Você está na página 1de 21
O PODER JUDICIARIO EM PORTUGAL: ALGUMAS NOTAS SOBRE A SUA ORGANIZACAO, GARANTIAS E INGRESSO NA MAGISTRATURA Carlos Manuel Ferreira da Silva" Resumo Organizagfo: categorias dos tribunais, tribunais judiciais, tribunais de contas, conselho superior de magistratura, eleigdes na magistratura, associago sindical dos magistrados. Garantias: inamovibilidade, irresponsabilidade, responsabilidade civil, res- ponsabilidade disciplinar. Ingresso: candidatos, assessores, testes de aptidao, formagao, estigio, acesso segunda e terceira entréncias. Apreciagao do, regime de ingresso. Consideragdes finais, Palavras-chave: Poder Judiciério - Portugal. Magistratura ~ Portugal 1- Legislaco mais relevante relativa ao Poder Judiciério Constituigdo da Reptblica Portuguesa - Lei n° 28/82, de 15 de novembro - Lei Orgiinica sobre a Organizago, Funcionamento e Proceso no Tribunal Constitucional. * Membro do Instituto Thero-Americano de Dieto Processual ¢ da AssociapdoInmacional de Direito Process 18 ILVA, Cavox Maal Fercza dO poser judi em Portugal ~ Decreto-Iei n." 84/84, de 16 de margo ~ Estatuto de Ordem dos Advogados, ~ Lei n." 21/85, de 30 de julho ~ Estatuto dos Magistrados Judiciais = Lei n° 47/86. de 15 de outubro - Lei Organica do Ministerio Pabiico = Lei n? 38/87, de 23 de dezombro ~ Lei Organica dos Tribunais Judiciais = Decreto-Lei n.° 214/88, de 17 de junho ~ Regulamento da Lei Orginica dos Tribunais Judiciais, = Lei n? 2/98, de 8 de janeiro — Institui a figura dos assessores nos tribunais da Relagdo ¢ em certos tribunais da 1 Instancia, = Lei nm? 16/98, de 8 de abril - Regula a estratura e funcionamento do Centro de Estudos Judiciinios, Organizagdo do Poder Jucliciario A. Constituigdio da Republica Portuguesa nao fala diretamente em poderes. antes em Sruaos de soberania, entre os quais se incluem os tribunais, os quais so objeto de um titulo V, integrado na Parte TH, que trata da Organizagao do Poder Politico ‘A omissio de referencia explicita a um Poder Judicidrio, pare~ condo nao ser voluntaria e antes integrar-se numa tradi¢o constitucio- nal, pode, porém, ndo sor inocemts, pois os magistrados que os integram, isolados ou mesmo no seu todo, exereem organicamente ura poder ou se Jimitam a desempenhar casuisticamente uma funeio, a jurisdicional. Tendo a presente exposigiio o objetivo de divulgagio c comparaydo, nfo vamos empenhar-nos na discussio desta questio, mas, antes, entrar diretamente na andlise da organizagao judickaria, pois esta fora de divida que € nos tribunais que radica 0 Poder Judiciario ou a fungdo jurisdicional, como se queira Na verdade, nos termos do n.* 1 do artigo 202 da Constituigao, 5 tribunais sio 0s érgios de soberania com competéncia para adminis- trar a Justiga em nome do povo Na nossa exposigdo, apés uma anslise, forgosamente sucinta, dt organizagao dos tribunais, aludiremos ainda & organizagao dos juizes. Rev. Fas. Di URG, W222, 1, 77, jan ee 99798 is Categorias de tribunais Embora 0 Estado Portugués seja um Estado unitario, a organiza- 40 dos tribunais ndo deixa de revestir-se de alguma complexidade. Dispde o artigo 209 da Constituicdo: 1. Alm do Tribunal Constitucional, existem as seguintes cate- gorias de tribunais: 8) O Supremo Tribunal de Jnstiga e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instincias, 1b) 0 Supreme Tribunal Administrative ¢ 0s demais tribunais ad- ‘ministrativos¢ fiscais, ©) O Tribunal de Contas. 2. Podemexistirtibunais maritimos, tribunaisarbitraise julgados de paz. Deixando de lado, momentaneamente, o Tribunal Constitucional, ‘que, como veremos, se pretende de algum modo separar do Poder Judi- clario, temos que o niicleo deste s4o os tribunais judiciais, Tribunais jdiciais Os tribunais judiciais sto os tribunais comuns em matéria civel ¢ criminal, que exercem jurisdigdo em todas as Areas nao atribuidas a outras ordens judiciais, nos termos do n° 1 do artigo 211 da Constituigao. Cumprem-thes, assim, a generalidades das questdes civeis, labo- rais ¢ criminais, Encontram-se divididos, como vimos, em trés instancias: a) A L* instdineia é integrada, em regra, pelos tribunais de comarca; 'b) Os tribunais de 2.