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Karl Marx Friedrich Engels POO COL Cou kc eel Ere nn een ee cat tg CC Coe Cea oL Cee Cea ch] HEE cen eee eee ea eee O Manifesto Comunista € o pensamente histérico Virginia Fontes’ Partindo do Manifesto do Partido Comunista, este texto pretende apresentar alguns tragos constitutivos do pensamento hist6rico elaborado por Kar! Marx ¢ Friedrich Engels e desenvolvido em sua ica ulterior dialogou com esses ide de suas proposigoes permane- jo em que nos defrontamos com sformagoes a explicar, assim como novas alternati- a construi idade do texto do Manifesto reside no fato de que/em fundamentais para qualquer pensamento hist6rico subseqitentey Antes, porém, de entrarmos nos conceitos e categorias que balizam a reflexao hist6rica no Manifesto, vejamos as co! partir das quais — e c na forma de conceber a vida social e o processo histérico. Duas tendéncias principais ancoravam o pensamento histérico na pri- meira metade do século: as sobrevivencias, embora bastante altera- das, do providencialismo cristdo e a generalizagio do pensamento liberal.’ © providencialismo, enfraquecido pelas érduas contestagées (que Sofrera, ainda exercia algum fascinio sobre 0 pensamento his- 55 Hes be 156 ia Fontes {6rico. Traduzia-se pela suposicio da existéncia de um “plano” ex- terior ao processo histérico, plano que se realizaria no mundo a partir le designios externos. Classicamente, o conhecimento esse plano intangivel ocorreria através da Revelacdo divina, e sua con- cretizagdo deveria ser assegutada através de alguns grupos soci restritos, tradutores desses designios (a Igreja ou a Monarquia). Em sua forma laicizada, a Razdo ocupava o lugar dessa entidade, Pairando acima e fora da vida social e dos homens. De manera si- rilar, em ambos os casos, o proceso hist6rico tomnava-se apenas ‘uma ilustragao de tal “plano”. Apesar de bastante alterado pelos combates que teve de entren- tar ao longo dos séculos XVII e XVIII, 0 pensamento de cunho providencialista ainda forneceria o lastro para grandes reacbes conservadoras no século XIX, como a Santa Alianga? De forma “modernizada”, ele forneceria subsidios para 0 eurocentrismo no rocesso de expansio capitalista. No século XIX, com efeito, 0 co nhecimento do plano ou dos desfgnios divinos transmudou. se pa- aa certeza de um projeto civlizacional ocidental, de cunho io, porém nio mais submetido a estreita vigilincia de uma s6 igreja. Ao deixar de estar sueito a0 controle de uma tnica institu S40, a0 laicizar seus objetivos,alterava-se. Mas mantinha lagos com seu antecessor, na medida em que se considerava imbuido de uma missdo civilizadora assegurada pelo contato com uma entidade propria, de origem divina ou decorrente de uma Razio absoluta, _O pensament em oposigdo ao pensamento igioso. O liberalismo, herdeiro das tentativas an. 120 da reflexio sobre © poder, rejeitava a visio historica dominante, mas nao chegou a elaborar uma preocupagéo Propriamente hist6rica. Incidindo sobretudo sobre as formas de organizar e/ou controlar o poder, abandonow os principios ge- neralizantes para calcar-se nos atributos dos individuos. Tendo como base uma reflexdo sobre a “natureza do homem”, 0s liberais cenfatizavam a organizagio do niicleo central do poder, o Estado, Despida de uma aura externa que a dirigia eiluminava, a socie- dade deixava de ser uma “humanidade abstrata” e tornava-se o hu- fr do encontro de individuos, paleo de um pacto necessirio e pro- rt (0 Manifesto Comunista eo pensamento histico 157 blematico, pois, ao mesmo tempo que asseguraria a vida, a pro- priedade e/ou a liberdade, implantaria uma ameaga petmanente, 0 Estado, condicao ¢ resultado do pacto, Homens naturais torna- vam-se seres sociais (sociedade civil) por meio de uma pactagio 4que supunha a obediéncia a um Estado (sociedade politica) cuja base nao era mais religiosa, mas resultado do temor de todos. Sua fungi deveria reduzir-se a assegurar a vida, a proptiedade e a paz civil (a ordem). Embora sedutora, a imagem metaférica usada pelo pensamento liberal nao correspondia a nenhum processo hist6rico efetivo.? A sociedade seria apenas uma soma de individuos ou teria atribu- tos préprios, constituidos de forma endégena e nao divina? Essas caracteristicas seriam de toda a humanidade ou referir-se-iam es- pecificamente a cada agrupamento tomado separadamente? Se- riam permanentes ou, 20 contrério, estariam sujeitas a mudangas e transformagées? Esta tiltima questio interrogava diretamente as, duas vertentes, pois ambas calcavam-se em pressupostos imutaveis — uma divindade (ou projeto) intangivel e inalteravel, ow uma “natureza” humana constante e permanente. Offinal do século XVIII vers emergir essa questo de forma ines- perada. Um autor, em especial, formularé uma série de reflexes, abrindo uma cunha no pensamento liberal: Jean-Jacques Rous seau (1712-1778). Partindo de