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LITERATURA DE TESTEMUNHO: OS LIMITES ENTRE A CONSTRUGAO EA FICCAO Marcio SEUGMANN-SILVA, PUC-SP PARA UMA ETICA DA REPRESENTACAO Este ensaio 6 composto por duas partes. Na primeira apresento de modo integral a resenha que redigi no ano passado da obra Fragmentos, ‘Memadrias de uma inféncia 1939—1948 de autoria de Binjamin Wikorirski A segunda parte {que sera publicada na Revista Cult) 6 uma refiexGo sobre a histéria dessa obra que tomou um rumo inusttado € que me levou efleti, entre cutras coisas, sobre a traglidade do objeto da nossa Grea de estudios, a Teoria LiterGria, Duas partes: vérios tempos e locals. Em certo sentido a questao que se poe aqui é a da Jeltura, O1F8M6 — Gelso "pede yexistinnovatolde [Ghife GWvarsas Camadas temporais 6 espaciais. Cada lettura 6 um evento de atualizagGo/tradugdo da obra: 0 leftor reconstrél — em um dado momento @ em um dado local — os diversos niveis de intertextualidade do ‘original’. © texto consiidi-se sempre aprés-coup, ou seja, ele 86 existe numa “dupa” temporalicade, ele "se da" de modo sempre "tetardado” nunca definivo, Esse espaco entre o texto e a leiturc no deve nos ilucir quanto & existéncia de um texto original estanque: 0 “original” 6 uma somatéria de textos que s6 se deka abtir parciamente a partir da LETRAS Revista do Westraco em Letras da UFSM (RS) janerofunhoil 998. leltura/execugdo cia partitura textual que sempre (r2-)lé 0 texto dentro da historia da sua leltura. Nao podemos pensor em liferafuradeitestemunno sem tet em mente ess Concepcéo anti-essencialista do texto, NgggSgeNe SMCS: hadicionaments como a representacdo de ume “cena’, Mas qual a Mmodalidade dessa representagao? Certamente ndo podemos mais oceltar 0 seu modelo postivsto. CSF To RSs STIS MSmETaIets of CRESIRSSISSISLEOIOERHIGS, De resto, “estomnunhasse = serriie, die cent fadugde total da cena vivenc prior, O aprés-coup — que Freud denominou de Nachtréglichkelt — marca a reorganizagao ou feinscrig4o de uma cena que nao foi ‘plenamente” simbolzada. A vivéncia traumatica é justamente a vivéncia de algo que nao se deixou gpanhar pela nossa teia simodlica que trabalha na redugdo do Visto/vivido ao "4 conhecido”. Se para Waiter Benjamin a realidade como um todo € troumética (cf. 0 seu ensaio Sobre aiguns temas em Baudelaire] ndo podemos mais falar em tepresentagao no sentido tradicional de adequagGo ou de mimesis, mas fampouco devemos abrir mGo aa aiferenca enire a nogéo de tlogéo e a de construgéo da cena traumatica. © nosso conceito de “teal” é alterado e aproxmado daquilo que Freud denominou de cena traumética. (Ct, LACAN, 1988) A propia ‘ieitura, portanto, também € marcada pela Nachtraglichke't, pelo retardamento. Ela se desdobra sempre sobre uma fenda enire “original” € “leturc’: espaco este que gero o texto eISSN = SSS 10 LETRAS - Revisia do Mestiaco em Letras de UFSM (R9) janaioyjunna/1998. ~iarTEnaTeroianloiaimonresichioneaslicieneeeearieeeenilideeee © mais importante aqui é compreender a essénoia dialdgica de leitura, Ou seja, 0 “original” — apesar de ser posto entre aspas para nos lembrar tanto de que a sua existéncia esta subordinada & presenga de um leltorreceptor, como também de que o seu autor lampouco era um Individuo com controle total da sua escritura — nao pode ser elevado 6 categoria de numeno, coisa-emns! inatingivel (0 que seria uma recaida imperdodvel numa metatisica muito familiar), nem tampouco equiparado um constucto ex nihilo. A ética do representagdo impiicita nesse conceito dialégico de leltura vai tonto contra 0 modelo posttivista (que ‘afima a relago transparente entre sujelto e objeto, leitor e original, instancias essas cue seriam metafisicamente tornadas como auténomas} come também contra relativismo sem fteios (que desagua no ‘vale- judo" e Impede a reflexdo de pensar a diferenca e de realizar o seu “fabalho do conceito/das imagens’) Este ensoio inicla com uma primeira cena de ‘eltura: analiso um texto testemunnal e trato do trabalho de leituraytradugdo aprés-coup realizado por Wikomitsk! e tipico de quem viveu uma experiéncia externamente traumética. (A questao se podernes manter a diforenga entre diferentes “graus" de “raumatismo" ndo pode ser perdida de visa, mas seré tratada de modo apenas indirefo aqui.) Depois segue-se uma segunda cena de leitura que desmonta € reconstdi a primelia, E ciate que a minha “primeira cena’ é jG uma cena secundéria, derivada, que chega aprés- coup, ap6s ter sido lida € relida, publicada, apés esta retlexGo, opés uma reesctituia no contexlo deste ensaio etc. "Meu primelo texto” que era tombém uma expresso da "minha primeira leltura — na verdade uma reelaboragao de outras tantas leituras @ textos — 6 ressigniicado por esta TETRAS - Revista do Mesttado em Letras da UFSM (RS) janeirojjunho! 996. 1" intodugGo e pela "minha segunda parte”. A leitura, que sempre é leitura de um texto e que reinscreve outras leituras, pode portanto ser chamada de leiturattexto, Essa letturaytexto da-se sempre gprés-coup. E detivada: nunca primeira, original ou otiginaria. Nosso tema, portanto, 6 © da telagao de similaridade entre a leitura e @ estrutuia do trauma; a leitura como um entrecruzamento entre intertextualidades, datas, contextos, retardamentos e locals, A ‘eitura como recepgao de um texto/cena (taumaticos] que s6 se realiza no seu desmoronamento esirutural e no seu incessante trabalho de feestruturagao. (Cf. BENJAMIN no seu livio sobre © drama barroco aleméo: “Perseverante, © pensamento inicia sempre novamente, com circunstancia, volta & coisa mesma’, 1974, vol. |, p.208.) Caberd ao leitor reinscrever estes textos — com seus conflitos € intraduzibilidades — na sua propria “opografia textual’. Este artigo ndo se pretende mais do que um exercicio da mencionada eltua/texto.” Ao final da leitura, devera — espero — ficar claro em que medida texto e contexto se determinam mutuamente. Por outro lado, jgastaantanntsSrre ues iCcsseNISRISNSHS ‘climponéncia para a Teorla Literaria de Concelios Como 0 de trauma, quanto ao ultimo ponto: Walter Benjamin, Francis Yates, A. Assmann e J. Young}. A bibliografia no final deste trabalho sugere alguns caminhos possiveis para o Ieitor interessado em dar continuidade 4 discussao desses concettos. 