* insténcia, so, também, em regra, os tribunais da Relagao (ha quatro em todo o pais): ©) © Supremo Tribunal de Justica ¢ 0 Orgtio superior da hierarquia dos tribunais judiciais, constituindo a 3. instdncia, 20 SUV, Carlos Manuel Faiza da © poder justo em Portugal Em principio, os tribunais da 1." Instdncia so de competéncia ‘genérica, isto é, conhecem de todas as questdes, qualquer que seja a sua natureza. Prevé-se, porém, que pode haver tribunais com competéncia especifica ¢ tribunais especializados para o julgamento de matérias de~ terminadas (artigo 211, n° 2 da Constimigao). Esses tribunais especializados ou de competéncia especifica apenas existem nas principais cidades, onde 0 movimento judicial os justificam. Como tribunais especializados, vamos encontrar os seguintes, previstos no artigo 56 © seguintes da Lei Orginica dos Tribunais Judiciais (LOTS): a) Tribunais civeis; ) Tribunais criminais; ¢) Tribunais de instrugao criminal; 4) Tribunais de familia, @) Tribunais de menores; 4) Tribunais de trabalho; 8) Tribunais de exccugdo das penas; +h) Tribunais maritimes: i) Tribunais de recuperago de empresas ¢ faléncias. principio da especializagdo ocorre também no nivel dos tri- bunais da Relagéo ¢ do Supremo Tribunal de Justiga, que pociem funcio- ‘nar em segGes especializadas em matéria civel, penal ou social (traba~ tho). Os tribunais especializados o so, como vimos, em fungo da ‘matéria, Os tribunais de competéncia especifica, por sua vez, esto orga- rnizados na base da forma de processo que, normalmente, varia em fun- ‘fio do valor da causa. Assentes neste critério, temos, também somente nas comarcas de ‘maior movimento, as varas ~ para os processos de maior valor , 0s jui= 208 ~ para os processos de valor médio - ¢ os tribunais de pequena instncia, para as pequenas causas, Como vemos, por tras de uma aparentc simplicidade ~ as trés instincias -, acaba. por existir um sistema algo complexo, determinado pela necessidade de conferir eficdcia aos tribunais. No que diz respeito ‘ev, Fat, Dit URG, 20/22, yp 17-37, janes 199798 By 08 tribunais especializados, procura-se, sobretudo, que os magistrados acumulem saber ¢ experiéncia nas matérias que so chamados a decidir. Na verdade, nos dias de hoje, é utdpico pretender que um jurista possa ser especialista em todos os ramos do Direito; por outro lado, algumas ‘matérias, como as de familia, de menores, de execugao de penas ou de recuperago de empresas, por exemplo, exigem saberes e sensibilidades especificas ¢ que transcendem o mero mundo do Direito. Tribunais administrativos e fiscais ‘A segunda categoria & a dos tribunais administrativos e fiscais, cuja cipula ¢ 0 Supremo Tribunal Administrativo, A cesta categoria de tribunais compete 0 julgamento das ages € Fecursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litigios emer- _gentes das relages juridicas administrativa e fiscais (artigo 21, n° 2 da Constituigao) ‘A autonomia da jurisdigto administrativa é um dado histérico da ‘organizago do Poder Judiciario em Portugal, na seqiéncia da tradigao francesa, e vem recebendo, hoje, um reforgo por parte da Constituicdo, ‘que, designadamente, estabelece um conselho superior especifico para tratar da nomeaedo, colocagdo, transferéncia e promosdio dos juizes, bem ‘como do exercicio da ag3o disciplinar em relagdo a eles De nossa parte, consideramos, ao arrepio do legisiador cconstitucional, haver cada vez menos razies para esta autonomia total da jurisdicdo administrativa que, historicamente ou atualmente, corresponde a um privilégio do Estado que parece dever ultrapassar-se. Neste sentido zalitam, entre outras, as soguintes circunstncias: a) A democratizagdo do Estado ¢ a valorizagio dos direitos do ccidado que, 20 menos ao nivel do jurisdicional, deviam estar ‘em absoluta