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06 Resenha
Redes sociais e a padronização dos rostos
07 Administrativo-Financeiro
Fique em dia com o CRP-PR para fortalecer a Psicologia
SUMÁRIO
09 Políticas Públicas
CRP-PR lança prêmio anual de Direitos Humanos e homenageia psicólogas(os/es) e
movimentos sociais comprometidas(os/es) com políticas públicas e direitos humanos
11 CREPOP
Construindo uma Psicologia anticapacitista
13 Psicologia Clínica
Sopros da clínica transcentrada: reflexões de um psicólogo transmasculino
16 Direitos Humanos
Incondicionais e inalienáveis, direitos humanos devem ser pauta da Psicologia
18 Comissão Étnico-Racial
Entre lutas e conquistas: uma sociedade antirracista se faz (também) a partir da Psicologia
25 XV Plenário
Carta da gestão Em Frente com Diálogo à categoria
29 COF
CRP-PR atua com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
pela defesa dos direitos humanos
31 COE
Política e o papel ético da Psicologia, uma reflexão necessária
34 Espaço Psi Ψ
O afeto sempre foi muito importante para mim
OS ARTIGOS SÃO DE RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, NÃO EXPRESSANDO NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO CRP-PR
Conselheiras(os/es): Psic. Ana Lígia Bragueto Costa (CRP-08/08334); Psic. Andrey Santos Souza (CRP-08/30587); Psic. Cláudia Cibele Bitdinger
Cobalchini (CRP-08/07915); Psic. Eduardo Da Silva Antônio (CRP-08/30797); Psic. Emerson Luiz Peres (CRP-08/06673); Psic. Fabiane Kravutschke
Bogdanovicz (CRP-08/19219); Psic. Fábio José Orsini Lopes (CRP-08/09877); Psic. Fabiola Regina Ortega (CRP-08/17317); Psic. Fernanda Costa Peixoto
Primo (CRP-08/12328); Psic. Gedeoni Coelho Marques (CRP-08/28627); Psic. Graciane Barboza Da Silva (CRP-08/23467); Psic. Griziele Martins Feitosa
(CRP-08/09153); Psic. Gustavo Filipowski (CRP-08/27778); Psic. Jéssica Alcimari Pelle (CRP-08/18477); Psic. João Batista Martins (CRP-08/07111);
Psic. João Victor Da Silva (CRP-08/25123); Psic. Jorge Ivan Sada De Almeida (CRP-08/02536); Psic. Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872);
Psic. Karen Aparecida Freitas De Oliveira (CRP-08/09015); Psic. Kathia Regina Galdino De Godoy (CRP-08/14630); Psic. Lorene Camargo (CRP-08/18894);
Psic. Mário Seto Takeguma Júnior (CRP-08/18972); Psic. Matheo Bernardino (CRP-08/25791); Psic. Natália Cesar De Brito (CRP-08/17325); Psic. Pamela
Cristina Salles Da Silva (CRP-08/20935); Psic. Paulo Cesar De Oliveira (CRP-08/17066); Psic. Paulo Vitor Palma Navasconi (CRP-08/25820); Psic. Rosiane
Martins De Souza (CRP-08/14328); Psic. Sara Gladys Toninato (CRP-08/07092); Psic. Sérgio Bezerra Pinto Junior (CRP-08/26037).
CONTATO 144 | 3
EDITORIAL
Estimadas(os/es) leitoras(es),
Com grande alegria entregamos a vocês essa 144ª edição da revista Contato, a
primeira publicada durante a gestão Em Frente com Diálogo, que compõe o XV
Plenário do CRP-PR. Pensamos em cada tema com muito carinho.
Temos como pontos centrais de nossa luta o antirracismo e as discussões sobre a
ciência e profissão da Psicologia comprometidas com o anticapacitismo, com o direi-
to das mulheres e povos originários e com a luta por políticas públicas comprometi-
das com a justiça social de grupos não hegemônicos e em situação de vulnerabilida-
de. Defendemos a diversidade humana em todas as suas expressões e possibilidades.
Nesta edição, a matéria de capa evidencia a importância de uma Psicologia antir-
racista e descreve parte da trajetória da nossa Comissão Étnico-Racial, entenden-
do que lutar contra o racismo é um princípio básico para a garantia dos direitos
humanos. Nesta matéria, é possível acompanhar um pouco da carta produzida pela
Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSINEP),
que reforça a luta da Psicologia neste mesmo sentido.
Ainda nesta edição, temos um breve texto refletindo sobre a experiência clínica a
partir do ponto de vista de um psicólogo trans. Abordamos também a formação da
Comissão de Psicologia Anticapacitista e sobre como as redes sociais podem impac-
tar em tendências sociais e na autoimagem das pessoas que fazem seu uso.
Esta revista veio para mostrar a pluralidade da Psicologia e como nos afetamos,
somos afetados e podemos ter afetos nos espaços em que transitamos. É uma apre-
sentação de quem somos, do discurso que temos para uma Psicologia cada vez mais
abrangente, com a ampla participação de nossa categoria, com o foco nas melho-
rias de qualidade do exercício profissional.
Desejamos uma ótima leitura e final de ano!
Ternamente,
XV Plenário - Em Frente com Diálogo!
C omemorando 20 anos desde sua com-
posição, a Comissão de Psicologia
Hospitalar do Conselho Regional de
Psicologia do Paraná (CRP-PR) realizou o XX
Fórum de Psicologia Hospitalar, com o tema
expansão das discussões levadas ao Fórum.
