nés estamos" apesar de o “lugar” ser raramente mencionado em textos ca- rndnicos € também nio ser comumente objeto de pesquisa, seja empiica seja tedrica (DIXON; DURRHEIM, 2000). Proshansky, Fabian e Kaminoff (1983) crticam uma con- cepelo desenraizada de identidade e definem identidade de lugar como uma subestrutura da identidade profunda da pes- 80a, sendo a identidade de lugar constituida por cognigBes so- bbre:o mundo fisico relativas a variedade e & complexidade dos lugares que contribuiram ou contribuem para a satisfaglo de suas necessidades biol6gicas, psicol6gieas, sociaise cultura. ‘As cognigées sio formadas pelas memérias,ideias, sentimen- 10s, atitudes, valores, preferéncias, significados relacionados a0 ambiente vivenciado pelo sujeito na atualidade ou no pas- ssado, 0 que forma seu “passado ambiental’, A identidade de ugar tem como funcSo principal a eriago de um cenério in- temo que sirva de sustento e protegao & autoidentidade. Este cendrio ¢ base sobre a qual se do as modificagées na identi- dade advindas das transformacées no ambiente. ‘Tomando por base © enunciado de Proshansky e seus companheiros, Korpela (1989) definiu identidade de lugar ‘como a estrutura psicaldgica que resulta do esforgo dos indi- 210 viduos para regularem seu entorno, Segundo ele, a partir de praticas ambientais somos capazes de criar e sustentar um senso coerente de nés mesmos e revelar aos outros nosso eu. No centro desta estrutura psicoldgica est 0 sentimento de pertencimento a um lugar, que ndo é somente um aspecto da identidade de lugar, mas a base necesséria para sua existén cia. Em torno deste ntcleo, as definicdes e cognigdes social, cultural e biol6gica de lugar s2o construidas e tornam-se par- teda identidade de lugar da pessoa. Percebe-se que esta defi- nigio enfatiza a capacidade do ser humano de se apropriar, de se vincular e se enraizar no espago, a necessidade de ter lum lugar para a expressio de sua subjetividade. O exemplo maior disto &a casa, espaco que permite ao individuo se au- torregular, manter a coeréncia e a autoestima, Assim, para que um ambiente seja significativo 6 necessério que, de algu- ‘ma forma, ele satisfaga ds necessidades, exigéncias e desejos do individuo, Aspectos da identidade de lugar “odavia, os cenéros Fisicos mudam em sua capacidade de satisfazer necesskadesecsejos, assim como o ideal interno de enari isco do sujeito muda com seu ciclo de vida e seus interesses. Por exemplo, a partir de uma determinada idade, aque varia conforme a cultura, os jovens sentem a necesidade de sie da casa dos pase ter um haga seu, que possam organi zara préprio gosto eno qual possam viveniae suas experi ‘fas, na velhice, qualquer mudanga no cenio fisico pode levar pessoa a sentimentos de tristeza ou mesmo depressao, significando a perda de parce de suas referencias. Da mesma forma, 0 ambiente externo também pode se ‘modificar, exigindo do sujeito um novo esforgo de apropria- an «flo ¢ identificagio. Numa sociedade em constante mudanga & importante ter em mente os efeitos dessas transformagies So- bre a identidade de lugar dos individuos, como também sabre a forma como eles percebem seu entorno ¢ o vivenciam. Aeeste respeito, Bauman (2005), em seu livo Identidade, afirma que durante grande parte da histéria a coabitagao hu ‘mana se restringia A vizinhanga, com costumes imutiveis € mobilidade social minima, Ao nascerem, as pessoas tinham seu lugar determinado na sociedade. Com a desintegracio das comunidades, a revolucio dos transportes e o aumento das trocas capitalists, a identidade passou a se configurar ‘enguanto problema, posto que a diversidade de interagoes sociais criou para o sujeito a necessidade de uma definigao de si