paridade; b) A cada vez maior regulamentagio da atuagao do Estado, cuja ‘conduta pode, por isso, scr controlada juridicamente a0 mesmo nivel que a dos restantes agentes sociais, ©) © desvio das grandes questées coletivas para a jurisdiglo comum, através das ages para defésa de interesses coletivos © difisos; 2 SILVA. Cason Mansel Fereira da. © pods on Porto d) 0 fato de o Estado ter passado, no seu interesse proprio, a sujeitar grande parte da sua atuagdo ao direito comum; por exomplo, cxccutando grandes obras publicas através de sociedades anénimas. No atual contexto social, a jurisdigéo administrativa parece configurar-se como uma mera sobrevivéncia do passado, ndo se alcan- gando porque os tribunais administrativos (e fiscais) nfo estio integrados, como tribunais especializados, nos tribunais conmuns, ¢ os seus juizes no saem do corpo tinico dos juizes dos tribunais judiciais No entanto, a consagragio constitucional, que vem sendo refor- ada, da autonomia da jurisdigdio administrativa e do seu corpo de juizes fo faz prever para breve a ~ para nés - desejavel integragio nos tribunais judiciais, Tribunais de contas A ima categoria de tribunais prevista com cariter obrigatorio nna Constituigdo ¢ integrada pelo Tribunal de Contas. Apenas referimos a sua existéncia, Tratase de um tribunal ao qual compete, genericamente, a fiscalizagio da legalidade das despesas publicas ¢ 0 julgamento das contas do Estado, nos termos do artigo 221 da Constituigdo: © Tribunal Constitucional € 0 tribunal ao qual compete especificamente administrar a Justia em matérias de natureza JSuridico-constitucional, Compete-the, em primeira linha, apreciar da inconstitueionalida- de das normas 0 que pode fazer: a) Através de uma fiscalizagdo preventiva, analisando projetos de Iki, decretos-lci ou tratados intemacionais, antes de promulgago ou ratificagdo pelo Presidente da Repaiblica: ) Através de uma fiscalizagio conereta, om recurso de decisdes dde outros tribunais que recusem a aplicagdo de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que apliquem ey, Fae: Die UFG, v.22, 1,9. 17-37, jan ide, 1957.98 2 norma cuja inconstitucionalidade haja sido suseitada durante o processo; ©) Através de uma fiscalizagdo abstrata, declarando, com forga, obrigatéria geral, a inconstitucionalidade de qualquer norma ‘ocorrerd, ainda, quando ela tenha sido julgada inconstitucional. © Tribunal Constitucional tem, também, a seu cargo parte im- portante do contencioso eleitoral. Para além da especificidade da sua competéncia, outros fatores ‘én contribuido para a dificuldade da sua integragdo no Poder Judiciario, tal como tradicionalmente concebido: a) A virtual impossibilidade de hierarquizi-lo em relagio ao Supremo Tribunal de Justiga, tradicionalmente o érgiio de cipula a organizagio judiciaria; ) O regime de escolha dos seus 13 juizes, dos quais 10 so designados pela Assembléia da Repiiblica ¢ os restantes ‘cooptados pelos primciros. Destes 13 juizes, apenas 6 terdo que ser obrigatoriamente juizes de carreira, Dois problemas principais vém afetando o funcionamento ¢ 0 estaruto do Tribunal Constitucional: a) © modo de designagio dos seus juizes, pela Assembiéia da Repitlica, acaba por traduzir-se muma escolha partidéria, Esta escolha partidaria, para além de recair alguinas vezes em pessoas cuja juvennude ndo as recomendaria para tdo altas fungdes, acaba por repercutir-se na votagio das decisécs. Sobretudo no que se refere & fiscalizagio preventiva, a de conteido politico mais evidente, vendo-se o tribunal, com indesejavel freqiiéncia, dividido claramente em fungo da orientagdo dos partidos que estiverem por tras da eleigtio de cada juiz b) 0 fato de podcr (€ de estar a) ser utilizado, em caso de fiscalizagdo conereta, como ikima instncia de recurso, com Propésitos manifestamente dilatérios. Assim, ainda que seja claro nao se levantar qualquer questdo de inconstitucionalidade, a parte perdedora sempre a suscita, com o tinico fim de diferir no tempo