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rk a ~ MUDANGA DE CULTURA ENTRE OS MACONDES DE MOCAMBIQUE por JORGE DIAS © povo meconde habita um Planalto a0 sul do rio Rovuma, perto da fronteira da actual Tanzania, € um povo ‘de agricultores, com ‘écnicas de rotago ben adaptaties 30 ambiente e com uma divisfo sexual das actividades agricolas fixada pela tradiedo. ‘A cultura maconde tem mudado bastante nos Ultimos decénios, 8 julgar pelas informaces dos velhos e por algumas noticias escritas, como consequéncia das mudancas econémicas e, sobretudo, pala introducao do dinheiro. De facto, os mecondes, refugiados num planalto com excelentes condigées de defesa, tinham-se fechado 20 convivio dos povos vizinhos, em parte para evitar os cagadores de escravos que infestevam 0 vale do Rovuma, mas, principalmente, ‘com receio. dos ataques sibitos e brutais dos angdnis que, no século XIX, rondevam por estas oaragens. Este isolamento forcado reflectiuse na economia, levando 0 homem a dedicar-se mais &agricultura. Parace que durante muitas goragdes principal actividede, do maconde tina sido 2 cara, caberdo 8 mulher.o cuidado' dos campos. Durante este perfado competia ao homem Unicamente fazer 3 derruba das Srvores, sempre que era necessirio arrorear nova terra de cultura, Deve contudo dizer-se que a grarde disténcia a que ficavam as fontes, onde as mulheres se vo abastecer e, sobretudo, a necessidade de as fazer acompanhar por uma escolta bem armada, pera as defender dos perigos atrés) mencionados, constitufa uma perda considerdvel de tempo. Dequi UM HOMEM com as suas alfaias agricolas resultou que os homens se sentissem Obrigados @ dar maior assistincia 26 obrigava a reduzir a actividade progressivo interesse do homem pole [ mulheres 80 s6 nas aldelas mas cinegetica. agriculture, que a pouco e pouco va “sobretudo no trabalho dos campos, A mulher, que tinha sido durante partilhando com ela, embora tanto meis que a insegurenca nas terres longo.tempo a principal promotorada cepartindo as actividades de manaira baixas, onde abundava a ceca, os actividade agricola, assiste a0 precise cleralt), a MM 17/72 15 eee. = Come. a mulher tinha sido “a detentors. da economia agricola, dona. “dos campos @ da“palhote, senhora da calheita, como a sucesso erd ‘matrilinear @ 0 casamenito avunculocal ~ (v ‘uxorilocal, sem compensaco, 0 marido. encontrava-se_numa_posiga0 econémica- e social de~dependéncia:. (aqui suri uma rivalidade ent os S@x0s que se manteve até hoje Os ritos da paberdade-masculing & feminina tém contribuido para alimantar esta dualidade e entegonisma. Nesta luta surda, durante © perfodo fem que © homiem era sobratudo cagador, éste recorria principalmente dos ritos da puberdade feminina ‘08 migtérios. do mato @ da magia © ‘evocava um personayem mitico, 0 “mapiko'", um antepassado que Fessuscitava e aparecia nas aldeias lancando © terror entre as mulheres e os nfo-iniciados. Este “mapiko"” vseva luma méscera.lmo, que Ihe cobria toda a cabera, ¢ tinha 0 corpo inteiramente ‘tapado com trapes ¢ fioras vegetais de maneire que s6 ficaven 8 vista as. pontas dos dados dos pés e das mos. (© homem consoguia, assim, pelo temor, um certo equilibrio de forcas entre os dois grupos sexvais, embora no plano. ecanémico ele mantivesse ‘uma posigdo deo inferioridadet2 Sucede, porém, que, na segunda metade do século XIX, sume o interesse pela borracha nos mercados a “internacionais @ 0§ comerciantes do Pee carer oo: SE ae eae SUES oat Necan wis oe es ataat