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Corpos em alianga e a politica das ruas Judith Butler Corpos em aliancga e a politica das ruas Notas para uma teoria performativa de assembleia Tradugdo de Fernanda Siqueira Migquens Revisio técnica de Carla Rodriques oS CIVILIZACAQ BRASILEDRA —— I edigio Rito de Janciro 2018 Corpos em alianga e a politica das ruas Copyright © 2015 by the President and Fellows of Harvard College Publicado mediante acordo com Harvard University Press por meio de Seibel Publishing Services Lrd. Copyright da tradugio © Civilizagio Brasileira, 2018 Titulo original: Netes Toward @ Performative Theary af Assembly Capa: Ronalde Alves Imagem de capa: “Fora Temer, na casa do Temer™, Eduardo Figueireda/Midia NINJA, Sao Paulo, $P, 8/9/2016, disponivel em: ewww.fickr.com/photes/midianinja/2955 1074 286/>, acess em HS5/2018. Adaptada. Essa obra card licemciada com uma licenga CreativeCommons Atnbuigao-Compartilhalgual 2.0 Genérica (OC BY-5A 2.0), disponivel em . A edifors agradece a Carolina Medeiros pela colaboragde ma revisde fécrica. ‘CIMBRASIL. CATALOGACAQ NA PUBLICAGAG SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVKOS, RJ Butler, Judith Be92¢ Corpes cm alianga ¢ a politica das meas: notas para oma teoria performativa de assembleia / Judith Butler; tradugao Fernanda Siqueira Miguens; revisiio técnica Carla Rodrigues. - V ed. - Rio de Janeiro: Civilizagie Brasileira, 2018, Tradugio de: Notes toward a performative theory of assembly Inclui indice Formate: epab Requisitos do sistema: adobe digital editions Mode de acesso: world wide web ISBN 978-85-200)-1372-4 1, Democracia. 2. Politica publica. 3. Movimentos socials, 4. Identidade social. 5. Livros eletrdnices [. Miguens, Fernanda Siqueira, I, Rodrigues, Carla, IL Titulo. 1849789 CDD: 323.4 CDU; 342.7 Leandra Felix da Cruz - Bibliotecana - CRB-7/61 35 Corpos em alianga e a politica das ruas ‘Todos os direitos reservados, Proibida a reprodugdo, armazenamento ou transmisdo de partes deste livre, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagio por escrito. Este livre foi revisado segundo o nove Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa. Direlsas desta edigho adguitides pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA Um selo da EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA. Rua Argentina, 171 = 20921-3580 = Rio de Janeiro, RJ - Tel: (21) 2585-2000, Seja um leitor preferencial Record, Cadasire-se no sine www.record.com.br e receba inbormagoes sobre nesses langamentos ¢ nossas promogiies. Atendimento ¢ venda direta ao leitor: mdireto@record.com.br ou (21) 2585- 2002. Produzido no Brasil 2018 Corpos em alianga e a politica das ruas Sumario Nota da revisdo técnica Introdugao Politica de género ¢ o direito de aparecer Corpos em alianga ¢ a politica das ruas A vida precaria ¢ a ética da convivéncia A vulnerabilidade corporal ¢ a politica de coligagao aA ek SM “Ndés, o povo” — consideragées sobre a liberdade de assembleia 6. E possivel viver uma vida boa em uma vida ruim? Agradecimentos Créditos Indice Corpos em alianga e a politica das ruas Nota da revisao técnica Ao publicar Precarious Life, em 2003, Judith Butler se referia 4 “vida precdria” ou a “precariedade” com as palavras “precarious” /* precarfouness”, Seis anos depois, em Frames of War (Quadros de guerra), a autora se dedicou a distinguir “precariows"/"precariousness” © “precarity”; na ediggo brasileira, trabalhamos com “condigao precaria”, para referir uma condigio universal de todo vivente, ¢ “precariedade”, para tratar daquilo que se di de forma induzida, por violéncia a grupos vulneraveis ou ausencia de politicas protetivas. Neste livro, assim como em 2003, a distingdo de termos deixa de ser importante. Optamos, assim, por usar “precariedade”, recorrendo a “condigao precaria” apenas quando a autora se referiu a uma condigao universal de todo vivente, estar exposto a morte. Quando o termo original é “assembly”, usamos “assembleia”, entendida como reuniio de pessoas; quando a autora’ usa “assemble” mantivemos a ideia politica original com o terme proposto pela tradugao, “reuniao em assembleia”. Corpos em alianga e a politica das ruas Introdugao Desde o surgimento de um nimero massive de pessoas na Praga Tahrir, durante o inverno de 2010, estudiosos ativistas renovaram o interesse sobre a forma e¢ os efeitos das assembleias piblicas. A questo é, ao mesmo tempo, extemporanea ¢ oportuna. A reunide repentina de grandes grupos pode ser uma fonte tanto de esperanga quanto de medo ¢, assim como sempre existem boas razées para temer os perigos da acéo da multidao, ha bons motives para distinguir o potencial politico em assembleias imprevisiveis. De certa forma, as teorias democraticas sempre temeram “a multiddo”, mesmo quando afirmam a importancia das expressdes da vontade popular, inclusive em sua forma de desobediémcia. A literatura é vasta ¢ remete a autores tao diferentes quanto Edmund Burke e¢ Alexis de Tocqueville, que se perguntaram de forma bastante explicita se as estruturas do Estado democratico poderiam sobreviver as expressdes desenfreadas de soberania popular ou se o governo popular degeneraria em uma titania da maioria. Este livro nao pretende rever ou mesmo deliberar sobre esses debates importantes na teoria democrarica, mas apenas sugerir que os debates sobre as manifestagdes populares tendem a ser governados pelo medo do caos ou pela esperanca radical no futuro, embora algumas vezes medo ¢ esperanga se interliguem de modos complexos. Assinalo