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Capítulo 1

NOÇÕES BÁSICAS DE CRISTOLOGIA

1.4 A MENSAGEM DE JESUS

Um amplo número de exegetas está de acordo que a missão e a atividade de


Jesus estão centradas no tema da vinda do “Reino de Deus”. Os evangelhos narram que,
nas aldeias da Galileia, Jesus anunciava a boa nova do Reino (Mt 4,23; 9,35).1 São
Marcos resume assim sua pregação: “Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está
próximo, convertei-vos e crede na boa-nova” (Mc 1,15).

Uma indicação estatística pode sublinhar isto: a expressão “Reino de


Deus” ocorre no conjunto do Novo Testamento 122 vezes; destas,
encontra-se 99 vezes nos três Evangelhos sinópticos e, destas, de
novo, 90 pertencem às palavras de Jesus. No Evangelho de S. João e
nos restantes escritos do Novo Testamento a expressão representa um
papel muito limitado. Pode-se dizer: enquanto o eixo da pregação pré-
pascal de Jesus é a mensagem do Reino de Deus, a cristologia
constitui o centro da pregação apostólica pós-pascal.2

Porém, esse fato deixa aberta uma questão central: ao falar do “Reino”, do
que Jesus estava falando? Sabe-se que a monarquia é um regime político entre os
muitos que os seres humanos criam: trata-se de um sistema em que o monarca cumpre
certos deveres, goza de certos privilégios e em certas ocasiões usa determinadas
insígnias. Certamente, nada disso se aplica a Deus. Aqui, parte-se de uma linguagem
que não é literal e sim metafórica, simbólica.3
Para saber em que consiste essa realidade misteriosa que Jesus veio
instaurar na terra, faz-se mister saber que o referido tema, presente também na pregação
de João Batista, provém do Antigo Testamento que lhe havia esboçado as grandes
linhas enquanto o anunciava e preparava a sua chegada. Na verdade, a realeza divina era
uma ideia comum a todas as religiões do antigo Oriente. Consta que as mitologias se
serviam dessa ideia para conferir um valor sagrado a rei-humano, lugar-tenente terrestre
do deus-rei. Porém, o Antigo Testamento assume essa ideia, mas com um conteúdo
diferente, peculiar. A ideia aparece relacionada com o seu monoteísmo, sua concepção

1
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 57.
2
BENTO XVI. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo do Jordão à Transfiguração. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2007, p. 58.
3
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 58-59.
do poder político, sua escatologia. Israel é o Reino de Deus. Ele reina sobre Israel (Jz
8,23; 1Sm 8,7). Ele reina para sempre no céu (Sl 11,4; 103,19), na terra (Sl 47,3) no
universo inteiro que ele criou (Sl 93,1s; 95,3ss), reina sobre todas as nações (Jr 10,7.10).
Mesmo quando a estrutura política evolui (quando o povo resolve ter um rei – 1 Sm 8,1-
9), a instauração da realeza humana deve subordinar-se à realeza divina (1Sm 10,24;
16,12; 2Sm 7,14).4
Quando a realeza israelita desmorona, entendem que a causa principal da
queda é a ruptura dos reis humanos com o Rei do qual recebiam seu poder (Jr 10,21). A
partir daí, os profetas iniciam o anúncio do Rei futuro, o Messias filho de Davi. O
próprioDeus, como um pastor, irá se ocupar de seu rebanho para congregá-lo e salvá-lo
(Miq 2,12s; Ez 34,11;Is 40, 9ss). O povo viverá então a expectativa do reinado de Deus:
um reino que se instaurará sobre as ruinas dos impérios humanos (Dn 2,44; Sb 3,8).
Muitas vezes essa espera se configurará numa forma política: espera-se a restauração do
reino de Davi pelo Messias.5
Como se pode notar, o tema do Reino de Deus correspondia perfeitamente à
expectativa do povo judeu. Jesus dirigiu-se a seus compatriotas numa linguagem tirada
de sua herança comum.6 Esse fato trouxe algumas dificuldades: para os ouvintes de
Jesus, a vinda do Reino de Deus endireitaria tudo, traria ao mesmo tempo, a resolução
do problema do mal. Talvez alguns dos contemporâneos de Jesus pensassem que o reino
seria instaurado pela revolução. Outros, quem sabe, no cenário apocalíptico.7 Porém, o
Reino de Deus é uma realidade misteriosa, cuja natureza só Jesus pode dar a conhecer.
A pedagogia dos Evangelhos consiste em grande parte na revelação progressiva dos
mistérios do Reino, notadamente nas parábolas8 e nos atos de Jesus, ou seja, seus
milagres e exorcismos.9