“A ideia do evento era justamente poder
discutir a prática da Psicologia Hospitalar,
desde sua fundação até os dias atuais, fa-
zendo uma retrospectiva dos principais
“Aspectos históricos e contemporâneos da pontos debatidos no passado, bem como
Psicologia no hospital”. Durante sua reali- inovações na área”, ressalta a profissional.
zação, o ponto principal foi a Psicologia na
Dentre as principais temáticas aborda-
contemporaneidade e seus principais desa-
das no XX Fórum, destacam-se a atuação
fios, abordando aspectos ligados à humani-
da Psicologia em seus diversos contextos
zação e subjetividade nos diferentes setores
profissionais, questões técnicas da ges-
do hospital.
tão hospitalar e a humanização dentro
O encontro, que aconteceu no dia 22 de outu- da área. A discussão levantou, conjunta-
bro, reuniu profissionais da área em palestras, mente, o diálogo para resoluções que dis-
mesas-redondas e conferências que se apro- põem novos pareceres sobre a prática da
fundaram em discussões relativas ao tema Psicologia Hospitalar.
central. Além disso, um trio de profissionais
Com uma participação ativa e longínqua
mereceu homenagens especiais por terem par-
da Comissão Hospitalar no CRP-PR, pode
ticipado da fundação da Comissão em 2002: a
ser esperada para a próxima edição, em
psicóloga Maria Joana Mäder (CRP-08/1899), a
2023, novamente a interlocução de sabe-
psicóloga Claire Lazzaretti (CRP-08/02440) e
CURTAS
res da Psicologia Hospitalar, agora com
o psicólogo Wael de Oliveira (CRP-08/01323),
outras regiões do Estado. A psicóloga Ana
referências nacionais e atuantes no desenvol-
Carolina de Campos conta futuros pontos a
vimento da Psicologia Hospitalar no Paraná,
serem trabalhados para esse feito: “ampliar
com suas diversas produções teóricas que são
a participação através de reuniões no for-
utilizadas ainda hoje.
mato híbrido, promover atividades e even-
Para a coordenadora da Comissão e psicóloga tos tradicionais da Comissão, [em conjunto
no Hospital Universitário Cajuru, Ana Carolina com] a construção de trabalhos teóricos e
de Campos (CRP-08/27827), a participação do discussões de temas relevantes dentro da
público teve uma importância significativa na Psicologia Hospitalar.”
CONTATO 144 | 5
© Netflix
REDES SOCIAIS E A
PADRONIZAÇÃO
DOS ROSTOS
Por psic. Julia Mezarobba Caetano Ferreira (CRP-08/25872)*
bre a trajetória da face e seus significantes do livro escrito por Cintra é uma incursão
em diferentes momentos históricos e con- em questionamentos extremamente atuais
textos sociais. sobre a forma como nos apresentamos ao
mundo, como nos enxergamos e o papel do
Com o advento da câmera frontal, que pos- rosto, cada vez mais digitalizado e menos
sibilita às pessoas tirar selfies posadas com singular, em nossa identidade humana.
grande facilidade, dos filtros faciais de rea-
lidade aumentada e do recurso Cyberface,
ou Instagram Face, isto é, do rosto digi-
tal, toda uma nova concepção estética se
Para ler e indicar
iniciou, com a comunicação acontecendo
cada vez mais através de telas em detri- O Instagram está padronizando os rostos?
mento do contato direto. Precisamos somar de Camila Cintra. Editora Estação das
a isso, também, o surgimento do formato Letras e Cores, 1ª edição, Barueri-SP, 2021.
Stories, que alçou a estetização “ao vivo”.
6 | CONTATO 144
U m Conselho profissional forte é uma
profissão protegida. Isso porque o
trabalho de orientação e fiscaliza-
ção desenvolvido por estas instituições tem
por objetivo garantir que profissionais, es-
meios não consensuais. Em dezembro de
2022, enviaremos por e-mail os boletos re-
ferentes à anuidade 2023, que foram defi-
nidas na última Assembleia Orçamentária,
cujos valores podem ser verificados no des-
pecialmente quando em contato com a so- taque abaixo.
ciedade, exerçam suas atividades com rigor
ético. Ganha a classe trabalhadora, ganha Mas, quem porventura não efetuou algum
a sociedade. Conselhos estruturados, com pagamento anterior ainda pode ficar em
capacidade de ação, são importantes para dia com o Conselho Regional de Psicologia
a qualidade da atuação e da formação pro- do Paraná (CRP-PR) e, assim, apoiar a
fissional e para a inserção da Psicologia nas Psicologia. O departamento financeiro da
pautas sociais. Nesse sentido, buscamos a instituição está empreendendo esforços
melhor eficiência no uso dos recursos para para a regularização de débitos anteriores,
manutenção e aprimoramento das ativi- oferecendo possibilidades de renegociação
dades de orientação, fiscalização, diálogos de dívidas mais antigas (correspondentes
com a categoria e com a sociedade. aos exercícios de 2020 e anteriores). Outros
compromissos financeiros também podem
ADMINISTRATIVO-FINANCEIRO
Para que este trabalho, que exige uma es- ser quitados com o setor de renegociação,
trutura auxiliar técnica e administrativa, de forma a contribuir para que profissionais
seja bem executado, a lei determina o pa- estejam em dia com o Conselho, fortalecen-
gamento de um tributo: a anuidade, defi- do a Psicologia.
nida todos os anos de forma transparente
e colaborativa entre os Conselhos Federal, Para saber mais e tirar dúvidas sobre anui-
Regionais e também a categoria profissio- dades e renegociação de dívidas, entre em
nal. O não pagamento deste tributo con- contato conosco pelos telefones (41) 3500-
figura infração disciplinar, de acordo com 7996 ou (41) 98821-9767 (WhatsApp), ou ain-
a Lei nº 5.766/71, passível de cobrança por da pelo e-mail crp08@crppr.org.br.
