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| Te oe so de Poncid Vicéncio, com milhares de exemplares Ce RS ea ct SOS OSORIO OT a SoC eet SUSUR CORSO Le CRIOEen CT Ree e OEE OL Saat eth OTN COOKE Se ORT O resultado ¢ pungente. Em Becos da meméria, novamente mergulhamos na favela — para a autora, uma encarnaco contemporinea da senzala — € nas historias de sofrimento er SRO at Ec ee ee ORCUTT ne aT DEE ee ere et que a vida Ihes deu: dinheiro, comida, gua, tudo mingua por entre Oe Ue a et urbano para o qual, inexplicavelmente, nio ha Lei de Usucapito. E estio sendo despejados pelos tratores dos pretensos donos, Romance coletivo, marcado por uma pluralidade de sujeitos ¢ dramas, POOR ORO ORM LUCU UORo LUO POS CNN CCM ENC MUTI MUTE OCOD construir subjetividades poderosas, mas perfis rarefeitos que, reunidos em coletividade, ganham em amplitude e apontam para as condigies EM ORR CEM er ae CCU CLL Se M RTT CMe EM My costurando vidas passadas e presentes a partir de um olhar marcado pela ternura que no esmorece perante a adversidade. Como nao poderia deixar de ser, Becos da meméria traz uma das marcas registradas de sua autora e descarla a violéncia gratuita presente, muitas veves, na representacao dos excluidos em nossas letras. Mais do que isto, busca narrar suas raizes. Eduardo de Assis Duarte me CN © 2013, Conceigéo Evaris Série Narativas™ © Coordenasio editorial Zahidé Lupinacci Muzart Comelte editorial ‘audia de Lima Costa (UFSC) Constancia Lima Der (UG) Eliane Vasconcellos (FCRB) Ivia I, D. Alves (UFBA) Joana maria Pedro (UFSC) June Hahner (New York) ‘Nadia Gotlib (USP) Revisdo Gerusa Bondan Capa Graco Bonetti Sobre fotografias de familia, envi Diagramasio Rita Motta Dados Internacionais Leny Hel E92b _Evaristo, Conceigdo Becos da meméria / Conceis smidt; posticio de M: polis: Ed. “Mulheres, 2013. Simone Pereira Sch: Fonseca. - Florian’ 272p. de Catalogagio » lena Brunel CRB 10/442 Norma Telles (PUC- Peggy Sharpe (ashore Rita T Schmidt (UFRGS) susana Bornéo Funck (UFSC) Simone P. Schmidt (UFSC) Tania R.O. Ramos (UFSC) Yonissa Wadi (UNJOESTE) iadas pela autora 1¢ Brasil em 2009. 1a Publicasio ~ CIP io Evaristo; prefacio de laria Nazareth Soares ISBN 978-85-8047-028-4 4. Literatura Nege Brasileiras. 3. Muth« Pereira. II, Fonseca, eres Escritoras. Maria Nazareth Si 1 Brasileira, 2, Escritoras Negras 1, Schmidt, Simone Soares. 111. Titulo. CDU 869.081) REALIZADO 0 DEPOSITO LEGAL Editora Mulheres Rua Joe Collago, 430 88035-200 Floriandpolis, SC Fone/Fax: (048) 3233-2164 e-mail: editoramu iIherest?tloripa.com.br www.editoramulheres.com.br Grafa atualeada segundo 0 Acrdo Ortegrafic da Lines Portuguesa se 1990, aque entrow em vigor CONVERSA COM O LEITOR Da construgao de Becos Novamente entrego Becos da meméria, ago- ra em sua segunda edig¢do, ao ptblico leitor. FE um especial momento. Nessa entrega, um pouco das memérias da construgio de Becos so ativadas. Como ja disse em outras oca- sides, essa narrativa teve nascimento em 1987/88, sendo, pois, anterior 4 escrita dos contos e do romance Poncid Vicéncio. E foi o meu primeiro experimento em construir um texto ficcional con(fundindo) escrita e vida, ou melhor dizendo, escrita e vivéncia. Talvez na escrita de Becos, mesmo que de modo quase que inconsciente, eu ja buscasse construir uma forma de escrevivéncia. Arrisco-me a dizer, também, que a origem da narrativa de Becos da Meméria poderia estar localizada em uma espécie de crénica, que escrevi ainda em 1968. Naquek extopodiaserapreendidaatent, i descrigiio da ambiéncia de uma favela, ts oO pequeno escrito com 0 titulo de ae vela”. E, o que foi apresentado como ur 2 cicio de redagio a Prof* Ione Corre: Lak a cursando ° ae rs a | (en ainda antigo ginasial) extrapolou a sala a aula € os muros do colégio. “Samba Favela”, meses depois, apareceu publicado no Diario Catélico de Belo Horizonte e em uma revista catdlica do Rio Grande do Sul. Hoje, relendo aquele pequeno texto, vejo que Becos da mem6ria, anos ¢ anos depois, retoma e am- plia um desejo ¢ um modo de escrita que se insinuava desde aquela época. A publicagio de Becos da memoria, por varios motivos, s6 vai acontecer depois de ter vindo a publico o romance Poncid Vicéncio. Creio mesmo que a aceitagao do primeiro romance publicado me deu seguranga para desengavetar Becos. Em 1988, 0 livro seria pu- blicado pela Fundagao Palmares/Minc, como parte das comemoragbes do Centenario da Aboligao, projeto que nao foi levado adiante, acredito que por motivos de falta de verbas. Desde entéo Becos da memoria ficou esquecido na gaveta. I fouve, entretanto, um momento, Ja J2 set lida ambien Contin Becos d velas | Outro: mais tarde, preciso ressaltar, em que, em ou- tra gestao, a Fundagao Palmares se colocou a disposig’o para retomar o projeto de publi- cacao da obra. O livro, no entanto, ja havia se acostumado ao abandono e sé quase 20 anos depois de escrito foi que aconteceu a primeira publica¢ao, em 2006. Por isso tudo e por muito mais, o romance Becos da meméria, em sua se- gunda edicAo, marca um momento especial no que tange a luta que constantemente enfren- tamos para publicar. Se nas primeiras buscas de publicagiio de Becos alguns caminhos foram incertos, ao longo dos anos, passagens mais seguras foram se apresentando. Becos da memoria é uma criagio que pode ser lida como ficcdes da memoria ao narrar a ambiéncia de uma favela que nio existe mais. Continuo afirmando que a favela descrita em Becos da meméria acabou e acabou. Hoje, as fa- velas produzem outras memérias, provocam outros testemunhos e inspiram outras ficgses. A forca das palavras, a memoria é da narrativa Srwone Pereira SCHMIDT O romance de Conceigao Evaristo, Becos da meméria, escrito nos anos 80, foi publicado pela primeira vez apenas em 2006. Este sig- nificativo intervalo entre 0 momento de sua escritura € o de sua publicagao € por si sé reve- lador das imensas dificuldades que enfrentam, em geral, aqueles que, vindos de lugares dis- tantes dos centros — sejam eles geogrificos, so- ciais, econdmicos —, lutam para transpor essas barreiras. Felizmente, agora, Becos da meméria ganha nova e merecida edicao, gracas ao reco- nhecimento sempre maior que vem ganhando do piiblico leitor, brasileiro em primeiro lugar, 15 mas também de outros tantos paises em que sua obra vem sendo divulgada. A narrativa deste belo romance que te- mos oportunidade de reencontrar, nesta nova edi¢o, comega por celebrar aqueles que, com suas vidas, constituiram a matéria de que sio povoados os ‘becos’ da memoria viva que aqui se transforma em escrita: “[...] Homens, mu- Jheres, criangas que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos da minha favela”, Nesta espécie de pértico ao re- lato, a autora nos apresenta aos personagens de forma ampla, como a compor um quadro que se ira detalhar em cores € tragos na con- tinuidade da narrativa. Assim, 0 romance ini- cia deixando claro quem sao os sujeitos que pretende representar. Ao evocar, no texto que abre a narrativa, as “lavadeiras que madruga- vam os varais com roupas ao sol”, o pacto da representagao € assumido pela autora: a es- crita, com afirmou Donna Haraway (1994), é um jogo mortalmente sério, porque o que est4 em questdo é justamente a possibilidade (ou a negagdo) da representacdo. A quem se representa, € como se representa sao, assim, quest6es cruciais para o discurso literdrio, 16 de repres ciais em | Regina | que € set ser bran Pa ‘ota tor mb Pela ‘Bais, Ses Va ; ‘ que Xe visto, aqui, numa imagem que nos remete a Bakhtin (1981), como uma arena onde dispu- tam constantemente as diversas forgas politi- cas em que se constituem os grupos sociais. Especialmente num pais como o Brasil, onde a questiio da representacio se mostra ainda tio problematica. Dar corpo 4 meméria dos moradores da favela, caminhando em senti- do contrério ao dos esteredtipos que se colam a pele dos subalternos em nossa sociedade, é, portanto, uma estratégia de grande impac- to politico e cultural, j4 que permite ao lei- tor brasileiro, desamparado de uma tradigio de representacao das diferengas sociais e ra- ciais em nossa cultura, aprender, como sugere Regina Dalcastagné (2008), “um pouco do que € ser negro no Brasil”, e do que “significa ser branco em uma sociedade racista”. Para a construgao de seu romance, a au- tora tomara como mote a estrutura sinuosa e miltipla dos becos da favela, que, percorridos pela narradora, mostram-se, a um s6 tempo, iguais e diversos, miltiplos, tortuosos, promis- sores, cheios de histérias de vida. A narrati- va que a partir de entao se desdobra é feita de pequenos relatos, breves histérias de vida de muitos pe sonagens avela, Ne posta em pritica homens, mulheres vemos vem MP benjaminiana de historia, que privileyia o fragme a totalidad tro de ur que a histo e criangas da seas histori a perspect nto sobre + talegoria sobre o simbolo, den- compreens wo mais profunda de tradicionalmente divulgad: perspectiva dos vencedo: a pode ser esctita a contrapelo, dando vez a vers fragmentirias de vid ‘sy minimas, comun: nem exemplares, de pequena nem herdicas vidas de perso- nagens em cujos percursos se conjugam der- rotas advindas de sua condigao social, racial e de género. E nesse sentido que 0 t ho das ‘io central na narrativa, sintetizando a atividade incansavel dos corpos das mulheres da favela, em constante esforgo de gerar e garantir a vida, enfrentando pobre- za e violéncia. Corpos que atuam, por vezes, lavadeiras ocupa posi¢: como tinico capital simbélico dos sujeitos negros, como assinalou Stuart Hall, identifi- cando nos mesmos verdadeiras “telas de re- presentacao” de sua experiéncia. Sio todas personagens femininas que atualizam, em suas historias de vida e em seus prdprios corpos, uma relacio repetidamente evocada na narra- tiva: a aproximacao entre senzala e favela. 