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As fronteiras da cor: imagem e representacao social na sociedade escravista imperial The frontiers of color: image and social ewe Abstract — — Resumo This aticle analyzes social objeto deste ago ¢analsaras from sives and e- _repsentaches sodas de esaavos € Ste usng shutorzlsoures sudo rescraros mando como esp Photognpe snd aivesonents of pasa estdioe crane ‘Swverenaieandelaw sles pbishe! dose aie evenda de ecr05 © daly evepapes Tsamasscos- porto cenal da analisa sea ocru- feeencs wo Hinds efsoucenve- Meno de ont Yebas eo webu, Taland norvetboin ede toshon ———_-datngundo or lementon ave ownhincodey/consiscud sown eramdadosa wr po arco sobre © image of sliver? and, on the other nego.econo o prepioneyrose de tnd the way Hck people slowed cava vt pe socetade brea, ‘ensehes to besen ye sce alawachave: ras pres "Kepworde Inpersl Bazin a ‘ec soci reresenion ‘A imagem na sociedade oitocentista, teve como um dos principais veiculos expressivos, a fotografia. Sob 0 império do retrato grupos saciais se distinguiam, construindo através de marcas visuais a sua identidade social. O retratado, através da pose e da mise-en-scéne do estidio fotogréfico, deixava em evidencia a adocao de um determinado estilo de vida e padrao de socialidade. Os objetos e trejeitos adotados para criar_a ambientacao iluso- ria do estiidio atuavam como emblemas de pertencimento social, verdadei- TTatano imagonte ds seio de conunicacto cotenids ~_ As fons da Sociedade Otoceni: ‘ular eduescioerepesent sch ne Brel impetal 0(Sirpso Naconalda ANFUH Randpols. 25-30de hmho de 1999 Profesor doubra do Dep de Ht a UF, Coedenadora do LABHOLUFE E-nait arauai@poboccom ras representacOes socials de comportamento, do grupo que detém ‘05 meios técnicos de producao cultural ou o acesso a estes. ‘No entanto, oretrato fotogrifico, como bem coloca Gisele Freund democratiza a imagem, antes limitada aos recursos da pintura. O bara~ teamento dos custos como também a ampliacio do nlimero de fotd- ‘grafos itinerantes, ao longo do segundo reinado, amplia © mercado ‘consumidor configurando uma clientela cada vez mals heterogenea. nido é raro encontrar-se fotografias de ex-escravos, como tambem de tum niimero cada vez maior de imigrantes pobres que se utilizam da fotografia como um meio de construir a sua propria posteridade. (© objetivo deste trabalho é analisar as representacdes sociais de escravos ¢ ex-escravos tomando como fontes principais a fotografia de estiidio e os aniincios de aluguel e venda de escravos. O ponto central da andlise sera cruzamento de fontes verbais € no vetbais, tinguindo os elementos que nos eram dados a ver pelo branco sobre ‘© negro e como proprio negro se deixava ver pela sociedade branca. Elementos de uma mise-en-scéne imperial: 0 cédigo do retrato oitocentista. A fotografia brasileira, amplamente premiada em diferentes ‘exposigGes nacionais e intemacionais por seus panoramas ¢ vistas urbanas, teve no retrato © meio mais adequado para a atistocracia rural ver sua auto imagem construida e perenizada Fotografos que faziam fama através das premiacSes ou homenagens oficiais, ganha- ‘vam a vida, justamente, com os servicos de retrato 0 que mais a a clientela jé consolidada na Conte na década de 1860. Aliés 0 século XIX, a parte de todo o fascinio causado pelas vistas estereoscopicas, foi dominado pelo império do retrato, cuja divulga- Go estd indefectivelmente ligado ao nome de Eugene Disder. Por alturas de 1852-53 apareceu um homem em Paris que imprimiu ao desenvolvimento da fotografia uma decisiva mudanca de orientago. No centro de Paris, no Boulevard des Italiens, abre as portas um novo estudio de fotografia. Nele se estabeleceu um ho- mem de nome Disder. “LI comum instinto muito ajustado, ele foio primeito a apreen- der as exigéncis do momento e os