4
Cf. DEVILLE, Raymond; GRELOT, Pierre. Reino. In: LÉON-DUFOUR, Xavier (dir.). Vocabulário
de Teologia Bíblica, op. cit., p. 871-872.
5
IDEM. Ibidem, p. 873.
6
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 60.
7
Cf. IDEM. Ibidem, p. 63.
8
Todos estão de acordo que as parábolas formam, sem dúvida, o núcleo essencial da pregação de Jesus.
O uso pedagógico das parábolas servia para transmitir os ensinamentos para o maior número de
pessoas possíveis, em diversos níveis culturais: para que todos compreendessem. Era mais fácil usar
as imagens do cotidiano para transmitir os grandes ensinamentos da vida de modo que o ouvinte
pudesse interagir e aplicar à própria vida os novos conhecimentos trazidos por Jesus. Por outro lado, a
pedagogia do Senhor se torna original, diferenciando-se do método dos mestres da religião da época,
pois o ouvinte deveria passar da passividade para um movimento de abertura frente a realidade que o
levasse a uma livre escolha de seguir ou não seguir o Senhor. Bento XVI fala do assunto: “ ... cada
educador, cada mestre que queira transmitir conhecimentos aos seus ouvintes sempre há de servir-se
também de exemplos, de parábolas. Por meio do exemplo, o mestre aproxima do seu pensamento uma
realidade que até então permanecia longe do ângulo de visão dos seus interlocutores. Ele quer mostrar
No Evangelho de São Mateus, no décimo terceiro capítulo, estão reunidas
sete parábolas seguidas de Jesus sobre o Reino de Deus. São as chamadas parábolas do
Reino: (1) a parábola do semeador (que aparece nos três sinóticos com sua explicação:
Mt 13,1-9.18-23; Mc 4,1-9.13-20; Lc 8,4-8.11-15); (2) a parábola do joio (Mt 13, 24-
30); (3) a parábola do grão de mostarda (Mt 13, 31-32); (4) a parábola do fermento (Mt
13, 33, cfr. Lc 13,20-21); (5) a parábola do tesouro escondido (Mt 13, 44); (6) a
parábola da pérola (Mt 13, 45) e (7) a parábola da rede (Mt 13, 47-50).
Essa parábolas são “comparações” por meio das quais Jesus ilustra e, aos
poucos, revela os mistérios do Reino ou do Reinado de Deus. São notas e características
desse reinado: (1) a pequenez e a humildade das origens, mas, ao mesmo tempo, o seu
progressivo crescimento; (2) a força regeneradora para o homem, mediante a qual Deus
convida a todos à salvação (porém só a alcançarão aqueles que corresponderem ao
chamamento com abertura de alma e perseverarem nele)10; (3) o juízo divino, que
discernirá a reta intenção dos homens ao seguirem Jesus Cristo; (4) a misteriosa ligação
entre os aspectos terrestre e celeste e a tensão para a plenitude final, isto é, rumo ao
tempo escatológico.11

