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NEOLIBERALISMO E RESISTÊNCIA

CONSTITUCIONAL: O IMPACTO DA CRISE


EUROPEIA NA GARANTIA DOS DIREITOS
SOCIAIS EM PORTUGAL1
NEOLIBERALISM AND CONSTITUTIONAL RESISTANCE: THE IMPACT OF THE
EUROPEAN CRISIS IN THE GUARANTEE OF SOCIAL RIGHTS IN PORTUGAL

José Manuel Pureza2


António Casimiro Ferreira3

RESUMO ABSTRACT

In the structural adjustment of economies


O ajustamento estrutural das econo- through austerity which is the mainstream
mias europeias através da austeridade policy now in place in Europe, the repre-
tem na representação da crise como um sentation of the crisis as a permanent
estado de exceção permanente um seu state of exception occupies a crucial place.
pilar fundamental. É neste contexto que Within this context, the judicialization of
a judicialização da política passa por uma politics enters a new phase whose core is
nova fase, cujo centro é a jurisprudência the constitutional case law on the conflict
constitucional sobre o confronto entre between the argument of the rule of law
o argumentário do Estado de Direito e o and the argument of the state of exception.
argumentário do estado de exceção. Neste In this article we focus on the contents of
artigo analisamos a concretização desta this constitutional judicialization of poli-
judicialização constitucional da política tics in Portugal through the analysis of the
em Portugal patente nas decisões sobre as decisions of the Constitutional Court on
leis do orçamento mais recentes. the most recent budgetary laws.

Palavras-chave: Estado de exceção. Keywords: State of exception. Austerity.


Austeridade. Ativismo judicial. Judicial activism. Judicialization of
Judicialização da política. politics.

1
Este artigo constitui uma versão adaptada do capítulo que os autores elaboraram para o relatório do Observatório das Crises e Alternativas,
do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra: “Estado de direito ou estado de exceção. A justiça constitucional face ao
questionamento do estado social”, in Reis, J. (org.), A economia política do retrocesso. Crise, causas e objetivos. Coimbra: Almedina, 2014,
283-308.
2
Investigador do Centro de Estudos Sociais, do qual é atualmente Presidente do Conselho Científico. Professor de Relações Internacionais na
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde coordena o Mestrado em Relações Internacionais e o Doutoramento em Política
Internacional e Resolução de Conflitos. É igualmente coordenador científico do Programa de Doutoramento Human Rights in Contemporary
Societies, iniciativa conjunta do Centro de Estudos Sociais e do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. CV:
<http://www.ces.uc.pt/investigadores/cv/jose_manuel_pureza.php>.
3
Licenciado em Sociologia pelo ISCTE e doutor em Sociologia do Estado e da Administração pela Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra, onde exerce funções de Professor Auxiliar. Investigador do Centro de Estudos Sociais e co-coordenador científico do Programa
de Doutoramento "Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI", das Faculdades de Economia e de Direito da Universidade de Coimbra (FEUC e
FDUC) e do Centro de Estudos Sociais (CES). CV: <http://www.ces.uc.pt/investigadores/cv/antonio_casimiro_ferreira.php>.
JOSÉ MANUEL PUREZA
ANTÓNIO CASIMIRO FERREIRA

1 INTRODUÇÃO densa da crise e das alternativas que a ela


se oferecem. Num contexto de choque
Enquanto cenário de tensão entre entre dois constitucionalismos, toda a
uma ofensiva ideológica neoliberal e uma judicialização constitucional da austeri-
resistência plural orientada para a preser- dade é interpretável como expressão de
vação do contrato social, a crise europeia ativismo judicial, seja o seu sentido o da
contemporânea tem uma dimensão jurí- acomodação do argumentário do consti-
dico-institucional de primeira impor- tucionalismo da excecionalidade ou o da
tância. Ela traduz-se na erosão a que é sua rejeição em homenagem ao primado
sujeita a institucionalidade do Estado de da proteção da confiança, da igualdade ou
Direito Democrático e Social às mãos de da proporcionalidade.
um programa que, reclamando a legitima- Neste texto identificamos os contor-
ção decorrente de um estado de exceção, nos daquele choque e analisamos a expres-
encurta direitos e abate serviços públicos. são que ele tem vindo a adquirir naqueles
Em Portugal, esta crise é também que se configuram como os momentos
palco da tensão entre dois constitucio- de maior densificação do confronto entre
nalismos, um formal e outro material. Ao os dois constitucionalismos: as aprecia-
constitucionalismo do Estado de Direito, ções da constitucionalidade das leis do
ancorado no texto da Constituição da Orçamento do Estado.
República e cujo núcleo é a afirmação da
multidimensionalidade do regime demo-
crático (democracia política, democracia
económica, democracia social e demo- 2 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
cracia cultural), vem-se contrapondo um NA ERA DA AUSTERIDADE
constitucionalismo da excecionalidade,
um constitucionalismo material que A judicialização da política e a poli-
exprime a supremacia política de entida- tização da justiça constituem proble-
des não eleitas e que – a coberto de um máticas nucleares da atual Sociologia
alegado estado de necessidade induzido do Direito (SANTOS, 2009, pp. 454-505;
pelo suposto risco de colapso do financia- COMMAILLE, DUMOULIN e ROBERT,
mento das responsabilidades do Estado 2010, pp. 9-26; BERNHEIM e COMMAILLE,
– impõe um redimensionamento drástico 2012, pp. 283-298). Estar-se-á, presente-
do perímetro dos direitos e dos serviços mente, a viver uma nova etapa da judi-
públicos que lhes dão suporte e substi- cialização da política, em que o ativismo
tui a segurança jurídica pelo primado da judicial surge ligado à questão social atra-
imprevisibilidade. vés do questionamento da validade dos
Sendo política e ideológica, esta princípios do Estado Social pelas opções
tensão adquire uma materialidade concreta, do bloco legislativo-executivo. A atividade
pelo seu alcance constitucional especí- dos tribunais constitucionais perfila-se,
fico, no momento em que se assume como por isso, como um indicador sociológico
objeto de tratamento judicial. A jurispru- privilegiado das tensões políticas e sociais
dência constitucional recente em Portugal associadas à implementação do modelo
é, na verdade, uma síntese particularmente da austeridade a coberto de uma retórica

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de excecionalidade. A judicialização da justiça sociais e, por outro, a eficácia das