meios de as saisfazer. Viu que «fotografia, porque era muito cara, era apenas acessivel 9 redui- dda classe de rcos|.J apercebeu-se que 0 oficio ndo daria resul- tados.a menos que conseguisse alargara clientela eaumentar a encomenda de retratas [| reduzindo 0 formato criou 0 retrato carte de viste”. " FREUND, Gisele. Fotografie Socedide sbox Vel $0, p48 © telato de Gisele Freund, nos aponta uma radical transfor. ‘macdo na fotografia, até entio associada a producdo tnica ¢ exclusi vva do daguerredtipo. Disderi é 0 produto de um tempo de transfor macoes, no qual a fotografia passa a ser uma mercadoria requisitada por um publico cada vez mais amplo que, por motivos de ordem econdmica, via a sua auto-representacdo através do retrato 3 dleo, completamente vetada. A burguesia urbana é a principal clientela do retrato fotogrifico, feito 3s dizias para ser presenteado e trocado por outros. Uma clientela enriquecida pela disputa colonial e pelos con- tratos financeiros, mas alijada da “boa sociedade" e de seus atributos de representacao por falta de tradicao nobilara. Pata este publico, a fotografia reordena as possibilidades de auto-representacdo: “A ma- ‘quina forogréfica tinha democratizado definitivamente o retrato. Frente {3 camara todos sdo iguais, anstas, sabios, homens de Estado e mo- estos empregados. O desejo de igualdade e o desejo de representa- ‘¢do das diversas camadas da burguesia eram satisfeitos ao mesmo tempo" sucesso do retrato carie-de-vsite deve-se justamente a ca- pacidade de adaptar o cliente a moldes pré-estabelecidos e de pos- sivel escolha através de um catdlogo de objetos e situacdes, 0 estl- dio do fotégrafo passa a ser um depésito de complementos escolhi- dos para caracterizar diferentes papéis sociais que se quer fabricar. A ‘mise-en-scene’ do estidio do século KIX variou ao longo do tempo, cada década no perfodo da carte de visie e mais tarde do cabinet- size teve seus acess6rios especialmente caracteristicos. Nos anos 60 era a balaustrada, a coluna e a cortina; nos anos 70, a ponte nistica @ 0 degratr nos anos 80, a rede, o balanco e o vaeio; nos anos 90, palmeiras, cacatuas e bicicletas e no inicio do século XX, 0 automé- vel. O préprio cliente se converteu, ele mesmo, num acessério de estiidio, suas poses obedeciam padiées estabelecidos e jé institucio- nalizados de acordo com a sua posicao social ‘A fotografia do perfodo nao abria mao da sua propria estét- ca, como fica exposto no livro Estética da Fotografia, publicado por Disder, em 1862. Neste livto o fotégrafo francés estabeleceu seis principios basicos de uma boa fotografia: I. Fisionomia agradivel 2 Nitidez geral. 3. As sombias, os metos-tons e os dlaros bem pronunciados, estes ultimos brilhantes. 4, Proporcées naturals. 5. Detalhes nos negros. & Beleza * dan, 974 A busca da beleza se toma o ideal a ser conquistado pelo fotégrafo e uma prerrogativa exigida pelo cliente. Ao satisfazer esta exigéncia 0 fotégrafo cria um padrao de representaco que apaga 0 individuo em prol de um esterestipo social. Ao se reconhecer como parte integrante da mesma sociedade de imagens que os chefes de estado, sabios e artistas, o cliente se satisfaz, pois vé garantida da ago do tempo a representagdo que quer alcancar. Na fotografia o1- namentada com acessérios, na maioria das vezes ausente de seu cotidiano, reveste-se dos emblemas de classe, com a qual quer se ver reconhecido. Como complemento insubstituivel da ambientagio ilu- s6ria do estiidio estava a pose. T. Robertsonem 1867, j afimmava ser a pose “a mais importante de todas as operacoes fotograficas™ ‘Na mesma época Alexandre Ken (1864), autor das Dissertations historiques, artistiques et scientficues sur la photographie, afimnava: “No ateler do fotsgiato 0 medelo posa apenas meio minuto diante do instrumento. E preciso que antes de entrar no salio