2 LETRAS - Revista. do Mestracio em Letras da UFSM (RS) janeliojunho/i99e. 25.03.99 PRIMEIRA CENA: QUANDO O TEMPO PARA: FRAGMENTOS DE UMA INFANCIA “Depois de tempos de desastres @ de grandes infelicidacies; quando os povos fotigados comecam a respirar. EntGo as imaginagées, aibaladas pelos espetaculos teriveis, pintam coisas desconhecidas para aqueles que néo foram testermnunhas.” Diderot Ndo se julga um livio pela capa, diz 0 adagio. No caso da presente obra, no entanto, 6 inegavel que 0 capista da edigGo brasiira foi muito feliz, Na metade infetior de uma capa predominantemente branca encontramos uma foto antiga € desfocada dos olhos de um menino ©, cima dela, 0 suottulo, "Memétias de uma infancia 1939-1948" que apresenta a palavra “inféncia” cortada por uma linha. Lago “de cara” somos confrontades com os idéias de ‘Viséo/ festemunho" e de uma outta modalidade de escritura, —- O capista da edigdo original olema, da ecitora Suntkamp, havia optado por uma metéfora correta, mas batide: 08 trihhos de trem © tradutor brasileiro, por sua vez, larnentavelmente ndo foi muito feliz ja no proprio titulo: NGo se trata de *memsrias de uma infancia". © temo *meméria” nde consta no original; antes trata-se simplemente de “Fragmentos de uma infancia 1939-1948". Certamente n&o fol apenas um acaso 0 fato de Binjamin Wikomirskl ter optado por deikar © termo *memérict fora co titulo da sua primeita 6, até o momento, Unica obra. A sua intengdo eta justamente a de mostrar a impossiolidade dele redigi as “memérias” da sua intdncla. Wikomirski nGo possui uma histéria (nem uma "RAS -Revisia do Mestrado em Leos de UFSM [RS jane’ memiorias. Ele nem ao menos tem certeza de conhecer o seu nome; acredita ter nascido em Riga: talvez em 1939 e com certeza nao em "12 de fevereiio de 1941", como afitmarm os seus documentos. Os fragmentos que constituem © seu livwo sao como eslihagos da Segunda Guerra que — apds cinquenta anos — penetram de modo seco e devastador nas nossas mentes: “As lembrangas mais antigas que trago comigo assemelham-se a um campo de tuinas de imagens e acontecimentos isolados. Estilhagos de memdria dotades de contornos duros @ aficdos feito faca, ainda hoje capazes de fetir, se tocados.” Como © préprio autor ainda destaca, esses fragmentos so “isolados Porque incapazes de serem reunidos segundo a perspectiva e “as leis da ldgica” do adulto. E mais: os seus fagmentos desafiam a légica, também porque negam a pidpria natureza dos Campos de Exterminio nazistas dos quais ele foi um sobrevivente: “Contrariando a légica e a ordem, estamos vivos", 0 autor escreve. Assim, ao penetiar no texto, o Ieitor se depara com uma sucessdo de: fragmentos cronologicamente e geograficamente desconectados; ao menos numa primeira leltura. (Atinal, como © autor afizma no final do livio, ele tentou sim “estabelecer um possivel contexto histérico, bem como uma cronologia razoavelmente ldgica") Aos poucos esse leitor vai aprendendo a identificar 0 “contexto” aproximacdo de cada um dos fragmentos: 0 adulfo B. Wikomirski escrevendo em 1995 (misico, construtor de insttumentos @ em busca da sua infancia}, © Wiikomirski no ‘orfanato em Cracdvia, 0 outro no orfanato na Suiga, © adotado por uma familia burguesa, ou 0 do Campo de Concentragae de Majdanek e 4 LETRAS - Revista do Mestiacio em Letras dc UFSM (RS) janelio/junha/1998 aquele de Auschwitz-Birkenau, ou ainda aquele que brota dos tagos capagades da sua vida em familia ao lado da imagem fore de Mordechai, o seu itmdo mais velho. E evidente que 0 género memorialistice nGo exige uma linearidade: cronolégica, Mas nesses fragmentos ndo se trata de uma simples fata da temporalidede linear: trata-se de uma suspensdo da temnporalidade. O tempo estanca: observamos cada um desses fragmentos mudos. Esse silencio dos fragmentos — ¢ do letor — esta Intimamente relacionacio ao slénoio do proprio autor. Devemos lembror que ele os escreveu © NGO Os narrou . \ss0 € importante porque em inumeras passagens © autor pde em relevo a quase afasia que acempanhou a sua infancia, Nesse sentido, a primera frase do livre ja 6 bem eloatiente: "Nao fenho Ingua materna, @ tampouce lingua patemo’, A in-fancia [etimologicamente: sem-fata) € radicalizada aqui no seu aspecto néo conceitual: Binjamin Wikomirski falou iniciaimente cpenas um iidiche precdrio que ele adicionou & mistura de linguas babéfca que aprendera nos campos de concentiagéo. Mesmo posteriomente ele nunca apropriouse da sua lingua: “as linguas que aprendi mais tarde jamais se feram minhas por completo; no fundo, foram sempre imitagées conscienies da lingua dos outros.” Esses “outtos” possuem uma lingua, ele nao. Sem uma lingua minimamente estével para cartogratar os fatos ‘extremos (@ por si sO resistentes Go conceito}, Binjamin Wikomitsk| voita constantemente a desiacar a sua incompreenséio diante do mundo: perdi a fata, todos a sua volta parecem falar “palavras incompreensiveis’; TETRAS - Revista do Mesiraco em Letras da UFSM (85) janeirojjuno/ 998. 