sone, See eee ieasone ts eae ear Soe ates bale Seen tar trees ar Geman an to. sain ee Renee eae cine ae aac scien cas sa O*REGRESSO a aldeia de uma rapariga que terminou o periodo de sogrogaedo. (08 inimiges, como pormitiam cacar ‘com muito mais éxito, Por cutro lado, ‘com 03 penos consaguiam prestigio em relacio s mulheres, que erm seduzidas pelos tecidos com belos desenhos coloridos, incompart: vvelmente mais bonitos do que os panos de entrecasca de drvore que entao se usavam. Porese que ¢ a partir deste época que surgem formas de casamento patrilocal, recebendo @ famflia da noiva uma espingarda, como compensego nupcial, Os casamentos entre primos cruzados, om regime avunculocal, sem compensagio, mantémse, assim como 0s casamentos uxorilocais, mas, nos casos de poliginia, © segundo casamento patrilocal Durante, este _perfodo q homem © ‘eneficiou desta situarao'favordvel que fa borracha lhe oferecia. Porém, ent determinado momenta da séeulo XX, cos mereados de borracha esponténes sofrem uma temenda crise, como consequéncia da concorréncia inedonésia, @ os macondes wer-se de repenta privados desta fécil fonte de rendimento. € entéo que se nota uma ecicida viragem para a vida agricola, (© hamem colacese francemente: 20 lado da mulher nas actividades agricoles, tornando-se inteiremente seu ccolaboradior. Porém, 0 desenvolvimento econémica de Norte de Mocambique e do Tanganica nos ultimos decénios, com a exploracdo extensiva de certos produtos, entre os quais avultava 0 sisal, reclemava méo-de-obra, que aflula de varias regiGes e, em especial, dd area maconde. A segurancs do pais, fem consequéncia da definitiva cextirpagio dos cagadores de escravos @ da pacificag§o dos angénis, toineva facil 0s movimentos das gentes ave iam de jornata até 20 Tanganica © ‘aceitavam contratas de trabalho por per fodos mais ou menos longos. Estes trabalhadores eram em geral alojades e alimentados pelos fazendeiros, recebendo além disso 0 salério estipulaio. O maconde conhece entéo, pele primeira vez, 0 valor {gosto} do dinheio. Até 1915, pelo ‘menos, 0 dinheiro ngo tinha entre eles grande’ significadol4). Mesmo durante © perfodo da borracha, as transacrtes faziom-se em mero plano de troca, Mas, daqui por diante, 0 dinheiro comeca a ser um elemento muito importante na sua sociedade contribuindo para a transformagao de muitos tracos da sua cultura, Aqueles que se mantém agricultores, procuram obter igualmente dinhelco, Para isso, ou alargam as cultures. alimentares, esforeando-se por produzir mais do ‘que consomem, verdendo nas lojas do meto 03. exosdentes, ou procuram pproduzir artigos cotados nos grandes mercados, como: ricino, gergelim & algodo. (0 dinheiro tornase ume arma de dois qumes. Por um lado permite 2° aquisi¢go de muitos artigos Utes, coma bicicletas, transistores, (Contiua na pég. 65) 7/724. Mw (Continuada da pag. 16) ferrementese objectos de comodidade: oF outro lado, tore-se um elemento de corrupeao. a 0 “toboI6® ("edeprieo”) pago & familia de noiva. nos casamengos vitléceis, continua 8 ser a espingarca, mas os ‘lores tornam-se desigueis. Enquanto para um agricultor a espingarda & um artigo caro, dificil de obter, sara um trabalhador recém-chegado do contrato, asta adquirese fécilmente, Esta diferenca de poder aguisitivo dé origems @ um profundo desequilfbrio do sistema que regulava as relagdes entre os sexos, ‘A mulher maconde foi semore muito livre, A no ser nos casos de ‘casamento obrigat6rio entre primos ‘cruzados, ela teve sempre a