de pose, ele tenha esquecido na sala de espera qualquer preocups- ‘fo exterior que ali fotheando douns, examinando os retates ‘expostos, indagando sobre o seu valor artstico e 0 caréter de ‘cada um deles, possa apreciare captar a pose e a expressSo que ‘melhor Ihe convenha e que alguns conselhos do artista Ihe aju- daraoa assum. Todo deve ser feito para distair ovisitante e der ‘20eu semblance uma expressao de clan e elicidade, para fazer nascer em seu espiico idéias agradévesrsonhas que clareando seus wagos com um doce soniso, sam desaparecer daqueta ‘expressdo stra que a grande maieria tem tendéncia a assumir, © ‘que sendo, 2 que mais se exagera, da geralmente 3 fisioncmia um 2arde sofimenta, contracio ou de tédio" A pose € 0 ponto alto da ‘mise-en-scéne’ fotogrifica no século XIX pols través dela combinam-se a competéncia do fot6grafo em con- trolar a tecnologia fotografica, a idéia de performance, ligada ao fato do cliente assumir uma mascara social cue, muitas veres ndo lhe compete a possibilidade de uma nova forma de expresso adequada acs tem- pos do telégrafo, trem a vapor, enfim, a um tempo que tem come diver- so antever o futuro, A fotografia, principalmente, o retrato fotogratico, com toda a sua possibilidade de encenacao, inventa uma memoria para ser perenizada, etemizando-se na emulsao fotogratica uma vontade de set, algumas vezes risivel mas, na maior parte, crivel Uma imagem capaz de criar uma representacio ideal para ser lembrada no futuro, nos a+ buns de familia, guardises das tradigSes, inventadas ou nao. ‘No Brasil a moda do retrato foi aceita como todas as demais que vinham do estrangeiro para enquadiar nosso comportamento SCLTUAZIL ML fosseTeetosaftopatze asexposiesra ea do espa (1837-1885), ‘Ro de lane: ReecoFunare, 1795, pit ‘ete por ken, 815 para fomecer-nos molduras para nossas proprias imagens. Rapida- ‘mente fot6grafos estrangeiros, fugindo da concorréncia de seus pal- ses de origem, invadiram a Corte integrando-se sem maiores resistén- cias a geografia do cotidiano da cidade, juntamente, com as modis~ 1as, 0s cabeleiteiros, os joalheiros, entre outros agentes da civilizacdo ‘ocidental. No entanto,o circulto social da fotografia na Corte do Rio de Janeiro, nao se limitava aos setores mais ricos da sociedade, a democratizacdo da imagem pelo retrato envolvia também a producao de alteridades, tal como pode ser entendida a fotografia de escravos fe ex-escravos’, Cotidiano e consumo na sociedade oitocentista ‘Ao abrir os jornais da Corte, do Segundo Império, mergulha- mos num mundo de aparéncias, marcado pelo afrancesamento da linguagem e dos produtos oferecidos A influéncia francesa foia mar- «a deste tempo, reconhecida e assumica por seus proprios contem- pordneos. Tal influéncia fica patenteada na conferéncia que um jo- ‘Yer engeneio brasileiro, proferiy, em 1885, por ocasiao da Expo- sicéo Internacional de Beauvais: “O brasileiro tem uma espécie de idolatria pela Franca. Nossos costumes, nossas inclinacdes s4o gran- de parte os vossos: vossa bela lingua nos é cara e nos é familiar, L1 senhores quando chegamos em um pais estranho, nés nos sentimos sempre estrangeiros, mas se chegarmos na Franca, tés dias ndo se passam ¢ jé nos sentimos em casa" ‘Nao sem razio tal familiaridade dos brasileiros na Franca, no jomal © Actualidade, publicado na Corte na década de |860, to- «dos 0s antincios da programacio de espeticulos era escrta em fran- @s, “Une Nuit Terble - A letude. Meredi 6 janvier - representation extraordinaire au benéiice de: M. Amélia. Vaffiche au jour donnera le ‘programme. On peutse procurerdes billets aI avanuie chez la bénéficiaire, hotel de Milan; Rue d'Ouvidor"(O Actualidade, 4/1/1864) Nestes jomais os antincios moldam o perfil do cotidiano, cri- ando modas e inventando comportamentos. A destacada presenga dda publicidade na