uma decisio necessariamente desfavoravel. E mais uma u SILVA. Cutie Manuel eres ds, poser tii em P acha na fogueira da morosidade em que vem ardendo, com labaredas cada vez mais alas, 0 prestigio dos tribunais em Portugal ‘Uma tiltima nota, e que ¢ a justificagdo do tempo que dedicamos 0 Tribunal Constitucional: diga a Constituigao o que disser, estando atribuida a cle a fiscalizagao concreta da constitucionalidade, em ultima instdncia, é impossivel que, na pritica e para a opinido pliblica, nfo se considere que integra o Poder Judiciirio; como, alias, a sua mera designagao inculca, O Conselho Superior da Magistratura Conctuimos, assim, a abordagem breve da organizagao dos tri- bunais em Portugal. Vamos, agora, debrugar-nos sobre a organizacio dos juizes. Ha alguns anos esta temitica nao existia, Nao havia uma corganizagdo dos juizes paralela a organizag&o dos tribunais. Cada juiz, fio seu tribunal, estava 86 € essa solidio cra condigao da sua independéncia. ‘Ainda hoje, a independéncia dos juizes & vista pela Ii, de algum ‘modo, em termos individuais e no corporativos, como resulta do texto don. | do artigo 4 do Estatuto dos Tribunais Judiciais (lei n° 21/85, de 30 de julho), segundo o qual os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Conistinigao € a lei e ndo esto sujeitos a ordens ou instrugdes, salvo o dever de acatamento pelos tribunais superiores, Penso que é esta independéncia individual a que interessa ao ci- dadzo: que, em cada caso em que esteja interessado, o juiz juleue apenas ‘em atengdio a lei. Sustemta-se, porém, ¢ em certas condigdes politicas sociais certamente com grande justificagdo nos fatos, que a independéncia individual de cada juiz estaria melhor protegida no quadro da independéncia da magistratura como corpo. ‘A questi plese, sobretudo, em relagao a0 Poder Executivo, Em Portugal, a magistratura é uma carreira em que se entra quase que & safda da universidade ¢ em que, passo a passo, se progride até a aposentadoria. Alguma entidade tem que gerir esta carreira: o ingresso, as transferéncias, as promogées. ev. Fae. Di UEG, 2122, Lp. 17.97, jun er, 199798 25 Esta tarefa, na tradigdo francesa, estava confiada ao Executivo, através do Ministério da Justiga. Entendeu-se que esta circunstincia era. susceptivel de afetar a indcpendéncia de cada juiz, pela necessidade de nio desagradar ao Poder Exocutivo para no ser afetado na carrera Para climinar este inconveniente, obteve consagracao constituci- onal o Conselho Superior da Magistratura, érgo a quem cumpre a nomeagio, colocagéo, transferéncia ¢ promogdo dos juizes dos tribunais judiciais ¢ o exercicio da ago disciptinar. nos termos do n.1 1 do artigo 217 da Constituigao, Este conjunto de fungdes deixou, pois, de pertencer a0 Executive, como acontecia, tendo-se tomado questio de particular relevncia a composigio do Conselho Superior da Magistratura. ‘Na ultima revisdo constitucional (1997), esta composigo passou a ser a seguimte: a) Presidente - 0 presidente do Supremo Tribunal de Justiga; ) Vorais: ~ dois designados pelo presidemte da Repiiblica: = sete eleitos pela Assembléia da Repiiblica, ~ sete juizes eleitos pelos seus pares, de harmonia com 0 principio da representagio proporcional, Na redago anterior, a Constituigdo indicava que, dos vogais designados pelo presidente da Repablica, um teria que ser magistrado judicial. Existia pois, necessariamente, uma maioria de juizes (nove). A. situagdo era, pois, de autogoverno da magistratura. Na nova redagiio, no caso de nenhum dos nomeados pelo presi~ dente da Republica ou dos eleitos pela Assembléia da Repiiblica ser juiz, a maioria dos membros do conselho seri de nio-juizes, possibilidade que merecen grande contestago por parte da magistratura, Em todo 0 caso, 0 poder politico insistiu e fez.a alteragao, No momento, a questo esté na pratica em suspenso, uma vez que o presidente da Reptblica designou um juiz como um dos seus vo- ais, pelo que se mantém a maioria destes. 