18 desigualé cendente uma out seus per neste m fio de rr quanto tura qui Senzal, fim histsy a Part; Vsig ; Esta relagio, senzala-favela, no romance de duas formas. Pr memoria da escravidao, freque: na relatada pelos mais-velhos, ern histérias nas quais rememoram sua infancia passada ern? zendas, senzalas, plantagoes € enfrentarnentos com os sinhés. Nurn segundo plano, o mais vivido no romance, a relacéo da senzala corn a favela, atualiza-se na geografia dos becos onde se vivencia a condig’o subalterna dos seus moradores. Através deste fio que une 0 pas~ sado colonial e escravocrata corn as profundas desigualdades vivenciadas na pele pelos des- cendentes dos escravos nas cidades de hoje, uma outra historia da literatura brasileira e de seus personagens, esta, sem diivida, a ser feita neste momento. Atando as duas pontas deste fio de meméria de uma heranga tio silenciada quanto irresolvida em nossa historia, a litera- tura que presentifica esta perturbadora relacio, senzala e favela, permite-nos encontrar, como afirma Eduardo de Assis Duarte (2009), “uma historia de superacdo vinda dos antepassados a partir de uma perspectiva identificada com a visio do mundo e com os valores do Atlantico Negro". No corpo das mulheres negr, historias se destacam na profusag ce Bs i: vas que compdem 0 romance, atualizase on ligagao entre o passado Colonial ¢ 9 Prese; ne Povoado de herangas coloniais por eile Enquanto se desenrolam as historias Ds Petsonagens, a grande tensio que une ea as suas experiéncias € 0 crescente Processo de desfavelamento, que culminars Por expulsé-tos a todos do nico lugar a que pertencem, e que, Supostamente, também Ihes pertencia, A Vio- léncia extrema da destrui¢go da favela za, dentro da narrativa, a reiterada vitéria dos mais fortes em nossa Sociedade, fendmeno due aponta para 0 “enigma da desigualdade” explicitado por Osmundo Pinho (20089), que cntrelasa, de forma continuada em nossa his- tora, os indices que associam pertencimento tacial e de classe, Entretanto, contra 0 destruigao dos trat barracos ¢ seus sinali- poder de morte e ‘tores que avancam sobre os moradotres, €ncontramos a for- ja fav em ira se incumbir de net rela, ria a vida ameagada, ¢ tomara i screve-la. O roman- alegrias di mem eee d dia es A eum a) 7 a tarefa ‘1 ‘o circular Poe cerra, assim, num moviment ce se encestay m chave metanarrativa, © intulr : tora, como percebemos na assistindo na escola a uma que retoma, z to da propria escril passagern em que; 285 aula sobre a “liberta¢ao mie 7 ivro. nase inquieta com o que lé no “ favela, os mais velhos, as personagens de sua favela, — mulheres, as criangas que, em sua maioria, ni vio a escola, “uma histéria viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora”. Naquele instante, a menina decide: “quem sabe escreveria esta historia um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado dos escravos”, a meni- Pensa nos no seu corpo, na sua alma, na sua mente?”, A forca das palavras, da meméria e da narrativa sio as armas encontradas por Maria-Nova para seguir sua luta pela vida, mesmo depois da morte de muitos persona- gens e da destruicao da favela. Gragas A sua iniciativa, o fim que aqui se impde pode con- duzi-la, e também a nds, a um outro comego. Becos da Memoria V6 Rita dormia embolada com ela. V6 Rita era boa, gostava muito dela e de todos nds. Talvez ela s6 pudesse contar com 0 amor de V6 Rita, pois de nossa parte, ela s6 contava com 0 nosso medo, com o nosso pavor. Eu me lembro de que ela vivia entre o esconder e 0 aparecer atrds do portao. Era um portao velho de madeira, entre o barraco e o barranco, com algumas tabuas jé soltas, e que abria para um beco escuro. Era um ambiente sempre escuro, até nos dias de maior sol. Para mim, para muito de nés, criangas e adultos, ela era um mistério, menos para V6 Rita. Vo Rita era a tinica que a conhecia toda. Vé Rita dor- mia embolada com ela, Nunca consegui ver plenamente o rosto dela. As vezes adivinhava a metade de sua face. Ficava na espreita, colo- cava a lata na fila da 4gua ou punha a borra- cha na tina e permanecia quieta, como quem nao quisesse nada. Ela aparecia para olhar o mundo. Ver as pessoas, escutar as vozes. E eu, de olhos abertos, olhos), * Pulava eng; _ Ma (565 Os Eunio atinava com - dade, do querer dela em ver Med ee iii ™ Ver o Mund, dos!... Uma bir, achag, Ae pedago de ae era do filho dela. Nj nada al ; © Movimento era ra ‘ i. bem sah seanil Een Me anil, E, Produtos que a cas, a tam. » fora mai em que ela mor 1 uma tomeir Agua sanitari S eram os Em frente d com Vo Rit chaya, este: aca Wa 4° piiblica, A UtO extremo da de baixo”. Tinha ea no torneira ©M pontos de cima”, em y Lagaio a sera melhor, Fornee; amos buse 6 podi to ou lavar rouy quase t possivel se fazer i 0 servigo brincadeir, Era mais perto VAM sempre amor OW pen de 10 boter Me eu pa Ava seMpFE restos de doce a Pp ecceeneeee Quando eu estava para o softer, para 0 misté- ro, buscava a “torneira de cim i orneira, a gua, as Iavadeiras, os barra- coes de zinco, papelbes, madeiras¢ lixo. Roupas dias patroas que quaravam. ao sol. Molambos ossos lavados com o sabio restante, Eu tinha nojo de lavar 0 sangue alheio. E. nem entendia ¢ nem sabia que sangue era aquele. Pensei por longo tempo, que as patroas, as mulheres ri n sangue de vez em quando. na, minha Naquela época, eu men dade ardia diante de tudo, A curiosi- curio dade de ver todo 0 corpo dela, de olha-la todinha, olhe Zu queria poder vasculhar com os su imagem, 1 cla percebia ¢ fagia sempre, Sera que cla, algum dia conseguiu ver o mundo circundante, ali bem escondi- dinha por s do portao? Talvez. Em um st- bado ou domingo em que a tornei mais vazia de lavadeiras, cordagio daquele mundo, me aos olhos, Como éramos pobres Miscriveis talvez! Como a vida acontecia simples ¢ como tudo era ¢ € complicado! Mavia as doces figuras tencbrosas. E ha- via o doce amor de V6 Rita. Quando eu soube, a0 oul a, j a ja Wo dia, grande, depois de que V6 Rita dormia embolyi me voltou este desejo do) I a Vo Rita, que dormia embol, que nunca consepii ver MO ter, Je lc ride d : ese revo como uma homer olada coy Ee fy foi cine Tever, : ICH pi ala conn plenatnente, a8, a08 ralanlros, ae m4 ish dos, as put a8 va nha mesndbtia. Ue, WEIN postutna as layaclesy, FATA O8 VATAIS Conn toupas 8 que habitat os becuse de 1 me a8 ue rade an sol. As peanis Cansathas, sala, re gras, slosradis de porn dey Carp alerto onde acontecian on festivais ee tla dba Sereda, omenayern a abe, a Vian Vora Vaca, 4 velba Iodine, a 1), Avbhia, ao Vin Van, a Vedre ¢ “andida, ay bb Sencnhia, 6 1), Maria, wie: do N ya val, ary Cata hia Via, a Verezinkva da Osearlinda, a Marina, 6 Vowana do Padin, omens, suheres, crianyas que ve snonsvarain dentro de mis, como armontoa- Gas erain os barracos de m v4 favela, homem nito yostaria de ter Quem disse que y dessem at terra? ratzes que 0 pren fotG ri se Conforsnaya Com 6 aCODtECY Jo viela? Por que a i Dens do eéu, seria a seat we eta ras, cresce, sult nares wires rhesina terra, natn snesnHl yar? Sea yente sai por al por este runt freer ee & Ita,o que vale o respeito, a fé toda quand se est distante, no que para Iris fice? Para que a crenga na volta ar gar Verdaite fost onde se enter Vio Vor) andaya inconsolavel, J velhio, tnudar de novo, nur snormento em que seu terva, Ele nao vairia da favela, Ali corpo ped seria sua dltima morada, Ele ollhava o mundo conn o olhar de despedida, Olava sua terceira mulher, seus netos drfios, sua casinha caiada de branco, alyumas galinhas € 0 chiqueito vazio, - Perdias forgas, Maria-Velha, Trabalhei demais, Eu quero agarrar nas coisas, pegar 0 machado, rachar essa lenha... Assento € penso, pra que? Fiz isso a vida inteira.,, Labutei, ca- sei trés vezes, viuvei duas, a terceira mulher é vocé. Tive filhos das duas primeiras. Os filhos também se foram. Partidas tristes, antes do tempo cumprido, antes da hora. Eu, vivido, ja velho, estou aqui. Meu corpo pede terra, C, lugar de minha derradeira mudanga, Quando Tio Tots se entendeu por pen Jc ja estava em Tombos de Carangola, Sq. ‘ova, bia que nao nai ali, como também ali nao m seus pais. Estavam todos na labutg a. Sabia que scus pais cram escravos ¢ que cle jd nascera na “Lei do Ventre Livre”. Que diferenga fazia? Seus la vida e nem ele, dis NAO es- colheram Antonio Joio da Silva tinha uma letra . Dava tra- balho ler. Juntar letra por letra e no final a pa- bonita e sabia soletrar alguma cois lavra, Depois juntar palavra por palavra ¢, no fi ntamento, algum pensamento, algum dizer bonito ou alguma bobagem su a - Tots - apelido a mal, cachorro é ami ; igo mem. Um dia, ele, ¢ : letras ¢ as. de juntar as avras, Jeu isto: Mais vale um cachorro am, : i amigo cachorro, ‘so do que wm ee deu um grito de alegria. er cachorro e amigo do me nunca ser amigo. ‘Quando menino foi chamado de Tots. Por qué Toté ¢ nado Totonho ou Tonico ou até mesmo Joaozinho? Jé homem, So Tots, agora velho, Tio Totd. Era tio de seus sobrinhos € dos sobrinhos dos outros. — Nao, eu jé rodei, 4 vaguei por esse mun~ do velho... Ja comi ¢ bebi poeira das estradas. muita carga no Jombo. Na as palavras, € quase £ mesmo, mais valia s dono, do que ser home: Tenho marcas de ro¢a, as vezes, meu pai contava historias e dizia sempre de uma dor estranha, que nos dias de muito sol, apertava 0 peito dele. Uma dor que era eterna como Deus € como 0 sofrimento. Toto entendia, era menino, mas, de vez em quando sentia aquela punhalada no pei- to. Uma dor aguda, fria, que sem querer fazia com que ele soltasse fundos suspiros. O pai de ‘Toto chamava aquela dor de banzo. A vida passou e passou trazendo dores. Um dia, ainda com a primeira mulher, tivera de deixar a fazenda em que foram cria- dos trabalhando na roga. As terras haviam sido vendidas, os donos estavam em ma situa- G40. Quem quisesse ficar, ficasse, quem nao quisesse, arribar podia. Tot6 juntou a mulher, a Sha ay trapos. Nem ele, nem ela tinham moje vivos. Um surto de tuberculose que comer na casa grande, assolara também os cscravog, Iriam pari, queriam esquecer as historias escravidio, suas © de seus pais. Foram dine ¢ dias sobrevivendo pelo mato. Lembravag histérias mais amenas de campo, de vasti- dio, de homens lives, em terras longinguas, Lembravam-se de deuses negros, reais, con. tantes¢ tao diferentes daquele Deus-Jeaus de que tanto falavam os senhores ¢ os padres, Nesta hora vinha a dor fina como um espi- nho rasgando 0 peito, Havia 0 rio para atravessar, uma canoa improvisada de tronco de arvore. Nao dava Para esperar mais do lado de cd. Jé havia uma oe one tio subindo, mais e mais. 7 ae vate beaten © tio ou fica, Miqui- nt por ficar? A kente atravessa, Tots, Tenho medo mas havemos de atravessar! : O tio, a cheia, 0 vaio da barca impro- visada, o turbilhao, a vida, a morte, tudo indo de roldao. : Tots alcangou sé a outra banda do rio. ‘Uma banda de sua vida havia ficado do lado de la. Cidinha-Cidoca andava muito quieta ulti- mamente. Quem te viu quem te vé!... Alheia pelos cantos do botequim, nem cachaga exi- gia mais. Suja, descabelada, olhar parado no vazio. Se Ihe dessem um trago, bebia. Se no Ihe dessem, nem da secura na boca reclama- va mais. —Bons tempos ja houve, hein, Cidocal... Bonita a mulher, mesmo com aque- les olhos parados ¢ com aquela carapinha de doida! Bonita a mulher! Doida mansa, muito mansa. Antes gostava de andar de branco. Qua- se sempre usava um vestido solto sobre o corpo. A sombra de sua negra nudez era per- cebida sob 0 camisolio alvo. Era tudo muito bonito e tentador. ouro”, Nao havia quem 0 provasse ¢ nio 40 se tornasse frou Thos, mogos ¢ até As mulheres da fy. vel4 odiavam Cidinha-Cidoca. As mais velhas atemiam pelos seus homens, as mocinhas por s mamorados ¢ as mites por seus filhos que cr ¢, que entre 0 vicio da comegavam a cr mito, do aurocatinho, preferiam 0 corpo ma- cio © quente, preferiam 0 “rabo-de-ouro” da Cidinha-Cidoca. Bom que cla estava doida, demente, desmioladal Bom mesmo! Diziam até que era trabalho de uma moga virgem que criara migoa de Cidinha, A menina havia desco- berto que seu namoradinho andava visitando Ciinha-Cidoca Falou com ele. O frangui- oc fi ho em véspera de galo nao gostou, Discutiu, sey panel due era homem. E homem tinha le ir 1a P 3 * Homem nao era igual 4 mulher! Ho- ™em vai ou endoida! Sobe ‘ Pra cabeca! menina nio gostou, — orém bol A ida Porém boba nao! Endoida qu ive abafa de- quer? Muther vive abafando a vontade, os palmente se moga virgem como sejos, pri cu! ~ ela retrucou. ie “© frango em véspera de galo” nao gostou. Achou a virgem saliente, achou @ virgem nao tio virgem assim! : E nao se sabe porque, dai para entao, questo de dias, de quase més, Cidinha-Cidoca comegou a adoecer. : “Frango em véspera de galo” cismou com os prazeres da vida. Disse que nao tocaria em mulher alguma mais nunca. Ia ser santo, ia fandar uma religido s6 para homens. Jamais olharia uma mulher sequer. Os festivais de bola na favela tinham gosto de grandes alegrias. Aconteciam em uma épo- ca certa, era uma vez por ano. Duravam meses, durante os sabados ¢ domingos. O campo era uma rea livre, enorme que ficava entre a fa- vela € 0 bairro rico. Bem rico e bem préximo. No campo, a terra solta, durante os jogos, a cada chute dado, levantava um redemoinho de pé, os jogadores caiam ¢ rolavam na poeira. 