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ATAQUES AO ELO DE LIGACAO W. R. BION Este artigo foi originalmente apresentado perante a Sociedade Britfnica de Psicanilise em 20 de outubro de 1957 e foi publicado pela primeira ‘vez em 1959 no International Journal of Psycho-Analysis, 40: 308-15. Ao referit-me, em artigos anteriores (Bion 1957), parte psicdtica da per= sonalidade, tive ocasiéo de falar dos ataques destrutivos que o paciente faz a tudo aquilo que € sentido como tendo a funciio de ligar um objeto a outro, £ minha intencfo, neste artigo, mostrar 0 significado dessa forma de ataque destrutivo na producio de determinados sintomas encontrados nas psicoses fronteiricas (borderline). scio ou o pénis primitives constituem protétipo de todos os elos de ligacao de que desejo falar. O artigo pressupée a familiaridade com as descricdes que faz. Melanie Klein das fantasias do bebé de ataques sédicos a0 scio (Klein 1934), da cisdo que 0 bebé opera em scus objetos, de iden- tificagao projetiva — nome que ela dé ao mecanismo através do qual partes da personalidade so excindidas e projetadas para dentro de objetos ex- temos — ¢, finalmente, suas idéias sobre os estigios iniciais do complexo de Edipo (Klein 1928). Examinarei os ataques fantasiados 20 seio como rotétipo de todos os ataques a objetos que sirvam de clo de ligacio, e ‘8 identificaco projetiva como © mecanismo empregado pela psique para se livrar dos fragmentos de ego produzidos por sua destrutividade, Descrevi primeiramente algumas manifestagées clfnicas, segundo uma ordem ditada no pela cronologia de seu aparecimento no consultério, mas pela necessidade de tomar tio clara quanto possfvel a exposigao de minha tese. Em seguida, apresentarei material selecionado com vistas a demonstrar a configuraco que assumem esses mecanismos quando a rela- sfo entre eles € determinada pela dinimica da situacéo analftica. Conclui- rei com observagées tedricas sobre o material apresentado. Os exemplos foram extrafdos das andlises de dois pacientes, ¢ referem-se a um estigio avancado de suas andlises. A fim de preservar 0 anonimato, nfo farei dis- -95— torso nos dacos que, espero, nio prejudicardo a exatidio da descrigéo analftica, de ligagio com o paciente, i i bal e de sua bagagem de experiéncia psicanalftica. Disso depende a rela~ So criativa e, portanto, deve nos ser possfvel ver ataques feitos a esta, ‘mento verbal em meu artigo “I cae a personalidadde nio-psicética”” Exemplos clinicos Descreverei agora ocasiGes que me propiciaram a oportunidade de dar 20 Paciente uma interpretacéo — que naquele momento ele estava em condi. ‘§6es de compreender — de uma onduta destinada a destruir 0 que quer que fosse que ligasse dois objetos. Eis 0s exemplos: ( Tive motivos para dar ao paciente uma i seus sentimentos de afeicio pela mic ~ ¢ sua expressio desses sentimen- tos ~, pela capacidade dela em agdentar uma erianga rebelde. O paciente {enfou expressar sua concordéncia comigo mas, embora precisasse dizer ‘apenas umas poucas palavras, a enunciagio das mesmas fo nterrompida Por um acentuado gaguejar que fez.com que seu comentério se estendesse por cerca de um minuto © meio. Os sons efetivamente emitidos asseme. Ihavam-se a um arfar ofegante, © arfar era entremeado de sons gorgole- antes, como se estivesse imerso em gua. Chamei sua atenco para esses Sons e ele concordou que, de fato, eram sui generis, tendo ele mesmo st Berido as descrigdes que acabei de fazer. GD © paciente queixou-se de que no conseguia dormir. Demonstrando sinais de medo, ele disse: “No posso continuar assim.” Comentirios desconjuntados deram a impressio de que ele, num plano superficial, sen tia que alguma catéstrofe iria ocorrer, talvez algo préximo & insanidade, ‘¢ no conseguisse mais dormir. Referindo-me a material da sesso ante. tor, sugeri que ele temia sonhar se dormisse. Ele o negou e disse que nfo odia pensar por que estava mothado. Recordei-Ihe 0 uso que ele faria de referia era exatamente 0 oposto. Do que eu sabia desse paciente, achei {que sua correcio nesse ponto era vAlida e que, de algum modo, a umidade feferia-se a uma expressio de édio e inveja que cle associava a ataques turindrios a um