Cone, aponia para um mercado consumidor bas- tante movimentado, jd na década de 1850. Trinta anos depois os anuincios, que ja ultapassavam as folhas dos jomais diatios invadin- * ran um ivenio mlacoso bam esttundo das imgens de excmos ¢ eesoaves ve ‘CARNEIRO, MLT 8 FOSOL,B.O Ola Euopar onege ra kanopata basta docu 2X0 Sto Pak Eds, 1994 “sas. Comssa0Brasera ma Eposcao Unies de Beara 1885. Ci Tract 1995.04 do os muros e espacos varios da cidade. © movimento do Rio de Janeiro, nos seus odores, ruidos e imagens, foi registrado Koseritz, em. suas crénicas da Corte: “A vida de rua no Rio faz sobre o estrangeiro, principalmente sobre o provinciano, uma impressao de aturdit. Os rnervos da vista, do ouvido e do olfato do habitante do Rio sé0, natu- ralmente, longamente preparados conta tais impresses, mas 0 alienigena deve empregar meses para se habituar’. Em relacio a0 owi- dos, reclama dos preg6es variados, do trénsto de carrocas, bondes e do barulho infernal das rodas contra o calgamento de paralelepipedos. [No que concern a visto sua descicSo ainds & mais detalhads: “Além do copioso movimento das ras, quo 23 12 do Ouvidor, ‘am diss de semana, chega 20 wmulto, desperta 2 atencio do olfar a multidto de quiosaues enfetados de banderas coloridas 2 cobertos de cartazese taboletas também em cores, nos quals se vende cafe bebidsl_|Efeto semehhante produzem os giganes- os antncios belamente enfetados com figures de tods a sorte ¢ pinzados 3 dleo com letras enormes, que cobrem fodas 0s muros le paredesvarios Até no interior dos cals e restaurantes anuncios semeihantes LJ estio nas paredes como tpecaras. Estas igures Imostram que aqui 0 povo esti se americanizande” Curioso comentétio para uma cidade que teve a marca da ‘altura francesa, pelo menos até os anos quarenta do sécuilo XX. A cultura visual dos jornais, revistas e das ruas abre uma jane- la para o cotidiano oitocentista, na Corte do Rio de Janeito, permitin- do-se avaliar 0s significados atiibuidos as nocées de conforto e bem viver. A maior parte da publicidade era ilustrada com desenhos ou acompanhada de um minuciosa descricdo que permitia uma visuali- zagio clara do produto a ser consumido. ‘Anunciava-se de tudo: banhos de vapor e de saude, acompa- nhados ou ndo por choques elétricos; banhos de mar, “com um magnifico tanque de natacio’, aberto desde as quatro e meia da ‘manh3, ou ainda os mais confortiveis que oferecem “grandes cama- tins para familias com espelho, pente, bacia com Sgua para os pes” e fa “empregados de toda a confianca para acompanhar dentro agua as pessoas que assim o desejarem’;tintas para tingit 0 “cabe- lo, barba e bigode”; mobillario variado incluindo-se “camas francezas, cOmodas,tolllees lavatsrios,toucadores secretarias de mogno, guarda- vestidos, bercos, bidés, mezinhas de castura, mezas eldsticas de jan- tar, aparadoves de sala-de-jantar, euarda-loucas e outros muitos arti- 1805"; cemvejas de “Londres e da Escéssia’; “machinismos hidréulicos” com grande “sortimento de latrinas ingleras fizas e portateis, bidés, ‘ourindes de parede, lavatorios para casa, repuxos e fontes de loucas, > KOSERITZ, Ca Von ingens do Bo S30 Paul/Balo Hore: Esp Haas, 1980p. 73.74 bombas para poco e de alta pressdo e para regar jardins; loucas e aparellios de todas as qualidades para jantar e almoco - porcellanas brancas, douradas e esmaltadas, cbjetos de fantasia de variadas for mas e gostos, candelabros, serpentinas, casticaes, palmatorias © arandelas de bronze, casquinhas inglesas e francesa, servicos de crystaes, vidros e bandejas de xardo e ferro’; baitelas de “Electro- plate’; talheres de niquel “muito em uso na Europa, em substituicdo da prata de lei"; drogarias com “relagdes_diretas com os principais droguistas de Londres, Paris, Hamburgo, Genova, Lisboa e New York” conde era possivel qualquer “pedido de drogas que