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NÓS NOS PREOCUPAMOS

Anestesia:
Fator de
segurança

Centro
Cirúrgico
Anestesia
Fator de Segurança

Aline Yuri Chibana


MD, MBA

Presidente da Fundação
para Segurança do Paciente

Assessora da Gestão da Prática Médica


Hospital A.C. Camargo Cancer Center

MBA em Gestão em Saúde – INSPER

O conteúdo inserido expressa a opinião do autor e é de sua inteira responsabilidade.


Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA 3

Quem nunca
ouviu a frase:
Doutor,
o meu medo
é da anestesia!
4 Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA

Essa frase, tão comumente verbalizada por pacientes mais


velhos e propagada por gerações, não é fruto apenas da
ansiedade pré-cirúrgica ou do medo do desconhecido; ela
está embasada em números.

Em um passado não muito distante, nas décadas de 50 - 60,


a anestesia era de fato um fator de risco para estes pacien-
tes. A partir da década de 70, éramos a especialidade mais
penalizada nos processos judiciais, mesmo sendo poucos
profissionais. Os pacientes realmente morriam de causas
anestésicas, na proporção aproximada de 1 a cada 10 mil
anestesias realizadas.1

Por este motivo, as gerações mais velhas têm inúmeras his-


tórias de conhecidos que foram operar e não “aguentaram”
a anestesia.

A partir de 1970, a Anestesiologia começou uma jornada


vertiginosa rumo à Segurança do Paciente. Melhoramos os
equipamentos da anestesia, desenvolvemos novos monito-
res, criamos protocolos, nos organizamos em sociedades;
novos medicamentos, melhores e mais seguros, entraram
no mercado.2 Essa tempestade perfeita elevou nossa es-
pecialidade a um patamar de segurança não encontrado
em mais nenhuma outra. A taxa de mortalidade por cau-
sas anestésicas caiu em mais de 100 vezes em menos de 50
anos!3 Se antes a anestesia era um fator de risco, hoje é um
fator de segurança.

Tamanho feito foi reconhecido no relatório do IOM (Insti-


tute of Medicine), “Errar é Humano – Construindo um Sis-
tema de Saúde Mais Seguro”, a mais importante publicação
no mundo da Segurança do Paciente. Os dados apresen-
tados, de que 44 a 98 mil americanos morriam todos os
anos por falhas na assistência à saúde, acendeu um alerta
mundial.4 Todos os stakeholders da saúde começaram a se
movimentar para diminuir os eventos adversos preveníveis
(popularmente conhecidos como erros médicos) que che-
gam a representar 70% de todos os eventos hospitalares.4
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Figura 1. Capa do livro To Err is Human. (INSTITUTE OF


MEDICINE (US). COMMITTEE ON QUALITY OF HEALTH
CARE IN AMERICA; KOHN LT, CORRIGAN JM, DONAL-
DSON MS, EDITORS. To Err is Human: Building a Safer
Health System. Washington (DC): National Academies
Press (US); 2000.)

Organizações internacionais em Segurança do Paciente


foram criadas, bem como comitês de Qualidade Hospi-
talar; sistemas de acreditação surgiram para atuar como
auditores externos, trazendo as boas práticas em cada
etapa do cuidado.

E se antes estávamos construindo a história da segurança


anestésica, analisando e aprendendo com cada evento,
atualmente a impressão que dá é que estamos sendo
atropelados pelo movimento pela Segurança do Pacien-
te; soterrados por protocolos que não param de surgir dia
após dia. Temos que reconhecer, entretanto, que a nossa
atuação se expandiu muito além do intraoperatório.

O anestesiologista moderno é responsável por avaliar e


otimizar o paciente antes da cirurgia, e de coordenar o
cuidado intra-hospitalar, atuando na Sala de Recupera-
ção Pós Anestésica (SRPA) e Unidade de Terapia Intensiva
(UTI). Além disso, também é responsável pelos desfechos
de longo prazo, com novos estudos mostrando a corre-
lação do que fazemos na sala cirúrgica e o impacto em
desfechos como disfunção cognitiva e sobrevida.5

Mas será que chegamos ao nosso máximo quando falamos


em segurança anestésica? Será que estamos no momento
de largar o leme e nos deixarmos levar por esta maré exter-
na de segurança que os hospitais estão criando?
6 Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA

Se pensarmos que conseguimos levar os pacientes ASA 1 ao


nível ultra seguro da figura 2,2 tendemos a responder que
sim. Que comandamos o barco com dureza e precisão e
que agora merecemos o devido descanso após esta longa
jornada.

Eventos adversos Transfusão


iatrogênicos fatais de sangue

Cirurgia Cardíaca em Risco médico Anestesia em


paciente ASA 3-5 (total) paciente ASA 1

Alpinismo no Voo Aviação comercial


Himalaia Fretado (jatos de grande porte)

Segurança de Estradas Ferrovias

Aeronaves, ultraleves
ou helicópteros
Indústria Química (total) Indústria Nuclear

10-2 10-3 10-4 10-5 10-6


Muito
pouco seguro Arriscado Ultraseguro

Figura 2. Risco de catástrofe e morte associada por exposição de várias indústrias e atividades, incluindo
anestesia. ASA = American Society of Anesthesiologists (Sociedade Americana de Anestesiologia). Adaptado
de Referência 2.

Entretanto, esta mesma figura demonstra que ainda esta-


mos em falta com os pacientes mais graves submetidos a
cirurgias mais complexas. O que falta?

Creio que falta olharmos para os grandes números que


sobraram. Lá estão as melhores oportunidades para dar-
mos mais um grande salto de qualidade na anestesia.

