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Agustín Cueva 1937-1992

“Pensador multifacetado, Agustín Cueva soube combinar a crítica literária, a pesquisa


sociológica, a docência universitária e a atividade política. Sua lucidez, suas profundas
convicções, seu espírito crítico e seu compromisso com as causas libertárias fizeram dele
uma referência indispensável para o estudo do pensamento social no continente. Líder do
agitado movimento estudantil equatoriano de fins dos anos 1950, Cueva foi expulso da
Universidade Católica do Equador, onde estudava direito, e concluiu seus estudos na
Universidade Central do Equador.

Durante os anos 1970, seus aportes à sociologia crítica converteram-no em um dos mais
brilhantes representantes do marxismo latino-americano. Envolveu-se nesse período em
intensa polêmica em torno da teoria da dependência, tanto em suas versões
desenvolvimentistas quanto em suas visões marxistas. Ele a questionou como paradigma
explicativo por considerá-la um prolongamento das teses desenvolvimentistas, por seu
uso mecânico e simplista, pelo qual tudo se deduz da articulação com a economia
mundial, e por deixar de lado o tema da exploração de classe.

Em que pese a arremetida conservadora no campo das ciências sociais nos anos 1980,
Cueva nunca abandonou a perspectiva marxista. Nesses anos, travou uma batalha teórico-
política fundamental a respeito da situação das ciências sociais, da validade
epistemológica do marxismo, da nova situação política latino-americana e do caráter das
democracias no continente”.

Fonte: https://www.marxists.org/portugues/cueva/index.htm
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Raízes autoritárias do Estado latino-americano1


Augustin Cueva

O Estado latino-americano pode ser elucidado a partir de uma teoria geral do


Estado? Teoria que supõe uma generalidade: a de que a cada modo de produção
corresponde uma forma estatal. Os Estados das sociedades latino-americanas capitalistas
são Estados de tipo capitalista? Alguns autores estavam deduzindo do MPC um tipo de
Estado e uma forma inscrita de modo lógico na forma democrática-parlamentar de Estado.
Cueva questiona se essa forma seria uma necessidade ou uma possibilidade. Ele questiona
essa ideia, afirmando que historicamente esta forma é a exceção e não regra do Estado
capitalista, dado que predomina na quinta parte dos países que integram a cadeia
imperialista, não sendo essa forma uma necessidade estrutural. Cueva questiona a
afirmação das teorias da modernização da conjunção entre capitalismo e democracia, que
surgiram no pós-guerra nos EUA. Segundo ele, não é factível derivar o Estado latino-
americano de uma teoria do Estado capitalista em geral, mas identificar a forma que
assume diante de determinadas condições históricas.
Ao invés de um tipo ideal do Estado ocidental, do qual se deriva o Estado em
nossa região, o autor prefere outro caminho, pois o Estado capitalista em geral não possui
nenhuma forma necessária, senão a necessidade estrutural de reprodução em escala
ampliada do MPC, ao qual se integra como superestrutura. O importante é entender a
forma concreta pela qual o Estado capitalista realiza esse papel de expansão das relações
capitalistas de produção. Dessa perspectiva marxiana, a sociedade capitalista é uma
totalidade, mas o Estado muda conforme as fronteiras geográficas de cada país: como
Estado capitalista de determinada formação económico-social, resultado de um
desenvolvimento interno e do lugar que ocupa no sistema interestatal (no sistema
imperialista). É a configuração de cada formação social que determina em última
instância a forma do Estado capitalista, de acordo com o grau e a intensidade das
contradições acumuladas em seu interior. Nesse sentido, as tarefas assumidas pelo Estado
capitalista na Bolívia e nos EUA são distintas, sendo impossível que assuma formas
idênticas em ambas as formações. Se isso ocorresse a reprodução ampliada do sistema
capitalista-imperialista estaria em risco.
Por conseguinte, a forma democrático-parlamentar do Estado não resulta de modo
indeterminado da intensidade e orientação da luta de classes, mas se inscreve nos
parâmetros estruturais de cada formação social. No interior do sistema capitalista
mundial, abstraídas as singularidades mais concretas de cada país, a forma de cada estado
tende a ser marcadamente distinta, ainda que complementar, conforme sua
correspondência a formações imperialista ou a formações dependentes. Isso ocorre não
porque as formações dependentes não alcançaram maturidade política, mas em virtude do
desenvolvimento desigual do capitalismo no âmbito mundial, que se traduz em
desenvolvimento formalmente desigual do Estado burguês. Cueva fundamenta essa ideia
em Lenin, quando este afirma que o sistema capitalista mundial é composto por elos
frágeis e elos fortes. Ou seja, longe de uma homogeneização dos espaços nos quais se