objeto. Assim, disse-Ihe que, além do medo superficial. que expressara, ele temia dormir porque, para cle, isso era o mesmo que 0 e5- vair-se de’ sua prépria mente. Associagées adicionais mostraram que ele entia que cindia to consciente e diminutamente as boas interpretagses que vinkam de mim, estas se transformavam em urina mental que entio Yazava descontroladamente. © sono era, portanto, insepardvel da incons- cigncia, que era ela propria idéntica a um estado de demenciacéo irrepars- vel. Ele disse: ‘“Estou seco agora”. Respondi que ele se sentia desperto © capaz de pensar, mas que esse bom estado era apenas precariamente man- tido, (IMP Nessa sesso 0 paciente produzira material estimulado pela interrup- co do fim de semana anterior. Sua percepcSo de tais estimulos externos fomara-se demonstrével num estgio relativamente recente da anélise. ‘Anteriormente, 0 grau em que ele era capaz de aquilatar a realidade era ‘uma questo aberta a conjeturas. Eu sabia que ele tinha contato com a realidade porque veio por deciséo prépria buscar anélise, mas dificilmente se poderia inferir isso a partir de seu comportamento nes sessdes. Quando interpretei algumas associagées como uma evidéneia de que ele sentia que cstivera, e ainda estava, presenciando uum coito entre duas pessoas, reagi ‘como se tivesse recebido um golpe violento. Na ocasido, eu nfo podia di- fer exatamente onde ele experimentara o ataque €, mesmo retrospective mnente, néo tenho uma idéia clara a respeito. Parecia W6gico supor que © Choque fora dado por minha interpretagio © que, portanto, 0 golpe viera de fora, mas tenho a impress de que ele o sentiu como se tivesse desfe- ‘ido a partir de dentro. O paciente freqlentemente experimentava 0 que descrevia como uma punhalada que vinha de dentro. Sentou-se e ficou a fitar atentamente o espaco. Eu disse que ele parecia estar vendo alguma coisa, Respondeu que nfo conseguia enxergar © que via. Foi-me possivel interpretar, a partir de experigncia prévia, que ele sentia que estava ‘*ven- do” um objeto invisfvel, € a experiéncia subseqiiente convenceu-me de {que, no caso dos dois pacientes de cujas anflises dependo para o material do presente artigo, ocorreram episédios em que os pacientes tiveram alt cinagdes invisfveis-visfveis. Mais adiante exporei as razSes para supor nesse exemplo e no anterior, mecanismos semelhantes estavam em ‘operacio. (IV) Nos vinte minutos iniciais da sesséo, 0 paciente fez trés comentérios fsolados que nfo tiveram significado para mim. Falou ento que parecia que uma moga que ele conhecera era compreensiva. Tss0 foi imediata- tente seguido de um movimento violento ¢ convulsive que ele sparentou ae ignorar. Parecia ser idéntico a0 tipo de ataque A punhalada que mencio- “nei no ditimo exemplo. Tentei chamar sua atengSo para 0 movimento, ‘mas ele ignorou minha intervencdo da mesma forma que ignorou o ataque. Ele entio disse que a sala estava cheia de uma névoa azul. Um pouco de- pois, comentou que a névoa tinha se dissipado, mas que ele estava depri- ‘ido. Interpretei que ele se sentiu compreendido por mim. Essa era uma experiencia agradavel, mas a agraddvel sensacéo de ser compreendido fo- ‘a instantaneamente destrufda e expelida, Lembrei-lhe de que recente- mente presenciéramos seu uso da palavra “azul” como uma descrigio ‘compacta de uma relago sexual injuriosa. Se minha interpretacdo estava correta — e eventos subseqilentes sugeriam que estava -, isso significava que a experiéncia de ser compreendido fora cindida, convertida em partf- culas de injdria sexual e expelidas. Até esse ponto, senti que a interpreta- $0 aproximava-se bastante da sua experiéncia. Interpretagdes posteriores = de que 0 desaparecimento da névoa era devido a reintrojecdo © conver- ‘fo em depressio ~ pareceram ter menos realidade para o paciente, embo- a eventos posteriores fossem compatfveis com a idéia de estarem corre- tas, (V) A sesso, tal como a do exemplo anterior, comegou com trés ou qua- tio relatos de fatos, tais como que estava quente, que seu trem estava lo- tado © que era quarta-feira. Isso ocupou trinta minutos. A impressio de que cle estava tentando manter contato com a realidade confirmou-se quando ele