Anuidades 2023
CONTATO 144 | 7
A 3ª edição já
está disponível
Rela
to
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e ex
periências
•E
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s • Resenhas
8 | CONTATO 144
Por psic. Cesar Rosário Fernandes (CRP-08/16715), assessor técnico de
políticas públicas do CRP-PR
N
o mês de agosto de 2022, o Conselho talmente determinada de que o CRP-PR
Regional de Psicologia do Paraná fortaleça os mecanismos de democratiza-
(CRP-PR) lançou o Prêmio Anual ção das políticas públicas, atuando como
de Direitos Humanos do CRP-PR – Edição um agente na construção e consolidação
2022 – Cleia Oliveira Cunha. A premiação de uma sociedade verdadeiramente de-
foi uma realização do XIV Plenário do CRP- mocrática. No contexto de crise social e
PR (2019-2022) e teve por objetivo convidar econômica – que no momento “pós-pande-
a sociedade e profissionais da Psicologia à mia” revela contornos de crise humanitária
indicação de psicólogas(os/es) e movimen- – a valorização do trabalho da Psicologia
tos sociais em reconhecimento pelos rele- em defesa dos direitos sociais ganha ainda
vantes trabalhos prestados para a promo- mais relevância.
ção de direitos humanos no Paraná.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Além disso, ao homenagear o trabalho de
A iniciativa do Conselho pretendeu identifi- psicólogas(os/es) e movimentos sociais so-
car, valorizar e fomentar ações na redução cialmente comprometidas(os/es) com a
das desigualdades sociais e no posicio- democracia e os direitos humanos, o CRP-
namento antirracista, antiproibicionis- PR contrapõe um movimento reacionário
ta e antimanicomial. O compromisso da crescente na sociedade. Expressa sobretudo
Psicologia com a promoção de direitos hu- no âmbito do Poder Legislativo, observa-se
manos está nitidamente expresso desde os uma tendência à condecoração de profis-
Princípios Fundamentais do Código de Ética sionais e entidades que, em suas práticas,
Profissional da profissão. É no espírito de assentam desigualdades e ampliam um dis-
consolidar o Estado Democrático de Direito curso violento, opressor e obtuso contra a
que milhares de profissionais e movimentos diversidade e pluralidade, como os que de-
sociais em todo o Paraná têm atuado pela fendem métodos de “cura gay” ou reforçam
garantia de direitos sociais, de saúde men- a lógica manicomial e proibicionista.
tal e dignidade a todas as pessoas.
A primeira edição do Prêmio foi inspirada na
A premiação valorizou iniciativas profis- memória da psicóloga Cleia Oliveira Cunha
sionais articuladas por meio de políticas (CRP-08/04777), que dedicou quase 40 anos
sociais, em diálogo com a função regimen- da sua carreira à Psicologia Social, deixando
CONTATO 144 | 9
© Umit Bektas
um rico legado de luta por direitos huma- des no eixo Promoção de saúde mental
nos. Durante sua trajetória, Cleia compôs e luta antimanicomial;
o plenário de duas gestões no Conselho e
também esteve na presidência da autar- f Graziele Tagliamento (CRP-08/17992),
quia, quando coordenou a Comissão de por importantes contribuições no eixo
Direitos Humanos do CRP-PR. Diversidade de gêneros e sexualidades;
10 | CONTATO 144
CONSTRUINDO UMA
PSICOLOGIA ANTICAPACITISTA
A
Psicologia, em seu valoroso compro- deficiência, profissionais da Psicologia e de
misso com a sociedade brasileira, de- áreas afins.
bruça-se sobre a compreensão das
Mais do que mera mudança de nomencla-
dinâmicas de opressão e desigualdades que
tura, a alteração marca uma afirmação
constituem a vida social e as subjetivida-
conceitual em um contexto de disputas
des. Dentre elas, o lugar de exclusão social
de narrativas e direcionamentos técnicos
atribuído às pessoas com deficiência requer
e políticos na área dos direitos das pessoas
especial atenção, para desenvolvimento
com deficiência. O embate entre a concep-
de estratégias efetivas para a transforma-
ção ancorada nos direitos humanos e as
ção social. Em 24 de setembro, o Plenário
concepções que enfatizam um caráter nor-
do Conselho Regional de Psicologia do
matizante, biomédico, instrumental e ca-
Paraná (CRP-PR) definiu pela alteração de
ritativo da deficiência permeia as práticas CREPOP
um núcleo parte da Comissão de Direitos
psicológicas e a formulação e execução das
Humanos, criando o novo Núcleo de
políticas públicas.
Psicologia Anticapacitista.
A alteração do nome do Núcleo traz consi-
O grupo, criado em 2019, era até en-
go uma posição que se fortalece historica-
tão denominado Núcleo de Pessoas com
mente com o modelo social de deficiência,
Deficiência. Durante o período de pande-
em especial entre os anos 1980 e 90, com os
mia, construiu-se um importante espaço de
estudos feministas que marcam a segunda
aprofundamento de discussões relativas à
geração deste modelo. É neste período his-
temática da deficiência, com a realização
tórico que o termo capacitismo é cunhado
de reuniões abertas à categoria e à comu-
para expressar as sistemáticas opressões vi-
nidade. Neste contexto, foram debatidos
venciadas por pessoas com deficiência.
