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O “Mal do Domingo” —- Drummond e Schopenhauer por Joaquim-Francisco Coelho Segundo Louis Esttve, que 0 diagnosticou ¢ analisou em detalhe no cap. II de L’Hérédité romantique dans la littérature contemporaine (Paris, Gastein- Serge, 1914, 2." ed), 0 «Mal do Domingo», Le Mal du Dimanche, no passa, enquanto forma de tédio transplantada a0 n{vel litersrio, de variante exacerbada dum outro mal, Le Mal de la Province, ambos de origem romin- tica e muito caracterfsticos da poesia simbolista de intengdes decadentistas * ‘Ao ennui do «Mal da Provincia», que assalta a alma do habitante da cida- dezinha do interior, onde a vida transcorre monétona e sem horizontes, ‘case-se, no «Mal do Domingo», a lassido dum dia em que tudo péra, em que tudo sofre, nas palavras de Estéve, um «dérangement des habitudes quotidiennes», E.0 ctitico acrescenta, reunindo as duas «doengas» sob um denominador comum: 1 Em sua 1+ edy de 1909 (Toulouse, Edition du Salon des Pottes), 0 livro de Estive tinha como cosutor George Gaudion e trav titulo mais curto: Les béritages di romuntisme. Aquea altura, vale acentuar, ainda viviam pelo menos dois dentre os poctas ‘cajos. versos vo citados no presente artigo, Julio Herrera y Reissig e Adolfo Wemeck, Sengo também de lembrar que Carlos Drummond de Andrade, entio com sete anos, pre pareva-se para ingressar no curso primério. A titulo de informagio ¢ orientaglo ao leitor, Gis a5 datas de nascimento € morte desses contemporincos finisscculares, todos mais oo ‘menos contaminados pelo irremedifvel Mal du Dimanche, do qual nem mesmo Drum ond, nascido jd em nosso século (1902), conseguiu na verdade excapar: Tristan Cor Bre 18451875), Geoges, Rodenbach (18551889), Cnt, Verde, (18951889), Jules Laforgue (1860-1887), Charles Guérin (1873-1907), julio Herrera y Reissig (1875-1910) © Adolfo Wemneck (1879-1952). 15 16 La journée du dimanche, en effet, détermine ordinairement une exaspération de Ia mélancolie provineiale, — dont elle marque Tacme morbide. Le retour pério- dique de cet état de crise nous fera mieux comprendre une telle mélancolie: trop souvent, sous V'influence du grand jour du repos, Pennui tourne & la désolation, la tristeste Paccablement, et le sentiment des banalités ambiantes s'angoisse en terreur des lsideurs vulgaires Como exemplo representativo de poesia contaminada pelo «Mal do Domingo», Estéve cita inicialmente um longo trecho do Rodenbach de La Jeunesse Blanche, trecho de que transcrevemos apenas estes versos: Morne, Vapris-midi des dimanches, Phiver, Dans Lassoupissement des villes de province, ‘Od quelque girouette inconsolable grince, Seule, au somme: des toits, comme un olsen de fer! U1 flotte dans Je vent on ne stit quelle angoisse! De tds rares passnts s’en vont sur les trottoirs: Préires, femmes du peuple, en grands capuchons nots, Dégaines revenant des saluts de passe. A este exemplo, onde a enfermidade em discussio vé-se agravada pelo © caso da sextafeira, que se manifesta clipticamente em «No Se Mate», de Brea dis. Ames, implicia no advécbio Boje © precedendo um emanba substtuine do afbedo: Cart, soseene, 0 enmr 2 ise que voce eth vendo: boje bij, amarB2 nia bets, segunda ira ninguéce sabe 19 novo vorabulério, em que hé tragos vistveis da linguagem psicanaliti (0s adesejos» e os «problemas» no topo da estrofe, os quais se introverterdo, imaginae, no ex profundo dos homens «calados>. E, porque 0 domingo acaba por destegular, a0 fim e 20 cabo, o ritmo quotidiano dos seres e das coisas, compreende-se venha o poeta a descrevé-lo como sendo «sem fim nem comego», 0 que vale dizer, sem pés nem cabeca, absurdo, falto de sentido. Drummond resvala aqui, de certo modo, no velho topos cléssico do «descon- certo do mundo», que ele proprio memoravelmente remeditou, em termos actutis, 0 poema «Nosso Tempo» de A Rosa do Povo (1945), espécie de catélogo caético dum universo girando as avessis. Pitoresca revela-se a metamorfose de nosso tema, ainda em Alguma Poesia, neste verso comprido de «Igreja»: E nos domingos a litania dos perdoes, 0 murmiirio das invocacées. O dia de que aqui se fala € o «Dominus Dei», surpreendido em sua proverbial atmosfera religiosa no corpo dum poema com toques anticlericais. A longuidio do verso, 0 martelar monosérdico da rima interna («perdées» © ainvocagdes), 0 zambido sem fim da ladainha dos fidis — os fidis peca- dores que em «Procisson, pega da mesma colectinea, fario Jesus Cristo sonhar com outra humanidade...—, ¢ mais um sino que 20 longe «canta a saudade de qualquer coisa sabida e j4 esqueciday, tudo busca sugerit a apa- rigio do Mal du Dimanche, capaz, segundo vimos, de deter a méquina do mundo, e do qual nem sempre seré fécil escapar. ‘Ao chegarmos a Brejo das Almas, volume de 1934, também lé depa- ramos com 0 tema, encastoado numa estrofe de «Sombra das Mocas em Flor» — © 0 dia que nasce atrés das pupilas ago e tranquilo como um domingo, « como «mal do domingo» no surge nem actua no sci, mas, 20 contritio, num espagotempo culturdlmente vasto ¢ complexo, nem sempre ‘exaustivamente percorrido pelos analistas do fenémeno literdio. 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