cssas tensGcs) = recorrentes =a teoria democratica para destacar como desde o inicio existe um descompasso entre a forma politica da democracia ¢ o principio da soberania popular, uma vez que nao so a mesma coisa. Na verdade, ¢ importante manté-las Corpos em alianga e a politica das ruas separadas se quisermos entender como expressées da vontade popular podem colocar em questio uma determinada forma politica, especialmente uma que se autodenomina democratica, ainda que seus criticos questionem essa reivindicagdo. O principio é simples ¢ bastante conhecido, mas as presungdes em questio permanecem constrangedoras. Poderiamos desistir de definir a forma certa para a democracia ¢ simplesmente admitir sua polissemia. Se as democracias sido compostas por todas essas formas politicas que se autodenominam democraticas, ou que geralmente so chamadas de democraticas, adotamos uma determinada abordagem nominalista do assunto. Mas se ¢ quando as ordens politicas consideradas democraticas sio colocadas em crise por um coletive em assembleia ou organizado que alega ser a vontade popular, representar o pove junto com aexpectativa de uma democracia mais real ¢ substantiva, entao tem inicio uma batalha sobre o significado de democracia, batalha essa que nem sempre assume a forma de uma deliberagao, Sem decidir quais assembleias populares sio “verdadeiramente” democraticas ¢ quais nao sie, podemos notar desde o inicio que a luta pela “democracia” como termo caracteriza de maneira ativa varias situagées politicas. Parece importar muito como homeamos as forgas presentes na luta, dado que algumas vezes um movimento € considerado antidemocraticoa, até Mesme terrorista, €, eM outras ocasiGes OU contextos, o mesmo movimento é entendide como um esforgo popular para a concretizagao de uma democracia mais inclusiva e substantiva, O jogo pode mudar com muita facilidade ¢, quando as aliangas estratégicas exigem que se considere um grupo como “terrorista” em uma ocasiao ¢ como “aliado democratico” em outra, vemos que a “democracia”, considerada uma designagdo, pode facilmente ser tratada como um termo discursive estratégico. Portanto, a parte os nominalistas, os quais acreditam que democracias sao aquelas formas de governo chamadas democracias, existem os estrategistas 8 Corpos em alianga e a politica das ruas do discurso que se apoiam nas formas do discurso publico, do marketing ¢ da propaganda para decidir a questio sobre quais Estados e¢ quais movimentos populares vdeo ou ndo ser chamados de democraticos. Claro que é tentador dizer que um movimento democratico é aquele chamado por esse nome, ou que chama a si mesmo por esse nome, mas isso é desistir da democracia. Embora a democracia implique o poder de autodeterminagio, nio se pode concluir que qualquer grupo que se autodetermina representative pode reivindicar corretamente ser “o povo”. Em janeiro de 2015, o Pegida ([Patriotische Europder gegen die Islamisicrung des Abendlandes — Patriotas Europeus contra a Islamizagio do Ocidente], um partido politico alemao abertamente anti-imigrantes, afirmou “Nés somos © pove”, uma pratica de auronomeagio que buscava precisamente excluir os imigrantes mugulmanos da ideia vigente de nage (¢ o fez associando-se a uma frase popularizada em 1989, dando um significado mais sombrio 4 “unificagao” da Alemanha). Angela Merkel respondeu que “o isli é parte da Alemanha” praticamente ao mesmo tempo que o lider do Pegida, denunciado por ter se vestido como Hitler para uma sessio de fotos, foi forgado a renunciar. Uma discussao como essa levanta a pergunta: quem realmente ¢ “o povo"? E que operagao de poder discursivo circunscreve “o povo” em qualquer dado momento, ¢ com que propésita? “Q pove” nao é uma populagao definida, é constituida pelas linhas de demarcagdo que estabelecemos implicita ou explicitamente. Como resultado, assim como precisamos testar se qualquer modo determinado de apresentar o povo ¢ inclusivo, so podemos indicar populagses excluidas por meio de uma demarcagio ulterior, A autoconstituigfo se torna especialmente problematica sob essas condigdes. Nem todo esforgo discursive para estabelecer quem é “o pove” funciona. A afirmagdo muitas vezes ¢ uma aposta, uma tentativa de hegemonia. Portanto, quando um grupo, uma assembleia o Corpos em alianga e a politica das ruas ou uma coletividade organizada se autodenomina “o povo", maneja o discurso de uma determinada maneira, fazendo suposigdes sobre quem esta incluido e quem nao esta oc, assim, involuntariamente se refere a uma populagdo que ndo é “o pove”. De fate, quando a luta para definir quem pertence ao “povo” se intensifica, um grupo contrapoe sua propria versao do “povo” aqueles que estio de fora, os que considera uma ameaga ao “pove” ou opositores da versio proposta de “povo™. Come resultado, temos (a) aqueles que buscam definir o pove (um grupo muito menor do que o pove que buscam definir); (b) o povo definide (e demareado) no curse dessa aposta discursiva; (c) o povo que nao é “oe pove"; ¢ (d) aqueles que estao tentando estabelecer esse Gltimo grupo como parte do “povo”. Mesmo quando dizemos “todos”, em um esforgo para propor um grupo que inclua a todos, ainda estamos fazendo suposigdes implicitas sobre quem esta incluida, de forma que dificilmente superamos o que Chantal Mouffe ¢ Ernesto Laclau descreveram tao acertadamente como “a exclusao constitutiva’, por meio da qual qualquer nogao particular de inclusio é estabelecida,! 