política de austeridade é, assim, sinónimo políticas de consolidação orçamental.
de judicialização da questão social que A incapacidade evidenciada pela esfera
emerge das chamadas ‘reformas estrutu- do político em encontrar os equilíbrios
rais’ que objetivamente desmantelam o necessários à prossecução desta orienta-
Estado Social. ção visibiliza o papel da justiça, tornan-
Em face do argumento da norma- do-a um “espaço de exigibilidade da
tividade de exceção associada à austeri- democracia” (GARAPON, 1998, p. 46).
dade, a fronteira entre o constitucional Aquilo a que se vem chamando crise
e o inconstitucional torna-se um campo trouxe consigo uma forma de produção do
de forte disputa política, com particular poder e de aplicação do Direito que tem
ênfase para o modo e a intensidade como por suporte uma combinação simulta-
as decisões dos tribunais valorizam a singu- neamente cínica e estratégica entre atores
laridade do atual momento. Do mesmo governamentais e não-governamentais, e
modo, alterações das circunstâncias que como programa a institucionalização do
determinem a invocação da exceciona- modelo de austeridade. Estamos perante
lidade para a legitimação da austeridade uma reconfiguração do exercício do poder
colocam sob pressão as interpretações da político, assente numa articulação inédita
legislação feitas pelos tribunais. entre o poder dos eleitos e o poder dos
Do ponto de vista político, a sua não-eleitos. Nos países sob formas mais
capacidade de ponderação sobre a ativi- ou menos intensas de intervenção disci-
dade dos poderes executivo e legislativo, o plinadora internacional, essa dualidade do
seu papel de racionalização da legislação, poder traduz-se numa hábil negociação
torna-os atores de particular destaque na entre o poder do governo eleito e o poder
atual fase de transformação das socie- dos credores internacionais não eleitos.
dades europeias. Nessas suas funções, a Esta tensão entre a dimensão norma-
atividade dos tribunais revela a existência tiva de uma teoria pura da separação de
de uma jurisprudência da austeridade que poderes e a dimensão fática das dinâmi-
balança entre a afirmação de um direito cas sociopolíticas concretas está longe
de exceção e a defesa da intocabilidade do de ser nova. Mas a análise dos poderes
núcleo essencial do direito normal. não-eleitos – como os mercados, as orga-
A judicialização das políticas de nizações financeiras internacionais, os
austeridade corresponde ao escrutínio bancos centrais, as agências de regulação
“da desigual distribuição da austeridade” ou as agências de rating – constitui indis-
(FERREIRA, 2012, p. 46), modelo de regu- cutivelmente um desenvolvimento novo
lação político-económico orientado pela desta. O que há de inédito nestas análises
imposição de sacrifícios a todos os cida- é que elas já não se satisfazem em captar
dãos. Ora, é esta dimensão coletiva do as manifestações de “influência política e
sacrifício e do esforço de cada um dos económica” (DAHL, 1981, pp. 23-46) ou
cidadãos que suscita a ponderação, por de capacidade de regulação de setores e
um lado, entre o bem comum e a busca áreas económicas e sociais diversas, antes
de soluções orientadas pela equidade e passaram a encarar esses atores como

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elementos constitutivos da autoridade ambiguidade potencia a margem para um


política, do poder político, dos processos processo de reformas radicais do Estado e
de legitimação e de legalidade. da sociedade sob o signo da austeridade
É também neste quadro que devem sem que se enunciem os seus limites ou se
ser perspetivados os memorandos de clarifique sequer se há limites.
entendimento assinados com a Troika
pelos governos da Irlanda, Grécia e
Portugal. Além do seu lado jurídico formal
– eles determinam a implementação de 3 A INTERNACIONALIZAÇÃO DA
processos de reforma da legislação, de JUDICIALIZAÇÃO CONSTITUCIONAL
políticas públicas, do aparelho do Estado e DA AUSTERIDADE
da governação da economia, sem os quais
não são concedidos os empréstimos solici- Há, na Europa, uma tradição conso-
tados –, existe uma outra dimensão ligada lidada de enquadramento das situações
a estas intervenções políticas nos Estados de exceção à normalidade do Estado
nacionais pelos não-eleitos que resulta da de Direito por mecanismos vários de
combinação e coincidência entre as agen- controlo democrático e jurisdicional
das políticas daqueles e as agendas políti- formal (SAINT-HILAIRE, 2011, p. 78) que a
cas reformadoras dos governos nacionais própria Convenção Europeia de Direitos
desses Estados, de pendor marcadamente Humanos incorporou, a par do princípio
neoliberal. O exemplo português eviden- da margem de interpretação dos Estados
cia a dificuldade de, nestes novos contex- nacionais relativamente aos direitos essen-
tos, determinar a fonte autêntica das ciais, consagrados na convenção. Esta tradi-
reformas político-jurídicas. ção de imperatividade de um nível elevado
Esta reconfiguração da legitimidade de proteção e de inderrogabilidade de um
e da legalidade por lógicas combinató- núcleo essencial de direitos está presente-
rias entre eleitos e não-eleitos inscreve mente a ser sujeita a uma erosão, com força
as reformas em apreço num quadro de inédita, tendente à sua reconfiguração
incerteza e indeterminação. Estando radical. O objetivo desta reconfiguração é
próximo das origens da incerteza e sendo o de secundarizar a força vinculante dos
a sua própria conduta fonte de incerteza direitos consagrados e subalternizá-los, do
para a situação de outros, o exercício do ponto de vista jurídico e do ponto de vista
poder governativo encontra-se livre para das políticas públicas que os concretizam,
impor um regime de exceção face à sobe- à prevalência de uma orientação geral de
rania e ao direito. Por outro lado, a inde- austeridade, com particular expressão
terminação quanto à verdadeira fonte das nos salários e pensões e numa contra-
reformas – os memorandos da Troika ou ção da despesa pública, especialmente
os governos nacionais – gera uma unidade sobre as prestações sociais e nos serviços
de medida na intervenção governamental públicos universais.
dificilmente sujeita ao contraditório. Onde O fundo drasticamente antigarantís-
começam os requisitos da Troika e acaba tico desta ofensiva reconfiguradora tem
o programa neoliberal dos governos? Esta posto em causa a cultura europeia que

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encontrou suporte quer na arquitetura de subsídios de férias e de Natal previstos na


proteção dos direitos humanos fundamen- Lei do Orçamento do Estado para 2012.
tais pelo Conselho da Europa – nos termos A sentença considera que os cortes não
acima assinalados – quer no modelo de foram “desproporcionados”, sendo justi-
contrato social amplo vulgarmente desig- ficados “em função dos problemas finan-
nado por modelo social europeu fundado ceiros excecionais que Portugal enfrenta
na transação entre acumulação de capital neste momento, e dada a natureza limi-
e salário indireto. tada e temporária dos cortes nas pensões”.
As observações anteriores colocam De notar que esta decisão do Tribunal
no plano internacional o debate em torno Europeu dos Direitos do Homem foi profe-
das funções e papéis levados a cabo pelos rida estando o mesmo ciente de que a
tribunais constitucionais em contextos de decisão do Tribunal Constitucional portu-
austeridade. Na verdade, o ativismo judi- guês havia sido no sentido da declaração
cial ou a judicialização da austeridade não de inconstitucionalidade das medidas.4
são exclusivos da situação portuguesa.
Também outros seis tribunais constitu-
cionais europeus – na Grécia, Roménia,
Letónia, Lituânia, Espanha e Eslovénia – 4 O CASO PORTUGUÊS: O TRIBUNAL
foram recentemente chamados a aferir a CONSTITUCIONAL ENTRE O
constitucionalidade de cortes anunciados MODELO SOCIAL EUROPEU E O
nas pensões ou nos salários de funcio-
nários públicos, registando-se somente
EMAGRECIMENTO DA CIDADANIA
nos dois últimos países concordância dos
tribunais constitucionais com as medi- Por tudo o que se disse, não surpreende
das de austeridade tomadas pelos respe- que, também em Portugal, a justiça cons-
tivos governos. O caso da Letónia, país titucional ecoe o momento tão singu-
que também foi intervencionado recente- lar que a sociedade portuguesa vive, na
mente pelo FMI, é particularmente signi- medida em que o debate democrático,
ficativo dado que a reprovação do Tribunal condicionado pela existência de uma
Constitucional aos cortes nas pensões maioria parlamentar crente nas virtudes
não conduziu à exigência de elaboração do modelo da austeridade, se revela inca-
de novas medidas por parte do Governo e paz de circunscrever na esfera política os
propiciou mesmo uma renegociação dos desacordos quanto às políticas e linhas de
valores do défice. ação a serem perseguidas.
Esta internacionalização da judi- A este propósito, surge no debate
cialização da austeridade atingiu já uma público a argumentação de que uma
dimensão não apenas comparatística, jurisprudência constitucional limitadora
mas institucionalmente centralizada. Esse da autonomia de escolha própria de um
caminho foi aberto pela recente decisão do executivo em regime democrático de sepa-
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ração de poderes será um caso de escola
no processo acionado por dois pensio- de governo dos juízes. Ora, a questão cuja
nistas portugueses acerca dos cortes dos análise é suscitada por esta circunstância