liberdade de aceitar ou racusar marido. Durante © period que medeia entre os rites da puberdade © 0 casamento, a mulher esfruta de grande liberdade sexual, podendo considerar-se aquele uma fase Preparatéria do casamento. A virgindade nunca desempenhou qualquer funez0, tanto mais qua as roparigas $30 desfloradas ritualmente no fim dos ritos da puberdade Depois de casadas, 0 seu comportamento era tadavia_mais regular, pois pairava 0 raceio da terrivel vingenca do merido, que, na cultura maconde, se considerou sempre como reagindo de maneira muito violent. Porém, desde ha GRUPO de mulheres a caver a terra muito, @ sociedade maconde tintia encontrado maneira de evitar as consequéncias desastrosas que resultavam de tais vingangas, visto 2 sociedade estar constituida por grupos familiares extensos, ligados por fortes, lacos de solidariedade, Estes parantes cconseguiam, na maior perte dos casos, aquietar 0 marica @ obter do sedutor uma indemnizacdo de qualquer natureza, que representava uma satisfacdo da parte do culpado e prova de arrependimento. A DANGA ritual do magico nos ritos da pubordade masculina av. Mn 17/1/72 Com a administrago portuguesa, 0 sistema de indemnizacdes tornou'se muito mais geral e estas acabaram por se normalizar @ fixar os seus ‘uantitativos em dinheiro, de acardo com 0s usos e costumes) E evidente que, no momento em que s fixam indemnizextes de acordo com 0 nivel econémico geral de ume populacdo rural, os poucos que chegam. dos contrétos ou -genham dinhsiro em actividades mais bem remuneradas, sentem-se 8 vontade para actuar a seu bel-prazer- Desta maneira, © dinheiro comeca “é mimaras velhas instituigées, Impedindo-as de _. desempenher as suas funcdes twadicionais. ‘A capacidade dissolvente do dinheiro tradyz-se das’ seguintes maneiras, na droa' maconde: Primeiro — Alguns homens podem comprar espingardas. facilmente e negoceiam casamentos. virilocais, satisfazendo caprichas de momento, Por sua vez, embora so mantenha 3 expresso “payar a espingarda” por “lobola™, muitos familiares das noivas lexigem, além da espingarda, panos ou outros valores e, as vezes, até dintiero. Segundo — Durante 0 perfado de liberdade sexual das raparigas, entre os ritos da puberdade @ o casamento, comerou a generalizar-se 0 costume de oferecer & rageriga, em troca dos seus favores, um pequeno presante: um _ 6 ae sabonete, um fraico- de perfume, ot. Hoje, muitos. 80. dinheiro, 0 que evidentemente transforma uma actividade esponténea.e. live da rapariga em. negécio interessiro, que se aproxima da prostituigio, Terceiro — O adstume de pagar uma indemnizago 20 .merido enganado: diminuiu. consideravelmente, © recoio dos sedutores e das adlteras que ssiin se podem entragar mais fécilmente 25 suas aventuras de_momento. Porém, apesar da lel.impor 0 pagemento. de indemnizecéo, .o marido nem sempre « se conforma com a lei e faz, as vazes, justica pels proprias “méos.. Esta ‘ameeca continua a ser 0 grande travdo de desmandos. Contudo, a maioria vai-se habituando 208 novos costumes 2.05 que ganham o suficiente procuram multiplicar as avontures, Alguns. 