0 corpo politico é postulado como uma unidade que ele nunea sera. No entanto, essa nao tem que ser uma conclusao cinica, Aqueles que, no espirito da realpolitik, consideram que, em razio de toda formagaio de “o povo” ser parcial, deveriamos simplesmente aceitar essa parcialidade come um fate da politica sie claramente os quais procuram expor essas formas de exclusio e se opor a elas, com frequéncia sabendo muito bem que a inclusividade completa nao é possivel, mas para os quais a luta é permanente. Ha pelo menos duas razoes para isso: por um lado, muitas exclusGes sido feitas sem o conhecimento de que estéo sendo feitas, uma vez que a exclusdo é com frequéncia naturalizada, tomada como “o estado de coisas”, ¢ no como um problema explicito; por outro lado, a inclusividade nao é 0 unico objetivo da politica democratica, especialmente da politica 10 Corpos em alianga e a politica das ruas democratica radical, E verdade, é claro, que qualquer versao de “o povo” que exclua uma parte do povo nao é inclusiva e, portanto, também nao é¢ representativa. Mas também é verdade que cada determinagado para “o pove™ que exclui alguns nao é inclusiva e, por esse motivo, ndo é representativa, Mas também ¢€ verdade que cada determinagao de “o pove” envalve um ate de demarcagio que traga uma linha, geralmente com base na nacionalidade ow contra o contexte de Estado-Nagio, ¢ essa linha se torna imediatamente uma fronteira contenciosa, Em outras palavras, nao existe possibilidade de “o povo” sem uma fronteira discursiva desenhada em algum lugar, tragada ao longo das linhas dos Estados- Nagoes existentes, das comunidades raciais ou linguisticas ou por afiliagio politica. O movimento discursive para estabelecer “o pove” de um modo ou de outre é uma oferta para ter determinada fronteira reconhecida, quer a entendames como a fronteira de uma nagdo ou como o limite da classe de pessoas a serem consideradas “reconheciveis” como povo, Portanto, uma razio pela qual a inclusividade nao é o Gnico objetivo da democracia, especialmente da democracia radical, é que a politica democratica tem que estar preocupada com quem conta como “o povo", de que modo a demarcagdo é estabelecida de forma a evidenciar quem & “o povo” ¢€ a relegar ao segundo plano, A MargeMm Ou ao esquecimento os que nado contam como “o pove”, © objetiva de uma politica democritica nao é simplesmente estender o reconhecimento igualmente a todas as pessoas, Mas, ¢m ver disso, compreender que apenas modificando a relagao entre o reconhecivel ¢ 0 irreconhecivel (a) a igualdade pode ser entendida ¢ buscada ¢ (b) “o povo” pode se abrir para uma elaboragdéo mais profunda. Mesmo quando uma forma de reconhecimento é estendida a todo o povo, permanece uma premissa ativa de qué existe uma vasta regiao daqueles que permanecem irreconheciveis, ¢ esse poder diferencial é reproduzido toda vez que a forma de an Corpos em alianga e a politica das ruas reconhecimento é estendida, Paradoxalmente, conforme certas formas de reconhecimento sao estendidas, a regiio do irreconhecivel ¢ preservada oe expandida adequadamente. A conclusio é que essas formas explicitas ¢ implicitas de desigualdade, que algumas vezes sio reproduzidas por categorias fundamentais, tais como inclusdo ¢ reconhecimento, tém que ser encaradas como parte de uma luta democratica temporariamente aberta. O mesmo pode ser dino sobre as formas implicitas ou explicitas de politicas de fronteiras contenciosas, que si originadas por algumas das formas mais clementares ¢ aparentemente normais de se referir ao pove, 4 populagio ¢ 4 vontade popular, Na realidade, a compreensio da exclusio persistente nos forga a retroceder no processo de homear e renomear, de renovar o que queremos dizer com “o pove” ¢ o que diferentes pessoas querem dizer quando invocam o ferme, A questao da demareagio acrescenta outra dimensao ao problema, uma vez que nem todas as agdes discursivas relativas envolvidas no reconhecimento ¢ no reconhecimenta equivocada do povo sao explicitas. A operagdo do seu poder é até certo ponto performativa, Isto é, elas estabelecem determinadas distingdes politicas, incluindo a desigualdade ¢ a exelusdo, sem necessariamente nomed-las, Quando dizemos que a desigualdade é “cfetivamente” reproduzida quando “o povo” € apenas parcialmente reconhecivel, ou até mesmo “compleramente” reconhecivel dentro de — termos nacionais restritivos, entéo estamos afirmando que a pressuposi¢ao de “o povo” faz mais do que simplesmente nomear quem €o pove, © ato de delimitagio opera de acordo com uma forma performativa de poder que estabelece um problema fundamental da democracia ao mesmo tempo que — ou precisamente quando — fornece o seu termo-chave, “o pavo”. Poderiamos nos demorar mais nesse problema discursive, visto que existe uma questao sempre aberta sobre se “o povo” corresponde aos que expressam a 12 Corpos em alianga e a politica das ruas “vontade popular” ¢ se esses atos de autonomeagao se qualificam come autodeterminagdo ou mesmo expresses validas da vontade popular © conceito de autodeterminagao também esta em jogo aqui e, portanto, implicitamente, a propria ideia de soberania popular. Tao importante quanto isso é esclarecer esse léxioo da teoria democratica — especialmente a luz de debates recentes sobre as assembleias ¢ manifestagdes publicas que virnos durante a Primavera Arabe, o movimento Occupy ¢ as manifestagdes contra a condigio precaria — ¢ perguntar se esses omovimentos podem ser interpretados como exemplos verdadeiros ou promissores da vontade popular, a vontade do povo, a sugestio deste texto € que precisamos ler tais