16 @ seguia nao entendendo nada”. Ao assist a uma enome matanga, na qual pessoas foram langacas ao fogo, ele também ndo podia compreender, ou seja, no podia aprender e traduzir 0 seu testemunho em palavias — ou mesmo em imagens: "Néo compreendo 0 que vejo Id através da fumaceira — ou compieendo sim. Mas nGo posso vinculé-lo a nada que conhego, sefa por meio de imagens ou palavras.” (Um topos comum na literatura tedtica sobre a Shoah’, que Wilkomitskl conhece, s6 Que € tratado por ele aqui do ponto de vista, muito mals forte, da vitina,) Nurna das cenas mais extremnas do lwo € que se passa em melo a cadaveres no Campo de Concenthagdo, Wikomirski nos mostra: (néo narra...) © seu mutismo: “quero gtitar de susto € medo, mas nao sai um Unico som da garganta. Algo aperta:me a garganta contra 0 petto, e, bem dentro de mim, ecoa um tuido, um tiintar e um ranger, como se algo quebradigo estivesse sendo pisoteado.” Duas obsewvagées quanto a essa passagem. O fato da narativa, como se vé aqui de modo claro, se dar muitas vezes no presente toma ginda mais vivaz o texto: nés como que entramos dentro do Wikoritski " Por que dizer Shoah @ néo Holocausto? Holocaust deriva do temo giego hokScausten Gus Oborece no mals antiga verso grego co Bibl, a dita traducto “dos setenta’, © que fo} fransciito por S60 Jerénimo na Vuigata pelo termo Nolocaustum. Essa polavia significa “queimar totalmente" ¢ eta empregad para denominar o sacificio rua! ™arcado Peia imolagde nao apenas entre os udieus. No pos-guerra esse teimo passou a ser empregado para Gesignar 0 assassinato dos judeus euopeus nos campos de concentragéo nauistas. E550 denominagéo, no enfcnlo, néo ¢ ocelta por muitos estuiosos do tema e pela molotia dos juceus, Esses negam que aguele morticinio possa ser Considerado como um sacificio © muito menos reduzido @ um fenémeno a mais na linha ascecente da histéna, Dai a opgdo pelo terme nebraico Shoah, ou Shea, que quer dizer catéstole, destuictic, aniguismento. Na Franga esse temo ganhou mais popuizridade desde o fime Shoah de Clouds Lanzmiann, Outtos auictes preterem simplesmente falar em Auschwitz para designar 0 mesmo evento, como por exemplo ‘Adomo e Enzo Traverse; outtos ainda, prefetem falar em. “soluc6o finaf’, uma expresséio Utlizada pelos prdptios nazistos (Enafosung|: [O texto desta nota fol publeado ne revista Ciuc lado desta resenha. _ 16 LETRAS - Revista do Masitado em Lettas da UFSM (5) janeiojunho/i 998 ctlanga vivendo aquelas cenas inenarrdveis. Como que "vemos as cenas diante de nés". © seu "mutismo” torna-se assim ainda mais eloqUente. Em segundo lugar, ao ler essa passagem, € cificil ndo se recordar de um personagem de Katka, 0 Odradek um ser distorme @ que emite apencs um som que se assemelha a um farfolhar de folhas, representagéo mesma tanto do escrtura na sua inedutioiidade como também do individuo clienado e estrangeito ao seu mundo; ume figura, portanio, mutto apropriada no contexto, De resto, Kafka’ 6 lima alusGo i 8 10. Pouco apds a passagem citada, lemos ainda: “Sou uma ratazana ou um ser humano? [..] As coisas todos perderam o seu nexo para mim [eu griifo]. Nade este no lugar. Nada mais tem valdgde.” Ou seja: a i SSRN ei geESIenaUnAToTS cuter, mas também dicioga com: @ tWadicae literati. O préprio jogo almosiera do texto déo prove disso, Mesmo depois de alguns anos, ja na Suiga @ na escola, Binjamnin \Wikomisk! ainda néo compreengia o mundo; ele nao tinna encontrado a sua linguagem. Ele “néo entendia coisa alguma. € cerfo que logo eu ja conhecia a meioria das patavras isoladas [eu gfifo}, mas juntas, formando sentengas, elas nao faziam © menor sentido para mim.” A professora uma vez mandou que Binjomin Wikomiski descrevesse uma figura que rettatava Guilherme Tell atirande numa maga colocada sobre a cabega de um menino: ele “compreendeu” de Imediato a imagem dentro da sua’ lingua, ou sejo: ele viu um $3 attrando numa crianga. A professora, LETRAS - Revista Go Mestiado em Letras da UFSM (RS) joneirojjunho!l 998, 7 ele percebeu nesse momento, era apenas mais uma blokowa: como se chamavam os chefes de bloco nos Campos de Concentragdo, Poupo- me de natrar 0 desenrolar da cena vexaminosa, Pata 0 autor, por muito tempo, s6 existiu a tealidade dos Campos, ela diigia 0 seu modo de ver € ler © mundb. Ele s6 podia taduzir a imagem de Tel vendo nele mais um $$ assassino. Ainda no Campo de Concentragdo ele aprendera com as outtas criangas que "nao existe Mais mundo do lado de fora da cerca’: ele como que aceitara essa frase a0 pé da letra, Quando os soldados alandonaram © Campo para fugir das tropas aliadas fol um grande estorgo para ele aloandonar o seu mundo, a sua Unica realidade. Sem lingua propria, sem pais ou patria, ele se sentia ur estrangeiro nesse mundo extemo que, para ele, era apenas um excrescéncia, um apéndice do mundo dos Campos: "Meu lugar nao. € com eles’, ele afirma jd na cidade. Na Suga, quando a sua future Madrasta Ihe mosita o enorme aquecedor no pordo, ele pensou: "O campo continua existindo. Esta tudo ait”. Binjamin Wikorirski, portanto, da testemunho também da sua [insuperavel) ndo-libertagao, Ele vem a saber dessa “suposta lipertagao", num momento do “reviravoita" no livre, quando ele viu, j4 no final do gindsio, um documentario sobre os Campos de Concentragéo (alés a aparigéo do cinema-documental ndo deika de ser relevante per se nessa Obra, mas ndo posso comentar