4
Conferir Acórdão n.º 353/2012, de 5 de julho.

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singular não é a do relacionamento de e na sociedade, assumindo como axioma


maiorias parlamentares com o Tribunal que o aprofundamento das desigualdades
Constitucional em contexto de normali- sociais e dos fenómenos de exclusão social
dade política, mas sim a do risco de subver- são consequência natural das necessidades
são do modelo constitucional ao abrigo de dos mercados financeiros e de uma econo-
uma retórica de excecionalidade e de uma mia orientada para a exportação. Daí a
atuação legiferante das maiorias parla- importância das intervenções do Tribunal
mentares, fundada no princípio de que a Constitucional em matérias remunerató-
“sociedade se muda por decreto”, desquali- rias e de prestações sociais.
ficando desta forma o estatuto jurídico-po- A questão que daqui decorre, em
lítico da Constituição e a institucionalidade termos sociológicos, é a da alternativa entre
democrática do Tribunal Constitucional. a manutenção dos processos de produção
No núcleo da disputa política suscitada e reprodução social onde se abriu espaço
pelo ímpeto das políticas de transformação ao desenvolvimento de uma classe média
social, pautadas pela lógica da austeridade, e a deslocação de grandes contingentes
está a questão dos limites de uma reconfi- sociais para espaços de sociabilidade e de
guração da institucionalidade própria de vida quotidiana desqualificados e existen-
um Estado de Direito. cialmente empobrecidos.5
A experiência portuguesa põe em O Tribunal Constitucional português
evidência o duplo caráter do modelo de é centripetamente puxado para decidir
ajustamento estrutural pela austeridade. acerca do trade-off entre, de um lado, as
Por um lado, potencia políticas de reins- aspirações de mobilidade social ascen-
titucionalização ou de criação de novas dente associadas ao contrato social típico
institucionalidades. A título ilustrativo do modelo social europeu e, do outro, os
registem-se, entre outras, as intenções de processos de emagrecimento da cidada-
consagração constitucional ou para-cons- nia e de aumento da pobreza, indisso-
titucional da imposição de um limite ao ciáveis da orientação recessiva inerente
endividamento público (a chamada ‘regra à implementação do modelo da auste-
de ouro’), a revisão da legislação laboral ridade. Posição particularmente crítica
com a criação do contrato único de trabalho quando as fontes de política legislativa
ou as reformulações institucionais sugeri- internas com legitimação externa da
das quer por organizações internacionais Troika apontam, claramente, para um
quer pelo próprio Governo português. Por modelo económico e social contrário ao
outro lado, o modelo de ajustamento pela que está inscrito na Constituição.
austeridade visa a emergência de uma nova Ingrediente crucial deste confronto
ordem socioeconómica flexível e moldável, e da sua judicialização constitucional é a
avessa a quaisquer institucionalidades que separação instrumental e a contraposição
limitem o livre jogo de forças na economia hábil, feita pelos adeptos do ajustamento

5
Entre outros, confira-se, por exemplo, o cenário traçado pela organização Oxfam International, que veio alertar para o perigo de se
prosseguirem as medidas de austeridade. No relatório A cautionary tale: The true cost of austerity and inequality in Europe (Um conto
moral: o verdadeiro custo da austeridade e da desigualdade na Europa), a organização de luta contra a pobreza defende que o caminho
da austeridade já foi usado no passado noutros países e “falhou”, pelo que “não pode acontecer novamente”. E assinala que, até 2025 na
Europa, poderão cair em situações de pobreza entre 15 a 25 milhões de pessoas. http://www.ionline.pt/artigos/dinheiro/austeridade-
-pode-levar-mais-25-milhoes-europeus-pobreza-2025).

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guiado pela austeridade, entre Estado de Direito) é o outro nome do Estado Social
Direito e Estado Social. Os defensores da de Direito’ (MIRANDA, 2011, p. 3).6
austeridade atuam politicamente como Na mesma linha, vai a ardilosa
se o Estado de Direito e o Estado Social distinção entre as noções de reforma e de
correspondessem a esferas estatais distin- corte. Assim, de acordo com o guião para a
tas, criando um clima generalizado de reforma do Estado de novembro de 2013,
incerteza e dúvida acerca dos regimes de
pensões, dos impostos, do pagamento de reformar é diferente de cortar porque
mudar de modelo é diferente de
subsídios de férias, dos níveis salariais, etc. cumprir metas (…) O que distingue os
É uma estratégia que assenta em dois exercícios é evidente. Os cortes
dois tipos de argumentos. Em primeiro na despesa do Estado são instrumen-
tos necessários à reforma do Estado,
lugar, os argumentos que erguem o Estado mas não são a sua finalidade. ‘Cortar’ é
Social como ameaça potencial para o reduzir; reformar é melhorar. ‘Cortar’
Estado de Direito (exemplo ilustrativo foi é cumprir metas; reformar é mudar de
modelo. ‘Cortar’ é uma consequência
a intervenção do Ministro da Defesa que dos erros passados, reformar pode e
sustentou existir em Portugal a ‘tentação deve ser a condição para acertar no
de um Estado totalitário’, provocado por futuro. ‘Cortar’ obedece a uma restri-
ção orçamental. Reformar cria condi-
um ‘Estado Social absorvente’ que cria ções para, estruturalmente, o Estado
‘promiscuidades’, ‘clientelas’ e ‘depen- ser menos pesado e a sociedade ser
dências’6). Por outro lado, encontra-se a mais forte.8
argumentação que enfatiza os custos do
Estado Social e a inerente necessidade de Ora, esta construção de uma dife-
financiamento, ocultando os custos dos rença material entre cortes e reformas
direitos civis e políticos e criando a ilusão omite convenientemente a discussão
de que se trata de direitos sem custos mais relevante na sociedade portuguesa,
(FREDMAN, 2010, p. 301), deixando, de na qual é chamado a intervir o Tribunal
lado, a ponderação dos custos de proteção Constitucional. É que se o exercício de refor-
e manutenção da propriedade privada, de mar se projeta no futuro de outras legisla-
regulação da ordem pública, entre outros. turas, a aplicação dos cortes tem efeitos
Estas duas linhas de argumentação imediatos nas empresas, famílias e indi-
potenciam a existência, no espaço público, víduos. Além disso, a referida dicotomia
de um acumular de apreciações negativas tende a diluir a lógica utilizada na seleção
quanto à necessidade e funções desempe- dos cortes e na desigual distribuição das
nhadas pelo Estado Social. É também por restrições dos sacrifícios entre indivíduos
esta razão – ainda que simetricamente – e grupos sociais, pondo potencialmente
que a atuação do Tribunal Constitucional em causa o princípio do Estado de Direito.
se afirma como um cimento sociológico e Este tema foi analisado por António
político, no entendimento de que o ‘Estado Hespanha (HESPANHA, 2012) quando
Democrático de Direito (ou Estado de identificou a existência de dois tipos de

6
Notícia disponível em: <http://www.publico.pt/politica/noticia/ministro-da-defesa-defende-revisao-constitucional-1611541>
7
Disponível em: <http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/1116-2433.pdf>
8
Documento disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/vice-primeiro-ministro/documentos-oficiais/20131030-
vpm-reforma-estado.aspx>.