thes seja feito, por precos moderados"; artigos para eletricidade, telefonia, telegralla & maquinas de costura Singer, tipicos de um tempo de invencoes ven- didos numa loja famosa da rua do Ouvider, cujo nome - “Ao grande Magico"- denota perfeitamente a ambigtidade do século XIX em re- lacio as inovacdes tecnolégicas: perfumes: t6nicos para o cabelo: remédios para depurar o sangue, expelir vermes, melhorar a pele, faciltar a digestdo, tratar vertigens, dor de cabeca, vomitos, eniéos ‘entre outras mazelas; papéis pintados; tecidos variados tals como: mori, algodao americano, brim de linho e algodao, brancos e escu- tos, Itlandas, cambratetas, cambrainhas, paninhos, escossias, fiscadinhos finos e riscadinhos grossos, etc; anéis eléticos € uma infinidade de estabelecimentos de ensino, confeitarias e hotéis, fora 48 oficinas fotogrificas. Em tal publicidade os produtos importados eram valorizados pela sua qualidade e o estabelecimento comercial que os vendia garantia sempre contato direto com a matrz internacional, com 0 intuito de asseverar a idoneldade des produtos importados. Em tals anuincios a narrativa é objetwa e valoriza-se a variedade das merca- dorias colocadas a disposicdo do consumidor. Em um outro tipo de publicidade, busca-se atrair a atencao do cliente através de um re- ‘curso cémico. No entanto, a publicidade também abria-se para habi- tose costumes nada modernos e bem préptios da sociedade escravista = 0s antincios de vends, aluguel e servicos de escraves. As fronteiras da cor: fotografia e representacdo social de afro-brasileiros no Segundo Reinado A escravidio presente no cotidiano das relacdes sociais, ndo passou desapercebida pelas lentes dos fotografos do segundo Impé- tio, Alguns fot6grafos produriram imagens de escraves dentro e fora de seus ateliés. Christiano Jr. anunciava no Almanaque Laemmert de 1866: ‘variada collecdo de costumes e typos de pretos, cousa muito propria para quem se retira para a Europa’. Produziu uma variada colecdo de carte-de- visite, onde os escravos apareciam em ativida- des quotidianas, encenadas no estiidio do fotégrafo, em outras posa- vam em trajes bem cuidados, as mulheres com turbantes € os ho- mens de terno, mas todos sempre descalcos. A escravidio era delineada, neste caso, pela estética do exdtico. Em outros 0 angulo enfocado era o das relacées inter-raciais, ou como se costumava dizer dos costumes. Foto a - Conjunto representando atividades de negsos em diferentes oficos J. CChistiano de Freitas Ir, cate de visite, albimem,. 1845. Imagem retirada do limo: Kosi, B & Camuano, M. LT. O Olhar Europeu: © negro na iconografa braslela do século XIX Sao Paulo Edusp, 1994, p75. ‘Acasa de George Leuzinger, com sua “offcina especial emelho- tes instrumentos ingleses para paisagens, panoramas, stereoscopos (sic) e costumes’, fol responsivel por preciosas imagens onde o cotidiano tanto era recriado no estiidio quanto captado no detalhe dos amplos anoramas.O primeiro caso é exempilficado por uma série de seis carte dee visite que registram 0 trabalho dos ambulantes, majortariamente, negras vendedoras de frutas, doces e fazendas, sendo que uma delas. traz pendurads, 8s costas, uma crianca negra de colo, indicando o habi- toe a possibiidade de se manter o iho perto mesmo durante o traba- Iho. J4 no segundo caso, o registro € casual, na fotografia do casarto da Lapa, surgem os lencéis estendidos no gramado ou pendurados nos varais, indicando a atividade das lavadeiras. Pato b- O casero da Lapa, aqueduto de Sares Tonza ea Giri, vstos do morro de Santo Anténic. Casa Leusinges elbdmen, 19 x 24 em © 1875 ‘Imagem rectads do lino: Five, GA fot0gr cla no Brsi: 1840-1900. ‘io de Janevo: Funaree, 1985, p. 61 Victor Frond, para 0 album Brasil Picoresco, litografou fotogra- flas, onde o trabalho escravo na rotina das fazendas de café e aclicat