conas nao apenas nos termos da versao de povo que eles anunciam explicitamente, mas das relagdes de poder por meio das quais sio representadas.2 Essas representagoes sdo invariavelmente tramsitorias quande permanecem extraparlamentares. E, quando produzem novas formas parlamentares, arriscam perder sua caracteristica de vontade popular, Assembleias populares se formam imesperadamente ¢ se dissolvem sob condigées voluntirias ou involuntirias, ¢ essa transitoriedade esta, eu gostaria de sugerir, relacionada 4 sua fungde “critica”, Assim como as expressées coletivas da vontade popular podem colocar em questao a legitimidade de um governo que afirma representar o povo, elas também podem se perder mas formas de geverno que apoiam e¢ instituem. Ao mesmo tempo, governos nascem ¢ morrem, algumas vezes, em virtude de agaes por parte do poro, de forma que ossas agaes concertadas sdo igualmente transitérias, consistindo na retirada do apoio, desconstituindo a reivindicagao de legitimidade do governo, mas também constituindo novas formas. Conforme a vontade popular persiste nas formas que institui, ela também deve deixar de se perder nessas formas se quiser reter o direito de retirar seu apoio a qualquer forma politica que fracasse em manter sua legitimidade. 13 Corpos em alianga e a politica das ruas Como, entao, pensamos essas reunioes transitorias ¢ criticas? Um argumento importante que se segue é que importa que os corpos se retinam em assembleia ¢ que os significados politicos transmitidos pelas manifestagdes sejam nao apenas aqueles transmitidos pelo discurse, seja ele escrito ou falado. AgGes corporificadas de diversos tipos significam, de forma que nao sdo, estritamente falando, nem discursivas nem pré-discursivas. Em outras palavras, formas de assembleia ja tém significado antes ¢ apesar de qualquer reivindicagdo particular que fagam. Reunides silenciosas, incluindo vigilias ¢ funerais, muitas vezes significam mais do que qualquer relato, escrito ou vocalizado, sobre aquilo de que clas tratam. Essas formas da = performatividade corporificada ¢ plural sao componentes importantes de qualquer entendimento sobre “o povo", mesmo que s¢ejam mecessariamente parci. Nem todos podem aparecer em uma forma corpérea, ¢ muitos daqueles que nao podem aparecer, que esto impedidos de aparecer ou que operam por meio das redes virtuais ¢ digitais, também sao parte do “povo", definidos precisamente por serem impedidos de fazer uma aparigdo corpérea especifica em um espago publico, o que nos leva a reconsiderar as formas restritivas por meio das quais a “esfera publica” vem sendo acriticamente Propoasta per aqueles que assumem oO acesso pleno ¢ 05 plenos direitos de aparecimento cm uma_ plataforma designada, Um segundo sentido da representagao surge, entdo, aqui, a luz das formas corporificadas de agio e¢ mobilidade que significam além do que quer que seja dito. Se considerarmos por que a liberdade de assembleia € diferente da liberdade de expresso, veremos que é Precisamente porque o poder que as pessoas tém de se reunir é cle mesmo uma importante prerrogativa politica, bastante distinta do direito de dizer o que quer que tenham a dizer uma vez que as pessoas estejam reunidas. A reuniio significa para além do que é dito, ¢ esse modo de significagéo ¢ uma representagao corpérea concertada, uma forma plural de performatividade. 14 Corpos em alianga e a politica das ruas Podemos ficar tentados, com base em velhos habitos, a dizer: “Mas se algo significa, entao € certamente discursivo”, ¢ talyez isso seja verdade. Mas essa réplica, mesmo que se sustente, ndo mos permite examinar a importante relagdo quiasmatica entre as formas de performatividade linguistica e¢ as formas de performatividade corpdrea. Elas se sobrepdem; clas nao sio completamente distintas; clas nao sao, no entanto, idénticas uma 4 outra. Como Shoshana Felman demonstrou, mesmo o ato da fala esta implicado nas condigdes corpéreas da vida4 A vocalizagdo requer uma laringe ou uma prétese tecnoldgiea, E algumas vezes o que alguém significa pelos meios de expressio é bastante diferente daquilo cxplicitamente reconhecido como o objetivo do ato da fala em si. Se a performatividade é com frequéncia associada ac desempenhe individual, pode se provar importante reconsiderar essas formas de performatividade que operam apenas por meio das formas de agdo coordenada, cujas condigées ¢ cujo objetivo sao a reconstituigio de formas plurais de atuagio e de priticas sociais de resisténcia. Portanto, esse movimento ou inércia, esse estacionamento do meu corpo no meio da agio do outro, ndo é um ato meu ou de outros, mas alguma coisa que acontece em virtude da relagdo entre nds, surgindo dessa relagdo, usando frases equivocas entre o cue o nds, buscando a uma s6 vez preservar ¢ disseminar o valor generativa desse equivoco, uma relagdo ativa e¢ deliberadamente sustentada, uma colaboragao distinta da fusdo ou confusado alucinatéria. A TESE ESPECIFICA DESTE Livra é a de que agir em concordancia pode ser uma forma corporizada de colocar em questao as dimensdes incipientes ¢ paderosas das nogées reinantes da politica, O cardter corpdreo desse questionamento opera ao menos de dois modos: por um lado, contestagdes sdo representadas por assembleias, greves, vigilias e ocupagao de espagos publicos; por outro, 15 Corpos em alianga e a politica das ruas esses corpos sao o objeto de muitas das manifestagoes que tomam a condigdo preciria como sua condigao estimulante. Afinal de contas, existe uma forga indexical do