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intervenção do Estado relativamente às Em três anos sucessivos (2011, 2012


situações e direitos adquiridos e por ele e 2013), o Tribunal Constitucional foi
garantidos: o primeiro, correspondendo chamado a pronunciar-se sobre medi-
à manutenção da garantia de certos direi- das legislativas adotadas pelo Governo
tos; e o segundo, à precarização geral de em sede de Orçamento do Estado e que,
outros. No quadro do seu argumento, invocando a excecionalidade da situação
em causa está o uso seletivo do princí- económico-financeira do país e a prima-
pio jurídico da confiança, o qual é apli- zia a conferir ao cumprimento de obri-
cado desigualmente consoante se esteja gações internacionais assumidas pelo
perante direitos de propriedade e direitos Estado Português para a regularização
provindo de contratos entre particulares, desta mesma situação, incidiram – de
ou direitos relativos a prestações sociais modo fortemente limitativo – nos direitos
do Estado. Nas suas palavras, de retribuição do trabalho dos trabalha-
dores com vínculo laboral ao Estado. Ora,
entre as prestações do Estado, tem-se
frequentemente tratado com defe- [u]ma vez fixado, por critérios de
rência as que são devidas nos termos direito ordinário, o conteúdo do direito
de contratos e que, por isso, estariam ao salário (sem precisa determinação
blindadas contra alterações motiva- constitucional), uma mudança legis-
das pelo interesse público, pela corre- lativa que afete negativamente esse
ção de vícios estruturais do contrato conteúdo tem que encontrar justifi-
(como a desproporção das prestações: cação bastante, à luz dos princípios
contratos leoninos) ou pelos apertos constitucionais pertinentes, sob pena
da crise. Tem sido isso que tem difi- de inconstitucionalidade (Acórdão n.º
cultado a renegociação ou rescisão
de contratos de parceria público-pri- 187/2013, de 5 de abril).
vada geralmente tidos como lesivos
(ou altamente lesivos) do interesse
público […] Em contrapartida, outras Na fundamentação, quer das peti-
prestações do Estado – nomeada- ções iniciais dos três processos quer das
mente, as que decorrem das políticas
públicas do Estado Social, ou mesmo
respetivas decisões do Tribunal, conden-
os salários do funcionalismo – ficam sam-se os argumentários de um lado e do
fora desta área de garantia, ficando outro. E isso confere a estes três acórdãos
sujeitas à precarização” (ESPANHA,
o valor de sínteses da dimensão jurídico-
2012, p. 18-19).
-política da crise que se vive.
Ora, contrariamente a retóricas de
O argumento pode ser estendido ao propaganda veiculadas para o debate
modo como se interpretam os regimes de público, um olhar atento sobre a fiscali-
pensões, subsídio de desemprego e outras zação da constitucionalidade das leis do
prestações sociais. Tal significa que a Orçamento do Estado desde 2011 – ponto
capacidade de agendamento do Governo nodal do confronto entre esses dois cons-
no que diz respeito aos cortes e seus alvos titucionalismos – permite afirmar que é
se configura numa forma de politização falsa a contraposição entre ativismo cons-
da justiça social, por não incluir em maté- titucional e razoabilidade económica,
ria de redução de custos os direitos que muito presente no discurso dos adep-
não sejam de assalariados e pensionistas. tos do ajustamento pela austeridade. Na

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verdade, a judicialização constitucional minarem pilares básicos da democracia


das políticas de austeridade pode ser lida constitucional portuguesa.9
como expressão de ativismo, pelo que, Recordem-se os factos. O Acórdão
do que se trata é, antes, da disputa entre n.º 396/2011, de 21 de setembro, incidiu
um ativismo da excecionalidade e um sobre três artigos da Lei do Orçamento do
ativismo do Estado de Direito. No ativismo Estado para 2011. O Governo pretendia
da excecionalidade, as decisões dos juízes reduzir as remunerações totais ilíquidas
abrem-se à preponderância de valores mensais de valor superior a 1 500,00 EUR
extra-constitucionais que norteiam a dos trabalhadores do Estado, seguindo
política do ajustamento pela austeridade uma lógica progressiva:
e conferem um valor supraconstitucional
de facto aos compromissos internacionais a) 3,5% sobre o valor total das remu-
nerações superiores a 1 500,00 EUR
que os veiculam. Esta forma de ativismo e inferiores a 2 000,00 EUR; b) 3,5%
teve uma expressão clara no Acórdão n.º sobre o valor de 2 000,00 EUR acres-
396/2011, de 21 de setembro, sobre a Lei cido de 16% sobre o valor da remu-
neração total que exceda os 2 000,00
do Orçamento do Estado para 2011, e EUR, perfazendo uma taxa global que
consistiu em declarar judicialmente váli- varia entre 3,5% e 10%, no caso das
das as justificações de carácter contextual remunerações iguais ou superiores a
2 000,00 EUR até 4 165,00 EUR; c) 10%
relativas à crise e à situação financeira do sobre o valor total das remunerações
país como fundamentos legitimadores superiores a 4 165,00 EUR.
para a declaração de constitucionalidade
de medidas de exceção que implicaram Os requerentes fundamentaram o
uma interpretação flexível dos princípios seu pedido ao Tribunal em quatro argu-
da igualdade, da confiança, da equidade, mentos: violação do princípio do Estado de
da proporcionalidade e da segurança Direito (designadamente do seu subprin-
jurídica atendendo à fixação de limites cípio da proteção da confiança), violação
temporais e transitoriedade dos efeitos do princípio da igualdade, violação do
dessas medidas. direito fundamental à não-redução do
Já o ativismo do Estado de Direito salário e violação do direito fundamental
– definido como a defesa das garantias de participar na elaboração da legislação
consignadas no ordenamento constitu- laboral por parte das entidades repre-
cional e o seu modelo multidimensio- sentativas dos trabalhadores. O Tribunal
nal de democracia (política, económica, entendeu não declarar a inconstitucio-
social e cultural) – iniciou-se com a decla- nalidade, com força obrigatória geral, dos
ração de inconstitucionalidade de medi- artigos sob exame.
das do Orçamento do Estado para 2012 O Acórdão n.º 353/2012, de 5 de julho,
pelo Acórdão n.º 353/2012, de 5 de julho, veio dar resposta à situação criada pela
e prolongou-se no Acórdão n.º 187/2013, Lei do Orçamento do Estado para 2012, ao
de 5 de abril. A avaliação constitucional consagrar a ‘suspensão do pagamento’ dos
dessas medidas mereceu reprovação por subsídios de férias e de Natal, sobrepos-
ultrapassarem os limites do aceitável em tas à redução remuneratória consagrada
matéria social, e por, ao que se depreende, no Orçamento do Estado para 2011. O

9
De forma consequente, o Tribunal Constitucional também se pronunciou pela inconstitucionalidade de algumas disposições do
Código do Trabalho relativas à segurança no emprego (Acórdão n.º 602/2013).