tomou-se tema conhecido internacionalmente. Marc Fertez também registrou o trabalho escravo nas fatendas de café. Numa das fotos, em imagens nitidas, definidas e detalhadas, 0 grupo de negros, vin- dos do campo posa, a0 ar live pata o fotdgrafo, nio thes evitam © ‘olhar, miram diteto para a obietiva, encarando 0 foiSgrafo, como se ‘quisessem fazer a imagem falar. Em outra 0 quadro € mals perfeito, Pois ao retratar o trabalho de secagem do café, registra a convivencia ‘quotidiana das criancas brancas e negras, nas brincadeiras, e do ha- bito de ter criancas perto mesmo durante o trabalho. Foto ¢~ Excraves indo para a colheta de cal; Marc Fore, albimen, 18 x 22 om, ‘Rode laneiro, ¢ 1882, nagem retrada do lio: Fesez C.M fotogratia ro Brasil: 1840-1900. Rio de Janeiro Funai, 1985, p. 80 Polo d ~ Secando calé no tereno da fazenda do Quite Casa Leuzinger [Mare Feed, 18.5x 23,8cn, Rio de lane, c 1875. Imagem reads do lino. Frseez, G.A fotografia no Brasit: 840-1900. Rio de Janeira: Funan, 1985, p57 Nas fotografias, tiradas no Recife, 2 ama-de-leite aparece com a ctianca refestelada em seus bragos; a ama sentada com os bracos apolados, elegantemente vestida com uma medalha no pescoco, € fotografada com o menino a seu lado, de pé, recostado em seu om- bro, temamente Ihe abracando 0 braco; 0 negro idoso, de fraque, colete, gravata borboleta, bengala e cartola, posa sentado e cansado por toda uma vida sem ser dono da prépria vida. Sh ab Foto e - Ams-de-telte da fama Adolio Simoes Barbosa. Eup carte de visite, Recife, 1864. Imagem rewtads do livo: Koso; & & (Creve, ML T.O Othar Europeu: 0 negro na iconografa brasileira do século XIX 0 Paulo: Edusp, 1994, 70 Foto F ~ retro sem idemitcacsa. Alberto Henschel, Mauricio cane de visite, Recife sd. Imagem retirada do tino: Kosscr, B & Canaino, ML EO Olhar Europeu: o negro na iconografa brasileira do sécuio XIX So Palo: Edusp, 1994, p 85. Em todas estas imagens 0 olhar fixo na objetiva, direto para o fotdgrafo, mas uma vez querendo dar vor a imagem. Olhares que dizem muito, registraram para a posteridade, 0 modo como era felto 9 trabalho, suas instalacdes e a presenca quotidiana do escravo na intimidade da casa préximo as criancas, mas silenciaram sobre a violancia presente no cotidiano das relacées sociais. Sobre esta os aniincios sio eloquentes. Nos anuncios de servicos domésticos era comum encontrar- se, juntamente com 0 aluguel de escravos, para variados servicos, 0 aluguel de “livres” e “brancos”, casais juntos ou separados, na sua ‘quase totalidade estrangeiros, denotando que o contetido da palavra aluguel, ligava-se diretamente a oferta de servicos. Tal observacao es- tendida para 0 caso dos escravos indica que tanto 0 senhor poderia lucrar alugando 0 servico de seu escravo, quanto 0 proprio escravo poderia oferecer os seus servicos, em caso de alforria, ou compra de liberdade. Concentramos nossa andlise nos antincios de aluguel e venda de negros, no sentido de avaliar a presenca destes no cotidia- no doméstico da Corte e a forma como eles eram verbalmente repre- sentados. Por oposi¢do as imagens visuais, a descricéo verbal do es- ccravo imputa um papel a0 negro e tipologiza seus attibutos, criando ‘uma representacdo que descaracteriza a pessoa e sua humanidade ‘ao valorizar 0 seu cariter de mercadoria e de trabalho potencializado. ‘Os antincios, principalmente publicados no “Jornal do Co- meércio”, localizavam-se nas paginas finais. Os de aluguel de “pesso- as” vinham em primeiro lugar, separados das demais mercadorias, os de venda apareciam misturados as ofertas de outros produtos. Todos possuiam um padrdo geral de descticéo que guardavam a seguinte légica: ‘Alugase ou vendese Tipo de pessoa (cor definido sexo}escravo(a) ou ocupacao dade e qualidades Fe, humid, impo, etc) acompanhido do endere- oparaa negocacao Em tomo deste