corpo que chega com outres corps a uma zona visivel para a cobertura da midia: € esse corpo, ¢ esses corpos, que exigem emprego, moradia, assisténcia médica ¢ comida, bem como um sentido de futuro que nao seja o future das dividas impagaveis; é esse corpo, ou esses COFPOS, OU COFPOs COMO esse COFpo € esses COFpos que vivem a condigdo de um meio de subsisténcia ameagado, infraestrutura arruinada, condigdo precdria acelerada. De alguma mancira, o meu objetivo é constatar o Gbvio em condigdes nas quais o Gbvio esta desaparecendo: existem modos de expressar ¢ demonstrar a condigéo precdria que engajam de maneira importante agées corpéreas ¢ formas de liberdade expressiva que pertencem mais propriamente 4 assembleia publica. Alguns criticos argumentaram que os movimentos Occupy tiveram éxito apenas em levar as pessoas para as ruas ¢ facilitar a ocupagio de espacos ptiblicos cujo estatuto piblico vem sendo contestado pela expansdo da privatizagio, Algumas vezes, esses espages so contestados porque estio, literalmente, sendo vendidos como propriedades para investidores privados (como o Parque Gezi, em Istambul), Mas outras vezes esses espagos esto fechados para as assembleias piblicas em nome da “seguranga” ou mesmo da “satide publica”. Os objetives explicitos dessas assembleias variam: oposigio a um governo despético, a regimes securitdrios, ao nacionalisme, ao militarismo, a injustiga ccondmica, a desigualdade dos direitos de cidadamia, 4 condigao de apitrida, aos danos ecolégicos, A intensificagdo da desigualdade econdmica e a aceleragdo da condigio precdria. Algumas vezes, uma assembleia busca explicitamente desafiar o préprio capitalismo ou o neoliberalismo, considerado um nove desenvolvimento ou variante, ou as medidas de austeridade na Europa ¢ a 16 Corpos em alianga e a politica das ruas potencial destruigac da educagao superior publica no Chile ou em outros lugares.4 FE claro que essas sio assembleias diferentes, ¢ aliangas diferentes, ¢ ndo acredito que alguém possa chegar a uma narrativa winiea dessas formas mais recentes de manifestagao publica ¢ ocupagdes que as ligue de maneira mais ampla 4 histéria ¢ ao principio das assembleias publicas. Elas mio se resumem a permutagoes da multidao, mas tampouco estio tio desconectadas a ponto de nie podermos tragar ligagdes entre elas, Um historiador social ¢ do direito teria que fazer parte desse trabalho comparative — ¢ espero que continuem a fazé-lo & luz das formas recentes de assembleia. Do meu ponto de vista mais limitado, quero sugerir somente que quando cOrpos se juntam na rua, na praga ou em outras formas de espago putiblico fincluindo os virtuais), eles estdo exercitando um direito plural e performative de aparecer, um direito que afirma ¢ instaura o corpo no meio do campo politico ¢ que, cm sua fungdo expressiva ¢ significativa, transmite uma exigéncia corpérea por um conjumto mais suportavel de condigGes econamicas, sociais e politicas, mio mais afetadas pelas formas induzidas de condigado precaria. Neste momento em que a ¢eonomia neoliberal estrutura cada vex mais as imstituigaes © os servigos publicos, o que inclui escolas ¢ universidades, em um Momento cm que as pessoas, cm niimeros crescentes, estio perdendo casa, beneficios previdencidrios ¢ perspectiva de emprego, nds nos deparamos, de uma mancira nova, com a ideia de que algumas populagoes sio consideradas descartiveis.§ ~ Existe trabalho temporario ow nao existe trabalho nenhum, ou existem formas pos-fordistas de flextbilizagao do trabalho que langam mao da permutabilidade e da dispensabilidade dos poves trabalhadores. Esses desenvolvimentos, reforgades pelas atitudes predominantes em relagdo ao seguro de saude ¢ 4 seguridade social, sugerem que a racionalidade do mercado esta decidindo quais satdes ¢ VW Corpos em alianga e a politica das ruas vidas devem ser protegidas ¢ quais nao devem, EF claro que ha diferengas entre politicas que buscam explicitamente a morte de determinadas populagoes ¢ politicas que produzem condigdes de negligéncia sistematica que na realidade permitem que as pessoas morram. Foucault nos ajudou a articular essa distingio quando falou sobre as estratégias bastante especificas do biopoder, a gestao da vida ¢ da morte, de forma que nao requerem mais um soberano que decida e ponha em pritica explicitamente a questao sobre quem vai viver € quem vai morrer® E Achille Mbembe elaborou essa distingao com o seu conceite de “necropalitica”. E isso foi, para alguns de nds, profundamente exemplificado ma reuniio do Tea Party nos Estados Unidos durante a qual o congressista Ron Paul sugeriu que aqueles que tém doengas graves ¢ ndo podem pagar pelo seguro-satide, ou “escolhem™ nao pagar, como ele colocou, teriam simplesmente que morrer. De acordo com os relatos publicados, um grito de alegria percorren a multidao. Foi, imagino, o tipo de grito entusiasmado que costuma acompanhar as idas A guerra e¢ as formas de ferver nacionalista, Mas, se para alguns, foi uma ocasido jubilosa, ela deve ter sido fomentada por uma crenca em que aqueles que nao ganham o suficiente ou que nao tém empregos suficientemente ¢staveis nao merecem a cobertura do sistema de saide e¢ pela crenga de que nenhum de nés é responsdvel por essas pessoas, A implicagdo é claramente que aqueles que nio sie capazes de conseguir empregos que garantam o seguro de saude pertencem a uma populagda que merece morrer ¢ que, por fim, sao responsaveis pela sua propria morte. ‘Chocante para muitas pessoas que ainda vivem sob os enquadramentos