37 Em dias de chuva, cafa-se na lama, até se machucava, mas a disputa gu Vezes Juntos estavam os operarios, os ean os marginais em hora de gozoelazen Em volta do campo fincavam-se ba deirinhas armadas em um varal de estacas de bambu. A garrafa de cachaca rolava de mic em mao, algumas cervejas também. Mitidos de porco eram sempre servidos. Muita gen- te criava porquinho no chiqueiro, no fando do barraco. A bebida ficava sempre por con- ta daqueles que no momento tivessem mais. Donos de botequim e de bitaquinha sempre davam alguma, A criangada ganhava balas, Pipocas e pirulitos. Os heréis ali muitas ve- 2: giohavam mulheres. Brigas sempre, s6 ca, tiro, as i i alguna morte Se morte hava ojona ahs no tinhai fate ipeaididenti ee aaetnte ee outros motivos; da mogada. Nos jogos em que 0 Bon cia podia-se saber que alguma coelho’ dade nao apare coisa nao sairia bem. ~ Hoje Bondade nao apareceu, alguma coisa vai acontecer. Ou vai ter sururt, ou Var mos perder! ae ‘Uma vez quase que uma partida foi adiada. O time contrario era bravo, havia a chuva atrapalhando ¢ Bondade ainda nao ha- via chegado. Toca de esperar, depois de muito, chega o préprio. Eis o Bondade trazendo alt- vio para 0 coracao de todos. Trouxe também alguns raios de sol, estiagem passageira, que s6 durou o tempo da partida. O time local saiu feliz. A cachaga descia quente na gocla de todos. Era um dia de frio. — Bondade! Oh; Bondade! Que € isso Maninho, 0 que houve? — Eu estava longe, ld no barraco de Filé Gazogénia. A velha est doente, vomitando, est quase a passar... Bondade fazia jus ao apelido. Nao tinha pouso certo, Morava em lugar algum, a nao ser no coracao de todos. — Para que ter pouso certo? — dizia ele — Homem devia ser que nem passarinho, ter 39 asas para voar. Jé rodei. Jé vivi favela e mai favela, jd vivi debaixo de pontes, viadutos.. jg vivi matos e cidades. Jé vaguei, vaguei... Muj- to tempo estou por aqui nesta favela. Aqui é grande como uma cidade. Hi tanto barraco para entrar, tanta gente para se gostar! O tempo ia passando, Bondade ficando ali. Comia em casa de um, bebia em casa de outro. Era amigo comum de dois ou mais ini- migos. Nao era traidor e nem mediador tam- bem. Quando chegava a casa de um, por mais que indagassem, por mais que futricassem, Bondade nao abria a boca. Desconversava, conversava, € a intriga morria logo. Vivia in~ ‘ensamente cada lugar em que chegava. Cada casa, cada pessoa, cada miséria e grandeza a seu ‘emp Certo, no seu exato momento. Tete 40 juiz. Triunfante, sai do cam, ae aah fesse um jogador que fesse upranse o Primeiro gol. E sé selembra de onde veio ¢ os 10 € 6 lemby boca murcha e tisica de Filg ete sangue na Victam lhe indayar de sua dem, es wenia porque Bondade sofreu muit mento, Ele, Tio Toro, Man sa © destavela- ria-Novae algumar 40 criangas foram talvez os que naquela época traziam 0 cora¢4o mais dolorido. Festival de bola no campo. Festival no cor- po de Cidinha-Cidoca. Tempo de novo ho- mem, de homem estranho chegar ao corpo de Cidinha. As mulheres gostavam, enquanto ela se divertia com os homens do time contrario, os seus estavam resguardados. Havia homem que nem bola direito chutava, s6 pensando em Cidinha-Cidoca. A fama da mulher corria. Era conhecida de corpo e nome naquela e em outras favelas. As vezes, um ou outro jogador mais afoito, do time contrério, arriscava pedir a Cidinha que mudasse de pouso, que fosse com ele. Cidinha tinha mesmo vontade de conhecer outros lugares. Seu peito arfava de desejo por areas desconhecidas. Era uma tentacao. Afinal por que ficar? Ja conhecia quase todos os ho- mens da favela. Iria! O aventureiro se sentia feliz, vitorioso, afinal levaria consigo o melhor troféu, “Cidinha-Cidoca-rabo-de-ouro”. Cor- tia os olhos em volta, sabia que estava sendo 41 observado, Os anti; nos de Cidinha, ¢. stavam com ele ou outro, is Sim, ela podia igio para a favela, mai forte. Que desejo era aquele de partir? scu rosto, em seu corpo. Nem uma marca, nem um sinal. Entretanto, por maior que fosse mi nha curiosidade, cu guardava uma certa dis- tincia. V6 Rita me atrafa, mas cu tinha medo, muito medo... V6 Rita guardava tanto amor no peito! Também tinha mesmo 0 coragio grande ¢ s6 descobriu isto depois de mosa. Um dia passou mal, o patrao era médico, exame para la, exame para cé, ficou explicado por que, as vezes, ela se cansava tanto. Havia dias em que o coragio parecia lhe querer sair pela boca. O médico disse-Ihe que ela viveria pouco. Enganou-se. LA estava ela, velha, mais de 70, de 80 talvez. V6 Rita era imensa. Gorda e alta. Tinha um vozeirio. Todo mundo sabia quando ela es- tava para chegar. Vivia falando. Nunca vi V6 Rita calada. Se nao conversava, cantava. Boca fechada nao entra mosquito, mas nao cabem isos € sorrisos. ~ V6 Rita, como anda o tempo hoje? — Bom, filha! Muito bom! — Vo Rita, mas esta chovendo tanto! —O que é que tem, menina? Chuva é tio bom quanto sol... 43 vio. Era coi ; = no uma tempestade sua) one tinha rios de amor, chy, pe de dentro do Peito. aay Miquilina © Catita? Nao! Nao podia er = gre ca. Nao! Serd que o rio tinha O tio estava bebendo tudo que encon- trava pelo caminho. Pedras, paus, barrancos, casas, bichos, gente € gente e gente... : Pe rand aad a vida, levava tudo de rol- ils ‘Pido, era sé Deus piscar os we oe de visi a gente um tiquinho s6 endo, engolindo tudo. aie a ae continuar a vida sem “que que eu vou fazer? O que fazer agor a do meu co; po, do meu pensa- mento, desse labutar tio sozinho? a corpo A sede do rio? Se eu voltasse, quem sabe, 14 embaixo ou em outro rio qualquer, eu pu- desse encontrar aqueles corpos amigos?” Toté, moo de tantas coragens, mogo de tantas proezas e aventuras, continuou na outra banda do rio. Sao, salvo e sozinho. Continuou ali covarde, sem muita coragem de voltar ao rio € a vida. — Maria-Velha, dizem uns que a vida é um perde e ganha. Eu digo, que a vida é uma perdedeira s6, tamanho é o perder. Perdi Miquilina ¢ Catita. Perdi pai ¢ mae que nun- ca tive direito, dado o trabalho de escravo nos campos. Perdi um lugar, uma terra, que pais de meus pais diziam que era um lugar grande, de mato, bichos. De gente livre ¢ sol forte... E hoje, agora a gente perde um lugar de que eu ja pensava dono. Perder a favela! Bom que meu corpo ja esta pedindo terra. Nao vou mesmo muito além. Se eu tivesse mais mog¢o, come- ava em qualquer lugar novamente. Comecei cheio de dor, mas comecei outra vida quando cheguei sao, salvo e sozinho na outra banda do tio. O tempo foi passando, pensava que estava ganhando alguma coisa. Nada, s6 dor. A dor sempre bate no coracao da gente. Cada dor cai como uma pedra no peito. Pedras Pontia; ¢ foram tantas! A dor d6i fina, firme. ral pedradas. Tantas! E mais aquela quando New Tuina morreu. Contudo Toté era es duro. Nao morria por qualquer coisa, Talver cle nem fosse de morrer. Pedras pontiagudae batiam sobre o scu peito, sangravam seu oe io € Tio Tots ali duro, Sio, salvo e sozinho. Maria-Vetha, mulher dura também, era a terceira mulher de Tio Tots. Quando encon- trou o homem, ela também jé tinha uma larga € longa colecao de pedras. Jé vinha sur de muitasdore € era por isso, talvez, que ela ae eee Podia até estar con- ouvidos fundos”, aaa eit uma gargalhada alta, que a ae a vem logo tristezando atras da : ae sera gente”, a de roca. O pai, antes de endoidecer entre um sumigo ou outro, fora. Vid: completamente, faria alguma coisa com a sua lucidez, Plantava a terra que tinha, vendia a colheita aos fazen- deiros. Fazia, ainda, cruz, banguinhos, mesas ¢ madeira. A mae cuidava um outras coisas de sha um lado esquecido. Tor- pouco da casa, tin rou café, saiu na friagem, pegou vento, diziam. Maria-Velha ¢ Tio Toté ficavam tro- cando hist6rias, permutando as pedras da colegio, Maria-Nova, ali quietinha, sentada no caixotinho, vinha crescendo e escutan- do tudo. As pedras pontiagudas que os dois colecionavam eram expostas 4 Maria-Nova, gue escolhia as mais dilacerantes e as guar- dava no fundo do corasio. Havia uma histéria que Maria-Velha re- petia sempre, um fato passado em sua infancia ¢ que ela recontava € recontava para a menina Maria-Nova: “Um dia, ela, Maria-Velha, ainda nos tempos de sua meninice pulava que nem ca- brita na frente de seu avo. Ele olhava, limpa- va os olhos e fungava sempre. Um dia, Maria descobriu que ele chorava. ~ O que foi, vove, chorando, chorando sim! Pulos acabritados, era a imagen, fi filha sua. Piha que ele perdera de 7 nunca mais vira, Mie-de-leit a cite de uma cri, iang: i escrava aie serchela contra o sinhd. Agarrou o elo pei ; _ tem pelo peito da camisa, sacudiur sacud A e*erava foi posta no tronco, iam sutri-la ate.9 fim. A er nga. filha de leite, chora, prita, ber »volta a si, quase enlouquece — Nao matem, “mama i Nio matem, “mamie Preta”, nio ma- tem “mamie preta”! Os sinhés re solveram entio vender a se soube dela. escrava ¢ nunca m: i‘ on tte, quando era crianga, quan- ben 9 Maria, toda vez que pulava, que ca- tava diante do avd, era como se uma pedra Pontiaguda atingisse o peito do velho fiona eee Era muito bonito. Tudo tomava um tom aver- melhado. A montanha ld longe, 0 mundo, a favela, os barracos. Um sentimento estranho agitava 0 peito de Maria-Nova, Um dia, nao se sabia como, ela haveria de contar tudo aqui- lo ali. Contar as histérias dela e dos outros. Por isso ela ouvia tudo tio atentamente, Nao perdia nada. Duas coisas ela gostava de cole- cionar: selos ¢ as histérias que ouvia. Tinha selos de varios lugares do Brasil ¢ de alguns lugares do mundo. Ganhava, achava, pedia. A igreja do baitro rico ao lado da favela, era de uns padres estrangeiros. Maria-Nova lé ia pedir sclos. Ganhava das patroas de sua mic € de sua tia. Tio Tatio dava os mais lindos. Ele tinha ido a guerra. Tinha histérias tam- bém. Mas, das histérias dele, Maria-Nova nao gostava. Eram historias com gosto de sangue. Historias boas, alegres ¢ tristes eram as de Tio Toté € da tia, Maria-Velha. Aquelas historias ela colecionava na cabega e no fundo do cora~ 40, aquelas ali haveria de repetir ainda. Maria-Nova crescia. Olhava 0 por do sol. Maria-Nova lia. As vezes, vinha uma afli- io, ela chorava, angustiava-se tanto! Queria saber 0 que era a vida, Queria saber o que 49 me leve até a Outra, Posso também j a ferida que 0 Magricela tem ne Bho nojo, mas olho. Posso ir assisrirs Tereza, quem sabe hoje ela dio