temas como neurodiversidade, sexualida-
de, tecnologia assistiva, redes sociais, ex- A afirmação do capacitismo e o conse-
pressão artística, emprego apoiado, atendi- quente posicionamento anticapacitista
mento bilíngue e acolhimento institucional, falam de uma deficiência que é produzi-
com a presença de convidadas(os/es) com da socialmente. Nesta perspectiva, é a
CONTATO 144 | 11
normatização e hierarquização dos corpos ção aos impactos de suas práticas, de forma
pautados na capacidade que oprimem e ex- a não pactuarem, ainda que por omissão,
cluem elementos da diversidade humana, com atos de discriminação e opressão con-
nomeando-a como deficiência, numa leitu- tra pessoas com deficiência. Para que nossa
ra patologizante. prática seja de fato transformadora, inclu-
siva e emancipadora, em qualquer campo
A Psicologia Anticapacitista parte de uma
da Psicologia, é necessário que tenhamos
concepção que nega a causalidade entre
um papel ativo no reconhecimento do ca-
as capacidades individuais e os prejuízos
pacitismo, e que possamos contribuir na
no exercício da cidadania. Não repousa
construção de uma estrutura social capaz
nos sujeitos a responsabilidade sobre o
de atender às necessidades específicas dos
processo de exclusão que eles próprios vi-
sujeitos, considerando e valorizando a am-
venciam. E, consequentemente, tampouco
pla diversidade de modos de existir.
a responsabilidade pelas estratégias de par-
ticipação social e acesso a direitos. Desta Tendo em conta a importância de orien-
maneira, explicita-se a perversidade da cul- tar profissionais da Psicologia que atuam
tura de superação e institucionalização da nas políticas públicas e serviços que aten-
deficiência, que realiza um movimento de dem pessoas com deficiência, o Conselho
alocação de responsabilidades sociais na Federal de Psicologia (CFP), por meio do bit.ly/3Euzjg9
esfera individual. Centro de Referência Técnica em Psicologia
e Políticas Públicas (Crepop), lançou em
Sendo parte da diversidade humana, as de-
2022 um ciclo de pesquisas que subsidiará
ficiências são singularidades atípicas que
a construção de referências técnicas que
exaltam processos de opressão e exclusão
poderão facilitar a promoção de um ali-
capacitista. Enquanto categoria analítica,
nhamento conceitual quanto aos direitos
contribuem para a ampliação da compreen-
humanos das pessoas com deficiência em
são dos fenômenos sociais e dialogam na
nossa ciência e profissão. Estratégias como
complexidade de sua intersecção com as
a que o CRP-PR propõe com a criação do
questões de raça, gênero, classe, idade e
Núcleo de Psicologia Anticapacitista endos-
orientação sexual.
sam essa preocupação e abrem outras fren-
A garantia dos direitos humanos das pessoas tes de diálogo e construção coletiva. Assim,
com deficiência passa pela necessidade de possibilita-se que as práticas psicológicas
revisão dos discursos normativos e das prá- possam ter como elemento fundante o an-
ticas que reafirmam posições capacitistas. ticapacitismo, constituindo-se como meio
Profissionais da Psicologia devem ter aten- para transformação social.
Para
saber mais:
www.crppr.org.br/comissoes
12 | CONTATO 144
Sopros da clínica
transcentrada:
reflexões de um psicólogo
transmasculino
Por psic. Matheo Bernardino (CRP-08/25791), conselheiro do XV Plenário
E
m que lugar do código de ética diz que pessoa distante? Prefiro a elaboração con-
ê psicólogue precisa ser desumane? junta de um encontro íntimo, onde posso
Estou cansado de receber pessoas ser e permitir ser. Onde posso sentir e per-
trans traumatizadas pelas terapias ante- mitir sentir. É na intimidade, na esponta-
riores. Gente que precisa de acolhimento e neidade e na confiança que as relações e
resiste em buscar ajuda, pois algume profis- vidas se atualizam.
sional fez o favor de ser antiético. Onde, na
formação e no código de conduta ética da O encontro terapêutico deve ser um encon-
profissão, está escrito que não pode haver tro de potências. Por vezes conflituosos,
afetação, empatia e respeito mútuo? Que outras vezes desconfortáveis, mas boas ve-
posição descuidada é essa onde esses pro- zes leves e comemorativos. Comemora-se a
fissionais estão? vida, com seus altos e baixos. Em conjun-
PSICOLOGIA CLÍNICA
to. Na parceria de dois. Na cumplicidade.
Recentemente discuti, com uma pessoa No jogo da alteridade e da identificação.
transmasculina que acompanho, sobre a Nas delimitações e nas ampliações que a
palavra paciente. vida nos propõe. Cada um vivendo um sis-
tema solar, mas compartilhando galáxias.
Paciente ou cliente? Ambos causam des- São muitos sentidos. Muitos sentimentos.
conforto em nós dois. Ele é de periferia. A Muito. Tudo é grande quando há permissão.
proximidade surge quando a palavra tra- Liberdade. Essa talvez seja a ética decolo-
duz um afeto mútuo: parceria. Somos par- nial, latina, trans, preta, periférica, dissiden-
ceiros. Ninguém é melhor que ninguém te, humana... Eu sou parceiro e é isso que
aqui. Esse espaço é nosso, é afetuoso e é importa nesses encontros...
potente assim.
Este é um recorte de angústias e questões
A Psicologia pautada no distanciamento que a clínica com pessoas trans me trouxe.
afetivo e na neutralidade profissional me Como pessoa transmasculina, branca, clas-
causa náusea. Que pessoa é essa que pare- se média e do sul do Brasil, ficava preocu-
ce um robô e acha que sabe de tudo? Que pado em ser o mais cuidadoso possível para
tipo de intimidade posso criar com uma que na minha prática não atravessasse al-
CONTATO 144 | 13
guém com percepções pouco acuradas de do meu trabalho, levando em considera-
sua realidade, projetando minhas experiên- ção as observações de Mariana Ortega e
cias no mundo dela. de tantas outras pessoas (trans)feministas
do campo da fenomenologia e do campo
Estava atendendo outra pessoa transmas- decolonial: “é importante não homoge-
culina e, já no final da sessão, antes de nos neizar ou essencializar a experiência dos
despedirmos, ele perguntou quais termos marginalizados e dos oprimidos; isto é, nós
uso, se cliente ou paciente. Falei que não precisamos lembrar que não é o caso de
me identificava com nenhum dos dois, em- que todas as pessoas oprimidas comparti-
bora usasse mais cliente. Então, ele sugeriu: lhem o mesmo conjunto de características”
parceiro. Ele, uma pessoa transmasculina, (Ortega, 2016, p. 38).