nominais da social-democracia ¢ a presungio subjacente de que os individuos devem se preocupar apenas consigo, ¢ nado com os outros, € que a assisténcia 4 sade nfo é um bem publico, mas uma mercadoria. Nesse mesmo discurso, Paul louvou a fungio tradicional da igreja e da caridade na assisténcia aos 18 Corpos em alianga e a politica das ruas necessitados, Embora algumas alternativas da esquerda crista para essa situagao tenham surgido, na Europa e em outros lugares, a fim de garantir que aqueles abandonades pelas formas de bem-estar social sejam assistidos pelas praticas de “assisténcia” filantrépicas ou comunitarias, essas alternativas muitas WeEeS complementam ¢ sustentam a destruigia dos servigos publicos como a assisténcia médica. Em outras palavras, elas aceitam o nove papel para a ética ¢ as praticas cristas (e para a hegemonia crista) que a destruigdo dos servigos sociais basicos proporciona. Algo semelhante acontece na Palestina, onde as condigées infraestruturais de vida sao constantemente destruidas pelos bombardeios, pelo racionamento de agua, pela destruigao dos olivais ¢ pelo desmantelamento dos sistemas de irrigagio construidos. Essa destruigio € amenizada por organizagdes nao governamentais que reconstroem estradas ¢ abrigos, mas a destruigdo nao muda - a intervengdo das ONGs presume que a destruigdo vai continuar ¢ compreende que sua tarefa € amenizar © reparar as condigées entre os episédios de destruigao. Um ritmo macabro se desenvolve entre as tarefas de destruigdo ¢ as tarefas de renovagio ¢ reconstrugao (muitas vezes abrinda — potenciais tempordrios de mercado também), ¢ tudo isso sustenta a normalizagao da ocupagaio, E claro que isso nao significa que nio deveria haver um esforgo para reparar casas ¢ ruas, para proporcionar uma melhor irrigagio ¢ fornecimento de agua e replantar os olivais destruidos, ou que as ONGs nao tenham o seu papel. O papel delas é crucial. No intanto, s¢ essas tarefas assumem o lugar de uma oposigaéo mais profunda 4 ocupagao que conduza ao seu fim, elas correm o cisco de se transformar em praticas que tornam a ocupagao funcional. E aquele grito sadico de jibilo na reunido do Tea Party, traduzindo-se na ideia de que aqueles que nado constguem encontrar uma forma de ter acess a assisténcia médica vao, justamente, contrair doengas ou sofrer acidentes ¢ morrer, justamente, como 19 Corpos em alianga e a politica das ruas consequéncia? Sob quais condigées politicas ¢ econGmicas tais formas jubilosas de crueldade surgem © tornam suas opinides conhecidas? Queremos chamar isso de um desejo de morte? Parto do pressuposto de que alguma coisa deu muito errado, ou tem estado errada faz muita tempo, quando a ideia da morte de uma pessoa pobre ou sem seguro suscita gritos de jubilo de um proponente do republicanismo do Tea Party, uma variante nacionalista do ~—slibertarianismo = econdmico =— que ~——eclipsou completamente qualquer sentido de responsabilidade social comum com uma métrica mais fria ¢ caleulista que foi incitada ¢ apoiada, ao que parece, por uma relagio bastante jubilosa com a crucldade. Embora “responsabilidade” seja uma palavra que circule bastante entre os que defendem o neoliberalismo ¢ concepyoes renovadas do individualismo politico ¢ cconomico, vou procurar reverter e¢ renovar seu significado no contexto do pensamento sobre formas coletivas de assembleia. Nao é facil defender uma nogio de ética, incluindo mogoes-chave como liberdade ¢ responsabilidade, em face de suas apropriagdes discursivas, Porque se, de acorde com os que valorizam a destruiggo dos servigos sociais, somos responsaveis apenas por nos mesmos ¢ certamente nae pelos outros, ec se a responsabilidade ¢ em primeiro lugar ¢ acima de tudo uma responsabilidade de se tormar ecomomicamente autossuficiente em condigdes que minam todas as perspectivas de autossuficiéncia, entdio estamos nos confrontando com uma contradigZo que pode facilmente levar uma pessoa a loucura: somos moralmente pressionados a nos tornar precisamente o tipo de individuo que esta estruturalmente impedido de concretizar essa norma. A racionalidade neoliberal exige a autossuficiéncia come uma ideia moral, ao mesme tempo que as formas neoliberais de poder trabalham para destruir essa possibilidade no nivel econdmico, estabelecendo todos os membros da populagao como potencial ou realmente precarios, usando até mesmo a 20 Corpos em alianga e a politica das ruas ameaca sempre presente da precariedade para justificar sua acentuada regulagao do espago piiblico ¢ a sua desregulagao da expansdo do mercado, No momento em que alguém se prova incapaz de se adequar 4 norma da autossuficiéncia (quando alguém nao consegue pagar por assisténcia 4 salide ou langar mao de cuidados médicos privados, por exemplo), essa pessoa se fora potencialmente dispensdvel. E entao essa criatura dispensdvel é confrontada com uma moralidade politica que exige a responsabilidade individual ou que opera em um modelo de privatizagio do “cuidado”. De fato, estamos no meio de uma situagdo biopolitica na qual diversas populagées esto cada vez mais sujcitas ao que chamamos de “preearizagio”.” Geralmente induzido e reproduzido por instituigdes governamentais ¢ ccondmicas, esse processo adapta populagées, com o passar do tempo, 4 inseguranga ¢ 4 desesperanga; ele ¢ estruturado nas instituigées do trabalho temporario, nos servigos sociais destruidos ¢ mo desgaste geral dos vestigios ativos da social-democracia em favor das modalidades empreendedoras apoiadas por fortes ideologias de responsabilidade individual ¢ pela obrigagio de maximizar e@ valor de mercado de cada um como objetivo maximo de vida.’ Na minha visio, esse importante processo de precarizagdo tem que ser suplementado por um entendimento da precariedade, efetuando uma mudanga na realidade psiquica, como Lauren Berlant sugeriu em sua teoria do afeta:? a precariedade implica um aumento da sensagio de ser dispensavel ou de ser deseartado que nao é distribuida por igual na sociedade. Quanto mais alguém esta de acordo com a exigéncia da “responsabilidade” de se tomar autossuhciente, mais socialmente isclado se torna ¢ mais precdrio se sente; ¢ quanto mais estruturas sociais de apoio deixam de existir por razdes “econdmicas”, mais isolado esse individuo se percebe em sua sensagao de ansiedade acentuada ¢ “fracasso moral”. O processo envolve uma escalada de ansiedade em relagio ao proprio 21 Corpos em alianga e a politica das ruas future ¢ em relagao aqueles que podem depender da pessoa; impde 4 pessoa que sofre dessa ansiedade um enquadramento de responsabilidade individual, ¢ redefine a responsabilidade como a exigéncia de se tornar um empreendedor de si mesmo em condigées que tornam uma vocagao dibia impassivel. Entao, uma questao que surge para nds aqui € a seguinte: Qual fungio tem a assembleia publica no contexto dessa forma de “responsabilizagio” ¢ que forma opositiva de ética ela incorpora e¢ expressa? Sobre contra uma sensacio cada vez mais individualizada de ansiedade ¢ fracasso, a assembleia publica incorpora a perceppio de que essa € uma condigao social compartilhada ¢ injusta. A assembleia desempenha o papel de uma forma proviséria e plural de coexistencia que constitul uma alternativa érica ¢ social distinta da “responsabilizagio”. Como espero sugerir, essas formas de assembleia podem ser entendidas como versées nascentes ¢ provisdrias da soberania popular, Elas também podem ser consideradas lembretes indispensaveis de como a legitimagio funciona na teoria ¢ na pritica democriticas. Essa afirmagdo de existéncia plural mio ¢ de forma nenhuma um triunfo sobre todas as formas de precariedade, embora ela articule, por meio de suas representagdes, uma oposigio 4 precariedade induzida ¢ as suas aceleragoes, A fantasia do individuo capaz de se tornar um empreendedor de si mesmo em condigdes de precariedade acelerada, se ndo de indigéncia, cria a perturbadora suposigao de que as pessoas podem, ¢ devem, agir de mancira auténoma sob condig6es mas quais a vida se tornou insuportivel. A tese deste liveo ¢ que nenhum de nds age sem as condig6es para agir, mesmo que algumas vezes tenhames que agir para instalar ¢ preservar essas condigdes. O paradoxo é Gbvio, ¢ ainda assim é o que podemos ver quando um grupo precdrio constitui uma forma de agdo que reivindica as condigées para agir ¢ 22 Corpos em alianga e a politica das ruas viver, O que condiciona tais agaes? FE. como a ago plural ¢ corpérea deve ser reconcebida nessa situagao histérica? Antes de nos voltarmos para essas questées centrais, vamos considerar primeira como esse imperativo contraditério opera em outros dominios. Se consideramos a fundamentagae légica para a militarizagao baseada na alegacgao de que “o povo” pertencente a nagao deve ser defendido, descobrimos que apenas algumas pessoas sao defensaveis, e que hi uma distingio operativa entre os defensaveis e os indefensaveis, diferenciando o povo da populagao. A precariedade se mostra em meio a esse imperative para “defender o povo", A defesa militar requer ¢ institui a precariedade nao apenas entre os seus alvos, mas também entre aqueles que receuta. Pelo menos os fecrutados pelo Exército dos Estados Unidos tem a promessa de desenvelver habilidades, receber treinamento ¢ obter trabalho, mas muitas vezes sdo mandados para zonas de conflito onde ndo existe um mandate claro ¢ onde seu corpo pode ser mutilado, sua vida psiquica traumatizada e¢ sua existéncia completamente destruida, Por um lado, eles sio considerados “indispensdveis” para a defesa da nagie, Por outro, sao designados como uma populacao dispensaivel. Ainda que por vezes sua morte seja_glorifeada, cles ainda sao dispensaveis: pessoas a serem sacrificadas em nome do pove.™ Ha uma contradigao operativa clara: o corpo que busca defender © pais muitas vezes é fisica e psicologicamente eviscerado no desempenho dessa tarefa. Desse modo, em nome de defender pessoas, a nagao chuta algumas pessoas para escanteio, O corpo 1 de “defesa” é, nao obstante, descartavel quando se trata de prover essa “defesa”. Deixado sem defesa no processo de defender a nagao, esse corpo ¢ ao mesmo tempo indispensavel e dispensavel. © imperative de prover a “defesa do povo” exige, assim, que os encarregados dessa defesa sejam dispensaveis ¢ estejam indefesas. E claro que estamos corretos em distinguir entre os tipos de protesto, diferenciando os movimentos de antimilitarizagao ¢ rumentalizade para os propdsitos 23 Corpos em alianga e a politica das ruas movimentos contra a precariedade, Black Lives Matter ¢ reivindicagoes por educagao publica, Ao mesmo tempo, a precariedade parece atravessar uma variedade desses movimentos, seja a precariedade dos mortos na guerra, daqueles que carecem de infraestrutura basica, dos expostos a violéncia desproporcional nas ruas ou de quem busca obter uma cducagae a custa de wma divida impagavel. Algumas vezes, uma reuniao ¢ realizada em nome do corpo vivo, um corpo com direito a viver ¢ a persistit, até mesmo a florescer. Ao mesmo tempo, nao importa sobre © que seja o protesto, ele