ataque? Posso Passar devagar, Pé ante pé, Perto do barraco i Tito Puxa-Faca. Gosto de ouvi-lo afiar a lamina. Imagino a dor se ele me retalhar a car- ne. Hoje quero tristeza maior, maior, maior... Hoje quero dormir sentindo dor Maria-Velha parece que adivinhava os desejos de Maria-Nova, E quando a menina “stava para o sofrer,a tia tinha tristes historias Para rememorar. Contava com uma voz en- secortada de solugos. Solucos secos, sem ld Brimas. Sabia-se que ela estava chorando pela Yor rouca e pela boca amarga. da vida, e que nunca pode expandir toda a sua efervescéncia intima. Era um homem de matutar, de imaginar as coisas e as causas. Quando voltava de suas peregrinagées, vinha contando as novidades que ninguém acre- ditava. Era chegar no povoado, abrir a boca, j4 todo mundo dizia: “La vem mais uma do Luisao da Serra”. A primeira vez que Maria-Velha viu seu pai, foi na rua, Fora comprar fumo de rolo para o avé. Entrou na venda da Palhoga e viu um homem igual ao vové,s6 que novo.O homem fitava o além. Maria chegou, pediu béngao ao pai. Ele pediu a Deus que a abencoasse sem contempla-la, jé trazia o olhar distante, vazio. Ji estava quase louco. Maria, nao velha ainda, tinha uns sete anos, talvez. O wo de Maria-Velha sempre chorava quando via a menina cabritar em suas brin- cadeiras infantis de pula-pula. O velho tinha um amontoado de dores. Dos varios filhos que tivera, perdera quase todos. Vivo, s6 tinha Luisoe mesmo assim, louco. Luis fora menino 51 i nteligente, sempre indagador das co; 8 ois, causas. Era um rebelde, odiava os sinh s sin Quando venderam a sua inms a, aS das 6s, ter agarra 6 agarrado 0 sinhé pelo peito da carne Sao! Ic isa, mitava ddio ¢ prometia se vingar, Por fe i: Por fog na casa-grande. Chorou a noite tody. FE teve uma surpresa. Luis falou com ele dase te horas naquela lingua da terra distante "0 Pa pensava que 0 garoto soubesse falar 6 a Qual nada! Surpre- } Luis falava aquela linguagem tio No outro dia Luis sumiu. O avé de linguagem dos branc Maria chegou até a chegou até a pensar que os sinhds nm vendido o rapaz também, Eles ja ti- nham vendido Ther © os outros filhos, ua 1 matado © menino? Sera que tink Anos se pass tebelar, im, © homem sem se a dor, 0 banzo alimentando a » vender tanto fazi indo ov ‘paz, homes Pent © alto, sem- 52 yer nio é preciso nem = Pai, vamos daqui, iessas_andangas da fazenda. Ni HA muito que branco no € Nem vender Iya, a mic, minha irma falar pro sinhO descobri coisas... mais dono de negro. com os filhos, nem vender Ayaba podiam. Tenho algum dinheiro, labutei fora, trabalhei madeira e vendi. O homem velho ¢ 0 homem moso fo- ram acaminho. O velho calado, o mogo mudo. CO homem moo comprou um pedago de terra, passaram a lavrar 0 que era de seus, pai e filho ‘A vida seguia calma, boa. Luis vivia a cismar coisas, a falar sozinho. © pai olhava o filho, © filho olhava o pai, os dois estavam sozinhos. tivesse O pai queria tanto que o filho casasse, mulher ¢ filhos, se multiplicasse, continuas- se a raga. Luisio da Serra cumpriu os dese- jos do pai. Casaria, Uma negra calma haveria de ser a bonanga, a paz, a lucidez de sua lou- cura. Teria filhos: Maria, Tatio, Natividade, Ilidia ¢ Joana. Ele ja velho, ainda haveria mui- to de chorar, vendo Maria, sua neta, ali na sua frente. Naqueles momentos tinha a impressio de ver a vida se repetindo. Maria era igual, era. a imagem pura de sua filha Ayaba. Filha para quem ele escolhera um nome bonito. Os sinhés na i ; naquele dia estavam de bo; le bom coragao talvez e it neon Seu povo significava Rainha Maria era i, aA aby "a, Maria parecia igual 2 i com a Rainha. oe Bondade conhecia todas as misérias ¢ ‘grande- vas da favela. Ele sabia que ha pobres que sio capazes de dividir, de dar © pouco que tém ¢ ne ha pobres mais egoistas em suas misérias ae 8 ricos na fartura deles, Ele conhecia i arraco, cada habitante. Com jeito, ele aa Mm eatrando: no coragao de todos. E quan- o a £6, ja se tinha contado tudo a0 Bon a a a eer como, sem perguntar today, Baht’ Participando do segredo de 2 de homem Pequeno, quase mitido, ce pe Muito espaco, Daj, talvez a sua ca- estar em todos os hy igares. Bondade sai © apelido que merecia Im dia, jé fazia 3 Alina fine fitia anos, Bondade chegou tos € a boca seca de sede € orta em que ele bateu foi na de VO Rita. Passou ali o resto do dia, o rmiu. No outro dia, tirou do saco um chapéu de couro, deu um bejo na testa de V6 Rita saiu a ver 08 OW oe, Nunca mais parou. Todos jé tinham em vee eantinho para o Bondade, assim que cle hegasse. Ali cle forrava a sua cama e dormia. ue ficasse, nao era um Durante o tempo em q estava ajudando sempre. Nao se sabe fade tinha sempre um trocadinho. um remédio ‘Tinha os olhos afl de fome. A primeira Ps comeu € do: ‘0 scu tesouro, parasita, como, Bond: Era um leite que ele comprava, que trazia, um pio que nao se teria hoje. Cortia 0 boato que Bondade era rico, la pelas terras dele, Pernambuco ou Par, nao sei. Diziam que ele tinha dinheiro que rendia ju- 10s. Fato é que Bondade, sempre uma vez por més, safa da favela de manhi e sé chegava com © pér-do-sol. Diziam que ia ao banco buscar dinheiro. Podia ser! No outro dia, as criangas ganhavam doces ¢ ele atendia sempre aos mais necessitados, os que tivessem com uma carén- cia urgente. Comprava também uma garrafa de cachaga ¢ bebia tudinho. Depois se deita- va no canto do barraco onde ele estivesse, € 55 curiosidade em pessoa, Tod V8 0 mistério de Bondade Maria-Nova tinha em Bo, OU triste? Ela quase se amargura. Achava vida de todos, tud Bondade, entao comegou a contar: Maria-Nova, em um barraco desses ha uma menina de sua idade. Quantos anos vocé tem? Treze. Isto mesmo, treze anos, A meni- na sonha. Infantis desejos, guardar na palma das mios estrelas e lua. Armazenar chocolates e magas. Ter patins para dar passos largos... A mie da menina sonha leite, pao, dinheiro. Sonha remédios para o filho doente, emprego para o marido revoltado e bébado. Sonha um futuro menos pobre para a menina. A mae da menina sonha ter nenhuma necessidade. So- nha dinheiro, dinheiro, dinheiro... Para um pouco e recomeg: Outro dia, veio aqui o fornecedor da fi- brica de cigarros, suprir os botequins da favela, © homem, diferente de nés, fala grosso com a mao no bolso. A mae da menina fica a olhar a mao do mogo sempre no bolso. Os dois se olham. Ela jé sabe do vicio do moso. O mogo ja sabe das necessidades da mae da menina.O mo¢o € répido, direto, franco e cruel. “Quan- to vocé quer, mulher?” A mie da menina nio responde. O mogo tira um pacote de notas. A mie chama a menina: Nazinha, acompanhe © mogo!” © homem pega a menina pela mao € segue outros rumos. Nao ma; fabrica, era preciso fugir, pega do patrio. A mae da menina aj is © rumo dg rao dinheiro NTA Os trapos 0 filho doente, 0 marido revoltado e bébate Procura outros caminhos, também era Preci~ so fugir. Maria-Nova na noite em que ouviu a histéria de dor da outra menina dormiu e sonhou com amiguinha. Nazinha sentia dor, Sangue, sangue, sangue... Era como se a vida estivesse Ihe fugindo, a comegar por aquele Ponto entre as pernas. O homem tapou-lhe a hoca ¢ gozou tranqiilo. Deis dias depois, o zunzum se espalhou pela favela. Teté do Mané vendeu a filha. O homem comprou com dinheiro roubado. A Policia estava fazendo a sindicncia, Ninguém sabia para onde ela havia arribado com o filho doente ¢ 0 marido bébado. Este foi o assun- to durante uns bons dias baixo como na torneira , tanto na torneira de de cima, Maria-Nova ja sabi, do. Ela sentia falta, senti; Por sua amiga Nazinha, ‘a antes de todo mun- a a dor, se angustiava <1 numa madrugada chu- os ossos. Era mui- s negras bem ‘rio chego Alirio ch : mae até ‘ Estava molhado — ras ito, tinha as caracter! to bonito, i irio. Ela siete ia-Nova gostou de Negro Aliri faria- era uma menina, mas ne «4 bulia dentro de si. O que faeaniginieee N 10 Alirio foi da boca. Ela fic 7 oe ; la as labios carnudos. A ee ae i ai - : Alirio coincidiu com avenda de aa No s, Maria-Nova confun Nos sonhos noturnos, satires audo, © homem que comprara Navinha ers ro Alirio, Nazinha era ela propria. S6 q\ eee ‘A boca de Negro Alirio a i to. ela nao sofria tan the dava um certo alivio. Acordava suada, em 1c ‘ asem i Uma certeza Maria-Nova tinha: lagrimas. Uma Es ia nunca! Mae Joana nao a venderia nui alguma coisa de mulher mais gostou em Mie Joana era uma mulher triste. ae fee nunca. Conscidéncia ou nao, era ilies le Maria-Velha. Vinha de uma mie que tinha ° Jado direito abobado, adormecido e de um pai doido, demente, maluco. a pu venderia alyurn dj 8, KE] ii = - la comeria 0 pio que o diabo ana” 1, 10a ao i die Le fanit te fundo do inferno, mataria se prec D Tosse, a i: : eo Mex ganas nat daria nem venderia neha °8 filllos, Mae Joan he Joana estava ali feito gali ae 1 feito Tepiada, detectando ‘eper 0. E, Bo. E na sua fragilidad Maria-Nova ¢, apesar de Tio Toté estar se tornando um velho sistematico, ele permitira gue Negro Alirio passasse o resto da noite ali. Mal o dia raiou, Negro Alitio Jevantou-se € saiu. Tio Totd sentiu um certo alivio, Maria- “Velha, indiferenga, Maria~Nova uma espécie de tristeza. Negro Alirio encontrou pouso Jogo perto dali. Baixou a sua tenda na casa, no corpo € no coracao de Dora. Maria-Nova sentiu que Negro Alirio ti- nha um segredo. Percebeu que ele tinha nos olhos o ar de fugitivo. Tempos depois, Bon- dade Ihe contaria uma historia que logo ela adivinharia como sendo a de Negro Alirio. Ela jamais esqueceria aquele homem molhado até os ossos, aquele ar misterioso, aqueles labios carnudos. E aquela imagem, por longos anos se tornou um vicio. Maria- -Nova sempre procurou aquela sensagao pri- meira, aquela impressio deixada por Negro Allirio, no corpo, no jeito dos homens que ela veio a ter um dia. Na favela havia uma familia que tinha um grande comércio, O negécio deles nao era 61 Cia de todos, Vendiam tudo, ane ne Pet, 05 homens compravam ficha ¢ j a € iam Jf se b; se banhar. Dey + Devia ser bom, era banho de chuveiro, co; A famili - ah finlia de Maria-Nova néo fazia uum gasto q ett Tio Tors achava que ser @ mais. Mari, : 7 ria-Velh; ies : a sempre lavay: ‘uscava 4gua em torneiras pil : erimentar 0 banho de chuveiro. A nao era exp : omens que saiam dos quar- ser a alegria dos hi a fnhos de banhos, ainda nus da cintura para cima e com a cabera molhada, nada era inte- sessante por ali. Nada para se ver. Aconteciam coisas, porém. Ali, na porta do armazém esta- vam os homens, alguns bébados, outros vadios ¢ muitos os trabalhadores. Entre eles havia os que bebiam o dinheiro todo e, por isso, as mulheres sempre iam 14 brigar. Algumas bri- gavam também com S6 Ladislau. Esses acon- tecimentos Maria-Nova nao achava graga em observar. Ela preferia mesmo a torneira ptibli- ca. Gostava de ver a agressividade das pessoas nos dias em que a agua estava pouca. Gos- tava de ouvir as histérias que as mulheres, as vezes, contavam baixinho. Gostava de ficar a espreita, olhando fixamente para 0 portio na esperanga de ver a Outra. Era preciso aguar- dar o instante em que ela, as escondidas, viesse admirar o mundo. Uma sombra se movimentou e quando 0 enigmatico corpo percebeu os olhos