preta e de periferia, encontrava como sig-
nificado da relação psicoterapêutica que Por adentrar o campo da transgeneridade,
havíamos estabelecido a parceria. também considero a relevância dos estudos
transfeministas brasileiros e incluo aqui as
Parceria tem como sinônimos cooperação, orientações discorridas pela Dra. Jaqueline
colaboração, união, entre outros. Significa Gomes de Jesus, mulher trans preta, e por
algo como uma colaboração em torno de Hailey Alves, mulher trans ativista:
um objetivo comum, com acordos e res-
ponsabilidades compartilhadas em vários O feminismo transgênero ou transfe-
níveis. E na periferia, parceiro é aquele que minismo é, particularmente, um movi-
faz o “fechamento” com o outro. É aquele mento intelectual e político que: 1) des-
que se compromete de forma íntima, con- mantela e redefine a equiparação entre
fiável, afetiva e responsável com o outro. E, gênero e biologia; 2) reitera o caráter
ali, eu descobria novos contornos de uma interacional das opressões; 3) reconhe-
clínica transcentrada. ce a história de lutas das travestis e das
mulheres transexuais, e as experiências
Quando digo clínica transcentrada, estou pessoais da população transgênero de
abordando o fechamento e a parceria entre forma geral; e 4) é aberto, e pode ser va-
um psicólogo que também é pessoa trans lidado por quaisquer pessoas, transgê-
e que acompanha o processo psicoterapêu- nero ou cisgênero. (Jesus & Alves, 2010,
tico de outra pessoa trans. Duas pessoas p. 15-16)
trans no “setting” que se encontram nas
espirais existenciais, colaborando com seus A tarefa de observar e pensar a clínica
processos subjetivos e singulares, mas tam- com pessoas trans, assim, deve ser crítica.
bém intercorpóreos. Independentemente de ser ê profissional cis
ou trans. Ou seja, é necessária uma postura
De modo algum pretendo generalizar as de resistência com potencial liberatório, que
experiências trans, que são plurais e diver- combate a arrogância colonial e as forças
sas. Falo a partir da minha experiência e e relações de poder e opressão por meio
14 | CONTATO 144
de uma comunicação complexa. Segundo
Mariana Ortega, a comunicação complexa é
um modo criativo de linguagem, que exige
disposição para a compreensão das diver-
sas maneiras de se comunicar e resistir da-
queles que são diferentes de nós. Isso inclui
pontos de opacidade nas relações, sem a
redução ou assimilação da existência de ou-
trem a nossas experiências e crenças. Uma
conversa que inclui comunicação comple-
xa deve incluir as vozes daqueles que não
ocupam posições de dominação na escala
de poder social. Assim, precisamos assumir
heterogeneidade entre as vozes.
CONTATO 144 | 15
Por psic. Marcel Cesar Julião Pereira (CRP-08/20665), coordenador da área de
Monitoramento e Aprendizagem da organização de direitos humanos Terra de
Direitos e colaborador da Comissão de Direitos Humanos do CRP-PR
16 | CONTATO 144
Quando estas violações ocorrem, é funda- de sofrimento mental, evidenciando
mental que cada sociedade faça acomo- não apenas seu modo de produção so-
dações em suas leis e políticas públicas cioeconômico como também os efeitos
para erradicar distorções no acesso aos di- psicológicos que constituem sua verten-
reitos universais. Em uma sociedade racis- te subjetiva;
ta e escravocrata, é obrigação do Estado
tomar medidas para garantir o direito ao f Intervir em situações concretas
trabalho, à educação e às demais condi- em que existam violações dos direi-
ções necessárias para que pessoas vítimas tos humanos que estejam produzindo
do racismo estrutural tenham acesso ao sofrimento mental;
que, por definição, é direito inalienável de
todas as pessoas. f Participar ativamente das lutas pela
garantia dos direitos humanos na socie-
Isso significa que muitas vezes, para garan- dade brasileira;
tir a universalidade dos direitos humanos,
é preciso definir políticas públicas volta- f Apoiar e prestar solidariedade aos
das a públicos específicos aos quais estes movimentos nacionais e internacionais
direitos são negados. Isto nos remete à de direitos humanos;
metáfora que se tornou bem conhecida du-
rante o auge do movimento Vidas Negras f Intervir em situações em que
Importam: todas as casas em uma cidade ações do Estado ou de setores sociais
devem ser protegidas do fogo, mas, em específicos produzam algum tipo de
caso de incêndio, o corpo de bombeiros sofrimento mental;
deve atuar primeiro onde está pegando
fogo, já que as demais casas se encontram f Buscar soluções para a omissão
seguras por ora. de ações do Estado, especialmen-
te relativas ao sofrimento psíquico
O Brasil é um dos países signatários da dos excluídos.