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universo de abrangidos pelas medidas do (PCP), do Partido Ecologista “Os Verdes”


Orçamento para 2012 ampliou-se relativa- (PEV) e do Bloco de Esquerda (BE) incluía,
mente ao caso anterior, passando a incluir além das normas referidas, a que estabe-
reformados e pensionistas e não se confi- lecia cortes no pagamento de trabalho
nando aos servidores públicos. Também extraordinário, aquela outra que previa
neste caso os requerentes invocaram, alterações ao regime do Imposto sobre o
como suporte da sua petição, a violação Rendimento das Pessoas Singulares (IRS)
do subprincípio da proteção da confiança, (introdução de uma sobretaxa de 3,5%,
do princípio da igualdade, do princípio da redução do número de escalões do IRS
proporcionalidade e ainda, especifica- e a eliminação ou redução das deduções
mente para uma das normas impugnadas, de despesas com saúde, educação e habi-
do princípio do Estado de direito demo- tação), a que estatuía novas tributações
crático e do direito à Segurança Social. sobre subsídios de doença e de desem-
Fruto da ponderação que efetuou, prego e, ainda, a que criava uma sobretaxa
o Tribunal decidiu declarar a inconstitu- de 3,5% sobre o rendimento coletável dos
cionalidade, com força obrigatória geral, contribuintes cujo rendimento excedia o
dos dois artigos invocados pelos reque- valor anual da retribuição mínima mensal.
rentes, mas suspendeu os efeitos desta Os princípios da igualdade, da propor-
decisão sobre os pagamentos relativos ao cionalidade e da proteção da confiança
ano de 2012. foram os principais bens constitucionais
Já o Acórdão n.º 187/2013, de 5 de invocados pelos vários requerentes.
abril, resultou de quatro pedidos diferen- O Tribunal declarou a inconsti-
tes, relativos à Lei do Orçamento do Estado tucionalidade, com força obrigatória
para 2013. O primeiro, do Presidente da geral, das normas relativas à suspensão
República, arguia violações do princípio do pagamento do subsídio de férias ou
da igualdade proporcional, do princípio equivalente aos trabalhadores da função
da unidade do imposto sobre o rendi- pública, aos aposentados e reformados e
mento pessoal, do princípio da proteção aos professores e investigadores contrata-
da confiança e do direito a uma sobre- dos e ainda à tributação dos subsídios de
vivência com um mínimo de qualidade doença e de desemprego.
resultantes das estatuições de suspensão O nó problemático em que se jogou
do subsídio de férias aos trabalhadores a tensão entre o argumentário da exce-
ativos do sector público e de tributação cionalidade e o argumentário da defesa
de reformados e pensionistas (incluindo a do Estado de Direito foi, pois, comum
previsão de uma ‘contribuição extraordi- aos três momentos em que o Tribunal
nária de solidariedade’). O segundo pedido Constitucional teve de se pronunciar. Na
foi apresentado por um grupo de deputa- síntese do próprio Tribunal,
dos do Partido Socialista, bem como pelo
Provedor de Justiça, e ambos tinham o [u]ma vez fixado, por critérios de
direito ordinário, o conteúdo do direito
mesmo recorte da matéria fiscalizada. ao salário (sem precisa determinação
Já o processo introduzido por depu- constitucional), uma mudança legis-
tados do Partido Comunista Português lativa que afete negativamente esse

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conteúdo tem que encontrar justifi-


cação bastante, à luz dos princípios Direito interno, ainda que com natureza
constitucionais pertinentes, sob pena infraconstitucional.
de inconstitucionalidade” (Acórdão Mas, naturalmente, muito mais que
n.º 187/2013).
a dimensão jurídico-formal destas obri-
gações, o que sobreleva no argumentário
O argumentário do constitucio- usado pelo Governo nas leis submetidas
nalismo da excecionalidade apresenta a fiscalização da constitucionalidade é
duas expressões fundamentais: primeiro, a filiação dessas obrigações internacio-
a defesa da força jurídico-política do nais no conjunto de deveres inerentes à
primado dos compromissos internacio- condição de Estado-membro da União
nais; segundo, a suposta inevitabilidade de Económica e Monetária. Essa espécie de
medidas fora do perímetro da disciplina legalidade superior – em última análise,
constitucional, legitimadas pelo estado de e ainda que de modo implícito, uma
necessidade financeira do país. Ambas as legalidade supraconstitucional – é assim
linhas de argumentação foram trazidas, expressivamente defendida no Relatório
nos três casos em apreço, pelos diplomas da Lei do Orçamento para 2013:
consagradores das normas impugnadas.
O primado dos compromissos inter- a adoção destas medidas deve ser
enquadrada no âmbito do princípio
nacionais: como extensamente se escla- constitucional da realização da inte-
rece no Acórdão n.º 353/2012, o Programa gração europeia, no quadro do qual se
de Assistência Económica e Financeira é inserem as obrigações em matéria de
finanças públicas – e em particular de
composto por um “conjunto de instrumen- rigor e disciplina orçamentais – que
tos jurídicos, os quais foram aprovados, impendem sobre Portugal enquanto
por um lado, pelo Governo Português e, membro da área do Euro. A realização
destes valores e princípios constitu-
por outro lado, pelo Conselho Executivo do cionalmente consagrados justificam
Fundo Monetário Internacional, bem como amplamente a introdução destas medi-
pelo Governo Português e pela Comissão das, as quais se norteiam por ponde-
rosas razões de interesse público e de
Europeia (em nome da UE) e pelo BCE”. preponderância do bem comum, em
Esses Instrumentos “são vinculati- face do contexto económico-finan-
vos para o Estado Português, na medida ceiro e social do país.
em que se fundamentam em instrumen-
tos jurídicos – os Tratados institutivos Saindo do plano técnico-jurídico, os
das entidades internacionais que neles diplomas sob fiscalização tornam claro
participaram, e de que Portugal é parte – de que se trata da condicionalidade asso-
de Direito Internacional e de Direito da ciada à ‘concretização dos empréstimos
União Europeia”. faseados acordados com a União Europeia
A natureza vinculativa das obriga- e com o Fundo Monetário Internacional,
ções decorrentes dos memorandos assi- garantindo assim o imprescindível finan-
nados com as instâncias internacionais é ciamento do Estado português’ (Acórdão
apontada, em primeiro lugar, como um n.º 353/2012) e, como tal, a ‘necessidade
dado jurídico-formal: a superioridade do imperiosa de continuar o processo de
Direito Internacional relativamente ao acumulação de credibilidade e confiança

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junto dos credores, bem como de honrar a salvaguarda de um interesse público