Embora se tenha destacado aqui as parábolas do décimo terceiro capítulo de


São Mateus, como “parábolas do Reino”, atualmente admite-se que todas as parábolas
acabam por anunciar algum aspecto do Reino de Deus e a sua proximidade iminente.12

como algo transparece numa realidade que pertence ao seu campo de experiência, de que até então se
não tinham apercebido. Por meio da parábola, aproxima dos ouvintes o que estava longe, de tal modo
que chegam até o desconhecido através da ponte da parábola. Trata-se aqui de um duplo movimento:
por um lado, a parábola traz o que está longe para a proximidade dos ouvintes. Por outro lado, o
ouvinte é ele mesmo, deste modo, posto a caminho. A dinâmica interior da parábola, a interior
autossuperação da imagem escolhida, convida-o a confiar-se a esta dinâmica e a avançar para além do
seu anterior horizonte, a aprender e a compreender o até agora desconhecido. Mas isto significa que a
parábola exige a colaboração do aprendiz, ao qual não somente se traz alguma informação, mas ele
mesmo deve acolher o próprio movimento da parábola e seguir com este movimento. Neste momento
surge também a problemática da parábola: pode dar-se a incapacidade de descobrir a sua dinâmica e
de se deixar conduzir por ela. Pode dar-se, principalmente se se trata de parábolas que tocam a
existência e a mudam, a falta de vontade de se deixar entrar no movimento exigido” [RATZINGER, J.
(Bento XVI). Jesus de Nazaré, op. cit., p. 171-172.]
9
Cf. DEVILLE, R.; GRELOT, P. Reino. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário, op. cit., p. 874.
10
O Reino de deus é dom por excelência. Mas para recebe-lo é preciso cumprir certas condições (se tudo
é graça, os homens devem responder à graça): os pecadores endurecidos no mal “não herdarão o
Reino de Cristo e de Deus” (1Co 6,9s; Gl 5,21; Ef 5,5; cf. Ap 22,14s); é preciso ter uma alma de
pobre (Mt 5,3); uma atitude de criança (Mt 18,1-4; 19,14); uma ativa busca do Reino e da sua justiça
(Mt 6,33), o suportar das perseguições (Mt 5,10; At 14,22; 2 Tl 1,5), o sacrifício de tudo que se possui
(Mt 13,44ss; cf. 19,23), uma perfeição maior que ados fariseus (Mt 5, 20); uma palavra, o
cumprimento da vontade do Pai (Mt 7,21), especialmente em matéria de caridade fraterna (Mt 25,34)
[Cf. DEVILLE, R.; GRELOT, P. Reino. In: LÉON-DUFOUR, X. Vocabulário, op. cit., p. 875-876].
11
Cf. CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 275.
12
Cf. IDEM. Ibidem, p. 302.
E ainda mais: nas parábolas de Jesus sempre se desvenda, junto com alguma dimensão
do Reino de Deus, algum aspecto do modo divino de agir: “o ‘Reino dos Céus’ não é
uma realidade, digamos, estática, mas dinâmica, na qual se projeta o modo divino de
agir”.13
Como enunciado anteriormente, o Reino de Deus não se manifesta somente
nas parábolas de Jesus, mas também no agir de Cristo. Os quatro Evangelhos
mencionam quarenta e um milagres diferentes feitos por Jesus. Deve-se observar que o
Senhor se recusa a fazer milagres espetaculares para benefício próprio (Mt 4,3-6); em
compensação, fá-los para manifestar a chegada do Reino que inaugura (Mt 11,4-6;
12,22-30), para testemunhar que foi enviado por Deus Pai (Jo 5,36; 10,25); para mostrar
a sua condição de Filho de Deus (Jo 10,31-38; 11,3-4), etc. Os seus milagres são de
índole muito variada: curas repentinas; exorcismos, três ressurreições de mortos e vários
prodígios na natureza. Os seus contemporâneos jamais colocaram em dúvida (At 10,37-
38), nem mesmo seus inimigos declarados, que tentavam atribuí-los ao demônio (Mc
3,22).14 Historicamente, é muito provável que Jesus tenha curado pessoas e realizado
exorcismos.15
Quando se pergunta por que algo aconteceu, geralmente há uma resposta.
Pode-se recorrer a uma disciplina ou a uma combinação de disciplinas em busca de
explicação. Começa a chover, nasce uma criança, políticos assinam um tratado de
redução de armas, uma família sai de férias: para cada um desses acontecimentos há
uma explicação. Porém, quando ocorre algo que é inexplicável, algo que interrompe o
curso normal das coisas e suspende as leis da natureza, pode-se deduzir a existência de
um milagre. Esse critério parece muito simples: se o evento não pode ser explicado é
milagre. Porém, há uma diferença muito grande entre dizer “algo é inexplicável” e
atribuir esse fato a Deus. Por isso, alguns biblistas católicos, já há algumas décadas,
sugeriram uma compreensão alternativa do termo milagre, mais de acordo com o
testemunho do Novo Testamento. Significa dizer que só é milagre se for um evento
portador de um significado religioso.16 As curas e os exorcismos feitos por Jesus são
mais positivos: são sinais do Reino. Sob o ponto de vista funcional, a vinda do Reino
significa a resposta, uma solução para o problema do mal. Ao curar as doenças das
pessoas, Jesus oferece uma experiência antecipada da realidade vindoura. Ao realizar