Declaração Universal dos Direitos Humanos
e, desde 1988, seus preceitos fundamen- Além do Sistema Conselhos de Psicologia
tais formam a base de nossa Constituição do Brasil, diversas outras associações pro-
– conhecida, também por isso, como fissionais e Conselhos de Psicologia ao re-
Constituição Cidadã. Como brasileiras, bra- dor do mundo reconhecem a observância
sileiros e brasileires, além de termos nossos dos direitos humanos como fundamen-
direitos garantidos, temos a obrigação de tal à prática da Psicologia. Podemos citar
zelar por seu cumprimento e pelo acesso de como exemplos o Conselho Internacional
todas as pessoas. Em seu exercício de cida- de Psicólogas(os), a Rede Global de
dania, profissionais da Psicologia são, por Psicólogas(os) pelos Direitos Humanos,
ofício, defensoras(es) dos direitos huma- a Associação Americana de Psicologia
nos. Este dever da categoria profissional da (APA), a Sociedade Britânica de Psicologia
Psicologia é reconhecido em nosso Código e a Federação Europeia de Conselhos de
de Ética. Além disso, o Sistema Conselhos Psicologia, entre outros.
instituiu, desde 1997, Comissões de Direitos
Humanos – sendo que, no Paraná, ela tem É preciso, portanto, dissociar a defesa e a
caráter permanente, ou seja, não pode ser promoção dos direitos humanos de qual-
dissolvida, e atua em diversos segmentos. quer cunho partidário. Assegurar que todas
Seus principais objetivos são: as pessoas tenham acesso àquilo que pre-
coniza a Declaração Universal dos Direitos
f Incentivar a reflexão e o debate sobre Humanos há mais de 70 anos é, antes de
os direitos humanos inerentes à forma- tudo, um ato de defesa da dignidade e da
ção, à prática profissional e à pesquisa saúde mental de todos os indivíduos. A
em Psicologia; Psicologia – construída todos os dias por
milhares de profissionais Brasil afora – não
f Estudar os múltiplos processos de pode, consequentemente, abster-se de es-
exclusão enquanto fonte de produção tar comprometida e ativa nesta luta.
CONTATO 144 | 17
COMISSÃO ÉTNICO-RACIAL
CONTATO 144 | 23
bit.ly/3H284fG
Carta de Recife
Profissionais negras(os/es) da Psicologia vêm se organizando, também, em cole-
tivos nacionais, que reúnem colegas de diversos Estados em prol de pautas con-
juntas. Durante o XII Congresso de Pesquisadoras(es) Negras(os) (COPENE), que
contou com representantes de todas as Comissões Étnico-Raciais dos Conselhos
Regionais de Psicologia, entre os dias 11 e 16 de setembro de 2022, na Universi-
dade Católica de Pernambuco (UNICAP), em Recife, um dos desdobramentos mais
notáveis foi a “Carta de Recife” – documento que ratifica o compromisso por uma
Psicologia antirracista e esquadrinha os mecanismos que alimentam o racismo
estrutural, bem como seus efeitos na população negra.
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XV PLENÁRIO
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O presente texto é uma expansão do discurso proferido pela nossa
presidenta Griziele Martins Feitosa (CRP-08/09153) na cerimônia de posse do
XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), no dia
23 de setembro de 2022. Sendo aquela nossa primeira comunicação oficial
enquanto gestão, e por conter os nossos mais basilares valores e nossos
mais centrais compromissos, optamos por amplificá-la e compartilhá-la na
nossa primeira edição da Revista Contato, este espaço já consolidado de
comunicação com a categoria.
Começamos esta carta pedindo licença para dialogar com os que vieram
antes e os que virão depois. Saudamos nossa ancestralidade pois, como
lindamente canta Emicida, “somos o sonho dos nossos ancestrais”, todas(os/
es) as(os/es) trabalhadoras(es/ies) desta autarquia, tão dedicadas(os/es), e
saudamos toda nossa categoria.
Nossa fala é um convite a pensar a Psicologia que esta gestão assume
como compromisso: uma Psicologia transformadora da qual possamos nos
orgulhar! O nosso Código de Ética se fundamenta na defesa intransigente
dos direitos humanos. Então, por que quando nos movemos na radicalidade
desses direitos, provocamos tanto estranhamento?
Mas não me importei com isso Mas como tenho meu emprego
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N ossa luta é contra toda forma de ini-
quidade e injustiça social. Com isso,
pensamos a Psicologia por meio da
intersecção raça, classe, gênero, sexualida-
de e deficiência. Ressaltamos as questões
sigente contra o racismo não é pauta única,
mas pauta múltipla, pauta plural, pauta ur-
gente e grávida de uma potência de trans-
formação societal radical!
de raça, uma vez que o racismo é elemen- Nosso compromisso sociopolítico é com a
to central na organização do nosso siste- ciência psicológica e com as(os/es) psicólo-
ma sociopolítico, sendo estrutural e estru- gas(os/es) que estão nas escolas, nas orga-
turante das relações. Se não tratarmos do nizações, no tráfego, no sistema de justiça,
racismo, não conseguiremos superar as de- no esporte, na clínica, nos hospitais, bem
sigualdades. Por este motivo, a Psicologia como na Psicologia social/comunitária, na
antirracista foi um importante mote de avaliação psicológica, na neuropsicologia,
nossa campanha. no controle social e na Psicologia em saú-
de, porque, como Brecht bem apresenta, é
As pessoas negras somam 56% da po- preciso agir!
pulação brasileira e temos a triste
estatística de um jovem negro sendo Pela primeira vez na história do CRP-PR,
morto a cada 20 minutos. temos à frente da autarquia uma mulher
negra na presidência, uma psicóloga do in-
No livro Holocausto Brasileiro, a terior, pois entendemos que é preciso trans-
jornalista Daniela Arbex historici- formar a Psicologia em todos os seus espa-
za o genocídio de 60 mil brasilei- ços e instituições e, para isso, importam,
ras(os/es) no hospital psiquiátrico de mas não bastam, palavras, campanhas,
Barbacena, sendo que, destas(es), moções de repúdio. Precisamos de ações
80% eram pessoas negras. concretas cotidianas rasgando as formas de
organização colonizadoras.