os compromissos internacionais assumi- que deve ser tido por prevalecente’. Esta
dos pelo Estado Português’ (Relatório da consideração de medidas como a redu-
Lei do Orçamento do Estado para 2013). ção remuneratória, justificada pelo inte-
A “inevitabilidade” de medidas exce- resse público, levou mesmo o Tribunal,
cionais: Na sua própria construção argu- no seu acórdão de 2012, a considerar que
mentativa, o Tribunal Constitucional ‘sendo essencial para o Estado Português,
acolhe a ideia de que, diante da dimensão no atual contexto de grave emergência,
do problema de desequilíbrio das contas continuar a ter acesso a este financia-
públicas em Portugal, se imporão medi- mento externo, o cumprimento de tal
das de caráter excecional que podem legi- valor orçamental revela-se, por isso, um
timamente forçar uma relativização das objetivo de excecional interesse público’,
expetativas criadas em torno de um inte- tendo esta consideração – e o receio
gral cumprimento de tratamentos (remu- de que ‘sem mais, (uma tal declaração)
neratórios, desde logo) consagrados na lei poderia[m] determinar, inevitavelmente,
ordinária. No dizer do Acórdão n.º 396/2011, [um] incumprimento, pondo em perigo a
manutenção do financiamento acordado
à situação de desequilíbrio orçamental e a consequente solvabilidade do Estado’
e à apreciação que ela suscitou nas
instâncias e nos mercados financeiros
– justificado que o Tribunal se inibisse de
internacionais são imputados gene- dar efeitos práticos a uma declaração de
ralizadamente riscos sérios de abalo inconstitucionalidade com força obriga-
dos alicerces (senão, mesmo, colapso)
do sistema económico-financeiro tória geral e tenha determinado a respe-
nacional, o que teria também, a tiva suspensão.10
concretizar-se, consequências ainda Esta qualificação das medidas de
mais gravosas para o nível de vida dos
cidadãos. As reduções remuneratórias austeridade como inevitáveis para a satis-
integram-se num conjunto de medi- fação de expressões do interesse público
das que o poder político, atuando em de primeira importância vem associada,
entendimento com organismos inter-
nacionais de que Portugal faz parte, no exercício de ponderação do Tribunal,
resolveu tomar, para reequilíbrio das à configuração de uma situação de verda-
contas públicas, tido por absoluta-
mente necessário à prevenção e sana-
deiro estado de necessidade, em que o
ção de consequências desastrosas, na legislador se encontra privado ‘de alterna-
esfera económica e social. São medi- tivas que tivessem, perante a necessidade
das de política financeira basicamente
conjuntural, de combate a uma situa- urgente de redução do défice orçamental
ção de emergência, por que optou o a curto prazo, efeitos económico-finan-
órgão legislativo devidamente legiti- ceiros similares ou aproximados dos da
mado pelo princípio democrático de
representação popular.
suspensão de pagamento dos subsídios
de férias e de Natal e prestações equiva-
lentes’(Declaração de Voto do Juiz Vítor
Nesse sentido, por entender ser este Gomes no Acórdão n.º 353/2012).
o desígnio das medidas de austeridade, o De uma tal conjugação entre as figu-
Tribunal não hesita em considerar que ‘as ras do estado de necessidade e da salva-
medidas de redução remuneratória visam guarda do interesse público decorre a

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construção governamental de que é, em interesse público na reposição da capa-


última análise, em homenagem ao próprio cidade de financiamento autónomo do
constitucionalismo do Estado de Direito Estado, há, ainda assim, imperativamente
que se justifica pôr em prática um consti- lugar primordial para formas de ‘controlo,
tucionalismo da excecionalidade: não quanto à redutibilidade, em si mesma
considerada, mas quanto aos termos da
[t]orna-se assim evidente que, subja- sua efetivação – isto é, quanto às suas
cente às medidas de consolidação
orçamental propostas para 2013, numa
razões e medida’ (Acórdão n.º 187/2013).
conjuntura económico-financeira A este respeito, os pedidos que susci-
de contornos cuja excecionalidade é taram estas três decisões do Tribunal
claramente demonstrada pela neces-
sidade de ajuda internacional a que o Constitucional fazem repousar esse controlo
país se viu, e continua a ver, forçado a na atuação dos princípios da igualdade,
recorrer, está a salvaguarda de valores da proteção da confiança e da proporcio-
e princípios estruturantes da ordem
constitucional portuguesa. Com efeito, nalidade. Deve notar-se o alcance desta
a manutenção da capacidade de finan- construção: ela não tem como estraté-
ciamento da economia nacional, dire- gia a ativação dos direitos económicos,
tamente dependente do equilíbrio das
contas públicas, afigura-se desde logo sociais e culturais como dispositivos
imprescindível, quer à garantia de reali- com força vinculativa capaz de, por si só,
zação das tarefas fundamentais cons-
titucionalmente cometidas ao Estado
travar as estratégias de descaracteriza-
quer à própria sustentabilidade do ção do programa social e económico da
Estado Social e dos direitos económicos Constituição, opta antes pela invocação de
e sociais dos cidadãos (Relatório da Lei
princípios constitucionais gerais para esse
do Orçamento do Estado para 2013).
efeito. Ou seja, a materialização do consti-
O argumentário do constituciona- tucionalismo do Estado de Direito assenta
lismo do Estado de Direito materializa-se, na capacidade de princípios constitucio-
nestes três leading cases da jurisprudência nais – e não de direitos constitucionais
do Tribunal Constitucional sobre a auste- concretos – para travar a pura arbitrarie-
ridade, na afirmação de que, por mais que dade legitimada pelo suposto estado de
seja de acolher um conjunto de retrações exceção e supõe que,
ao espaço dos direitos constitucionais
por força do estado de necessidade susci- do ponto de vista da posição jurídica
afetada, a relação entre esse interesse e
tado, pela situação económico-financeira estas medidas, o modo como o legisla-
do país e da inerente superioridade do dor ordinário a estabeleceu e valorou, e,

10
No Acórdão n.º 794/2013, sobre a constitucionalidade de normas da Lei n.º 68/2013 que determina o aumento do período normal
de trabalho em funções públicas para 8 horas diárias e 40 horas semanais, o Tribunal Constitucional voltou a este entendimento da
compressão de direitos como legitimada pela prevalência do interesse público, no restabelecimento do equilíbrio das contas públicas.
Para o Tribunal, “resulta claro que um dos principais propósitos das medidas aprovadas pelas normas questionadas é uma certa flexi-
bilização do regime laboral dos trabalhadores em funções públicas, tendo também em vista a contenção salarial e a redução de custos
associados à prestação de trabalho fora do período normal. E, em face da situação de crise económico-financeira, é de atribuir grande
peso valorativo a esses objetivos de redução da remuneração do trabalho extraordinário e de contenção salarial, associados ao aumento
do período normal de trabalho dos trabalhadores em funções públicas. E, atento o exposto, sempre se poderia concluir que, na presente
situação, os interesses públicos a salvaguardar não só estão claramente identificados, como são indiscutivelmente de grande relevo.
(…) [A] existirem expectativas legítimas relativamente ao regime anteriormente em vigor, ainda assim não resulta evidente que a tutela
das mesmas devesse prevalecer sobre a proteção dos interesses públicos que estão na base da alteração legislativa operada mediante
a Lei n.º 68/2013 […]”.

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essencialmente, a opção que nessa valo-