2 SILVA, Cocos Mansel Fersza ds. 0: iio em Po Eleigdes na magistratura [Em termos de organizagao dos juizes, ha ainda que referir que: a) Todos elegem sete vogais, seus pares, para o Conselho Superior da Magistratura, como vimos; ) Os que compsem o Supremo Tribunal de Justiga elegem, centre si, o presidente ¢ o vice-presidente desse tribunal; ©) Os que compdem cada Relagdo elegem também, entre si, 0 presidente ¢ o vice-presidente. Associagio sindical dos magistrados Consetho Superior da Magistratura e as eleigdes a que referi- ‘mos correspondem a formas de organizagdo da magistratura diretamente resultantes da lei. Mas outra forma existe, resultante da possibilidade de os magistradios se organizarem sindicalmente. Desde que essa possibilidade existe, foi criada apenas uma entidade, denominada Associagdo Sindical dos Magistrados Judiciais Portugueses. ‘Numa classe profissional cujos membros tém uma tradigdo de isolamento, a existéncia de uma s6 associagdo sindical assegura-lhe uma grande influzncia interna ¢ dominante ao nivel da opinigo piiblica, dos outros drgios do Estado e, mesmo, dos partidos. Em termos de peso interno, tem-se ‘verificade, por exemplo, uma influéncia decisiva da associago nas eleigdes para os vogais magistrados do Consclho Superior da Magistratura, ‘A organizagdo da magistratura poe, de algum modo, em crise a independéncia individual do juiz - seré um mal necessério num regime democritico? ~ ¢ sujeita o Poder Judiciario, no seu todo, a ataques exteriores ‘Uma das criticas que a este se faz, na condigéo de conjunto dos ‘magistrados, &a de que se esta a gerar um espirito corporativo, de casta. Reflexo desta critica que tem, indubitavelmente, algum fundamento foi a recente alterago da Constituigdo ~ a que jé aludimos ~ de modo que ‘amaioria dos membros do Conselho Superior da Magistratura possa no ser juiz, evitando-se assim um autogoverno que isole a classe. ‘Rev. Fes Dig UFO, v2V22 ap. 1737. jundx. 1997098 a Seja-nos permitido dizer que, se a solidio de um homem & geralmente um sinal de grandeza, o isolamento de um gmpo, pelo contrétio, sempre produzin efeitos nefastos, desde a definigao ¢ ataque a supostos inimigos extemos até a assungo de objetivos alheios aos da sociedade no seu tudo, pois é a0 servigo desta que o Poder Judiciario se encontra. Il ~ Garantias A Constitnigio, no capitulo dedicado ao Estatuto dos Juizes, prevé expressamente (artigo 216) as suas garantias eas incompatibilida- des a que esto sujeitos. Quanto as garantias, dispoe: 1. Os Juizes slo inamoviveis, nflo podendo ser transferides, suspensos, aposentados ou demitidos seno emcasosprevistosna lei 2. Juizes ndo podem ser responsablizados pelas suas decisées, salvas as excepeées consignadas na let Portanto, inamovibilidade ¢ irresponsabilidade, Vejamos methor: ado se pode falar das garantias de que goza a magistratura prescindindo da razdo do seu estabelecimento, De fato, essas garantias no sio regalias, privilégios, mas sim uma condigéo indispensavel independércia dos tribunais. E, hoje, a funco de julgar no se concebe sem independéncia, Esta independéncia do juiz pode ser vista em varias vertentes: 4) Ante os outros poderes do Fstado, b) Ante a comunidade ou sociedade em geral, ai incluida a opinito publica; ©) Ante clementos da socicdade - pessoas, organizagoes, grupos de pressio; 4) Ante si proprio — seus preconceitos, édios, paixdes, simpatias amtipatias. As garantias constitucionalmente consagradas visam, pois, dar aos juizes, individualmente considerados, condigdes para que possam decidir imparciaimente, 2 SILVA, Cavlos Manu Feira da. O poder judiciio cm Portugal. Inamovibitidade A inamovibilidade garante-lhes que niio podem ser prejudicados ‘na sua carreira pelo conteiido das suas decistes. Trata-se de garantia cuja bondade nao é questionavel, Irresponsabilidade Quanto a uma garantia de irresponsabilidade, ja esta merece grandes reservas, Desde logo, nio sera verdade sequer que os juizes no possam ser responsabilizados