prosseguiu dizendo que tinha medo de um colapso. Pouco de- pois, ele disse que eu no o compreenderia, Interpretei que cle sentia que ‘eu era mau © que néo iria receber 0 que ele queria colocar em mim. Inter- pretei deliberadamente nesses termos porque ele revelara, na sesso ante- rior, que sentia que minhas interpretacées eram uma tentativa de expelit sentimentos que ele desejava depositar em mim, Sua resposta & minha in- terpretagao foi dizer que sentia que havia duas nuvens de probabilidade na sala. Interpretei que ele estava tentando se livrar do sentimento de que @ minha maldade era um fato. Disse-Ihe que isso significava que ele preci sava saber se eu era de fato mau ou se eu era alguma coisa mé que tina vindo de dentro dele, Embora a questo no fosse de importincia central aquele momento, pensei que o paciente estava tentando decidir se estava, u nfo, alucinando, Essa ansiedade recorrente em sua anglise estava asso- cciada ao medo de que a inveja eo 6dio de uma capacidade de compreen- der estivessem levando-o a pér para dentro de si um objeto bom e com- reensivo com 0 propésito de destruir esse tltimo e expeli-lo — um proce- dimento que freqiientemente levara & perseguicéo pelo objeto destrufdo € expelido. Se a minha recusa em compreender era uma realidade ou um alucinago, era importante apenas porque determinava quais experincias dolorosas eram de se esperar. 98 CVD Metade da sesséo se passara em siléncio. © paciente entio anunciou que um pedaco de ferro cafra no chio. A seguir, fez uma série de movi- ‘mentos convulsivos em siléncio, como se estivesse se sentindo fisicamente atacado a partir de dentro. Eu disse que ele no conseguia estabelecer contato comigo devido ao seu medo do que se passava dentro de si. Ele 0 confirmou dizendo que sentia que estava sendo assassinado. Ele nfo sabia © que faria sem anélise, pois esta o deixara melhor. Disse-lhe que se sen- fia tho invejoso de si préprio e de mim, por sermos capazes de trabalhar Juntos para fazé-lo sentir-se melhor, que havia posto para dentro de si o ar que formévamos como sendo um pedaco de ferro € um assoalho mor tos, que se encontravam néo para Ihe dar vida, mas para assassiné-lo, Ele ficou muito ansioso e disse que ndo podia prosseguir. Disse-Ihe que ele sentia que no conseguia prosseguir porque ele ou estava morto ou, entio, vivo e to invejoso que tinha que interromper a boa andlise, Houve uma acentuada diminuic#o da ansiedade, mas o restante da sesso foi tomado Por comentérios isolados sobre fatos, o que, de novo, pareciam ser uma {tentativa de preservar 0 contato com a realidade externa como um método de negacio de suas fantasias. Caracterfsticas comuns aos exemplos mencionados Excolhi esses episédios porque o tema dominante em cada um deles era o ataque destrutivo a um elo de ligago. No primeiro, 0 ataque foi expresso através de um gaguejar que visava impedir 0 paciente de usar a linguagem como um vinculo entre ele © eu. No segundo, o sono era encarado pelo aciente como sendo idéntico a uma identificaglo projetiva que prosse. guia insensfvel a qualquer tentativa possfvel de controle de sua parte. O sono para ele significava que sua mente, diminutamente, esvafa-se nam Jorro agressivo de particulas, Os exemplos que fomego aqui langam luz sobre 0 sonhar esquizofre- nico. O paciente psicético parece nflo ter sonhos, ou pelo menos nfo te latar sonho algum, até que a anflise j6 esteja relativamente avancada, Mi- tha impressio agora € de que esse perfodo aparentemente sem sonhos é uum fen6meno anélogo & alucinacio visual invisfvel. Isto é, que 0 sonhos sto constitufdos de material to diminutamente fragmentado que fica desprovidos de qualquer componente visual. Quando o paciente experi- menta| sonhos passfveis de serem relatados, porque vivenciou objetos vi- sais no decorrer do sonho, cle parece considerar que esses objetos tém, com os objetos invisfveis da fase anterior, uma relaco muito semelhante & ue as fezes Ihe parecem ter com a urina. Os objetos que aparecem nas experincias que chamamos de sonhos sio considerados pelo paciente = Sg como sendo s6lidos e, como tais, contrastados com os contedos dos so- hos que eram um continuwuri de diminutos fragmentos