da menina 63 cm cima de si, se desfe E duro Cnfig nM 0 T das pesso; te 0 olhar das Pessi Ultima nente g f filho ultimamente : ferente. Ela percebi Sera? Até seu filho? vt 7 olhares dos outros. Tinha von mas faltava-Ihe coragem. O fee menina, com seu olhar ae Perado. Aquela busca incessa mente, Maria~Nova nao safa da tempo de férias. Epoca de aula uma parte do dia, : ior era aquelg » cruel, deses- inte. Ultima- torneira. Era cae pelo menos nte lem- brava 'm que ela estar i wa ali. Nas féri . Nas f tormento! Maria-N, eae i ‘ova ficava du; dia lavando roupa o1 ante todo o 64 is de bola, um outro mo- 5 festi in dos fes' , : tht a favela respirava allegtia crt Numa casa ou noutra, s¢ Colhia-se dinheiro de as festas jun fogucira. dar, comprava-se canjica ¢ 8CUS pronto para um ¢n- acendia uma quem pudesse ingredientes ¢ estava tudo voir, para uma festa. Se viesse alguém que nao tivesse participado com dinheiro, nunca the seria negado um prato. Entretanto, havia uma festa ju vela. A festa de Cabo Armindo. Cabo Armindo, antes de tudo era um brasileiro devoto. Em todas as datas civicas, ele, talvez tendo herdado o espirito ¢ as pra- ticas do Quartel, punha na vitrola o Hino Nacional e, com seu servigo de alto-falante, a musica se espalhava pelos quatro cantos da favela. Dia Sete de Setembro, ouvia-se 0 Hino Nacional o dia todo. Dia de Nossa Se- nhora Aparecida, padroeira do Brasil, tam- bém. Neste dia, rezava-se 0 tergo ea ladainha de Nossa Senhora. Depois sempre tinha uma mesa farta de doces ¢ biscoitos. Todo mundo comia. Muitos nem gostavam de rezar, mas iam pelo lanche. nina que se tornara oficial na fa- Soas eram solicitadas Para tirar o t as rezas de casa em casa, TSO, puxar Os santos Visitavam olhos sempre indagad i re “SF ste, aocthada ne we OPS No meio d los ani 66 Brandes Jer tao bem as oragoes do livro. Maria-Nova, muitas vezes Jia em latim a Jadainha de Nos- sa Senhora. Todos sabiam a Jadainha de core sespondiam em coro: “Ora pro nobis”. Maria~ _Nova, emocionada, lia alto ¢ firme: _ Mater creatoris. E todos respondiam: - ora pro nobis Mater salvatoris, ora pro nobis. ‘Mas a oragio de que Maria~Nova mais gostava era Salve-Rainha. Havia partes da ora¢ao em que ela via todo o seu povo, em que ela reconhecia o brado, as tristezas, os softi- mentos contidos nas histérias de Tio Toté, nas de Maria-Velha e nas hist6rias que Bondade contava. Ela conhecia e reconhecia os perso- nagens. A oracao podia ser aplicada a vida de todos ¢ a sua vida: “A vis bradamos os degredados filhos de Eva Por vés suspiramos neste vale de lagri- mas [...]” Ela via ali, em coro, todos os sofredores, todos os atormentados, toda a sua vida e a vida dos seus. Maria-Nova sabia que a favela nao era o paraiso. Sabia que ali estava mais para et mas pec a muito 4 No: Permitisse que que methora cles ac. ; chorar, festajunina Nnaca: Para os adultos, Cabo Os ensaios com Armindo era exigente ava com uma certa an- sempre aos sb tes sabados ¢ do- 408. Quem faltasse aos = Se apresentar no dia, p qu HME Se propunharn a d ter tecedéncia ¢ cram ensaios nio podia ‘oucos faltavam e os langa cria Cae ar queriam mesmo © ativa na festa, Cab n ri- “abo Armindo morava na area : ndo mo a | pp o numa area py Sua casa oe ua casa ficava no centro P enorme, Armava-se wadrilha, Os assists ou do lado vile, a fogucira, entes fica- de fora da cerca fannavanse a q vate ne 1 10 terreiry de modo que as pessoas c4 de cima assistiam a tudo também. Ele bancava toda a festa. Serviam-se canjica, doces, biscoitos, fogueira, hatata-doc quentio, tudo @ vontade. Ninguém pagava nada. Diziam alguns que cle apenas organi- vava a festa ¢ cedia o local, mas quem banca- va tudo eram os ricos que moravam no bairro nobre bem ao Jado da favela. Bancavam para que 0s favelados nao 0s importunassem. Ha- via outros bairros perto de favelas em que as casas eram constantemente arrombadas. Pa- rece que havia mesmo um acordo tacito entre 0s favelados ¢ seus vizinhos ricos. Vocés ban- quem a nossa festa junina, déem-nos as sobras de suas riquezas, oportunidades de trabalho para nossas mulheres ¢ filhas e, antes de tudo, déem-nos 4gua, quando faltar aqui na favela. Respeitem nosso local, nunca venham com plano de desfavelamento, que nés também nao arrombaremos a casa de vocés. Assim, a vida seguia aparentemente tranqiiila. E, dois grupos tao diversos teciam, desta forma, uma politica da boa vizinhanga. Na quadrilha de Cabo Armindo, duas mulheres sobressaiam sempre: Mae Joana ¢ 69 Cidinha-Cidoca, Mie Joana, todo linda € séria, Cidinha-Cidloca, em cc do de caipira sempre branco ¢ cheig 4 da, Mic Joana, linda e séria; Cidinha- Cine bonita e risonha, bonita ¢ faceira, bonita em. sinuante, » CStava ‘U Vesti~ tac in- : Maria-Nova nunca entendeu porque Mic Joana, tio linda, com aquele vestido, eve cha ficava meses fizendo & mio, que fave tio bonito ¢ que todo mundo clogiava tanto, ao se olhar no espelho, ao ver a sua imagem. refletida, nao desse nem um sortiso a si propria. site Mari Now nio entendia a seriedade, a 808 ¢ sorrisos da mie. Mac Joana, Ma na, Mic Joana, sorri ae : la, SOrria Mic Joana! ia um pouco, Ji Tio Tors sempre foraum ho mem de sorrisos fartos. A 1em de risos ¢ gargalhada del oni A le retumbava Ele viera de pais escravos, Views an sozinho da outra banda do rio, de ‘ , dei Aguas, o melhor de 0, salvo ¢ xando nas ‘ s in u. Viera de uma primeiy le uma segunda mulher morta. Viers sie . Viera de 70 Estava no terceiro casamento, de vida com scus noventa ria filhos mortos. cumpria seu tempo até ha bem pouco tempo, ¢ tantos anos. E Seu riso, sua gargalhada gostoso, ria liberto. foi rarcando quando cle Tio Toté custou a se torn: comesou a envelhe- ar um velho. Aos cer. oitenta anos cra uM MOGO- E gostava de repe~ tir; cu nao sou de morte facil, de vida dificil, as suas histérias, a que cle gos sim! De todas ar ¢ repetia sempre, era a da tava mais de cont travessia do rio. Sempr “Cheguei sia, salvo € banda do rio. Gostaria de ter morrido, mas es- c comegava assim: sozinho na outra tou aqui. Mas, um dia, todos comegaram a per ceber que Tio Toté estava envelhe endo. Nao pelos cabelos brancos, porque hi muito que cle jf os tinha. Nao porque andasse meio trO- pego ¢ nem porque ja trouxesse a voz meio rouca. Nao cram essas as marcas da velhice de Tio Tot6. Ele envelhecia porque estava per- dendo as esperangas. Envelhecia porque nem vontade de recomegar de novo tinha. Enve- Ihecia ao fazer um balango de toda a sua vida €s6 ver a morte como unica saida. 1 : ist to de Tio Tots e dese; 2 80 envelh pouco de j lesejava comunica, wu ec juventude. Ela sab tnicar-Ihe z = - Ela compreendi le, mas Perguntava ao Tj ete ae ao 10 Tio Tots; nds, € eu? : Tio Tots insistia: ~ Maria-Nova, pi oo ‘Nowy Para que sitvo? A fave » ie tenho de i — i ir com vocés? Px i. bade Meu corpo pede terra ] ol ac i: : 6 nao entendia que seus noven- tae tant 0s an 10s eram necessérios aos quase quinze de Mariinha ~ Estoy i tando viver hg and» menina! Jé venho ten- lidas, Voce co Sande tempo, venho de duras tra mulher, Ria, sorria, espantar, 5 para deb squecer © aceitar ote! roldio, levadony, © T°! havia ie ee que ex tinha qe, Mae de 72 © melhor de > a me transformar em. em ia ficar amalu- abega no lugar tei, Eu nao queri desesperada € Carecia de por ac mev. Lu ama pessoa cado por isto. e sair vivendo- Deu uma pausa ¢ retornou: w Nas andangas de 14 para c4, consegu do de almanaque, Li todos, foi 0 i. Tinha dor na cabega ando acabei a lei- ido alguma coisa. jA no me dava um punh: tempo em que eu mais e nas vistas de tanto ler. Qu: tura de todos, havia aprend Senti que lia melhor. A leitura tanto trabalho. Eu ja nao precisava mais juntar Jetra por letra, havia palavras que eu lia no pri- meiro olhar... Um dia li em voz alta para mim mesmo e senti que quase ndo gaguejava mais. Passei, entio, a copiar tudo que eu gostava num caderno e veja isto aqui. Estas palavras riscadas embaixo:. Os sonhos dao para 0 almogo, para o jantar, nunca. Mostrou-lhe 0 caderno e continuou a contar: — Fiquei embatucado com aquele dizer. Primeiro pensei que era sonho (doce, daquele ae {Go gostoso que fiquei mMatutando, ve tanto sonho no almogo de mi- cer. TiVe acontecet Nanhai de minha lida, ¢ hoje, 2° vida, aba vido 2 fenho afore, a esesperans.~ jantas Quando Tio "Tots conheceu Nega Tuina, ele anda tina no peito aquela pedra pontiagu- jh causando-Ihe uma profunda dor. Havia até sequecido 0s prazeres que uma mulher Ihe poderia dar. Vinha de umas andangas pelo interior adentro. De fazenda em fazenda que passava, trabalhava e sempre juntava algum dinheiro na mao. Apesar da dor, havia decidi- do que louco nao ficaria, nem abobado. Ten- taria ludibriar o sofrimento ¢, apesar do luto, decidiu se aproximar de Nega Tuina, moga bonita que trabalhava na cozinha da fazenda, enquanto cle estava a labutar na roca de al- godio. Havia uns dois anos e pouco que o rio tinha bebido o melhor de seu. Armando-se de coragem e se agarrando aos sonhos de uma vida melhor, Toté mandou um recado para a cozinha da fazenda. Que- tia falar com Nega Tuina. Queria convidar a moga para ir embora com ele. Nega Tuina 75 art Zo indagou be aa ela nascera is nada. Ela : era mais — ¢ isto acendia um de- de scus homens ce Ihos, principalmente Nega Tuina. Fi s¢jo em i ei i 7 Sohos, ela queria de montdo, um, cinco, ded, oe Alhos. Ela queria treze filhos. Até o dia dh partida, Nega Taina nfo trabalhou ¢ nem Gormiu mais, trangaila. $6 tinha uma imagem wa cabeca, a. do mogo Tots, nu da cintura para Uma, suado, reluzente. O corpo negro sobres- saindo entre as alvas flores de algodao. Dai aalguns dias, assim que 0 Padre Joao passou no povoado, os dois vestiram a roupa domingueira e, na capela, receberam a béngio do casamento. Nega Tuina s6 quis uma coisa, apanhou trés flores de algodio, amarrou com um pedago de palha seca, ¢ este foi o buqué que ela levava na mao. O coracio do mogo ‘Toté batiae ele sorria deixando entrar em si as novas promessas, os sonhos, as doces ilusGes. Nega Tufna no tinha se enganado. Sempre que ela via 0 mogo Toté de risos sortisos tao fartos, ela imaginava que ele se~ ria homem de outras farturas. E era. A vida continuava como um rio em remanso. Vieram caminhando para a capital. 