Sessler demonstrou em seu estudo de 2018 que a morta-


lidade intra-operatória se tornou tão rara, que a pós-ope-
ratória chega a ser 1000 vezes mais comum!6 Na realidade,
quando observamos a taxa de mortalidade relacionada a
um evento adverso, notamos que ela se torna cada vez
maior à medida que o paciente é afastado do anestesio-
logista. Essa taxa de mortalidade é de 44,8% na sala de
cirurgia, 51% na SRPA e 64,7% na enfermaria, conforme
Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA 7

pode ser observado no quadro 1.7 A vigilância constante


permite um resgate mais rápido quando um evento ocor-
re. Mas também o que fazemos no intra-operatório tem
impacto na probabilidade de o paciente sofrer um evento
adverso na SRPA e na enfermaria.

QUADRO 1 - DESFECHO POR LOCAL DE OCORRÊNCIA DO EVENTO

LOCAL N MORTES (%) DANO CEREBRAL GRAVE (%)

Sala de cirurgia 81 (44.8) 37 (20.4)


SRPA 25 (51) 17 (34.7)
Enfermaria 11 (64.7) 2 (11.8)
Obstetricia 3 (75) 1 (25)

Fonte: Autores
Quadro 1. Desfecho por local onde o evento aconteceu. (7. BOCANEGRA-RIVERAA, J. C. & B.D, JOSÉ HUGO
ARIAS-BOTERO, J. H. Characterization and analysis of adverse events in closed liability cases involving
anaesthetists who received legal support from the Colombian Society of Anaesthesia and Resuscitation
(S.C.A.R.E.), Colombia, 1993-2012. Rev. colomb. anestesiol. vol.44 no.3 Bogotá July/Sep. 2016)

Os eventos mais frequentes na SRPA estão relacionados


às vias aéreas. Depressão respiratória induzida por opioi-
des e paralisia residual são as duas causas mais comuns.8
Analgesia multimodal para diminuir o consumo de opioi-
des pode ser uma solução. E quanto à outra causa, pode
ser usado o monitor da função neuromuscular em todos
os pacientes com indicação? Se a resposta é não, deveria.
A incidência de paralisia residual pode chegar a 70% dos
pacientes na SRPA, mesmo com sinais clínicos de recu-
peração adequados (uma vez que os sinais clínicos não
deveriam ser utilizados porque não são confiáveis). Em
2016, Fuchs e cols. publicaram a diminuição da incidência
de paralisia residual de 62% para 3% apenas colocando um
monitor neuromuscular por sala e treinando a equipe.9

Qual a repercussão de um evento na SRPA e na enfer-


maria? Um paciente que sofre um evento na SRPA tem
de 2 a 10 vezes mais chances de ter um evento digno de
acionamento do Time de Resposta Rápida (TRR) do que
no andar!10 Em 2015, Sun Z e cols. identificaram que 90%
8 Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA

dos episódios hipoxêmicos não são diagnosticados pela


enfermagem.11

Ainda pensando em números, nos preocupamos tanto


com o manejo de via aérea difícil (VAD), mas esquece-
mos de cuidados muito mais simples e com alto impac-
to. Por exemplo, a incidência de uma VAD não prevista
gira em torno de 1,8%12 ao passo que a infecção de sítio
cirúrgico fica em torno de 2 a 5%.13 A equipe médica tem
3 vezes mais chance de salvar a vida de um paciente
simplesmente higienizando as mãos, mantendo a nor-
motermia e realizando a antibioticoprofilaxia no tempo
e dose adequados. Não é tão glamuroso quanto intubar
um Cormack 4 e ninguém ganha um troféu por ser um
exímio lavador de mãos. Ainda assim, você tem chance
de salvar mais vidas.

Poderíamos discorrer sobre números e oportunidades a


ponto de escrever um livro. Um último dado: o estudo
de 1978 de Jeffrey Cooper que analisou todos os even-
tos relacionados a anestesia encontrou que a principal
causa raiz não era falha em equipamentos, pasmem. A
principal causa eram os fatores humanos em 82% das
vezes.14

Somos humanos, falhamos por estarmos sujeitos a fa-


diga, distrações, vieses cognitivos e falhas de comuni-
cação. O que pode ser feito? Um novo mundo se abre
dando ênfase ao treinamento das habilidades não téc-
nicas, como comunicação, trabalho em equipe, lideran-
ça, tomada de decisão e consciência situacional.

Ainda temos uma longa jornada na segurança anestési-


ca! Precisamos resgatar aqueles pacientes que ficaram
para trás e trazê-los também para o nível ultra seguro!
O desafio é trabalhar com áreas e números que foram
historicamente negligenciados como os discutidos nes-
te texto. Como dizem, o diabo está nos detalhes.
Anestesia | FATOR DE SEGURANÇA 9

Referências

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2. Int. J. Radiation Oncology Biol. Phys., Vol. 71, No. 1, Supplement, pp.
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of Medicine. To Err Is Human: Building a Safer Health System. Washing-
ton, DC: The National Academies Press. 2000, p 26-48.
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of unanticipated difficult airway using an objective airway score versus
a standard clinical airway assessment: the DIFFICAIR trial - trial protocol
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13. CARVALHO, Rafael Lima Rodrigues de et al. Incidence and risk fac-
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Enfermagem [online]. 2017, vol.25 [cited 2019-11-17], e2848. Availa-
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14. Cooper JB. Preventable anesthesia mishaps: a study of human factors.
Anesthesiology. 1978 Dec;49(6):399-406.
SAC 0800 026 23 95 | sac@br.aspenpharma.com
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