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Tradução resumida feita por Ricardo Shiota para a disciplina Pensamento Social Latino Americano –
UEMS – CS.
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desenvolve, o capitalismo se objetiva de modo desigual, criando áreas de


descongestionamento de suas contradições e áreas intermediárias.
As áreas com maiores acúmulo de contradições são os elos débeis, os países
dependentes e subdesenvolvidos. Nelas essas contradições se estendem ao domínio
estatal, que fica carregado de tarefas, pois cabe a esse Estado:
1) Promover a acumulação de capital em formações de grande heterogeneidade
estrutural (coexistência de modos de produção sob a dominância do capitalismo e
mal formação do aparelho produtivo).
2) O processo de reprodução econômica ocorre em meio a drenagem do excedente
econômico ao exterior (com todas as implicações desse fato, como o
estabelecimento de modalidades mais agressivas de exploração do trabalho).
3) Tem que impor coerência a um desenvolvimento econômico e social incerto na
lógica geral do sistema imperialista, quando mal consegue concluir a integração
econômica interna.
Por conseguinte, há uma sobrecarga de funções do Estado dependente, que adota
formas anômalas para garantir a reprodução ampliada do MPC. Não é por menos, então,
que o chamado Estado de exceção tende a ser a regra, que a sociedade civil e as classes
pareçam configurar do Estado. O Estado adquire uma forma ambígua: de quase
simultânea debilidade e fortaleza, em uma crise permanente. Nessas formações sociais
dependentes e subdesenvolvidas, não há solo fértil para o florescimento de formas
democráticas de dominação burguesa nem para a edificação da hegemonia no terreno da
sociedade civil (dominação pelo consenso). O Estado atua na sociedade civil através de
seus aparelhos de repressão, pelos tentáculos militares por todos os poros da sociedade
civil. Predomínio da coerção sobre o consenso.
O Estado capitalista nos elos débeis tende a adquirir formas ditatoriais, formas
despóticas, em razão do acúmulo de contradições. A hegemonia (conceito de Gramsci)
não é uma característica destacada da dominação burguesa imperialista nos países
dependentes. Tudo contribui para que a hegemonia burguesa seja insuficiente e precária:
escassez do excedente econômico que permita suavizar as contradições mais agudas;
desenvolvimento extremamente desigual e com saltos (que conspira para a unidade das
classes dominantes); brechas culturais que isolam a cultura burguesa do resto da nação;
dificuldade de recuperar o nacional e o popular desde cima, por medo que isso suscite
sentimentos anti-imperialistas.
As dificuldades da construção da hegemonia não são conjunturais, mas estruturais
dessas formações sociais e, para além delas, da dominação imperialista, cujas cadeias
implicam descontinuidades e desníveis infraestruturais e superestruturais. A dominação
burguesa como coerção e hegemonia não está equitativamente repartida no mundo
capitalista. Nos países periféricos, ela não se mantém pelo consenso ativo dos
governados.
A forma democrático-parlamentar do Estado capitalista não é a superestrutura
natural do capitalismo, mas histórica e restrita aos elos fortes do sistema imperialista, nos
quais há uma homogeneidade estrutural e fluxo favorável do excedente econômico, que
se beneficiam as burguesias imperialistas.
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Nos países dependentes e subdesenvolvidos, dada a concentração da riqueza de