50 Fecaam mesmo ent oferecer presentes 2 mulheres. casadas, sobretudo na austncia, dos maridos, pare feciliter os Gus manejos. Por sue. vez sucede, Smboia om. reduzidissima escala & sobrewudo em ambientes de forte aculturec8, que alguns maridos se tornem tolerantes, considerando a Indemnizaco dos sedutores como fonte de recta Vemos como 0 dinheiro veio perturbor uma estabilidade exssente em instituigBes que tinham sido eficazes numa sociedode de sgricultores com poucos excedentes permutéves, dando lugar a um pariodo de desequilforio ‘que tanto pode ser obtido por uma melhoria de vida do agricultor em relecéo 20 assalariado, como facilterdo 9 todos, através da criaclo de inddstries, a possibiidade de ganhar dinheiro. Alids,e desigualdade de nivel de vida éntre & camponés & 0 operério industrial ainda é frequente ne maior’ das nagBes indusirais L0.8 (2) Dias, Jorge. “Os Macondes de Mogambique; Aspectos Histrices ¢ Econémicos." Lisboa, 1964... 1 @) Id. “Connitos de Cultura, In: “Coléquios sobre Problomas nas RegiSes ‘Tropiesie", Lisboa, 1961 (3) Thompson, Joseph. “Notes on the Basin of the River Rovuma, East Africa”. “Proceedings of the Royal Geographical Society", London. 4 (2): 79, 1882, ‘ay Pies, Anténio Guerra em Mogambique’ ps8. (5) Dias, Jouge © Dias, Margot. “Os Macondes de Mogambique: Vida Socal", Lisboa, 1970. “A. Grande Porto, 1924, MIO DOENCA-CURA ENTRE OS CUANDOS CRIANDO ambiéncia para uma ccoriménia espirita Todos os povos tim conhecimento de cstados de doenga ¢ procuram combaté-los para ating cura % aia oposioto doeneacura tem a sua exitténcia de acordo com a eonceptualizapdo do grupo ¢ realizese dentro da extruture da comunidad. A doenca, que. sempre um estado de excepeéo (o regra & estar e ser tio), tende a ser ancarada de uma forma mitia, desde ‘que a sua causa ng se tore visivel ¢ a Dpossibiidade do conhecimento de origem da ‘evfermidade depende da cultura do grupo, dentro do qual se diagnostice 0 tipo da ‘doenga @ se presreve 0 teu tratamento, Na terapéutica intervém, além dos recursos | eientifico experimentais do agente de cura, {2 erence que 0 doente ¢ 0 grupo depositam a sua eficdia'e também a que ele poss. ‘Weste complexo jogo de forgas interrém enire or cuandos {1) quatro. diferentes personagens com fungdes diferenciadss (2) ‘Sao eles 0 feitcero "garga’), 0 médico (otchimbarda"), 0 adivinho (“omutert’) © ‘oesptrito "tehekata”) 0 feltiero é 0 individuo é acpzo do qual ruitas doeneas sio atribuidas. Sem munca ‘expecificarem um individua precio, mas sempre a acpdo de um representante da classe que famais alguém aimitiia. ter ‘contultado, 0 malefcio do feticiro assume tum cardcterreabirea que edensa ainda mais ‘9 mistéro da origem desta doenga. Apesar do desconhecimento do autor de determinate enfermiade ~ e talvez até por {sso = existem entre ox homens cuandos (¢ fetiparia & uma actvidade exclusiva do sexo ‘maseulino) que, néo vendo segregados do grupo (3), © dedicam 3 magia negra, 0 que ‘do & vulgar em multos: outros ‘grupos {fricanos, onde fo escormeador e muitas exes até mortor. 40 feiticeiro revorrem quando pretendem que os seus designs de viganga se exerpam sobre alguém, mas fazemno sempre de uma mancira velata, nunca dizendo abertamente 0 que pretendem ¢ procurando um sitio excondido, A fetiaria & uma insttuipfo que ndo tem por funcio Anica explicer a eause de aigumas doencas, tem também importante papel de “eonsréle” social, na media em que esite imuites transgressdes 4 normes aceites pelo grupo, pois os provéveis injractores temem 05 seus efeitos perniciosos, até porque existe © consenso de que a possibiiiade de ‘aetuapzo do feitica & muito maior we ter na origem ume cause justa. Por outro lado, a fetiaria evita também que homens que se ‘achem com razéo trem uma desforr directa sobre 0 seu oposior e recarram & "justice do feiica”. Wha wv. Me

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