mesmo. Portanto, a construgdo de uma identidade pré- pia passa a ser uma preocupagdo, ou seja, um problema e uma tarefa de responsabilidade pessoal (Os vinculos emocionais com o entomo sio igualmente importantes na formacio da identidade de lugar. Este aspee- to€ ressaltado por Tuan (1983) ao destacar a diferenga entre as nogGes de “espaco” “lugar”. Para o autor, lugar esté rela. clonado a seguranca e & estabilidade enquanto espaco est relacionado a liberdade e a0 movimento. O espaco indiferen- ciado, caracterizado como o local da aventura, transforma-se em lugar 8 medida que 0 sujeitoo vivencia através do tempo eda intensidade, passando, entdo, a ser datado de valor afe- tivo, A fungi primsiria do lugar é a de gerar um senso de pertencimento e de conexio, As pesquisas que tém sido de- senvolvidas a partir do trabalho seminal de Proshansky eta (2983) e que buscam dar conta do conceito de identidade de lugar atestam que ele é mais que o contexto, posto que se tor- nna parte do processo identitirio, Com efeito, nossa subjetivi- a2 dade se expande nos espagos e estes passam a fazer parte de 1n6s mesmos, tomando-se espacos apropriados, ou sea, “lu- gares" que nos abrigam, a nds e a nossos pertences, lugares ‘nos quais convivemos com entes queridos e para onde nos di rigimos em busca de seguranga e protegdo. Esta relaglo {nti- ‘ma que se forma entre a pessoa e 0 lugar é facilmente identi- ficével nos espagos privados. Todavia, a identidade de lugar niio & constituida apenas por eles, mas também e, principal- mente, pelos espagos socias e piiblicos nos quais vivencia- mos a alteridade, referéncia inerente & nogio de identidade. s ambientes que compdem nossa identidade tanto po- dem existir concretamente quanto podem ser representados de forma simbélica em nossa mente: a eles nos referimos e it corporamos percepcées e experiéncias vivenciadas, a partir de nossa visio de mundo e de nosso autoconceito, conferindo sentido a0 eu € integrando mudangas a identidade. Nessa perspectiva, 6 importante ressaltar o papel das lembrangas na constituiio do processo identitéro, trazendo & mente identi- ficagées e diferenciagées que habitam nosso passado ambien- ral. Assim sendo, so igualmente importantes para a formacao da identidade de lugar tanto 0s sentimentos de pertenca quan- 10 05 sentimentos de estranheza em retagao aos ambientes. So- bre esta questio, Proshansky etal. (1983) referem-se valora- io positiva, de pertencimento, ou negativa, de repulsa em re- lagi aos contextos fisicos e socials, que maream ou marca- ram o desenvolvimento da autoidentidade. ‘A manifestagao da identidade de lugar Partindo da teoria da identidade de Breakwell (1992), ‘Twiigger-Ross e Uzzell (1996) empenharam-se em analisar a relagdo que se desenvolve entre a identidade e o lugar. Os au- 213 vores wtilizaram o modelo de Breakwell, que fandamenta & identidade em quatro princpios- isting, continuidade, au toestima e efcica -, e buscaram verficar como cada tuna destas dimensdes se elaciona com o lugar. O principio da dis ting pode ser lustrad pelo estilo de vida existene ene os “habitantes da cidade” eos “habitantes do campo" ou, anda, pela rlago que pessoa tem com o ambiente de sua casa, a ual difere de qualquer outa relag espacial. O principio da continuidade mantém na lembranga os espagos que tiveram signticado emoconal para o suelo e serviram de referéncia para agées e experéncias passadas. A busca de caracerstias espaciais com as qua a pessoa eidentiique,visando a man- ter a especificidade de seu se, é também manifestacéo do principio da continuidade, A autestima, dfinida como a ava- lingo que o sueito faz de si mesmo e dos grupos dos quas participa, ¢influenciada pelo prestigo dos lugares