padréo oconiam algumas variacées que de- monstram o tratamento dado a0 negro pela sociedade oitocentista, no espaco urbano, Em relagdo a cor, eram comuns as expressées, “pardinha’ ou “negrinha’: “Aluga-se uma pardinha, livre, perfeita engomadetra[_| Também se aluga uma negrinha, escrava, para andar ccom criancas e fazer servico leve de casa" (Jornal do Comercio, 2/7/ 1878, p. 5). Aniincios como este desapareceram depois da abolicio, neste permaneceram a atribuigdo da cor, mas com a omissao da cor: “Aluga-se dous rapazes de cor, um bom chacareiro e um copeiro, ambos de conduta aflangads e ligentes|_]" (.C, 6/10/1888, p.6) Nem sempre nos antincios a condicao de escravo era explicitada, valorizando, principalmente no caso dos homens 0 tipo de servico prestado. ld em outros, era 0 cardter de mercadoria o mais valorizado, nestes 0 escravo era tratado como uma “peca’, nio se enunclavam nem a ocupacdo, bastando a referéncia em se tatar de “uma preta bonita” ou uma “bela peca’. Na sua maioria a oferta era de uma sO pessoa, entretanto, a incidancia venda e aluguel de casais. familias, parceiros, mae e filho e de lotes, no eram incomum. No caso dos aluguéis, antes do endereco, eram expostas algumas condicdes, sendo a mais comum, principalmente no caso de mulheres e criancas, a de ndo poder sair nna rua desacompanhado, indicando uma preocupacdo clara contra roubo e fuga. No rol de trabalhos oferecidos os mais comuns eram 0 de: ama de leite (sempre com a especificacao da idade do leite e se € primeiro parto ou nao); ama seca; “lidar” ou “brincar com crian- ¢as”; copeiro; cozinheiro; lavadeira; engomadeira; doceira; costurei- ra; mucama; chacareiro; quitandeiro, criado de escritorio, ganhador, vendedor; moleque de tecados; carregador, trabalhador de roca, etc. Indicando que no espaco das cidades o trabalho escravo especi- alizava-se para além da divisdo, presente nas fazendas entre escravos do eo e de dentro. Os atibutos masculinos e femininos se distinguiam pelo tipo de servico realizado. A mulher era sempre bem prendada, carinhosa com as crian¢as, sada, com bons costumes, sem vicios,perfeita ou insigne trabalhadora. Todas qualilicacdes de temura e intimidade, necessarias a0 convivio doméstico e cotidiano, préprios de uma mo- ral burguesa que ja se estava disseminando, no Brasil, por este perio- do. Jé os homens eram valorizados pela inteligencla, fidelidade, habi- lidade, esperteza e forca. Atributos necessérios a vida na rua e nos limites da casa. Acompantando-se a frenquéncia de tais antincios em cinco anos observou-se a seguinte proporco: 1878 188i 1885 i9ge julsset. jan/mar —abrjun. —abr/jun,-——out/dez 18.6% 117% 16% 03% - 120,7% 143,1%89,5% 168.9% 546% “Média diaria de antincios E patente a predominancia do aluguel sobre a venda, fato que se explica, principalmente, se levamos em consideracdo 0 valor de venda do escravo € 0 aluguel pago pelo servigo mensalmente. En- quanto o aluguel de um “preto bom cozinheiro’, saia por 35$ men- salmente, na década de 1870, o seu valor de compra ngo ultrapas- sava 1:200S (IC. 2/7/1878, p5 2 23/11/1877) Mesmo depois de abolida a escravidio os aniincios de alu- guel de negros continuou, por algum tempo, apontando para a per- manencia do trabalho negro no ambito domestica. Fato também registrado nas fotografias, posto que, nas décadas subsequentes a abolicéo era comum o retrato de familia, com 0 pai, a mae, as irmas, 1s inmios, as criangas e bebes e as negras da casa, geralmente nas extremidades da foto, Ou ainda o registro, js no século XX, da perma- niéncia do negro, juntamente com o imigrante branco, nas fazendas de cafe. Os dois tipos de textos - antincios e fotografias - veiculam imagens diferenciadas sobre a condicao de ser escravo @ ex-escravo ‘no Brasil citocentista. A fotografia, pautada nos cinones do retrato ‘que, como vimos