Hobbes ¢ de Locke, Rousseat leva 0 ‘pensamento liberal até seus limites maximos, evidenciando as cotomias que o forjavam: Estado versus sociedade civil e, sobretu- do, individuo versus sociedade. Invertendo a concepsao liberal da natureza do homem, passa a considerd-la sob dois angulos di tos e contraditérios: como “boa” natureza, desvirtuada e corrom- pida por uma sociedade onde imperava a desigualdade, e como “natureza perfectivel”, isto é, dotada da capacidade de “desna- turalizar-se”. Essa contradigao inaugura possibilidades inéditas para a acao politica, pois a nogao de “natureza oprimida” por uma ordem social injusta confetia dignidade ao descontentamento so- cial, enquanto sua possibilidade permanente de aperfegoamento abria campo ilimitado para a agao politica. Depois de Rousseau, nao haveria mais flosofia politica como tal. A idéia de natureza do 138 Virginia Fontes jos assumiriam seu lugar mente, todas as teorias p \cias concretas tornariam a “questao social 6 conseqtientemente, ahistéria— temas: dlos Estados Unidos e, sobretudo, a Revolucio Francesa. A partir da Revolugio Francesa, evidenciava-se, tanto entre intelectu to entre os segmentos populates, a existéncia de caracteristicas pré- Prlas 8 sociedade, que nao se confundiam com os destinos e as op- ‘ges in Essa percepedo, cuja cris Tonga e di forma da“ Do pacto como algo j aa aventura das cot instaurado, emergia na uistas sociais e a possi - aco popular. Mais ainda, evidenciava-se que a questio social nao dizia respeito, de forma i Outros pensadores, como Hegel, enunciariam formulas capa- 2es de integrar todas essas interrogagées, ou ainda de procurar tervir na sociedade de forma a inerementar ou n Ho de certos segmentos, de modo a promover “felicidade” * Apés a Revolugio Francesa, 0 sentimento de incompletude das conquistas sociais remetia diretamente & percepsio de uma out dimensio na vida coletiva, para ido de indi- viduos ¢ para aquém de um projeto teleolégico. Essa dimenséo corresponde exatamente & percep¢io da sociedade como local de ayo, de transformacio coletiva e de possbilidades tanto para 0 conjunto social quanto, em especi “progresso” ou a lectual. Ao con- wolvia segmentos sociais crescentes, constantes reivindi- «ages, abafadas ou duramente reprimidas em alguns momentos, Virulentas em outros. © Manifesto Comunistae 0 pensamento histrico 159 Sob a bandeira da transformagao social, moviam-se grupos de operitios, camponeses, pobres urbanos, filantropos, filésofos telectuais. Procuravam ir mais adiante do que a expressio politica entdo cristalizada em governos liberais, do ponto de vista econd- mico, mas conservadores quan 'agdo social e politica INo terreno econdmico, descortinava-se um mundo féustico, repleto de futuro, A industrializacéo crescente, com a generaliza- so na Europa de uma producdo mecanizada, amparada nos pres- da Economia Politica (ou da escola hist6rica escocesa), sinio sobre a natureza ilimitados, A expansio curopéia através do mundo, a consolidacao do dominio da produgao cay Progresso apareciam como justificativas para um presente do e desigual, mas portador de um porvir perfeito, Para concreti zar tal futuro prometido, impunha-se dis controlar seus impulsos, impedir que se manifestassem formas de “barbatie”.’ A desigualdade social era mantida eestimulada, como contrapartida de uma inclusio forcada no mundo da produgéo indust A Economia Politica, ao expor os prineipios do valor e da for- magao de imercados — em suma, os fundamentos capazes de mulat a expansao capitalista — reduzia ia. O mundo europeu, ca linar os demais, a come us proprios pobi A idéia de progresso fincava pé nas estatisticas da produgio eco- ‘ndmica, As sociedades eram niveladas por sua capacidade de pro- uzir, Havia parco espago, nesse terreno, para a questo social eas reivindicagoes a ela associadas, Simultaneamente, a Economia Po- em especial David Ricardo, evidenciava 0 papel de constru- tor de riquezas — eixo central da produgio — do trabalho e dos trabalhadores.f sta lamente a questao so: ‘encarada ao mesmo tempo como problema pritico, reflexao tebri- a € questio hist6rica. Nao procura expor um instantineo fixo e 160 " nia Fontes congelado da sociedade, mas um processo social em constante mo- vvimento, um processo que contém em si mesmo as forgas capazes de levar adiante transformagoes mais profundas. Dois eixos sto (sintese), evidenciando as classes sociais e os grupos capazes de levar adiante as possibilidades contidas naquelas cicunstancias (0 agente histérico)."/ Antes da redacao do Manifesto, Marx e Engels realizaram uma série de trabalhos que constituiriam a base para suas anélises ulte- riores, Na Gazeta Renana (1842), Marx havia abordado 0 famoso «2s0 do roubo de lenha, mostrando como a apropriagao privada das terras comunais na Europa, subvertendo as antigas préticas so-

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