77 Hovia muit. bri © que B tr 01 ria nenhuma para tre Rio . zy atia-No, ta hy is contava empre alow lova, ma, Mar, Ti Maria-yn? Tos bém. A ti - lta con: - tava as dela ¢ as da ‘elha ae ima Joan loay na expressio |i = ce linda e triste da mie. A LOS; 7 aie '@ para que Bondade th, an s iguma ‘atos estavam acon i a sas ela percebia, mas sé — elhor entendimento, ei a » mui consegui: : ia um que ouvia. Ela preci Por meio das narraca entender, E Precisava ouvir o o1 igGes Tr. utr » qui cmende B, quando, nau di Bondale aoe IS Passos mitidos a soleir: 7 rap Corasdo de Maria-Nova ““ lhe om ae oe Pele boca. Olhou com afli nepoua u. do or € omu,Bondade piscou para oo wadis . Cor certeza de i lo-the © corpo todo, ela te 2 mento, ri ina conhecer, na el oe — e storia de Negro Ali iquele_ mo- ‘os do rio. Desvi manso, en: olhar de Bondade. Ele, calm 2 quanto nela, 0 compo t —— ‘odo ardia. Um Ponto se. mai Secreto de seu cor aa Maria-Ni Po queimava-lhe «.Lembrou-se 105° de seus labios carnu- 95808- dos, pensou vida e de Pevizo-~ ig Bondade assim comesou expressio cera bem longe dali. Quan- ‘até um dado momento, UM ‘Um dia aprendera a ler. A The a observacao. E da ob- cayagdo a descoberta, da descoberta A anilise, dh anise & agao. E ele se tornou um sujeito ativo, muito ativo. ‘Nao era um mero observa- amorado das coisas € do mundo. O Homem nas do crianga fora, moleque qualquer. Jeitura veio aguear-| dor, um en: Baz um operirio, um construtor da vida Ja de jovem, adquirira a certeza de que er feita, ¢ no podia muita coisa estava para st esperar, cruzar os bragos, esperar resposta dos outros ¢ do além. Era preciso ir lé, no fundo do poco, era preciso por o dedo na ferida e fa- zor sanggar. Era preciso que a ferida sangras*® o sangue mau, apodrecido, primeiro. Depois, aos poucos, gota por gota, © sangue estancaria € 0 corpo novamente poderia se por de pé e procurar seus caminhos. 79 mente no seu canto de do a sua sabedoria, cada qual sedi sua ignorncia, a sua pobreza, cad nn? fiaco © temendo o corondl Joni ronel Jovelino falende modo eo imitando avoz do patrisemandandan ee ¢ mandando na gen- te como se donos fossem. Sabiamos que algu- ma ooieaestava exrada, que era peed muulaz Ou a gente ou eles. Sabiamos também que os capangas dele eram gente nossa. Tinhamos comprovado que todos eles, antes de serem capangas do Coronel, eram nossos irmaos. Sé ieee sob a protecao e a ordem do 7 a nos desconhecer. O que acontecia? A vor gritada e fria do patrao, do senhor, mudava a voz do empregado? Por que avoz do Zé Meleca, que até ontem era a nossa terra, cada qual reten- $0 Fc Ls szestava mudando tanto? O ‘Zé Meleca seria vor esti par aquela arma do patrao que cle a de Sara, contra algum de nds? Sera? bém se perguntava: “Zé ‘A menina taml do senhor contra seus irmaos?” Mharia-Nova, a0 desenhar em sua ima- ginagdo 0s tiros que se anunciavam na arma do capataz, lembrou-se de Tio Tato. Ele conta- va histérias de guerras. Um dia ele contou um pouco da guerra que havia participado. E nao se sentia heréi por isso. Na época era preciso recrutar mais e mais soldados ¢ s6 por isso cle foi aceito para o servico militar. Quando se alis- tou, nio era alfabetizado ainda. Havia outras questdes, uma delas era o fato dele ser de baixa estatura. Mas todos eram bem-vindos naquele momento: negros, indios, cafuzos, sararés... Nao se exclufa ninguém. Naquelas circunstdncias a patria era de todos. Tio Tatéo ainda narrava @ historia de uma outra guerra. Aquela em que muitos escravos participaram da peleja. Foram com a promessa de que, quando voltassem, ga- nhariam a liberdade. Guerrear foram, havia a EY 2 ae. Pedro da Zic, Ainda tey ‘angiientad: ni tempo de gritar: ‘© NO chio, ~ Iserg ' - Ze pacrivell Capacho de € Meleca guardou a do duro feito z arma ¢ saiu pisan- © patrao, mas 5 Pperto, ou veg em pode ver d ~ 0» quem teve tempo de ver os olh: de 7 10s viu uma nuvem de medo, de res ce re » de remorso talver, oo a burro, sabia que estava numa te ri emprestada. Sabia que estava sendo Sado, sabia que nao era o patrio, Sabia que era um miseravel mesmo. Acabara de matar um homem, um irmao, a mando do Coronel, Por uma questo de terra. Com a morte de Pedro da Zica, a ferida comegava a sangrar, e ainda muito sangraria. © Homem estava ali para fazer a ferida san- grar até onde fosse preciso. Os companheiros cobriram Pedro da Zica com um pedago de pano branco e acen- deram uma vela. Enquanto alguns ficaram ali branco! Porco! outros buscaram forgas li no fundo de suas ansiedades, de suas se sjtas ¢ foram a casa do Coronel Jovelino. Nao havia diividas, Pedro da Zica havia sido aseasinado a mando do Coronel. Hé muito tempo a contenda cxistia. Jé os avés do Co- queriam tomar as terras dos avés de de guarda, de suas fraque ronel Pedro da Zica. Terras tao boas, tio vizinhas da fazenda! O que custava aquela negrada vender as terras ¢ desocupar 0 beco? Mas os Zicas eram teimosos. Nao vendiam, nio sai- am, embora se sentissem cada vez mais acua- dos. Sempre ¢ sempre um elemento ou outro da familia Zica sumia ¢, dias depois, aparecia boiando nas Aguas do rio. Coronel se encar- regava de espalhar a noticia e de lamentar que a familia dos Zicas tivesse a mania de suicidio, de se matar, langando-se as aguas do rio. Os Zicas sabiam que era mentira. Um dia, o Homem, que, na época, era ainda um pouco mais que um menino, ja de noite, tomava banho no rio, quando viu alguns homens chegarem carregando uma pessoa que parecia morta e jogé-la nas aguas do rio. Reconheceu que eram os homens, os capan- gas do Coronel. No outro dia espalhou-se a 82 =i’ cn 83 Sara a ser também do Hom em. ° : Homem, quando ainda menino, ao testemunhar © fato, sentiu que ali havia algum Perigo. Voltou para casa, calado, quieto, obser- vando, vasculhando tudo. Nao conseguiu dor- mir naquela noite, chovia muito. Relampagos furavam o céu. Olhou seus pais que comesa- vam a envelhecer. Pensou que, talvez eles esti- vessem deixando a vida desperdigar, gastar em meio a toda aquela pobreza. Mais um relém- Pago cortou o céu ¢ o pensamento agudo cres- cia em sua cabega. As coisas tinham de mudar, ¢ quem faria a mudanga seriam eles, porque 0 Coronel, os ricos nao mudariam nunca. Na- quela noite, cle nao dormiu, pensou o tempo fatos: um, era aquele que acabara indo langado todo em de de testemunhar - um homem se i - tro, pelos capangas do Coronel ‘ a a ais Ihe contaram : Ele tivera um bisavo que tinha ae il dana perna. A chaga comiarlhe no S® @ bém 0 0850, tornando-se mais um ne, mas tam! sda aioe erfrimento que o acompanhara pela vida sa. Ja-velho, inttil para o trabalho, peso morto, fava sentado, ¢ a ferida exposta aos mosqui- tos, além do cheiro ¢ da dor. Sempre que 0 Sinhd moso passava por ele, fazia questo de chutar a ferida do velho. Ele apenas gemia: “ui, ui, ui,...Sinh6-mogo! Depois, muitos anos depois, uma ferida apareceu na perna de Sinh6-mogo, na mesma perna, no mesmo lugar. De nada valeu todo tratamento, todo cuidado. Nem médicos, nem garrafadas, nem rezas de pretos-velhos. A fe- rida sangrava, fedia e comia a perna do Sinhé- -mogo. Os negros diziam que era castigo de Deus. E ficavam felizes porque tinham um Deus que se vingava por eles e que um dia Ihes daria o reino do céu. ao tio um fato que seus P Ele, ainda pouco mais que um menino, naquela noite pensou: “Deus que tivesse pena dele se aquilo fosse pecado, se aquilo fosse blasfémia, mas eles precisavam de um Deus ae 5 SOMtTano ao seu. E Mesmo que, fosse m, tudo o gu “raum homem ser ogado no tio, angas Pangas de Coronel Jovelino, Os miseriveis preci cles tém Deus ao seu do! Forge Foi isso que o Ho- mem pensou na noite em que viu j a - que viu jogarem um jomem morto no rio. Ni ° ; 10. Noite em que ele nio conseguira dormi S: i ec bae crm pensando no acontecido ambem revivendo a historia de um bisavé que ele nem conhecera. A pera ferida, ¢ a Vida agredida do velho. O mesmo pensamento voltou naquele instante, uns dez anos depois, enquanto caminhava com os outros apres sado € raivosamente para a casa do Coronel Jovelino. Era domingo e todos que passavam para a missa viam 0 corpo de Pedro da Zica estendido no chao. Alguns ficavam parados, 86 morto ou com s sc mo mandou matar. Outros jam adiante. O Homem Seria hoje que cle poria © Ta dos que estavam do lado de ls oi estava sangrando ha muito hoje se confundia com o dia de eria que ser diferente. menino, dedo na ferid A ferida dos seu! tempo.O dia de hoje s ontem, mas 0 amanha Quando cle, ainda quase um scondou, ou melhor, viu 0 dia ¢ as pessoas 2607 darem, quis gritar 0 que vira na noite ane Contemplou scus pais que estavam vestidos com a roupa domingueira. Eram os trapos menos trapos que colocavam sobre 0 Corpo, quando o padre do povoado vizinho aparecia para celebrar a missa. Contou a eles o que havia acontecido. Percebeu nos olhos do pai um ras- gio de temor ¢ levou uma boa surra por ter ido ao rio a noite. A promessa de uma nova surra foi feita, caso contasse aquilo para alguém. Enquanto os pais dele foram a capeli- nha, um pouco distante dali, ele saiu pelas vi- as do povoado. A noticia ja se espalhara. Mais um Zica se havia jogado nas Aguas do Rio das Mortes. Mania estranha dos Zicas! Ele sabia que era mentira, Quantos Zicas j4 haviam —~¥ a 87 aparecido boiando depo} sumico? Uns quatro ao 7 py nhecera. Ele sabia ick acontecia anos ¢ anos ant : um no na Sarganta, bi ae Presenciara. Qual foi a sua nn teas quase lhe bateram també; oat Tam contar i ee E Para os pais dele, 9 que ele estay; azendo. Confessaram que nao gosta i te Coronel. Que nao dariam e nem aaa a terra, mas que nao podiam fazer nada. Que um dia, Deus daria 0 troco. Sé uma pessoa da familia dos Zicas, s6 uma mulher, uma velha, chorava e esbravejava. — Assassinos! Amanha, mesmo que me afoguem também, eu vou ter com o Coronel Jovelino. Dias depois, naquela época, mais dois fatos sangraram a ferida do Homem: a velha apareceu morta nas 4guas do Rio das Mor- tes, ¢, uma professora, a mando do Coronel Jovelino, apareceu em sua casa para ensind-lo a ler. A mesma professora que ensinava os fi- lhos do Coronel. O Coronel sabia que o maior i. uisesse. Este € outros Tet oita de trabalho € oportunidade para estudar 12 capital, como oe 7 ie filhos. O menino nunca mandou ie cimento qualquer. Aproveitou bem os ensins mentos da mestra. Cresceu. : ‘Agora ali, grande, era a primeira vez que jria encontrar com o inimigo benfeitor. Sabia bem porque o Coronel fizera aquilo tudo. A yelha Zica fora a ultima a aparecer afogada nas Aguas do Rio das Mortes. Todo mundo sabia que a pressio continuava, porém, nin- guém mais se suicidara. A ultima investida acabava de acontecer. O Pedro da Zica morto, assassinado aos olhos de varios deles por Zé ‘Meleca, um capanga do Coronel Jovelino. © Homem caminhava meio cego de 6dio, relembrando 0 fato acontecido ha dez anos, € o daquela hora. © ocorride no pas- sado s6 ele testemunhara ¢ fora obrigado a calar. Agora, nao! Nao era mais um indefeso vieram... O oe so ie 7 que quisesse conter a emo- ¢4o, nao conseguia. Hora houve em que ele percebeu e se calou um pouco. Calou-se tam- bém com um né na garganta, pois sabido é que Bondade vivia intensamente cada histéria que narrava e, Maria-Nova, cada histéria que escutava. Ambos esto com o peito sangrando. Ele sente remorsos de ja ter contado tantas tristezas para Maria-Nova. Mas, a menina € do tipo que gosta de por o dedo na ferida, nto mas naquela que ela traz no Ja herdou de Mae Joana, 0 Tot, do Louco Luiséo na ferida alheia, pico. Na frida Qe © ‘Maria-Velha, de Ti Serra, da avé mansa, que tinha todo o lado Steeito do corpo esquecido, do bisavd que te enderem Ayaba, a rainba. nha visto os sinhés v e Maria-Nova, talver, tivesse 0 banzo no peito. Saudades de um tempo, de um lugar, de uma vida que cla nunca vivera. Entretanto 0 que dofa mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente, mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimi- dos, os miseraveis; em todas as histérias, quase nunca eram os vencedores, ¢ sim, quase sempre, os vencidos. A ferida dos do lado de cé sempre ardia, dofa e sangrava muito. ‘A