isso neste espago}, Por que ele ficou profundamente chocado ao ver nesse documentério que os Campos haviam sido libertados pelos aliados? Para ele essa Imagem aa eertagdo era “ireal". Ele nao a testemunhora, nao tinha meméria ‘alguna dela. 18 LETRAS - Revista do Mestiaco em Letras da UFSM (3) janetojunho/196, Tampouco ele podia aceitar o pedido de seus pais adotives para que ele se esquecesse do que ocortera. Tudo nao passaria de um sonho, diziam a ele. Mas Wikomirski podia ver a cicatriz na sua testa e a saliéncia na sua cabega: marcas da sua vide passada, que os seus fragmentos de memoria — “ainda hoje capazes de fetir, se tocados” — néo negavam. Esses fragmentos de passado, literalmente rasgaram uma ferida (trauma, em grego) na sua memséria; um contraponto, muito mais doloroso, da sua cicattiz extena, | i BSRISIGSSSISEMIBEHESD dele: ‘ndo existe mais mundo do lado de fora da cerca’, Na obra de Wilkomirski essa concengdo aparece de modo potencializado uma vez que ele expde os seus “fragmentos” do ponto de vista de uma crianga. A imaginagdo € a inguagem sao assim ainda mais embotadas. As suas defesas e simbolizag¢do tem um funcionamento diverso do que num adulto, Nesse sentido essa obra é exemplar, As imagens das cenas que Binjamin Wikornirski presenciou impregnaram-se de tal modo na sua mente que como que aruinoram a sua cartogrofia mneménica, Diante dessas imagens tudo o mais empalidece. Tratam-se de imagens da extrema violéncia escritas a dcido na tela da sua meméria, sobreviventes 0s quals escapava a nossa copacidace coliaiana de ey LETRAS - Revista do Mestracio em Leitas do UFSM (RS) janero/junho/1 998, 19 \GRRISSIZEEED. A onipresenca da morte faz com que a linguagem se tome Mais “concreta’: As pessoas num Campo de Concentragdo séo literalmente queimadas, a fome iiteraimente mata, o mais fore é literalmente dono de vocé etc. Nao ha espago para a metéfora — apenas para a metamorfose. Dai porque essas imagens fornam como que hierégiifos indecifrdveis para os testemunhos (e para os leltores desses textos). Hieréglfos (um misio insepardvel de imagens e conceitos) ou simplesmente imagens que, como diz Wikomiski, ‘vottam com freqliéncia & minha mente"; de modo descontrolado © desordenado. Na medida em que tefletimos sobre essa obra, fica claro que a [MSISTRSISONSISAUATG GS Qual esse livio 6 um dos exemplos méximnos, “alvez Sela uma das moloras contibuicées ale 6 século XX dekard pate Ne | pulagées Infeiras como esse, E mais: essa literatura cifere das duas grandes linhas que governaram a procugéo iteréria até hole: <)giSTSNAE i 2 (Of SRIGSMEGSMSUGSIONGes). Incivicuo © mundo sao constiuidos simultaneamente através dessa literatura. Esse movimento também pode ser percebido no atual boom nao apenas de escritos de testemunho 20 LETRAS - Revista cio Mestracdo em Letras da UFSM (RS) janetajjunnor1996. como também de Museus, monumentos, memorials @ novas modalidades de apropriagdo aristica do espago public. A ‘volta do recalcade’, no caso: da morte, se faz sentir desse modo, numa sociedade que a expulsou [e expulsa} sistemnaticamente do seu cameo seméntico. \WEESMIBSAIG,, indirctamente, sem denominar de Iteratura de tesiomunho, foto piimeiro ¢, até o momento, mais billhanie teorico desse género, sso ndo apenas na sua propila fiosofia da hist6ria. No seu texto publicado apenas posturamente cenominado Cénica Berlinense ele expés de modo ctisialino a sua exponde a nocd freudiana de trauma para © todo das nossas fepresentacdes mneménicas, sobretude da inféncia. Nessa obra ponames fot: ‘Recorsagéesimesmon quando sdo"ompicdas, nae) | inconstonte. Pois, mesmo que surjam aqui meses € anos, eles o fazer 1989, vol. VI, p.448) os | Q | TETRAS - Revisia do Mastiado em Letras dat UFSM (RS) janotoijunho!1 998, 24 al ‘nesses: adieGo estética que temonta ao século XVI G fhadigGo da estética do sublime, teoizcda, entre oultos, Dor Diderot, Burke © Kant, 6 representads, nas artes pidsticas, por Caspar David Friedrich, Goya e, perto de nés, por um Bacon, por Bamett Newman, por Nan Goldin ou Anselm Kiefer. O sublime do século XX possul, no entanto, ao menos duas diferencas fundamentais com relagGo ao que Ihe precedeu: ele tende para uma paradoxal estética do abjeto e ndo é mais “terror agradavel”, ou um. “jogo entre a 1azdo € a imaginagdo", como antes fora detinida; além disso ele vai contra uma estética da piedade ou da compaixdo, Agora nGo ha mais espago para aquele “jogo” “doce” com a morte (alias, Lessing, ainda no século XVill, 4 descrevera esse sublime que nado deka espaco para a atuagGo livre do imaginario [LESSING, 1998, p.91 sg.]). Ha espa¢go apenas para as acima referidas Imagens secas, para os hierégiifos da meméria fragmentada, para a literalidade da escrita; para uma nova relagdo com a estera da morte e com 0 campo dos signos subordinado c essa esfera. Aqui, portanto, sem desaparecer totalmente, deam de comandar a produgao artistica os jogos das vanguardas com a ironia e com a alegoria, (Esses Jogos sGo agora como que travados por essa nova tica e estética do sublime caracterizada por uma presenca daquelas imagens mudas que exigem uma nova performance da linguagem.) sucessivas vezes 0 sentimento de asco e nojo que Ihe tomava: sentimento de ultrapassamento, de extravasamento que, de aigum LETRAS - Revista do Mestiado em Letras da UFSM (RS) jansirajiunho/199% modo, reafima os limites do ser humano. Os seus limites fisicos tornany-se a garantia de uma nova moral. € 0 corpo também que see de suporte para a nova cartogratia mneménica, Nao € por acaso que (proustianaments) 0 odor tem um papel importante na organizagao dos fragmentos de meméria (também) para Wikomirski. Um sentido tradiclonaimente ligado aos instintos mais basicos e posto abakxo do olhar @ da audi¢do ganha agora uma nova dignidade. Tetminada a |eitura do live ndo nos sentimos, como na estética ilusionista da caldrsis, purificacos dos nossos *maus sentimentos’. Pelo contidtio, sentimo-nos mais pesados © sujos do que nunca; estamos contaminados pela culpa do sobrevivente. Paul Celan afirmou que "no se testernunha um testemunho", Cada texto é um texto, a sua leitura sempre ela mesma Unica € constitul um novo evento. A leitura da obra em questo ndo deixard ninguém indiferente. Num certo sentido, jambém nés somos agora levados a escrever como © autor: “EU vil Eu vil" ‘$Go Paulo, 29.03.98 APRES-COUP: REVISITANDO OS FRAGMENTOS DE WILKOMIRSKI Ninguém pode tomar-se aquilo que ele nao pode encontrar nas suas memeétios. Jean Amery Existe uma identidade que pode ser estabelecida sem recurso & nossa memidria? Nao € verdade que cada um é 0 que , porque acredita, por assim dizer, na historia da sua vida? Se nossos agées sto gorantidas apenas por frags de memiéria, inscritos na nossa mente e na meméria da nossa coletividade, como podemos ter uma gorantia quanto & verdadeita identidade/histéria de cada um? Um evento que abclou 0 ‘EIRAG - Reveta do Mesirado em lelos da UFSMRS|fanetojunho/1998,—— 28 mundo das letras nos Uitimos meses € que envolve a trajetéria de um lito Pode nos ajudar a refletir sobre essa fragilidade da nossa identidade. Poucas obras de literatura tiveram uma care to veriiginosa como o livio Fragmentos de qutoria de Binjamin Wilkomitski, editado no Brasil no ano passado pela Companhia das Letras. Publicado em 1995, ja fol traduzido para mais de doze inguas. Com base nele 18s filmes foram rodados e uma pega teatral encenada. Desde a sua publicagdo 0 seu autor no parou de dar polestrcs nas melhores Universidades européias norte-americanas. Wilkomitski vive em Thurgau, na Suiga, e também tem sido freqiientemente solicilade a falar nas escolas, desse @ de outios Paises, para contar a histéria da sua vide. © Ivo Fragmentos nara a histéria da sua infancia mais remota — entre os ftés @ os sete anos de idade — passada nos campos de concentragGo nazistas de Majdanek e Auschwitz, na Polénia. All os Ieitores se confrontam com 0 “limite do humane", melhor dizendo, com a mais bestlal britalidade de que o homem 6 capex, Criangas so assassinadas com a mesma facilidade com que se acende um isqueiro ou se mata uma mosca. Infantes de um ano de idade famintos comem seus pidprios dedos. Wilkomitski nara seus frugmentos de memdria de modo. cadtico, Porque, como ele afima, tiaia-se de uma meméria longingua da sua primeira inféncia que, além de mais, fol sistematicamente negada “censurada’ por seus pais adotivos suigos, Esse limo fol aclamado pela “elite” da critica literaria Intemacional e, Mais importante, pelos grandes estudiosos do Holocausto [ou da Shoah, temo academicamente ¢ politicamente mais cometo para indicar o 24 LETRAS - Revista do Mestiado 2M LetiGs do UFSM (RS) janerojiunha/998 assassinato de cerca de sels milnGes de judeus pelos nazistas}, Uma cttica publicada no Neue Zircher Zeltung afirrnava que esse wo carega “9 peso do século”. Jé 0 citico do New York Times qualficou a obra como uma “memdria obscura e proustiana’. Em 1996 — ano em que a tradugdo para o inglés foi publicada nos E.U.A. pela prestigioso editora Schocken — 0 lio recebeu um prémio da "National Jewish Book Award” na categoria "Autoblogratia’ Memoria” lawrence Langer ploneito nas pesquisos sobre a iterotura de testemunho, encontra-se entre os acimiradores desse volume. Ainda em setembro, num exemplar do renomado jomal semandrio atemdo Die Zeit, \Wolfgong Benz, 0 historiador que preside 0 “Cento de Pesquisas sobre 0 Anti-semitisno” da Universidade Técnica de Berlim, elogiova a obra de \Wilkomitskl, afimando que esse testemunho “abre 0 acesso 6 complexa ttagécia que foi o Holocausto como nenhum outro documento", No The Nation, uma revisia de esquerda, um critico afirmou que © livio € tao Scomovente, 160 importante do ponto de vista moral e tao live de qualquer articio terdrio, que eu me pergunto se eu tenho © diteito de elogiévo. [..] Esse homem sobreviveu nao sabemos come, a sua sade psiquica parece um milagre — e ele nos entrega de presente essa dor praticamenle perfetta de um mundo que sempre esta pronto para dest 08 inocentes.” Wikomiiski deus um long depoimento sobre a sua historia {sels fites de video) para o Holocaust Memorial Museum de Washington, Também a "Survivors of the Shoah Visual History Foundation’, instituigdo financiada por Spieloerg e que se encarrega de consituir um fantastico arquivo de videos com entrevistas de sobreviventes da Shoah, entrevistou © nosso autor. ee LETRAS - Revista do Mestrado em Letras da UFSM (RS) janeirojjunho/1998. 