onde vive. Por exemplo,regides ou cidades mais desenvolvidas podem favorecero surgimento em seus habitantes de sentimentos de superoridade, O principio da efccia€influenciado pels ca raeceriteas ambientas que faciitam ou, pelo menos, nao di ficultam a atuagio dos indivduos no atendimento de solic cagGes e no cumprimento de tarefas que Thes si atibuias. Nessa perspectiva, ambiente éconsiderado um facilitador de sua atuacio, Observa-se que o trabalho de TwiggerRoss & ze (1996) evidencia 0s significados eo papel emocional os lugares, permitindo explora a indica dos processos relatvos& identidade a paride dads empiric. Dixon e Durtheim (2000), adeptos da abordagem discur- fa preocupados em evidenciar as earacteristicas emp cas da identidade de lugar, buscam remové-Ia dos “confins da mente ¢ recolocé-la no fluxo do dilogo humano” (p. 32). ate Segundo esses autores, & através da fala que as pessoas dio sentido & sua relacio com os lugares ¢ envolvem:se em prit- ‘eas coletivas que formam a identidade de lugar. Para eles, por meio de nossos discursos 6 possivel mapear a forma ‘como oselfse localiza 20 cumprirfungées sociais e, inclusive, como ele se relaciona com ideologias espaciais dominantes. As favelas e seu entorno sio preferencialmente evitados pe- Jas sujeitos de classe social favorecida, por serem conhecidos como dreas de marginalidade e degradagio urbana. Neste aso, lid uma desidentificagZo com o lugar ocasionada pela propagagio de aspectos negativos destas localidades. Na perspectiva de Dixon ¢ Durrheim, a identidade de ugar pode ser pensada como algo que as pessoas criam em conjunto ao se comunicarem: uma construcio social que Thes permite dar sentido A sua ligagio com o lugar, o que, em tiltima instancia, servird de guia a suas ag6es e projetos. A identidade de Iugar & construida a parti dos espacos de pertencimento e vivencia, envolvendo tempo de exposi- ‘glo ao lugar e possibilidade de transformé-1o em busca de s3- tisfagio. A construgio da autoidentidade, da identidade social e da identidade de lugar faz parte de um mesmo processo no ‘qual todos os componentes sio concomitantes e significa vos: as pessoas por meio das quais os individuos desenvol- ‘vem sua individualizacdo, os grupos com os quais convivem, 1s papéis sociais que desempenham © os cenétios fisicos onde se desenrola a vida cotidiana. Referéncias BAUMAN, Z. (2005). Mentidade. Rio de Janeiro: Zahar. 215 DIXON, J; DURRHEIM, K. (2000). Displacing Place identity: A Discursive Approach to Locating Self and Other. British Journal of Social Psychology, 39, p. 27-44 KORPELA, KM. (1985). Place-idemtity as a Product of Fnviron- ‘mental Self Regulation. Journal of Environmental Peychology, 9, p.241-256, PROSHANSKY, H.M.; FABIAN, A.K; KAMINOFP, R. (1983). Pla- ‘ce‘dentty: Physical World Socialization of the Self. Journal of Environmental Psychology, 3, p. 57-83 ‘TUAN, YF. (1983). Espazo¢ lugar: a perspectiva da experiéncia. ‘io Paulo: Dife TWIGGER-ROSS, C; UZZELL, D.L, (1996). Place-identity Proces- ses Journal of Environmental Psychology, 16, p. 205-220 Lela também, neste volume, 08 capitulos 6) Apropr: ‘4; 14) Espago e lugar 18) Identiade social urbana, 216 iy aes aS Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, $P, Brasil) Temas hésicos em Psicologia Ambiental / Sylvia ante, Glee A. Blali(organizadoras).— etrdpolis, RJ: Voues, 2011. Viros autores Bibliograia ISBN 978-85-326-4138-0 2. Psicologia Ambiental 1. Cavalcante, ya, 1 Ela, Glice, A. 11.04079 epp.iss9 {Indices para eatélogo sisteméten: 1. Psicologia Ambiental 155.9 Sylvia Cavalcante Gleice A. Elali (orgs.) Temas basicos em Psicologia Ambiental y EDITORA VOZES Petrépolis

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