13
Cf. IDEM. Ibidem, p. 306.
14
Cf. IDEM. Ibidem, p. 315-316.
15
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 83.
16
Cf. LOEWE, W. P. Introdução, op. cit., p. 77-78.
exorcismos, mostra que o Reino de Deus traz a vitória sobre Satanás. Essa vitória sobre
o maligno também é constatada nas curas, pois, na antiguidade, as doenças eram
atribuídas aos espíritos maus. Em síntese: as curas e os exorcismos de Jesus indicam
que há uma realidade que cura e liberta tudo o que precisa ser libertado e curado. A
proximidade do Reino de Deus traz plenitude e liberdade.17 Portanto, o significado
teológico dos milagres de Jesus é o seguinte: “são testemunho do começo dos tempos
finais da salvação, em que Satanás começa a ser derrotado, ainda que não o será
definitivamente até à segunda vinda de Cristo”.18 Os milagres confirmam a verdade de
suas palavras, são ajudas exteriores para a fé nele.19
Embora a maior parte dos textos digam que o Reino é objeto de desejos e
esperanças, alguns textos fazem supor que ele já chegou. Alega o seus exorcismos de
que o Reino já veio (Mt 12,28). Quando os fariseus perguntam quando é que o Reino
vem, recebem uma dupla resposta: de um lado sua vinda não poderá ser calculada e, de
outro, já está no meio deles (Lc 17,20s). Essa aparente contradição resolve-se, quando
se entende que Jesus é o próprio Reino. Na sua atividade, na sua pessoa, o Reino se faz
presente (Mt 12,28; Lc 17,20s.). Observe-se que São Mateus (16,28) descreve a gloriosa
manifestação do Reino como a vinda do Filho do Homem em seu reino.20

A partir da leitura das suas palavras, Orígenes caracterizou Jesus


como a autobasiléia, isto é, como o Reino de Deus em pessoa. Jesus
mesmo é o “Reino”; o Reino não é uma coisa, não é um espaço de
domínio como um reino do mundo. É pessoa: o Reino é Ele.21

Em síntese, pode-se dizer, que o tema do “Reino de Deus” penetra toda a


pregação de Jesus e só poderá ser compreendido a partir da totalidade da sua pregação.
Ao falar do Evangelho do Reino de Deus, diz o Papa Bento XVI que “Jesus anuncia, à
medida que fala do Reino de Deus, simplesmente Deus e precisamente o Deus vivo, que
é capaz de agir de modo concreto no mundo e na história e que já está exatamente agora
em ação”.22

17
Cf. IDEM. Ibidem, p. 84
18
CASCIARO, J. M. Jesus, op. cit., p. 317.
19
Cf. IDEM. Ibidem, p. 318.
20
Cf. NELIS, J. Reino de Deus. In: VAN DEN BORN, A. (org.). Dicionário enciclopédico da Bíblia. 6.
ed. Tradução de Frederico Stein. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 1289-1295.
21
RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a Ressurreição.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2007, p. 59.
22
IDEM. Ibidem, p. 64.

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