25 No Brasil, apés @ publicagéo da obra, surgitam multas criticas, todas Posttivas. O motivo dessa recepgao ampla e posttiva é simples: a obra testemunhal de Wikomitski 6, de fato, uma das mals impressionantes realizag6es no género. Ninguém sai incélume da leltura dese livro. © seu leltor fica impregnado por um paradoxal € aterorizador “excesso de tealidade", Ao Ié-lo nao podemos deixar de retletir sobre a humanidade e sobre os seus limites; soore a ética e a maldade humana. Sobre a morte © sobre a dor como realidades onipresentes € Incontoméveis. Nunca um testemunho das atrocidades nazistas finha atingido o detahamento que essa obra contém: © lio se estrutura todo com base nos fatos histéricos. Ele 6 antes de Mais nada um documento da barbarie. Tanto o autor no posfécio, como © texto da oretha da edigGo brasiisira informem sobre a vida de Wikornirski. Ficamos sabendo que ele ndo apenas é musico e constutor de insirumentos, mas também um pesquisador da Shoah. © Joma suigo Weltwoche publicou duas reportagens, em 27 de agosto e em 3 de setembro de 1998, que logo se tomaram o epicentro de um dos maiores escGndalos da historia da vida iiteréria dos Ultimos anos. Nelas lia-se de modo inequivoco: "Os Fragmentos de Binjamin Wikomirskl, @ obra suiga que mais faz sucesso atualmente, so uma ficgao". O autor dessas reporlagens, 0 escritor e jomallsta Daniel Garafied, 6 filho de judeus hingaros e autor de um romance Der Absender (O Remetente} sobre a segunda geragao dos sobreviventes da Shoah, @, logo, ndo teria motives pessoas ou politicos parc “desmontar’ a obra de Wilkomirskl, 28 LETRAS - Revista do Mestiado em Letras da UFSM (8) janeiorjunho/1996, No seu extenso trabalho, ele conta como a partir de uma simples reportagem sobre Wilkomitski aos poucos ele foi desvendando a criagao @ Invengdo do personagem Binjamin Wikomirski. Wilkomitski chama-se na verdade Bruno Doessekker, Ele € uma dessas figuras que nos historias pulam fora do livro e assumem uma vide “real! Segundo Gonzftied, Bruno Doassekker ndo judeu ou de otigem judaica: ele conheceu os campos de concentragéo de Auschwitz e Majdanek “apenas na condi¢do de turista’. Ele nasceu a 12 de feverelro de 1941, Esse Ultimo dado, alids, © proprio Wikomirski também afrmou no ‘posfacio" do seu livio, mas, logo acrescentondo: “Essa data, porém, ndo coincide com a historia de minha vida ou com minhas lembrancas. Tomei medidas legais conira essa identidade decietada, A verdade jutidicamente atestada 6 uma coisa; a verdade de uma vida € outta’, Por que isso hoveria de ser assim, € 0 que Ganzftied comecou a se perguntar, Afinal de contos, a Suiga é uma pais clvitzado, sobretudo no que tange 4 burocracia: dificilmente aiguém nasceria e viveria cinqUenta anos nese pais sem dekxor tragos. Ganatried por assim dizer néo acettou © postulado — coerente dentro do universo, digamnos, de um Katka — segundo 0 qual existe duas verdades: uma “da vida" e outta juridicamente atestada”. Ele iniciou 0 confronto entre os tragos de meméria ctiados por Wikomirsk/Doessekker os —- ndo menos criacdos — do pois onde ele sempre viveu. Para Wikkomirski cada um tem “a sua verdade, a sua verdadeira vida" € pode nand-la, No caso dos sobreviventes da Shoah essa nanragao 6 sempre penosa e necessdria: ela é fecida tanto como uma forma de se “ilbertar’ do passado como também se desdobra como um penoso TETRAS - Revisio do Mestrado em Lettos da UFSM (RS) janelrojunno/1998. or exercicio de construcde da identidade. Fla é uma naragéo necessaria tanto em termes individuais como também — pensando universaimente — deve funcionar como um testemunho para a posteridade. Elia 6 um ato subjetivo e objetivo, psicoldgico e ético, Wikkomirski, alias Bruno Doessekker, como esta escrito na sua caixa de correio, sabe muito bem disso. Ele sabe em que medida ele poderia desarmar os seus lettres com a sua narragGo articulada do ponto de vista de quem passou pelo infeino. Apenas apés as pesquisas de Ganeftied percebemos em que medida nés nos abrimos de modo sentimental e néo suficientemente racional para essa literatura. De agora em diante os estudiosos da Shoah serdo mais cautelosos. Coro € conhecido, existe uma literatura testemnunhal importante que se desenvolveu a partir da Shoah e que, aos pouces, foina-se uma espécie de chave para a leitura da literatura do século XX. Primo Levi, Charlotte Delbo, Robert Antelme ou Ruth Kluger sGo alguns autores eminentes dessa literatura teslemunhal, Wikomirski com 0 seu embusie serviu apenas para dar mais argumenios para os “negacionistas’ e “revisionistas", ou seja, para aqueles que negam a existéncia de Auschwitz ‘ou que cfimam que os Campos de Concentragao foram na verdace apenas Campos de Trabalho. Esse € — em parle — 0 tiiste saldo desse golpe literario. © jomalista Ganztried descobriu que Wilkomirsk/Doessekker, tinha ainda um outro nome quando velo ao mundo, Ele é na verdede um filho llegitimo de YWonne Berthe Grosjean que foi parar em um orfanato em Adelboden € que, finaimente, foi adotado pelo casal Doessekker em 28 LETRAS - Revista do Mestrado em Letras da UFSIM (5) janekayunho/ 1998, 1945. © casal de ficos médicos que adotou a crianga consegulu mudar ‘0. seu nome ainda antes do inicio de sua vida escolar. Bruno eniéo deiou de se chamar Grosjean e passou a atender pelo nome de Doessekker. A Senhora Grosjean morreu em 1981; os seus pais adotivos em 1985. Bruno Doessekxer estudou em Zurique, tornou-se misico € € pai de trés crlangas. Um dado da sua biogratia também € digno de nota: ele estudou Historia em Genebra. A sua paixdo pela histéria € comprovada também pelo enorme arquivo que ele organnizou sobre o tema: o que deve ter servido de aluda para a compilagao da sua “outro” vido, a ficticia, de um *sobrevivente” de Auschwitz, Como se jd néo bastassem as provas trazidas @ ptibico pela corajosa teportagem de Danie! Gonztied, na edigao de 22 de setembio do Fronkturter Allgemeine Zeitung, Lorenz Jager frouxe mais um dado que funcionou como um golpe definivo na farsa armada por \Wikomirski/Doessekter. Ele recordou que em 21 de abril de 1995 uma histéria emocionante foi publicada em um jomal berlinense, © ciatinetista Bruno Wikomitski de Zurique viojara para Istael para reencontrar 0 seu pai Jaacoy Morocco — um sobyevivente do Campo de Concentracdo Maidanek — que ele perdera de vista desde a guerra. O teencontro de ambos, pai e filho, no aeroparto foi cheio de emogdo e Wikomiski declarou entéo a um reporter da AP: "Nés possuimos recordagées em comum. Eu dinda vejo na minha meméria dante de mim como o meu pai foi evado em direcao 4 cémara de gas’, Quando alguns meses depois 0 livto Fragmenios fol Jangade, Wilkomirski j& nGo se chamava mais “Bruno”, mas sim “Binjamin’ (nome do fitho desaparecido de Morocco}. Mais estranho ainda: a sua historia narada em Fragmentos ndo fala nada sobre esse reencontto com o pai em Israel. No Ivo, TETRAS - Revista do Mestrado om Letras da UFSM {RS} janetrojjunnoy1 998. 