ração fez radicar […] [não] traduzem ainda que não se ignore a intensidade do
[…] uma intervenção proibida pelos sacrifício causado às esferas particulares
princípios da proteção da confiança, da atingidas pela redução de vencimentos’.
igualdade e/ou da proporcionalidade
(Acórdão n.º 187/2013). Já no Acórdão n.º 353/2012, o
Tribunal fixou como fasquia para o
O princípio da proteção da confiança: cumprimento deste princípio o dos limi-
A centralidade do subprincípio da prote- tes do sacrifício. E, com base nele, foi
ção da confiança na arquitetura constitu- perentório a julgar que,
cional do princípio do Estado de Direito foi
sendo reiteradamente afirmada na juris- [a]s ‘suspensões de pagamento’ dos
subsídios, nas modalidades previs-
prudência do Tribunal Constitucional. tas, quer pelo forte agravamento,
Em decisão de 1990, o Tribunal estabe- acrescentado e global, dos montan-
leceu dois critérios de inadmissibilidade tes retirados, quer pelo alargamento
do universo abrangido – que é esten-
constitucional à luz deste princípio: a) dido até aos que auferem 600,00 EUR
onerosidade: uma afetação desfavorável de remuneração, já não muito longe
das expetativas que constitua uma muta- do salário mínimo nacional – quer
ainda por expressamente se aplicarem,
ção da ordem jurídica com que, razoavel- desde já, a todo o período (repete-se,
mente, os destinatários das normas dela extensível) por que vier a aplicar-se o
constantes não possam contar; b) arbi- Programa de Assistência Económica
e Financeira, ultrapassam aqueles
trariedade: uma afetação desfavorável ‘limites de sacrifício” cuja admissão
das expetativas que não seja ditada pela o Tribunal Constitucional considerou
fazer sentido no nosso ordenamento
necessidade de salvaguardar direitos ou constitucional. Se trabalhadores com
interesses constitucionalmente protegi- vencimentos a partir de 600,00 ou 1
dos é igualmente inadmissível (Acórdão 100,00 EUR, incluindo trabalhadores
a termo e meros prestadores de servi-
n.º 287/1990). ços, expostos já plenamente às exigên-
Neste quadro interpretativo da cias, entretanto também agravadas,
‘incidência subjetiva da tutela da segu- do sistema fiscal, não tivessem as suas
expectativas protegidas da imposição
rança jurídica’ (Acórdão n.º 396/2011), o de exigências e sacrifícios adicionais
Tribunal trouxe para as suas ponderações desta amplitude e com este horizonte,
a identificação de expetativas legítimas a introdução do critério promissor dos
“limites de sacrifício” não teria afinal
e consistentes dos particulares como a desempenhado papel útil.
manutenção, pelo menos, das remunera-
ções percebidas anteriormente, incluindo
nelas a não-suspensão do pagamento dos No Acórdão n.º 187/2013 regressou-
subsídios de férias e de Natal ou equiva- -se, porém, a uma ponderação em que foi
lentes. Essa ponderação foi, num primeiro preterida a legítima expetativa na perce-
momento (o acórdão de 2011) favorável à ção do subsídio de férias e foi conferida
primazia do interesse público: ‘O interesse preponderância ao interesse público ‘real,
público a salvaguardar, não só se encon- percetível, claro e juridicamente enqua-
tra aqui perfeitamente identificado, como drável, coincidente com a preservação da
reveste importância fulcral e carácter de capacidade de financiamento do Estado
premência. É de lhe atribuir prevalência, no âmbito das obrigações assumidas”

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na “realização de objetivos orçamen- do Acórdão n.º 396/2011, ‘exige que os


tais essenciais ao reequilíbrio das contas sacrifícios inerentes à satisfação de neces-
públicas, num contexto de particular sidades públicas sejam equitativamente
excecionalidade’. distribuídos por todos os cidadãos; todos
os cidadãos deverão contribuir de igual
O princípio da igualdade: Enquanto forma para os encargos públicos à medida
elemento crucial do argumentário
da defesa do Estado de Direito, este
da sua capacidade contributiva’.
princípio é desdobrado na jurispru- Articulando estes dois parâmetros
dência do Tribunal Constitucional em de suporte da igualdade, pode concluir-
duas dimensões complementares. Em
primeiro lugar, o Tribunal explicitou -se, em síntese, que
haver nesta exigência constitucional
um comando de proibição do arbítrio. tal como recai sobre todos os cidadãos
Remetendo para jurisprudência ante- o dever de suportar os custos do Estado,
rior, o Acórdão n.º 187/2013 é claro a segundo as suas capacidades, o recurso
este respeito: [e]ste princípio, na sua excecional a uma medida de redução
dimensão de proibição do arbítrio, dos rendimentos daqueles que auferem
constitui um critério essencialmente por verbas públicas, para evitar uma
negativo (…) que, não eliminando a situação de ameaça de incumprimento,
liberdade de conformação legislativa também não poderá ignorar os limites
– entendida como a liberdade que impostos pelo princípio da igualdade
ao legislador pertence de definir ou na repartição dos inerentes sacrifícios”
qualificar as situações de facto ou as (Acórdão n.º 353/2012).
relações da vida que hão de funcionar
como elementos de referência a tratar
igual ou desigualmente –, comete aos
tribunais não a faculdade de se subs- Aplicando estes dois critérios, o
tituírem ao legislador, ponderando a Tribunal Constitucional concluiu, em
situação como se estivessem no lugar
dele e impondo a sua própria ideia do 2011, pela existência de fundamenta-
que seria, no caso, a solução razoável, ção legítima para a aplicação da redu-
justa e oportuna (do que seria a solu- ção de salários apenas aos trabalhadores
ção ideal do caso), mas sim a de afas-
tar aquelas soluções legais de todo o da função pública. Nessa fundamenta-
ponto insuscetíveis de se credencia- ção, caberia a inexistência de razões de
rem racionalmente”. evidência contrárias à garantia de que, do
lado da despesa, só a redução de salários
Nesta dimensão, o Tribunal cuidou teria eficácia, certa e imediata, a curto
de avaliar a legitimidade de medidas do prazo, no combate ao desequilíbrio das
legislador à luz de um critério objetivo: contas públicas, articulada esta noção
sobrecarregarem ou não essas medidas, com a contenção das medidas restritivas
‘gratuita e injustificadamente’ uma qual- aos salários superiores a 1 500,00 EUR,
quer categoria de cidadãos (Acórdão n.º algo que o Tribunal valorou conjunta-
396/2011). mente com a anunciada transitoriedade
A segunda dimensão do princípio das reduções salariais então em apreço.
da igualdade contemplada pelo Tribunal No seu Acórdão n.º 353/2012, o
Constitucional tem sido a da igualdade Tribunal não contornou a argumentação
perante os encargos públicos que, no dizer justificativa da aplicação das medidas de

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restrição remuneratória (agora na forma Aliás, como o Tribunal fez questão de


de subsídios de férias e de Natal e equi- sublinhar logo de seguida,
valentes) apenas aos trabalhadores da
função pública. Primeiro, a alegada dife- o que releva considerar é que a
suspensão dos subsídios de férias e
rença de níveis de remuneração entre de Natal afeta individualmente os
trabalhadores do sector público e traba- trabalhadores do sector público em
lhadores do sector privado: função do respetivo nível remunera-
tório, sendo indiferente, do ponto de
vista da onerosidade da medida, que
A diferença de níveis de remunera- as remunerações globalmente consi-
ção não pode ser avaliada apenas em deradas na Administração Pública
termos médios, pois os tipos de traba- sejam superiores às que são auferidas
lho e de funções que são exercidos pelos trabalhadores do sector privado
no sector público não são de modo ou que estes se encontrem em situa-
nenhum necessariamente iguais aos ção mais desfavorável no que se refere
do sector privado. Assim, essa dife- à garantia de empregabilidade.
rença de remunerações médias teria
de se demonstrar em face de cada
tipo de atividade comparável, sendo
certo que há funções muito específi- Embora não negasse a admissibili-
cas, incluindo funções de soberania, dade de alguma diferenciação entre quem
que só ao Estado e demais entidades recebe por verbas públicas e quem é pago
públicas competem. Além disso, uma
comparação tendo como critério a por entidades privadas, o Tribunal consi-
simples média do valor dos rendi- derou que
mentos auferidos nos dois sectores
seria sempre insuficiente para justifi-
car uma discriminação nos cortes dos obviamente, a liberdade de o legis-
rendimentos concretamente auferi- lador recorrer ao corte das remune-
rações e pensões das pessoas que
dos por cada um dos afetados.
auferem por verbas públicas, na mira
de alcançar um equilíbrio orçamental,
mesmo num quadro de uma grave
Segundo, a suposta natureza refor- crise económico-financeira, não
çada do vínculo laboral no sector público: pode ser ilimitada. A diferença do
grau de sacrifício para aqueles que
são atingidos por esta medida e para
Apesar de ainda ser possível dizer- os que não o são não pode deixar de
-se que, na generalidade, se verifica
uma maior segurança no emprego ter limites.
público, esse dado não é idóneo para
justificar qualquer diferenciação na
participação dos cidadãos, através de
uma ablação de parte dos seus rendi- Finalmente, no Acórdão n.º 187/2013,
mentos, nos encargos com a diminui- o Tribunal Constitucional revisitou criti-
ção do défice público, como meio de camente o critério adotado em 2011 para
garantir a sustentabilidade financeira
do Estado, num período de emer- afirmar a primazia do interesse público na
gência. Essa participação é exigível contenção da despesa pela via da remune-
apenas àqueles que atualmente aufe- ração dos funcionários públicos:
rem rendimentos capazes de suportar
tal contributo, sendo irrelevante para
a medida dessa capacidade um valor [Q]uando entramos no terceiro exer-
como o da segurança no emprego. cício orçamental consecutivo, que
visa dar cumprimento ao programa de