pelas suas decisdes. Dai, o "salvas as excepedes consignadas na lei" constante da Constitnigdo. Por outro lado, no se aleanga que essa irresponsabilidade, além de certos limites, possa ser uma candigdo de indepencléncia. Sao varias as formas possiveis de responsabilidade: a) Politica; b) Civil; ©) Disciplinar; 4) Penal Todos estaremos de acordo em qué os juizes, num sistema de ‘magistratura de carreira inspirado no do funcionalismo piiblieo, como 60 portugués, ndo podem ser responsabilizados politicamente. ‘Tambémt todos estaremos de acordo em que a responsabitidade penal tem que existir. Se, no exercicio das suas fungdes, mormente a0 decidir, 0 juiz comete um crime tipificado por lei, € dbvio ter que res- ponder por isso. Controvertidas, entretanto, sio a respousabilidade civil ¢ a isciplinar. Responsabitidade civit Comecenios pela responsabilidade civil. E verdade que a possibilidade de 0 juiz ser responsabilizado ci- -vilmente por cada sentenga que profere - ou que cada sentenga possa dar origem a um processo, mormente de enome valor econémico - pode ‘tomar-se um risco insuportivel para a profissio e, de algum modo, Rev, Pas. Di, UPG, 21/22. r,p, 179, jin, 199T9R ‘condicionar o conteiido da decisio (por exemplo, o juiz, cautelarmente, poderia passar ater tendéncia a pender para a parte mais forte, por ser ‘esta a que mais facilmente o pode condicionar pela ameaga de uma ago). No entanto, sob a capa da independéncia nao pode admitir-se 0 arbitrio, a leviandade ou a incompeténcia. Dai que, hoje, muitas vozes se levantem contra uma irresponsabilidade irrestrita no exercicio da fungao judicial e que essa irresponsabilidade nao seja um dado uniforme no Direito Comparado. ‘Nos termos do n.* | do artigo 1.083 do Cédigo de Processo Civil: Os magistrados, quer judiciais, quer do Ministério Piblico, so responsaveis pelos danos causados: = Quando tenham sido condenados por crime depeita, suborio, ‘concussio ou prevaricagao, = Nos casos de dolo; = Quando a lei Ihes imponha expressamente essa responsabilidade; ~ Quando deneguem justia. Por sua vez, o1n.° 3 do artigo 5 do estatuto dispoe: Fora dos casos em que a falta constitua rime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante ago de regresso do Estado contra 0 respectivo magistrado. Nao temos dividas de que a responsabilidade primeira deva ser do Estado, a quem cumpre quer a selegio dos juizes, quer a disponibili- zacdo de mcios para que cles possam desempenhar cabalmente as suas fangdes. O problema est4 em que no ¢ claro que exista responsabilidade ‘por atos judiciais em caso de culpa, seja leve seja grave Pensamos que, desde que haja culpa, no ha razio para que 0 cidado tenha que arcar com 0s prejuizos que The sejam causados, Trata- se de uma matéria em evolugdo, mas o primeiro passo a dar sera o de esponsabilizar de forma clara o Estado ~ de que 0 Judiciario é um dos ppoderes ~ em todos os casos de culpa. Problema subseqiiente sera o Estado poder exercer ~ ou no ~ 0 SILVA, Carle Manuel Ferra. da poder jie em Portugal direito de regresso em relag&o a0 magistrado pessoalmente implicado. ‘Aqui sera 0 caso de admitir que esta responsabilidade pessoal apenas tenha lugar nos casos de culpa grave, como alias acontece em relago a0 funcionalismo publico em geral. Responsabilidade atsciplinar Também a responsabilidade disciplinar terd que existr e existe, ‘como se compreende, num sistema em que no ha lugar para a responsabilidade politica. Porém, por essa via pode ficar indiretamente em causa a inamovibilidade dos juizes ¢ a sua independéncia. Assim, os ilictos ¢ as penas disciplinares esto rigorosamente Lipificados ¢ © exercicio da agéo disciplinar tem que pertencer a uma centidade idénea, por via da qual possam entrar, direta ou de forma teflexa, as pressdes dos outros poderes do Estado ¢ da sociedade. Como jé vimos, 0 exercicio da ago disciplinar compete ex- clusivamente ao Conselho Superior da Magistratura, J4 falamos deste

Você também pode gostar