menina, apesar da dor, pedia mais ¢ mais aquela historia. Gostava de alguns pon- tos coincidentes entre ela e o Homem. Am- bos, quando pequenos, tinham o desejo de aprender a ler. Pequenina, ainda se entreti- nha horas e horas com revistas ¢ jornais que a mie e a tia lhe traziam. Tio Tatao, por vez ou outra, aparecia com um presente, um livro. Maria-Velha e Mae Joana sabiam ler. Maria- -Velha aprendera com uns missiondrios que 4 oN OO \ an jaria-Nova 4 medi P n a medi- '2 que aprendia se tornava mestra dos irmios menores e das crianas vizinhas. Maria-Nova crescia, lia, crescia. Coronel Jovelino andava para lé e para cé na varanda da sua fazenda, Ele sabia que a terra estava pegando fogo. Que merda havia feito o Zé Meleca! Matar um dos Zicas assim, em plena luz do dia, perto de todos. Agora o meni- no crescera, ele que sempre fora uma pedrinha na sua botina, machucando seu calcanhar des- de o dia em que, garoto ainda, testemunhara nado pelos scus homens ser Mandou jogar a velha, mas TTeve medo de bulir com 0 garoto, mandou ensinar-Ihe as ie Queria wee se conseguia trazé-lo para o lado de cd, voané-lo um dos seus, € nada! Agora cis que cle estava vindo a sua casa, & acompanhado de um bando de gente. Vé sd, ele havia cria- do cobra na rodilha! Algumas vezes, cle o vira de longe, tivera vontade de se aproximar, mas aquele moleque havia virado homem. Era uma espécie de Iider no povoado. Em sua casa de noite, ensinava outros moleques a ler. Diz que tinha até uma mocinha que ia 14 também. Ele ia de vez em quando a cidade ¢ voltava com livros. Trazia noticias sobre o que acon- tecia por 14. Diz que agora estava lendo para 08 outros, estudando com eles um jornal que explicava tim tim por tim tim, o que era sin- dicato, greve, liga camponesa, reforma agraria, Assuntos que s6 agradam a estes vagabundos € que vém tirar o sossego da gente. Era o que faltava! Tanta coisa para resolver e aquele tipo, desde pequeno, era metido a besta! Havia mandado matar 0 Pedro da Zica sim, porém nao ali, Bom tempo era aquele em um Zica, assas angado no Tio. restava 0 menino. 92 7 ea LO cn” 3 Outros coroneis rou fundo € gritou: ~ Cuidado, Coronel! A fome, a misérias cas derrotas que sofremos, apenas ou 0 chao, também vermetho, ¢ fortalecem a gente pata fazer a virada um dia... jueo Coronel tem a dizer sobre a morte do ica? Desta vez no deu tempo de afogar o coitado?! © Coronel também respirou fundo € respondeu: ~ Nao tenho nada a dizer, a questao era dos dois ; do Pedro ¢ do Zé Meleca! ~E chamou bravo 0 capanga, colocando no chamamento o édio que sentia de todos. engoliu em seco ¢ com a pi com a pintura vermelha das paredes do novamente fundo nos olhos do Coronel leu © medo. Olhou os irmios a0 lado, olhou os que ficaram li fora ¢ leu 0 édio. Bastava um gesto seu. ¢ poderiam mandar 0 Coronel ¢ toda sua familia para o inferno. Depois en- trariam na casa ¢ tomariam de volta toda a riqueza que cra de cada um deles, pois tudo - Zé Meleca! aquilo que estava ali fora construide em cima | Zé Meleca veio vindo, lento ¢ assustado. da pobreza, da miséria de cada um. Olhou a ! — Zé Meleca, fala para cles! Vocé matou casa do coronel ¢ leu a riqueza, 2 opuléncia, 0 © Pedro da Zica foi a mando meu? Foi? Fala 94 a Lm 95 eae P . cle Fala o que aconteceu! Bles nz © que aconteceu! Eles no sabem ee ica ae bulindo com a sua mul ia er. new Molec levantou a cabera olh loado para o Coronel. © Hoe Jeu nos olhos, nas feigsese no wore at ne no port nel, os modos de mando. Em 2c nae os modos de obediéncia cega, de a f. O capan; tornou a baixar a renee Penis , € foi como se neste gesto todo o seu corpo abaixasse, respondeu: — Ele bulia com a minha mulher. __O Sdio que sentiam do Coronel trans- feriram para o Zé Meleca, pois sabiam que cle estava mentindo. Ficaram sem saber quem era ‘© mais porco, o Coronel ou ele. Sé 0 Homem entendeu, 5 ele perce- beu, 6 ele leu na atitude de Zé Meleca que, se Cuidado a gente nan toma, até a dignidade de nossa gente os do lado de Ve podem soba. A partis dugucle dia, msi dos sa pronto, O bards corp Ge Pear G2 i _ ge todos. Crian= gual Asua mm cada um para ' ques $6 BAT gue. A idéia da coopera® discutia com os 17" Era cada um sativa, comesou @ £0 de sua vida, Os que estavam doentes Jantar, se mos, cuidando da vida dos outros. ‘ou velhos ¢ que nao dispunbam de nenhi sevtia terra, do alimento para si © Para 0 que nao tinham mais forgas Pare disto cuidar. As colheitas eram vendidas ou trocadas entre os plantadores mesmo € 0 excedente vendido fora. As mulheres que tinham filhos reveza~ vam entre si a tarefa de olhar as criangas ¢ ascim, elas também, alternadamente, jam tra- balhar no cuidado da terra, sem, com isto, sa- crificar os pequenos. As criangas maiores s encarreguvasn de apsdar a oaidar também dos rnenomes © de is ensinando as letras que j4 #4- biam. O Momem sabia que suuita ovisa ain- da extava para ser feita. Scbia também que © agientavam P! a7 E foi OM 0 coragao mais alivi: Homem resolveu sair dah anna: I i um pouco. I: mundo, ive See = » 1a viver ¢ ler outras vidas. Ia buscar : outros, entre os operarios da cidade, um modo de viver como irmao, : ae sabiamos quando V6 Rita estava chegando. Ela vinha cantarolando ou falando sozinha, as vezes, até sozinha sorria, gargalha- va mesmo. E nao era louca, Vé Rita! V6 Rita ito boa. Hoje quando penso em | boa, mu Eas ora at & como 8¢ Pensasse NO mistério € na ‘yo Rita, € com plenitude da vida. ia-Nova escutou de Jonge 2 gargalhada Quis correr para abragé-la, a Outra. Nao! V6 Rita dor- m ela. Parou, entao, com 0 a musica de M forte de V6 Rita. mas s¢ lembrou d: mia embolada co! coragao aos pulos. A voz, 0 som, Vé Rita, foram se aproximando. Maria~Nova sentiu uma dor e uma alegria intensa. Nao sa- bia bem por que, mas todas as histérias The vieram & mente: as que Maria-Velha contava, as do Tio Toté, as de guerra de Tiao Tatio, as do Bondade, as silenciosas que ela aprendera a ler nos olhos tristes de Mae Joana, as que cla testemunhava no dia a dia da favela. Teve a impressao de que tudo € todos caberiam no coragio de V6 Rita ¢ néo no coragao dela, E nao era por ela ser uma menina! Nao era por isso nao! Era porque no coragao de V6 Rita tinha espaco para tudo e para todos. V6 Rita vinha cantarolando, mas escon- diauma preocupacio no peito.A Outra andava 98 ch ee one 99 a LE” eCO escuro, entre ; barranco, lentamente, Parava, escondia-se, olhando 14 Para fora. Ninguém se lembrava dela ¢, se, por descuido, alguém olhasse para o lado do POrtao, temeroso, des- viava o olhar como morte. Séa menina ii nina a buscava tanto, Ainda bem que existia Vé Rita, ainda bem que existia a amizade,o amor de Vo Ries Mesmo que a qualquer hora ela decidisse to- mar aquela dose de veneno, que estava escon- dida no fundo do guarda-rou pa, sabia que nao S€ tivesse visto a Propria insistia em olhar, sé a me- morreria sozinha. Seria ainda V6 Rita que to- maria sua cabeea ¢ poria a vcla em suas mios. Tr ~*~ sos, thou para si mesma esr eo Suas 50" Como o passado havia sido dife sigamente, Come Pp filho! Fora até feliz como entro e, em seco, no quis pen- nha esquecido de rente, Chorou para ae a : i lo. Ja se is no passat Es apie ido. 6 marido fora embora, ¢ ela tudo. : iri bém. dimgue, a qualquer hora, o filho iria tam = ia ques 0 seri melhor, quanto mais cedo ele partis: ceria : Ja. Talver. para eles thor para ele e para ela. Talved Sess alguma salvacao. ree sae ificuldade, da-roupa ¢, com enorme di seat o vonene, Nio podia, e ado era por ela. En por Vé Rita. Morrer daquela forma era trair V6 Rita. Oss tratores da firma construtora estavam oa vando, arando a ponta norte da favela. Ali, a pocira se tornava maior ¢ as angitistias tam- bém. Algumas familias j4 estavam com or- dem de saida ¢ isto precipitava a dor de todos nés. Cada familia que saia, era uma confir- magao de que chegaria a nossa vez. Ofere- ciam duas opgées ao morador: um pouco de material, tabuas e alguns tijolos para que ele construisse outro barracio num Jugar Pouco de dinheire Quem opta: - A iltim: Sse pelo dinhej 7 » NEM Os tijolos, odos sabi : abiam que a favela nio Taiso, mas ni Sees » Mas ninguém queria sai. Ajj f sair. Ali perto es- tava o trabalho, a sobrevivene, . » a sobrevivéncia que fariamos em lugares tao di onde estévamos sendo obrigado. via familias que moravam ali ha século até, ou mais. O que seria ao? Piao? Eram estes pensamentos que agitavam a cabeca de Maria-Nova, enquanto olhava 0 movimento de tratores para ld e para c4. Um tratorista cra loiro ¢ a pocira o deixava ver- melho. Maria-Nova sorriu um pouco. Virias criangas olhavam 0 trabalho dos mocos. Al- guma, mais afoita, chegava mais perto ¢ amie, que ja estava triste, revoltada, ia buscd-la ¢, ali mesmo, cornegava a pancadaria. Aqueles tra~ tores trariam tanta tristeza, trariam desgraca até. E naquela noite aconteccria uma... S60 nada, stantes para sa ir? Ha- anos, meio a lei usoca- abalho, eos que voltavam do traball ae ; junto uecer @ Cansagor parando j i um vadio viver. Quem alha- alandro ou o trabalh avida de ambos dor? Fora 0 perigo C4 policia, ra go da pol ‘a igu s privagoes eram as mesmas. Aigu- era igual. As Al cre pelo menos, estava provada: 0 taba Iho nao enriquece ninguém. barata de morro também nao. O samba, 0 som, 2 alegria i Era preciso cantar! Abriam a boca tao escan= caradamente que sc via as falhas de dentes € 0s ja apodrecidos. © hilito de cachaga vinha quente de dentro de alguns. Havia risos sorrisos bonitos ali. Nao eram dentaduras al- vas, certas e limpas que enfeitavam 0 riso. O sorriso-riso era bonito porque vinha de la de dentro, vinha da inocéncia, da ilusdo de estar sendo feliz. Todos acreditavam que estavam sendo felizes. 86 Ladislau, de dentro do balcao, obser- vava a cena. Quem passasse por ali, quem des- conhecesse o local, pensaria que cra a primeira ‘vez que tudo estava acontecendo, tal o interes- se de todos. O som do pandeiro, da cuica, do O dia acab yoavam alto. a oy \ aes das vozes salam de dentro de todos. SENS Coladas Yenzala-favela, Nesta ¢ one ; Sta época tdos de ginasio, Lee © de era casa-srande Sen, & professora, aa . : viu a que tinha na classe, Olhou ela escutava a li a ava a liso tio alh como se o tema eser: ; com ela, de qu amenina, porém eine ‘avidao nada tivesse a ver entiu certo mal-estar, Num; larenta ¢ cinco alunos, duas alunas negras, ©, mesmo assim, tio di ; antes uma da outra Fechou a boes arnento he tua boca novamente, mas o Ppensamento continuava favel fave . Senzala-favela, senza ; Agora, os que iam levantar-se cedlo para © batente, despediam-se da batucada ¢ et- minhavam solenemente béhados de para o barraco, Os que 86 com a farra, a turma Sago romisso ¢om © nao querer, com 0 nao inham con tos oN Oo! am o ba am cantando, pw inuava wr, conti foyer i alto aru, como se Fosse um que mais 3 - ey Nao cra nao, apenas ntavam fundo am reclamava. A 1a noite, Ning : dos que tinham ard 0 fundo Ja adormecia sob o nina tna tae tac foi da vadiagem des, lo ama aa im compromisso algum que nha que surgiria s gum qu vitorou no Joao da Esmeralda a seguinte idéia favel de menino: — Vamos dar uma volta de trator? ~ F quem sabe dirigir trator? E era preciso saber? Ele tinha ficado 0 dia todo observando, era s6 puxar aqui c li ¢ 0 cho corria pesadao, lento! Assim se foi 0 pequeno bando de ho- vadios-meninos, Estavam tio felizes! met Tam brinear de carrinho no carrinho, Prazer que nao tiveram na infancia, Rindo, gritando, pulando, tomaram lugar nos tratores. Joao da meralda ¢ Z¢ da Binha num, Neca Palito ¢'Tonho da Cufea noutro, A tua iluminava 0 rosto de cada um, Homens feitos, machuca- dos ¢ machucadores da vida, ganhavam a ex 0 temna de crianga em gonho. Os tratores obedeciam wontem, ao mando de ify if it. Bs- pre tavam hébados de alegria, tontos de enehaga. 