coordenava beleza e harmonia, produz uma repre- |sentacao das relacoes socials que valotiza a convivencia pacifica 30 linvés de uma conflituosa, Os antincios, por sua ver, denotam um loutro tipo de representacdo, baseada na Idgica da mercatilizacdo e Walorizacio dos atributos da aparéncia do produto, propria a publici- dade da época, Tanto um quanto outro texto, podem ser reconheci- dos 0 olfiar que 2 sociedade branca lanca sobre 0 outro, 0 afrobrasileiro. Os elementos que elaboram esta alteridade sustentam-se em tunidades culturais consagradas pelo universo de sentido da socie- dade escravista, Dentre eles destacam-se a cor negra e suas variantes parda e mulata, © dominio de uma atividade/trabalho, a forma fisica ~ estabelecida por atributos de forca e beleza; a cordialidade e pas- sividade. Enavanto os antincios adietivam, as fotografias, seguindo a légica do pitoresco, transtere o fotografado da rua para o estidio, do seu local de trabalho para 0 espaco da encenacdo e recria, através da ambiencia ilus6ra, 0 retrato do negro para o branco. Neste contex- to, como chama atenc3o Annateresa Fabris “As imagens do pai de familia, do homem respeitavel, da mulher honesta, engendradas pela elite, permeiam a visio de si de toda a sociedade brasileira, ¢ é isso que € revelado pelos retratos fotogréficos das amas-de-leite negras ¢ cctiancas brancas. € 0 esteredtipo da matemidade que se ve neles, é a busca de uma dignidade derivada dos padroes sociais dominantes € tevelada pelas poses adotadas, e ndo uma relacdo pessoal profunda”* No entanto, 0 ato fotogrsfico pressupée um consentimento, uma aceitacio tdcita do fotografado das regras do jogo da represen- tacdo. Ao mesmo tempo que € visto, 0 fotografado também se mos- tra, ele assume uma pose resultante de uma negociacio, entre 0 ‘queter do fot6grafo e 0 desejo do fotografado. Seguindo as idéias de Roland Barthes em Camara Clara, Fabris aponta, no retrato fotogrifi- co, 0 encontro e o confronto de 4 “personagens”: aquele que 0 retra- tado acredita ser, aquele que gostaria que 05 outros vissem nele; aquele que 0 fotografo acredita que seja; aquele que o fotdgrafo se serve para exibir sua arte” A construcdo da identidade do fotografado, nesta dinamica de representacio, fica sujeita a um conjunto de mediacées que vio desde a forma como, no caso estudado, 0 escravo ou ex-escravo se insere no cotidiano social (considerando sua trajetéria social) até 0 rigor do fot6grafo em obedecer os canones do retrato lotogrico, passando, necessariamente, pela construcdo de sua auto-imagem atra- * FABRE, A Renato fotogrdc:Inlce de ientdade naconaP, Anas do | Enconte Liine ‘Americano de Hsia da Foptopaf Rode lair, inane, 1997, p | ° Hem p2 vés de indices de resisténcia que podem se concentrar num olhar fixo para a camera, num pé descalco ou num adomo investido de um simbolismo. Ao se mostrar, para a sociedade branca, de uma deter- minada maneira e ndo de outra, os escravos ¢ ex-escravos realizaram escolhas, com base em disputas simbélicas. Ente a total sujeicdo aos estereotipos estabelecidos, pela so- ciedade escravista, como querem alguns historidadores, as possibili- dades de negociacio e conflito como querem outros, a construcao de representacdes sociais de afrobrasileiros, na sociedade oitocentista, desvenda-se como um processo dindmico e complexe. Por um lado, a logica da sujelcao aos esteredtipos sociais ¢ confirmada pelos antin- clos de jomais e pelos retratos de estudio, onde o fotografado ora aparece com atributos de um outro grupo socal, ora em posicdo de subaltemidade. Por outro, a0 assumir a condicao de fotografado, 0 ‘escravo ou ex-escravo tem a oportunidade de negociar sua propria auto-imagem, abrindo, com isso, uma nova arena social. Artigo recebido para publicaczo em julho de 2000

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