também é, implicitamente, uma reivindicagaa por poder se unir, se reunir em assembleia, ¢ de fazé-lo livremente, sem medo da violéncia policial ou da censura politica, Entao, embora o corpo em sua luta contra a precariedade e a persisténcia esteja no coragdo de tantas manifestagdes, ele também € o corpo que esta exposto, exibindo o seu valor ea sua liberdade na propria manifestagao, representando, pela forma corpdrea da reuniao, um apelo ao politico, AFIRMAR QUE UM GRUPO de pessoas continua existindo, ocupando espacgo ¢ vivendo obstinadamente ja é uma agdo expressiva, um evento politicamente significativo, € isso pode acontecer sem palavras no curso de uma reumao imprevisivel ¢ transitorna. Outro resultado “efetivo” dessas representacdes plurais é que elas deixam claro oo =entendimento de que uma situagio é compartilhada, contestando a moralidade individualizante que faz da aurossuficiéncia econdmica uma norma moral precisamente sob condigdes nas quais a autossuficiéncia esta se tornando cada ver mais irrealizavel, © + comparecimento, a permanéncia, a respiragdo, © movimento, a quietude, o discurso e€ o sil sao todos aspectos de uma assembleia repentina, uma forma imprevista de performatividade politica que coloca a vida possivel de ser vivida no primeira plano da politica. E isso parece estar acontecendo antes que 24 Corpos em alianga e a politica das ruas qualquer grupo exponha suas exigéncias ou comece a se explicar em termos propriamente politicos. Tomando lugar fora dos modos parlamentares de contribuigdes escritas ¢ faladas, as assembleias provisdrias ainda fazem um apelo por justiga. Mas, para entender esse “apelo”, temos que perguntar se é correto que a verbalizagio permanesa a norma do pensamento sobre a agao politica expressiva, Na verdade, temos que repensar o ato de fala para entender o que ¢ feito e o que é realizado por determinados tipos de representagdes corporais: os corpos reunidos “dizem” nao somos descartiveis, mesmo quando permanecem em siléncio. Essa possibilidade de expressio € parte da performatividade plural ¢ corpérea que devemos compreender como marcada por dependéncia ¢ resistencia. Criaturas em assembleia como essas dependem de um conjunto de processos institucionais ¢ de vida, de condigdes de infraestruturas, para persistir ¢ fazer valer juntas o direito a condigées de sua persisténcia. Esse direito é parte de um apelo mais amplo por justica, um apelo que pode muito bem ser articulado por um posicionamento silencioso ¢ coletiva, Por mais impertantes que sejam as palavras para esse posicionamento, clas ndo exaurem a importancia politica da agao plural e corpérea. Assim como uma assembleia pode significar uma forma de vontade popular, até mesmo pretendendo ser “a” vontade popular, significando a condigio indispensavel da legitimidade do Estado, assembleias sao organizadas pelos Estados com o propdésito de exibir aos meios de comunicagio o apoio popular do qual ostensivamente desfrutam. Em outras palavras, o efeito significante das assembleias, o efeito legitimador, pode funcionar precisamente por meio de representagoes ¢ de uma cobertura de midia organizadas, reduzindo e enquadrando a circulaggo do “popular” como uma estratégia para a autolegitimacdo do Estado. Uma vez que nao cxiste vontade popular que exercite o secu efeito legitimador sendo demarcada ou produzida dentro de um 25 Corpos em alianga e a politica das ruas enquadramento, a luta pela legitimagao invariavelmente acontece no jogo entre as representagoes publicas ¢ as imagens da midia, no qual espeticulos controlados pelo Estado competem com telefones celulares ¢ redes sociais para cobrir um evento ¢ o seu significado. A filmagem das agées da policia se tornou uma maneira-chave de expor a coergio patrocinada pelo Estado sob a qual opera atualmente a liberdade de assembleia. Pode-se facilmente chegar a uma conclusio cinica: é¢ tudo um jogo de imagens. Mas talvez um entendimento muito mais importante esteja em questio aqui, a saber, que “o povo” nado é produzido apenas por suas reivindicaghes vocalizadas, mas também pelas condigées de possibilidade da sua aparicao, portanto dentro do campo visual, ¢ por suas agdes, portanta como parte da performatividade corporea, Essas condigdes de aparigio incluem as condigées de infraestrutura para a encenagao, bem como os meios teenolégicos para capturar ¢ transmitir uma reuniao, um cncentro, nos campos visual ¢ acdstico, O som do que falam ou o sinal grafico do que é falado sido to importantes para a atividade de autoconstituigao na esfera publica (e de constituigde da esfera publica como uma condigdo de aparecimento) quanto quaisquer outros meios. Se o povo € constituido por uma complexa interagao entre performance, imagem, acistica ¢ todas as diversas tecnologias envolvidas nessas produgoes, cntio a “midia” nao apenas transmite quem o povo afirma ser, mas se inseriu na propria definigdo de pove. Ela nado apenas auxilia essa definigdo, ou a torna possivel; ela é o material da autoconstituigao, o lugar da luta hegemOnica sobre quem “nds” somos. E claro que temos que estudar as ocasifes nas quais o enquadramento oficial é desmontado por imagens rivais, ou nas quais um tinico conjunto de imagens desencadeia uma divisdo implacavel na sociedade, ou nas quais a quantidade de pessoas que se retinem em resisténcia destroi o enquadramento por meio do qual © seu tamanho deveria ser reduzido, caso contririo sua reivindicagao é transformada em ruido 26

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