uma minoria que concentra os meios de produção e as massas trabalhadoras, dada a
expropriação do excedente econômico, a forma democrático-parlamentar é uma flor
exótica.
As intervenções das burguesias imperialistas nos espaços econômicos das
sociedades dependentes distribuem desigualmente cotas de coerção (violência) e de
hegemonia. São intervenções externas que garantem as condições estruturais de sua
hegemonia interior, pois no nível político também o sistema capitalista-imperialista
funciona como um todo articulado, mantém situações democráticas nos países
imperialistas e situações menos idílicas nos países dependentes.
A crise dos anos 1970 dos Estados latino-americanos surgiu do intento de correção
das desigualdades sociais, de industrializar esses países. Um projeto que não proveio e
uma burguesia nacional (modernizante e reformista), inexistente, senão de forças
populares que surgiram no Chile, Argentina, Bolívia, Uruguay. Essa crise exprime a
derrota de experiencias nacional-populistas e reformistas e das configurações estatais que
deram lugar.
Muitas das tarefas impulsionadas pelas forças populares eram tarefas socialistas:
reforma agrária (de corte democrático), nacionalização de setores econômicos nas mãos
do capital estrangeiro. Foi a própria existência do Estado periférico questionada, dada a
fraqueza da burguesia nacional, a força da burguesia agrária e presença do capital
monopolista internacional, assim como a íntima ligação das frações burguesas e sua
expressão estatal. A crise do modelo de acumulação do pós-guerra (que deu origem ao
Estado de bem-estar) também não dava mais condições para essas mudanças. Colocou-se
um dilema de internalização do excedente econômico ou criação de uma nova modalidade
de acumulação de capital pela via reacionária: baseada na ampliação das desigualdades,
sobretudo, originadas da relação capital e trabalho. Isso porque as burguesias latino-
americanas estavam enredadas na teia imperialista de dominação a ponto de qualquer
concessão colocar em risco todo sistema de dominação externa e interna.
A crise estrutural do modelo de acumulação vigente implicou a reestruturação das
condições de acumulação (crise da estrutura agrária e inserção subordinada na divisão
internacional do trabalho, crise da industrialização dependente, submissa aos dólares
vindos do setor agroexportador, incapaz de gerar um desenvolvimento tecnológico).
As lutas sociais se radicalizaram na sociedade civil sem que o Estado fosse capaz
de absorver e regulá-las. Estavam em curso, por isso, situações de ruptura e
transformações democráticas da forma estatal. Porém, ocorre o triunfo da
contrarrevolução, no Cone Sul, dada a alteração da correlação de forças, a qual promoveu
transformações nas formas estatais. Aí com as Ditaduras, surgiram estados militarizados,
expressão de uma forma de dominação burguesa terrorista, antessala da acumulação de
capital.
A derrota dos movimentos populares possibilitou a redefinição da relação entre
trabalho e capital em favor deste último, com drástica pauperização da força de trabalho
com aumento da taxa de mais-valia, reduzindo o poder de consumo dos trabalhadores. A
burguesia industrial foi incapaz de promover transformações tecnológicas ou
reorganização empresarial. A burguesia agrária cancelou a via reformista e favoreceu o
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desenvolvimento do grande capital. A nova forma terrorista do Estado favoreceu também