Também temos a triste estatística
de sermos, pelo 13° ano consecuti- Temos também nesta gestão o primeiro
vo, o país que mais mata pessoas conselheiro homem trans e a primeira pes-
LGBTQIA+. Conforme apontado por soa não binária conselheire do CRP-PR ocu-
Megg Rayara Gomes de Oliveira, são pando, legitimamente, espaços de fala e
travestis e mulheres transexuais ne- representatividade na construção de uma
gras as vítimas preferenciais dos as- Psicologia que busca romper com a natu-
sassinatos por transfobia no Brasil, ralização da cisnormatividade e abarcar o
representando 81% dos casos. viver humano em sua diversidade.
Assim, a Psicologia precisa perguntar: com Intentamos fazer uma gestão ampla, di-
essa conjuntura, democracia para quem?! versa, plural, que alcance as(os/es) mais
diferentes psis, nos mais remotos locais,
Como podemos pensar saúde mental sem nas mais variadas áreas e práticas. Por isso,
levar esses dados em consideração? Nos aproveitamos este espaço para convidar
doeu na carne, durante a campanha, ser- toda a categoria para estar conosco no de-
mos acusados de pauta única, por ser a senvolvimento dessa Psicologia paranaense
Psicologia antirracista nossa maior bandei- articulada e transformadora, pois entende-
ra de luta. mos que a capilarização e a interiorização
são fundamentais para “a cabeça pensar
Entendemos que uma Psicologia antirracis- onde os pés pisam”, como propõe Paulo
ta é consequentemente antimanicomial, Freire. Para isso, é essencial que a catego-
antiproibicionista, antiLGBTIfóbica, antica- ria se envolva, participe, dialogue, cons-
pacitista, feminista, inclusiva e emancipa- trua junto e proponha ações pertinentes
dora. Assim, evidencia-se que a luta intran- ao seu fazer.
CONTATO 144 | 27
Dentro deste convite para a participação Se estamos longe como um horizonte,
de toda a categoria, fazemos questão de
se lá ficaram as árvores e céu,
convidar explicitamente todas as(es/os)
colegas que constituíram as outras chapas se cada noite é sempre alguma ausência
que participaram da disputa pela gestão e cada despertar um desencontro
do CRP-PR. Temos o orgulho e a alegria de
afirmar que as gestões de portas fechadas
Você perguntará: por que cantamos?
se encerraram e dizemos: não mais! É nosso
desejo ter todas(os/es) vocês construindo
conosco um CRP-PR verdadeiramente de- Cantamos porque o rio está soando
mocrático, com a riqueza da diversidade e quando soa o rio, soa o rio.
que constitui a nossa ciência e profissão.
cantamos porque o cruel não tem nome,
Este coletivo, que agora compõe a gestão, embora tenha nome seu destino
entende que, enquanto Psicologia e socie-
dade, precisamos nos apropriar da filosofia Cantamos pela infância e porque tudo
indígena do “bem viver” e incorporar na
e porque algum futuro e porque o povo.
nossa prática a linda frase do movimento de
mulheres negras: “Sonhar fazendo enquan- cantamos porque os sobreviventes
to se faz sonhando”, pois nosso compromis- e nossos mortos querem que cantemos
so é com a categoria, com a Psicologia e,
especialmente, com a sociedade. Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
Terminamos esta carta com uma poe-
sia, pois a arte é fundamental para tornar cantamos porque cremos nessa gente
a vida possível: e porque venceremos a derrota
Cada hora vem com sua morte, Cantamos porque o sol nos reconhece
se o tempo é um covil de ladrões, e porque o campo cheira a primavera
os ares já não são tão bons ares e porque no talo e no fruto
e a vida é nada mais que um alvo móvel cada pergunta tem a sua resposta
Você perguntará: por que cantamos? Cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
Se nossos bravos ficaram sem abraço,
e porque não podemos nem queremos
a pátria está morrendo de tristeza
deixar que a canção se torne cinzas.
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha (Antologia Poética – Mário Benedetti –
“Só quando transgrido alguma ordem o
Você perguntará: por que cantamos? futuro se torna respirável”.)
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141
CRP-PR atua com o
Mecanismo Nacional de
Prevenção e Combate
à Tortura pela defesa
dos direitos humanos
Por psic. Michele Gabardo Machado (CRP-08/19469), orientadora fiscal,
em colaboração com a Comissão de Orientação e Fiscalização bit.ly/3V73hOx
E
m maio de 2022, o Conselho Regional 1. Quantitativo de equipe técnica
de Psicologia do Paraná (CRP-PR) in- insuficiente para atender às demandas
tegrou a equipe de inspeção a uni- do local;
dades de privação de liberdade do Estado
do Paraná, a convite do Mecanismo 2. Desassistência material e falta de es-
Nacional de Prevenção e Combate à trutura mínima para o desenvolvimento
Tortura (MNPCT), órgão criado pela Lei de atividades profissionais;
Federal nº 12.847/2013 responsável pela
prevenção e combate à tortura e a outros 3. Negligência e omissão do Estado em
tratamentos ou penas cruéis, desumanos fornecer condições mínimas de vida;
ORIENTAÇÃO E FISCALIZAÇÃO
ou degradantes.