invisfveis, de uma relaglo satisfatria entre cle c a sua cama. Embora isso no apare- $4 na sesso que relato, a identificago projetiva incontrolével, que era ue © sono significava para ele, era considerada como um ataque destruti. weane,Sstado mental dos pais acasalados. Havia, portanto, uma dupla am Siedade: uma, que surgia de seu medo de que estivesse sendo levavo it Pa sonces © outra, de seu medo de ser incapaz de controlar seus ataques hostis ~ sendo a sua mente a fomecedora de munico ~ a0 estado mestal *PSsito de eviter, por antecipacdo, a experiéncia de sentimentos de inveja do estado mental dos pais, através da expresso instantinca da in. {eis num ato destrutivo. Terei mais a dizer sobre esse dio implcito d ‘emogao © da necessidade de evitar a percepcio da mesma, No auinto exemplo ~ das duas nuvens de probablidede ~, a capaci- dade de compreensio 6 o =100— fora uma tentativa de separar 0 bom do mau, sobrevivera na existéncia de dois objetos que agora, contudo, eram semelhantes no sentido de que cada uum deles era uma mistura de bom ¢ mau, Levando em consideragao 0 material de sess6es posteriores, posso tirar conclusBes que, na ocasito, no eram possfveis. Sua capacidade de discemimento, que fora cindida destrufda juntamente com 0 restante do seu ego e, em seguida, expelida, cera sentida por ele como sendo semelhante a outros objetos bizarros do ti- po que descrevi em meu artigo sobre “A diferenciacéo entre a parte psi Cética e a parte nao-psic6tica da personalidade”*. Essas particulas expeli- das cram temidas em razo do tratamento que ele dispensara a clas, Ele sentia que o discernimento do qual se alienara — as nuvens de probabili- dade — indicava que provavelmente eu era mau, Sua suspeita de que as uvens de probabilidade eram persecutérias ¢ hostis levou-o a duvidar do valor da orientacfo que elas lhe davam, Poderiam fornecer-Ihe uma ava~ liago correta ou uma deliberadamente falsa, como por exemplo de que ‘um fato era uma alucinac&o ou vice-versa; ou dar origem ao que, do ponto de vista psiquitrico, chamarfamos de delirio. As nuvens de probabilidade possufam algumas qualidades de um seio primitivo, e eram sentidas como sendo enigméticas ¢ intimidativa No sexto exemplo — 0 relato de que um pedaco de ferro cafra no chio —, ndio tive oportunidade de interpretar um aspecto do material com o qual © paciente, a essa altura, se achava familiarizado, (Devo dizer, talvez, que a experiéncia me ensinou que, por vezes, eu presumia a familiaridade do Paciente com algum aspecto de uma situagio com a qual estivamos lidan- do, apenas para descobrir que, apesar do trabalho feito sobre isso, ele 0 ‘esquecera.) © ponto conhecido que no interpretei, mas que € signific ‘vo para a compreensio desse episédio, € que a inveja que o paciente tinha do casal de pais lravia sido evitada através da substitnico dos pais por ele ‘mesmo ¢ eu. A evitacdo falhou, pois a inveja e 0 édio agora se voltavam contra ele mesmo € contra mim. © casal engajado num ato criativo & sen- tido como estando compartilhando uma invejével experiéncia emocional; ele, identificando-se também com o elemento exclufdo, passa também por uma dolorosa experiéncia do tipo que descrevo nesse episédio, e em parte por razées sobre as quais me cstenderei mais tarde, tinha édio das emo- es e, portanto, como decorréncia imediata, da propria vida, Esse édio contribui para o ataque assassino dquilo que liga © par, a0 proprio par € ‘20 objeto gerado pelo par. No episddio que estou descrevendo, 0 paciente sofre as conseqiéncias de seus antigos ataques ao estado mental que for- ‘ma 0 elo de ligaco entre o par criativo e de sua identificacio tanto como ‘estado mental odiento quanto com o estado mental criativo. Apesar de utilizar um thulo diferente, Bion reere-se aqui ao artigo aprecentido na primeira parte dest livro, pp. 69-86 WV. da. 7.) =101— Nesse exemplo, assim como no anterior, hé elementos que sugerem a formacio de um objeto hostil ¢ persecutério, ou de uma aglomeragao de. ‘objetos, que expressa sua hostilidade de um modo que € muito importante na produgio do predomfnio de mecanismos psicSticos nos pacientes. As

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