a redefinição das distintas frações do capital no nível econômico e político.
A burguesia nacional já não tinha nenhum projeto econômico a oferecer. A crise
do modelo econômico vigente no pós-guerra foi a expressão de seu fracasso. Igualmente,
a fração burguesa rural não tinha nenhum projeto. A única fração que o tinha era a
monopolista (ponto de confluência e associação do grande capital interno e grande capital
transnacional). A mudança da relação interna trabalho e capital na AL representou
também a mudança na modalidade de acumulação neste âmbito e a criação de uma nova
inserção na divisão internacional do trabalho. Ocorre uma transnacionalização das
economias nacionais em seus pontos mais fortes, medulares: transnacionalização da
propriedade de setores econômicos de ponta e do sistema de produção,
transnacionalização do consumismo, dos preços das mercadorias, transnacionalização da
ideologia e da cultura através de meios massivos de difusão (surgimento da indústria
cultural).
Simultaneamente a implantação de Estados terroristas na década de 1970, a lógica
da nova acumulação pautada nos monopólios exigia a manutenção dessa forma de
dominação pela coerção, para institucionalizar mediante a remodelação do corpo social
numa direção corporativa, destinada a enquadrar e arregimentar a atividade cidadã
conforme os interesses e expectativas do grande capital. Nesse processo, O Estado latino-
americano sofreu uma profunda modificação: perdeu seus traços populistas, bem-feitor e
paternalista; redefiniu as formas de intervenção na economia, cancelou sua dimensão de
capitalismo de Estado (interventora em favor da sociedade nacional), convertendo-se em
capitalismo monopolista de Estado.
No ano de 1976 a situação de ditadura era uma regra em toda AL: Brasil,
Argentina, Bolívia, Uruguay, Chile, Paraguay, Peru, Equador, Nicarágua, El Salvador,
Guatemala, Haiti, República Dominicana, Honduras, Colômbia (fachada civilista).
Surgiram processos de desestabilização em Jamaica, Trinidad Tobago, Guiana e México,
Panamá. A crise capitalista sacudiu as sociedades latino-americanas, cujos estados
viviam momento também crítico de redefinição, desarticulação e rearticulação através de
ditaduras reacionárias.
O processo, porém, foi carregado de ambivalência e precariedade, pois a saída
para a retomada da acumulação de capital sob os monopólios acentuou as desigualdades
e contradições, ao invés de atenuá-las. Além de concentrador, o capitalismo periférico
favoreceu a corrupção nos aparelhos de estado, que imitava o consumismo dos grandes
centros.
Os sindicatos perderam força, foram anulados, quando ocorre uma penetração
incontrolável das empresas transnacionais. Os capitalistas financeiros passam a usurpar
os capitalistas produtivos. Os bancos começam a engordar e as indústrias a enfraquecer.
Para Cueva, esse processo é imanente ao desenvolvimento capitalista que
promove centralização, concentração de capitais, monopolização, transnacionalização,
sob a égide do setor financeiro. Esse processo produz efeitos aberrantes nos elos frágeis
da cadeia imperialista.
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Nesse processo de desenvolvimento, porém, aflora a contradição da ausência de


hegemonia, de consenso, sendo o processo mantido sob a coerção de ditaduras em meio
a existência de um mundo socialista. A dificuldade é real, pois como implantar hegemonia
em uma região onde a acumulação de capital requer extração do excedente econômico,
superexploração do trabalho, que demandam as mais férreas formas de dominação?
Os EUA tornaram-se paladinos dos direitos humanos sob a administração de
Carter, tentando resolver de modo voluntarista, desde cima, a relação entre violência e
hegemonia. Obviamente que se fosse levada a sério desmantelaria a cadeia imperialista.
Por isso sua política de democratização terminou num rotundo fracasso. A crise do
petróleo e aumento do barril, possibilitou que algumas burguesias na AL melhorassem
sua participação no excedente dessa indústria. A alteração de preço agravou a crise nos
países imperialistas (por mais que suas companhias lucrassem) e precipitou a crise nos
países periféricos carentes de energia. A crise favoreceu países produtores de petróleo:
México, Venezuela e Equador, que desenharam políticas com graus variáveis de
autonomia, acabando por quebrar o bloco pró-imperialista na AL.
Nesse contexto se produziram as lutas populares na região a partir de 1978,
estremecendo a estrutura política imposta pelo grande capital, favorecendo processos de
democratização desde cima como o defendido por Carter. A abertura no Brasil foi mais
além do previsto pelas pela burguesia, graças aos movimentos de massa, as greves no
ABC . Na Bolívia a crise do Estado burguês se expressou em bruscas oscilações,
culminando no golpe contrarrevolucionário de García Meza. Na Colômbia e no Peru o
Estado sai da crise instaurando a fórceps a democracia burguesa, em constante perigo de
ser rompida pelas baionetas. A crise do Estado teve força na América Central e Caribe.
Na Nicarágua o Estado burguês dependente foi implodido pelo movimento popular,
dando origem a um Estado democrático-popular, que implicou uma ruptura com a cadeia
imperialista de exploração. A administração Carter imediatamente se colocou contra
esses processos, substituindo a política de direitos humanos, pela intervenção dura. Se a
primeira administração Carter tentou revestir a dominação imperialista de uma roupagem
intelectual, democratizante, em favor dos direitos humanos, a administração Ronald
Reagan se caracterizou por uma posição dura e implacável. Para essa administração, o
que convinha para a AL, na melhor das hipóteses, é uma democracia com “d” minúsculo.

Referência
CUEVA, Augustin. Estado latino-americano e raízes estruturais do autoritarismo.
In:____. Augustín Cueva. Ensayos políticos y sociológicos. Quito: Ministerio de
coordenacion política, 2012.

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