28 Wikkomitsk conta como seu pai foi assassinado pela milicia let, esmagado por um carro. Por cigum motivo Morocco delvara entrementes de reconhecer em Wikomiski o seu fiho @ este teve que encontrar um outro pai para a sua historia, Wikomirski confontado com esses fatos se limitou a falar em uma conspiiagde aimeda conta ele. Para ele, Ganzfried — que perdeu seus pals no Terceito Reich — seria simplesmente aiguém da ‘segunda geragGo (de sobreviventes} que sofreu 0 destino do pai e foi atingido Psiquicamente por uma infancia e uma juventude dificeis. Eu acho — continua Wilkomitski — que ele necessita um substituto da figura patema que ele possa destul e tomar responsdvel pelo seu desaste"! A sua editora, a Judische Vellag — que & propriedade da tode-poderosa editora alema Suhtkamp —, recusou-se a comprovar a veracidade dos fatos nartados no lio. Unseld — © presidente da Suntkamp — atimou que isso nao 6 parte da sua responsabilidade. James Young, um renomado pesquisador dos monumentos dedicados 4 meméria do Holocausto, considerou a obra em questo “um testemunho maravihoso". Diante dos descobertas que justamente negam a obra @ qualificagde de um testemunho no sentido tradicional deste termo, ele se limltou a atimar que © “Valor Iiterdrio” da obra ndo fica abalado desse modo! ‘Como ler os Fragmentos como se se tratassem de uma ficgdo? E sé tenfar para que © leitor se depare com uma obra que ndo funciona mais @ ate mesmo beira o mau gosto: 0 que se espera e se acha admissivel 30 LETRAS - Revista do Mestiado em Letras da UFSM [R3) janeiovjunho/i996. na Ieitura de uma obra autobiogréfica de um menino que conheceu ‘Auschwitz ¢ Majdanek, toma-se imediatamente mad literatura de ficgao. Existe uma excelente literatura de ficgdo sobre 0 Holocausto, como é ‘© caso de um famoso texto de Zvi Kolitz ("Yossel Rokover voita-se para Deus") que narra os Ullimos momentos de um judeu no Guelo de Varsévia, © filésofo Levinas afirmou que esse texto de Kolitz é “verdadeiro como apenas a ficgao pode o ser.’ Cada géneto literario possui as suas “regras’, propde um determinade “jogo” com 0 Ieifor. Sabernos que Ndo existe uma auto-biografia "pura", sem "coregdes estéticas', que sla & apenas uma construgGo motivada pelo que vivemos. © caso em questéo € peculiar. Se 0 livio Fragmentos € composto apenas “ao modo” de uma auto-biografia ele deixa de ter um efeito eslético: e gonha apenas um teor a-moral. Mas isso no é téo simples. Devemos fazer uma distingdo clara: Wilkomirsk/Doessekker joga de um modo equivocado na medida em que ele assume perante o mundo uma faisa identidade. Ele deve ser condenado, creio, néo por causa da sua obra, mas sim por ter simylado de ma fé essa Identidade. Se a sua ‘obra continua a ter ou nao um valor estético, mesmo apds a descoberta da farsa, 6 uma outa questéo que cada um deve decidir individuaimente. 2 Lembyo aqui — nesta publeaeao de cunho "ocadémico” — que também para: Rousseau, como ele afiimou numa nota co seu F:s0! sur Forigine des langues, “ies matheuts feints nous touchent bien plus que les vertabies. Tel songiote & ia tagédie. qui rieut de ses jours piié doucun matherewr’, “os infelicidades fingidas nos tacam multo mais que os verdaceias, Alguém que em toda sua vida nunea teve piedade de um Infeliz soluga na tragSdia." (ROUSSEAU: 1974. p. 91) LETRAS - Revista do Mestrado em Letias ca UFSM (5) janevrofiunha/1998. 31 Mas © prdéprio Wilkomirsk/Doessekker parece também ter sequido a sdida pelo “estético’, proposta por Young, tentando encobrir assim ou desculpar a sua farsa, Numa deciaragGo co Jomal suigo Tages-Anzeiger podemos ler: “Cada leitor pode deduzir do posfacio do Iivio que os meus documentos ndo coincidem com as minhas meméras, A uma identiciade suiga mal costuraca eu s6 posso opor essas memiérias. Isso estava claro desde © principio. Os leltores sempre estiveram livres para aiceitarem 0 meu livio come literatura ou come documento pessoal. Seid que um sobrevivente dos Campos de Concentragéo serla copaz de afrmar algo semelhante? Charlotte Delbo, uma sobrevivente, de fato, escreveu na epigrate da sua trilogia Auschwitz et Aprés que “hoje, eu nao estou cerla se © que eu escrevi é verdade"; mas, em seguida ela acrescentou: “Eu estou certa que € veridico,” Para 0 sobrevivente, a realidade do Campo de Concentracdo € tao intensa que vai além daguilo que normalimente denominamos de verdade: pelo simples motivo que Auschwitz vai além dos nossos padres (superados!) de Humanidade, de ética, de cultura etc. Wikomitsk, pelo contrario, parece satisfazerse — sem reluléncia — com uma concepeao “pés-modema” absolutamente relativista quando se ttata de estabelecer a distingdo entre ° € interessante lebrer neste contexto — de uma revista voltada para estudos pés- graduades — uma