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assistência financeira, o argumento imposto generalizadamente a todos


da eficácia imediata das medidas de os cidadãos.
suspensão de subsídio não tem agora
consistência valorativa suficiente para
justificar o agravamento [em relação
ao Orçamento do Estado para 2012] O princípio da proporcionalidade: ‘A
dos níveis remuneratórios dos sujei- dimensão da desigualdade do tratamento
tos que auferem por verbas públicas.
Quando uma redução dos salários
tem que ser proporcionada às razões
do sector público, a pretexto da exce- que justificam esse tratamento desigual,
cionalidade da situação económica, não podendo revelar-se excessiva’, esta-
devia ser acompanhada de soluções
alternativas de redução da despesa tui o Acórdão n.º 396/2011. O princípio
pública, não serve hoje de justifi- da proporcionalidade – ou da igualdade
cação para a supressão de um dos proporcional, como é reiteradamente
subsídios que integram a retribuição
dos trabalhadores da Administração designado na jurisprudência do Tribunal
Pública, a par da diminuição da Constitucional – foi por isso um critério
remuneração mensal, que essa seja essencial de ponderação das medidas de
ainda a medida que apresenta efei-
tos seguros e imediatos na redução austeridade ao longo dos três últimos anos.
do défice e a única opção – como se Se, como vimos, em 2011 o Tribunal
afirma no Relatório do Orçamento
do Estado para 2013 – para garantir a
considerou ser de decisiva relevância
prossecução do objetivo traçado […]. que a incidência das medidas restriti-
O que não faz sentido é que se convo- vas, apesar de se registar somente sobre
que a vinculação ao interesse público
dos trabalhadores da Administração trabalhadores do sector público, se
Pública, caracterizada pela referida fizesse sentir apenas nas remunerações
situação estatutária ou pelo estatuto superiores a 1 500,00 EUR, o que as reti-
legal do contrato, como fundamento
para a imposição continuada de rava do campo inconstitucional da afeta-
sacrifícios a esses trabalhadores por ção desproporcionada de uma posição de
via da redução unilateral dos salários, confiança, esse mesmo raciocínio – que
quando assim não se pretenda mais
do que um objetivo de caráter geral assume o “limite dos sacrifícios” como
em vista ao cumprimento das metas critério fundamental – fez o Tribunal
de redução do défice. vincar no acórdão de 2012 que

E desta não subsistência da confor- os pensionistas e os trabalhadores


do sector público com rendimentos
mação do interesse geral aceite em 2011, ilíquidos situados entre 600,00 EUR
o Tribunal Constitucional retirou a natural e 1 100,00 EUR terão uma redução do
conclusão de que a persistência de uma seu rendimento anual que aumentará
progressivamente até 14,3%. Estamos
redução remuneratória seletiva num universo em que a exiguidade
dos rendimentos já impõe tais prova-
representa objetivamente um entorse ções que a exigência de um sacrifício
ao princípio da igualdade de contri- adicional deste tipo, como seja a sua
buição para os encargos públi- redução, numa percentagem que vai
cos, implicando que certos sujeitos progressivamente aumentando, até
passivos do imposto (definidos em atingir 14,3% do rendimento anual,
função de certo estatuto profissio- tem um peso excessivamente gravoso
nal) disponham de menor capaci- (…). A diferença de tratamento é de
dade económica para satisfazer o tal modo acentuada e significativa
aumento de encargos fiscais que foi que as razões de eficácia da medida

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JOSÉ MANUEL PUREZA
ANTÓNIO CASIMIRO FERREIRA

adotada na prossecução do objetivo


da redução do défice público para os exige o respeito por regras básicas como a
valores apontados nos memorandos proteção da confiança, o repúdio da discri-
de entendimento não tem uma valia minação injusta ou a proporcionalidade.
suficiente para justificar a dimensão
de tal diferença. Ironia da História: o que muitos pensavam
ser um reduto mínimo, estritamente defen-
sivo, intocável e indiscutível tornou-se hoje
A mesma ponderação – e com as o fundamento exigível de alternativas polí-
mesmas consequências – foi adotada ticas à estratégia de ajustamento tal como
no Acórdão n.º 187/2013, onde os juízes tem sido conduzida em Portugal.
entenderam que No coração dessa disputa, a jurispru-
dência da austeridade tecida pelo Tribunal
não podemos abstrair do facto de ao Constitucional é uma expressão maior
impacto das reduções das remune-
rações dos trabalhadores do sector
da nova fase de judicialização da política
público se dever adicionar o impacto enquanto resposta à manifesta incapaci-
que, a par dos demais contribuintes, dade dos dispositivos da democracia repre-
tais trabalhadores sofrerão em resul-
tado do aumento generalizado da sentativa balizarem, de modo eficiente, o
carga fiscal, em sede de Imposto sobre poder crescente das nebulosas de parce-
o Rendimento das Pessoas Singulares. ria estratégica entre eleitos e não - eleitos.
O esvaziamento do poder regulatório das
instituições da democracia representa-
tiva parece, pois, ter encontrado na juris-
5 CONCLUSÃO dição constitucional um mecanismo de
compensação.
Eis como a crise enquanto estratégia
A disputa entre duas constitucionali- ofensiva sobre o Estado de bem-estar abre
dades – a do Estado de Direito e a da exce- espaço para duas inusitadas perplexidades:
cionalidade – situa-se presentemente no primeira, a transformação do poder judiciá-
centro da crise. E das alternativas, também. rio num dos locus de mais intensa politiza-
Porque é claro que se o constitucionalismo ção das sociedades reféns da austeridade;
de excecionalidade é um precipitado retó- segunda, a consideração de estratégias origi-
rico e jurídico da crise como estratégia polí- nariamente defensivas como fundamento
tica de transformação liberal da sociedade de alternativas progressistas.
e da economia, o constitucionalismo do
Estado de Direito emerge como referên-
cia da construção de alternativas assentes
na preservação do primado da soberania
popular e da limitação da margem de arbi-
trariedade do executivo. Aquela soberania
exige o primado da constituição formal
sobre qualquer constituição material insi-
nuada ao sabor das conveniências do jogo
de forças do momento. Aquela limitação

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