105 Estavam indo, indo, Tio Tots, apesar de muito: 5 nh: 8 al ji ‘a 0 ouvi Nos Vividos, t- ae nee apurado. Acordou ator- : © barulho e chamou Maria-Velha Maria-Nova acordou também © pressentiu que alguma coisa de muito grave tinha acon- tecido. Tio Toté suava e tremia. Deus meu, 0 que teria acontecido? Estariam jogando uma bomba na favela? Se fosse, ele nem se impor- taria, assim seu corpo ficaria por ali mesmo. Tio Toté, cada vez mais, tornava-se in- timo da morte, despojava-se da esperanga. Revivia 0 que passara, coisas tristes, tristes mesmo! Algumas alegres num tempo de es~ perangas. Foi justamente a esperanga que ele Procurou. Procurou a esperanga bem ld no fundo do coragao e s6 escutou a batida seca ¢ dura do érgao. Eta coragao velho! Quando iria terminar tudo aquilo? Seria agora? Quem sabe uma bomba estava sendo jogada na fave- la? Um dia ele escutou falar no radio de uma 106 EDN oom, num lugar ai no estan Brasil, nao acontece dessas coisas) € geiro (no Or 7 uma cidade. Quem escapovs aga brava 20 corpo © 2° ava acontecendo 0 mesmo esmo, sentiria, por Maria-No- ue foi jogada sangue. Sera que esti na favela? Se acontecesse © ™m' vo por ele, mas pelas cFian¢as; F eat “Mentro de si tanta vida. Quem sabe para Maria-Nova tudo seria diferente? ee cou mais um pouco 0 coragao, Jevou a mao ratando localizar a esperanga, apenas © forasio batia no vazio. Relembrou de quando chegou sio, salvo ¢ sozinho, na outra banda do rio e a sensacao era a mesma. Vieram as amar- gas lembrangas. © corasio batia apertado, su- focado, desesperancado dentro do peito. Foram tantas dores: esta, a outra, aqueloutra, aquelain- da, o acabar com a favela. Sentiu a presenga da menina no quarto ao lado. Condoido de si, de Maria-Nova e da vida, chorou. peito te Maria-Vetha escutou os tiltimos sons do es- trondo ecoando pelo ar, acordou apavorada com o chamade choroso de Tio Totd. Othou © velho e viu que as lagrimas corriam. Teve 107 a vida. Ela ta . n - Ela tio nova e ja vi- 'a mesmo. Muita coisa, nada ‘i JA tivesse definido. Sabia, aula i ao dor toda nao era sé sua. Era impossivel —s gar anos ¢ anos tudo aquilo sobre os ombros, Sabia de vidas acontecendo no siléncio. Sa- bia que era preciso pér tudo para fora, porém como, como? Maria-Nova estava sendo forja- da a ferro € fogo. anuncias. Chega ee feliz Amore 7, pode deitar-se belo, ee nha estar preso ‘ada recado, © Sujet a faz. uma festa sonha no meio seus escolhidos, € depois os leva dai? © que os vivos podem viver, padecer, ViVeh viver... no do seu ou dos ‘oeiramente. feet Chora, viver, cantar, Vive® PACES blasfemar, viver, Teza viver, viver ye is ‘A morte havia sido tao sem gtaga, tio putamente sem 87862 prutalmente traigoci ta. Os corpos dos ‘homens-vadios-meninos *& varn despedacados pelo chao ¢ as partes dos dois tratores também. Eles estavam mis- turados a0 p6, 4 pocira. As pessoas chegavam, tentavam olhar, no viam, adivinhavam ape~ nas. Nao dava para reconhecer os corpos, os mortos. Também para que? A gente conhecia a vida de cada um. Veio a policia depois de muita espera, recolheu todos, e em tudo ficou um vazio. Era uma dor intensa. Era mais uma falta que a vida cometia. O dia passou lento ¢ arrastado. Todos empurravam 0 tempo com a barriga. Tinha- mos medo do final da tarde. A noite j4 vinha, vinha... Havia a miséria do homem que ainda Bio se descobriu homem. Do homem que nao se descobriu em si Havia a miséria que nem o amor de pessoas como Vé Rita, como Bondade e como Negro Alitio, que chegou ali bem mais tarde, podia resolver. Havia a miséria das Pessoas que Préprio e nem no outro. fe tra zem 0 cora¢do trancado Para qualquer ato de E essas pessoas acabavam atraindo para 110 Td 0 de todos 08 jemais. uinha era uma i todo: de F di aha muito medo de Fui- em frente a0 barraco Uns diziam que ele que era maldoso, perverse cra Juco, outeoS que A ersava, andavay que nada de ay normalmente. Aparecia no fla, oa adislau, tomava banho ali armazém 0 Meshos em que os homens se B&- Pa Uae goles de pings, falava cate shavam, bebia uns goles de pinga, Traum pouco para alguns, ¢ ia embora. Quem vofria nas mios dele era sua mulher e sua filha Fuizinha. Vivia espancando as duas, espan- cava por tudo ¢ por nada. Os vizinhos mais préximos acordavam altas horas da noite com o grito das duas. Era mau o Fuinha. Diz que cle tirava a roupa das duas e batia até sangrar. Se clas choravam baixinho, batia até que elas gritassem ¢ depois batia até que elas calassem. A Fuizinha crescia temerosa, arredia. Uma vez Maria-Nova parou perto da cerca de arame farpado que havia em volta do barra co e Fuizinha ameacou soltar alguma pala- vra, quase confidéncia de tao baixo que era. Maria-Nova escutou a voz do Fuinha e fugiu. Outra, nunca mais visitou ninguém. Um dia a mae de Fuizinha amanheceu adormecida, morta. Os vizinhos tinham escu- tado a pancadaria na noite anterior. A mulher Britara, gritara, a Fuizinha também, também, Ouviu-se a voz do Fuinha: Agora siléncio. A mulher silenciou de vez. Fuizinha ain- da muito haveria de gritar. Ia crescendo apesar das dores, ia vivendo apesar da morte da mie e da violencia que sofria do pai carrasco, Ele era dono de tudo. Era dono da mulher e da vida. Dispos da vida da mulher até a morte. Agora 1i2 vida da filha. S6 que a filha, ele da sispunt Cr viva, bern ardente. Era 0 éono,0 vs bem viva, bem Fr ee & pata isto mesmo. Mulher nm ee, é a gente bater, mu- aca tudo. Mulher € para Be Zon paca ara apna, mulher € aa gO%aH - inha era tarado, usava @ i wa ele. O Fuinha ¢! » sim pensa’ ria filha. ° Maria-Nova tinha pavor dele. Houve uem tentasse falar com ele e Fuinha cinica- sente respondeu que a filha era dele e que ele i dia em favia com cla o que bem quisesse. No ce que Fuizinha tentou aproximar-se de Maria: “Nova, de noite, os gritos dela foram mais di- pr lacerantes ainda. Desde a morte dos homens-vadios-meninos nao se ouvia mais falar em desfavelamento. Ja haviam se passado quase quatro meses. Os. tratores estavam no mesmo lugar, de pernas para cima. Chovera muito nos tiltimos dias, viera depois o sol. O barro assentara e como 0 terreno era em declive, tinha se tornado uma pista escorregadia. As criancas, por n’o terem brinquedos prontos, acabavam sendo muito 5 113 Ctiativas, Com isso ee au Poleiravam-se em cin, 10 abaixo. Era uma brie. te : ma. O : Pesadio. © rosto, 0 corpo, ono” tli Pata, nee : : » © Menino fis, Morte instanténea, répida, co hen : » Como havja c mens-vadios-meninos oi para o hospital, Rene meses. Voltou sim, to: » calado, morto-vivo, bol » b » bobo, alheio, paralitico, hae i mie pegava o menino, colocava num carrinh st tinho de madeira, pegava os trés menores ¢ safa a pedir-ganhar esmolas. Foi Negro Alirio que juntou 0 pessoal da favela € com eles foi até a firma construtora exigit a retirada dos tratores. Aquilo era um ¢terno perigo. O que aconteceu com Brandi- no poderia acontecer com outro menino qual- quer. O pessoal da favela jé estava chateado 114 ava esteve tiva es seada dos tratores pare™ CO} retital am bravios, Te ‘ Chegar wg ocira. oe $6 se ouvia parulho e¢ sentia PI a cabal sclamento xecomegava, Todos ad a pido as tabuas € tijolos ou 44 tivessem rece! ee de dinheiro oferecida = Firma Construtora deveriam desocupar o beco. ‘As mudangas, trouxas, latas, meninos ¢ grandes, cachorros, desamparo, merda e mer- da, tudo era acomodado desacomodadamen- te em cima do caminh’o (também oferecido pela firma construtora). Os vizinhos proximos observavam a partida, sabendo que dai a uns dias seriam eles. O caminhao levantava poei- ra. Bom era que, com pé caindo nos olhos da gente, se podia chorar como se nada fosse. \ 115 tinha medo de falar alguma caiam. Quis esconder o rosto nas 0s olhos ¢ reclamou da poeira. coisa. As légtimas mios,limpou Olhou em sua frente ¢ lé estava a sua sogra com a biblia na mao. O ventre docu-lhe outra vez, Sentiu sair de si uma golfada de sangue. Iria desmaiar? Abriu bem os olhos ¢ sé viu a poeira. Meu Deus, eu nao posso desmaiar agora! S6 tem cla, eu e as criangas. Nao posso. Agarrou-se as \iltimas forgas que tinha. O sangue borbulhava quente entre suas pernas. Eu preciso agiientar, € preciso viver! A poeira, a biblia, a sogra, as criangas, tudo estava ficando tio apagado, tao distante. O sangue borbulhando quente. Sera que havia sido 0 movimento para subir no caminhio? Olhou para os lados procurando Tonho. Ele havia ficado em algum botequim da favela se despedindo do pessoal. Também, 116 Oventre dela doe Fav Pardo en" cube oe Tonio chegnea pebado a tre dores ¢ 2 vem ligava mais. Conl e : a Tiare cea comnele sett are ae melhor que 0s outros, trabalhava ace - 5 sébados € domingos- Sabado, € 9 Ooo do saia da construgdo, passava ener pagava a con- antes 5 eio- di : pelo armazém de Seu Ladistau, a ta da semana anterior, ¢ fazia outra. que, iho seu, que sempre estava al na ru5s 02 bolinha de gude levava os minguados mant mentos para casa. Tonho bebia 0 cansas jor ¢ o cansago da semana pos stava ali na rua, na semana antert 5 terior. Bebia pelo misero salério. Bebia pelas iinho, compras, 08 quilinhos de arroz ee i eae ° © feijao duro que era preciso por de molho, asticar que era regado durante toda a semana, 17 Pedago a ban; cok eee Pa ay reg Sh Cs ‘OS mel és que ele nao podia oo onh®S #80 pobres mn Alisando a barti iga, Custédia relemby de Tonho chegando bébado, cand roland esbravejando. A sogra gritando: |” — © Custédia, 6 Custédia! vem segurar o Tonho! Ela, barriguda, pesada, Parecendo nove completos, Na confusio, empurroes, © Castédia, de sete meses, segura o homem, ; chutes e murros em sua bartiga. O Tonho caindo, Custédia tam- bem, 4 Sogra em cima dela. Custédia ja tinha tido quatro filhos dele, quatro barrigas ao lado dele. Tonho nunca esbarrara nela sequer, 118 ue grita coin spans ale aod va como se Fste THONG een no se Levan pereebia. No oust iu uma menina morta. cou de don et pegou a biblia ¢ orou. Enter Dont Tanga no fundo do barraco. Lembrow, er aquela Arca os tratores passariam rém, qu porém, q Desenterrou, assim que eles saissem de 14. Dest 2 embrulhou o defuntinho em jornais € saiu. Custédia viu tudo. Tonho roncava, de den- tro dele saia o hilito de cachaga. Tudo isto acontecera tha uma semana somente. Cust6- dia no entendia porque Dona Santina fizera aquilo. Bem que falavam que Dona Santina, apesar da biblia, era muito m4. Toda vez que Custédia ficava de barriga, a sogra tornava-se sua inimiga. Os vizinhos nem notavam. Todo mundo pensava sé no desfavelamento que recomegara. 119

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