carta que Att Spiegelman enviou & rediagtie do New York Times Books Review. Nessa care ele teclamou 0 fato da sua obra Maus (uma histéia em quackinnos que relate tanto ¢ vida do seu poi — um sobrevvente da Shoah — coro a do seu telacionamnento com ele) ter sido classiiceda na lista dos Dest savers na colina de “fcgdo". Splegeiman aceita 0 tear “IterGio"” da sua obra, mos, como ele atima com, toda 16260, is80 néc Impica em atimar 0 teor “icticio" da mesma, Fiegdo, por outro lado, nGo pace ser equacionado com ‘mentia': no campo da estélica so exste o "veldade estético" {para feler com Baumgarten, 0 fundador de dsciplina Estética no século Xull). A questo de Spiegelman ¢ que ele vé a sua obra como uma oba de testemunho: que remete a algo “que de fato ocorreu”. Nao ¢ invengae, mas naragéo— construgéo — do “tear. (Ct. HOROWITZ, 1998, que, infelzmenta, nao percebe a distinggo entie ficedo © mentia, 2, (ETRAS - Revista do Mesiraco em Letras da UFSH (R85) janerojlunnc/1998. © teal e a ficgGo, Ruth Kiger, outta sobrevivente do Holocausto, respondeu a essa postuta de Wikomitski com as seguintes palavias: "A mentira ndo se toma literatura s6 por causa da boa fé dos leltores’, Resa saber como Doessekker chegou 4 idéla de cricr essa sua autobiogrotia ficticia, Ha alguns anos uma australiana fizera o mesmo, Uma vez descoberto o embuste, ela disse que escolhera esse tema por saber que conseguitia muita publicidade com ele. Talvez encontremos Gi uma resposta. Por outto lado, Doessekker trabalnou intensamente junto a teropeutas [2 historiadores) que utllizam a técnica de “feropia para recuperar a meméria” ("recovered memory therapy’). Nessa terapia parie- se dos fragmentos de meméria dos pacientes que passaram por traumas — normaimenie de cunho sexual — para entao tentar remontar toda a sua hisiérig/identidade, Aparentemente esse método — diga-se de passagem, muito em moda — pode levar a uma confusdo entre “econstrugéo” © “constugao” ex nihifo. Mas como escapar dessa encruzihada? O oréprio Freud, aids, que a principio direcionou a terapia psicanalitica no sentido de iluminar a cena de ciouso {sexual} de sucs pacientes histéricas, aos poucos fol delkando esse método de lado. Ele percebeu a dificuidade de se estaibelecer a “realidade” cas cenos jroumaticas que povoavam as mentes das suas pacientes. Raul Hilberg foi umn dos poucos leitores que desconfiou da veracidade do contetide dos Fragmentos desde a primeira leitura. Quando ele encontrou Wikomirski ern um congresso na universidade de Notte Dame peiguniou se a obra era uma ficgdo. © autor negou enfaticamente Hilberg, 0 maior especialista na historia da Shoah, estranhou diversos LETRAS - Revsia do Mesttado em Letias da LFSM (Fe janerovunho/1 998. 33 “fatos” narrados no livo, que para ele sao incompativeis com os dados historicos. Hilberg foi astuto ao constatar a aimadiha armada por Doessekker. Ele aproveitou a polémica para condenar de um modo geral 0 que ele denomina de ‘verdadeiro culto do testemunho". NGo posso, no entanto, compartinar desse seu desprezo pela literatura testemunhal. A literatura de testemunho deve, mais do que nunca, ser lida de modo sério. Mas uma coisa deve ficar clara, Aqueles que negam a existéncia de Auschwitz néo tém porque se alegrar com a descoberta dessa farsa. Com 0 passar dos anos, a realidade da Shoah tora-se néo mais distante, mas sim cada vez mois proxima, gragas ds pesquisas histéricas também aos testemunhos, escritos ou gravados € conservados nos intimetos arquivos de videos com testemunhos espalhados pelo mundo. © nosso século se identifica € seré identiicado com Auschwitz, Se a “realidade" descrita por Wikomiski / Doessekker 6 terrivel e insuportavel, a dos Campos de Concentragae era multo pior. As ctianeas pequenas néo jiveram a sorte de sairem vivas.* $40 Paulo, 27.11.98 Uma vez ldo este teWo, s6 poss0 remeter 0 ‘ettor novamente ao meu texto intiodutsrio... Consuitel, entte outos, os seguintes artigos de jamal para redigir esta "segunda parte": Jonathan Kozo}, “Chien of the Camp’, Nation (28.10.1996); Wollgang Benz, "Deutscher Mythos’, Die Zeit (03.09.1998); Daniel Gandtied, ‘Die gelienene Holocaust Biographie", Welhwoche (27.08.1998); Lorenz Jager, "Hystotie [sic]: WikomitsKs Eiinnetung’, Fronkfurfer Runakchou (07.09.1998), Daniel Gonsftied, “Fakten gegen efinnerung’, Weltwoche (03.09.1998); Jéig Lau, Ein fast perfekter Schmer, Die Zeit (17.09.1998); Daniel Ganatiec, “Bruchstlicke und Scheibenhaufen’, Weltwoohe (24.09.1998); Lorenz Jager, "Gutgiéudig. Die Zwei Wikomisks", Franidurt Allgemeine Zeitung (22. 09.1998); Hans Soner, “Wikomissks Woh", Weltwoche (07.10.1998); Sike Mertins, “Von der Sehnsucht, Opfet zu sein’, cle fageszeitung (10.10.1998); Helmut Schmitz, “wilkomisski behont auf IdentiiGt', Fronkfurier Runcisohau (27.10.1998); Nicolos Weill, “La 34 LETRAS - Revista do Mestrado em Letras da UFSM RS) joneirojunha/1998 BIBLIOGRAFIA: ABRAHAM, Nicolas e TORO, Maria, A casca e 0 niicieo, $40 Paulo: Editora Escuta, 1995. AMERY, Jean, Af the Mina’s Limits: Contempiations by a Survivor on Auschwitz and Its Realities, trad, do alemdo Sidney e Stella Rosenfeld, Bloomington, 1980 AMISHALMAISELS, Ziva, Depiction and interpretation: The Influence of the Holocaust on the Visual Arts, Oxford, 1993. ANTELME, Robert, L’espSce humaine, Paris: Gallimard, 1957. ASSMANN, Aleida, Arbeit am nationalen Geddchinis, Frankfurt a. M.: Campus Verlag, 1993. __, Zeit und Tradition. Kutturelle Strategien der Daver, Kéin: Béhiau, 1998. 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