4. Violações à dignidade da pessoa;
Esta ação reuniu diversos órgãos, como
a Defensoria Pública, a Ordem dos 5. Uso excessivo da força, com ausência
Advogados do Brasil (OAB), o Ministério de regulamentação e protocolos;
Público e a Pastoral Carcerária, com a fi-
nalidade de analisar as condições de de- 6. Dificuldade de acesso à assessoria
tenção no Paraná, apurar possíveis viola- jurídica;
ções de direitos e verificar a qualidade de
cuidado e as condições do acolhimento 7. Comunicação limitada com amigas (os/
assistencial prestado. es) e familiares;
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CONTATO 144
qual compartilhamos ao final deste texto, gratuito do Disque 100, que recebe, ana-
em link e QR Code, para conhecimento da lisa e encaminha denúncias de violações
categoria e sociedade. aos direitos humanos diariamente, 24 ho-
ras por dia, incluindo sábados, domingos
Este relatório evidencia o quanto a garantia e feriados.
dos direitos das pessoas usuárias de um ser-
viço e a ética profissional podem ser direta- A Comissão de Orientação e Fiscalização
mente impactadas pela falta de condições (COF) reforça a necessidade de um posicio-
mínimas que deveriam ser providas pelos namento crítico e fundamentado das(os/
órgãos e instituições. Desta forma, ressalta- es) psicólogas(os/es) e reafirma que a ca-
-se que, diante de irregularidades, é neces- tegoria se certifique de que sua conduta
sário que as equipes multiprofissionais se está alinhada ao rigor ético e técnico da
posicionem e acionem órgãos competentes profissão, à defesa da dignidade da pessoa,
visando à melhoria e regularização de pos- à promoção da saúde e aos direitos huma-
síveis desconformidades. nos, rejeitando todas as formas de violên-
cia, discriminação, maus-tratos ou opres-
De acordo com a Defensoria Pública, as de- são, conforme Princípios Fundamentais
núncias de casos de tortura podem ser en- do Código de Ética Profissional (Resolução
caminhadas ao próprio Núcleo da Política CFP nº 010/2005).
Criminal e da Execução Penal (NUPEP)
da Defensoria Pública, mas também ao Em colaboração e respeito às suas atribui-
Ministério Público e, em alguns casos, para ções enquanto autarquia pública, o CRP-PR
o Grupo de Atuação Especial de Combate se coloca à disposição da categoria e socie-
ao Crime Organizado (Gaeco), para o Grupo dade, por meio de suas funções de orienta-
de Atuação Especializada em Segurança ção, fiscalização e disciplina, na defesa dos
Pública (GAESP) ou para as Promotorias direitos humanos e na fiel observância dos
Criminais. A instituição ainda destaca que princípios de ética da classe profissional.
é possível realizar a denúncia pelo serviço
Saiba mais:
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Política e o papel
Ético da Psicologia,
uma reflexão necessária
Por psic. Mariana Bojanowshi (CRP-08/32497)*
M
ais do que nunca é importante valorizava a utilização de técnicas e aten-
refletir sobre o papel da(o/e) psi- dimentos individuais. Gabriel Gonçalvez
cóloga(o/e) no contexto político. Mattos, citando Ana Karina Amorim
O cenário político atual se encontra pola- Checchia e Marilene Proença Rebello de
rizado, trazendo à tona discursos extre- Souza na obra “Psicologia escolar: teorias
mistas e percepções deturpadas ou equi- críticas”, lembra que o Regime Militar en-
vocadas. Sem entrar na discussão sobre o controu na Psicologia um aliado para con-
significado do termo "política", por que trolar a população e disseminar a ideologia
deveríamos, enquanto categoria, participar de adaptação do indivíduo à sociedade.
dessa discussão?
A ditadura civil-militar marcou a história da
Podemos iniciar nossa pesquisa com um formação da Psicologia. Foi naquela época
*A autora escreveu a convite da Revista Contato
exame sobre a origem da Psicologia. A saú- que aconteceu a criação das entidades re-
de mental no Brasil e em outros lugares gulamentadoras do exercício profissional
do mundo vem de uma história de lutas, da(o/e) psicóloga(o/e). Fernanda Martins
personagens e trajetórias, mobilizações, Pereira e André Pereira Neto (2003) desta-
discussões e rupturas. O lugar de onde nos cam que houve neste período um crescimen-
posicionamos para construir, narrar essas to considerável do número de profissionais
ÉTICA
CONTATO 144 | 31
segundo o artigo publicado em 2014, uma O Código de Ética Profissional da Psicologia,
função normalizadora, buscando adaptar em sua mais recente versão de 2005, é bem
os indivíduos a uma sociedade desajustada explícito no que tange aos direitos huma-
e opressora, não se pronunciando contra o nos. Psicólogas(os/es) não devem ser coni-
regime e sendo, ao mesmo tempo, coniven- ventes com práticas que caracterizem vio-
te com esse sistema repressivo. lência, opressão, negligência, discriminação
e práticas desse tipo, nem mesmo com o
Já a partir de 1970, percebe-se no Brasil uso de conhecimentos e práticas psicológi-
uma disseminação de discursos vinculados cas para tal finalidade. A partir da visão da
a entidades pautadas pelos princípios dos história da Psicologia podemos refletir so-
direitos humanos, vindo principalmente bre a importância que a política teve para
dos movimentos sociais, que condenavam a construção da classe como vemos hoje.
e resistiam aos regimes militares. É em 1982 Não se trata de partido político ou simpatia
que se conquista, por meio dos movimen- por um candidato ou outro: trata-se de po-
tos e organizações sociais, a fundação do líticas públicas, acesso aos direitos básicos,
primeiro Movimento Nacional de Direitos luta contra preconceito e ódio.
Humanos, conforme nos conta o autor Paulo
Cesar Carbonari no livro “Direitos Humanos A Psicologia não deve se eximir de sua fun-
no Brasil 2. Diagnósticos e Perspectivas”, ção social, de pensar os processos de rup-
de 2007. tura como dispositivos de mudança, com
potencial político transformador. Tanto a
Foi em 1995, em um contexto de medidas produção de conhecimentos quanto a refle-
neoliberais e também de chacinas, assas- xão intelectual devem agir como instrumen-
sinatos de crianças, adolescentes, homos- tos de denúncia e de intervenção. Como
sexuais, linchamentos e balas perdidas, nos lembram as autoras Aline Hernandez e
que o governo federal anunciou o Plano Helena Scarparo (2008), a produção de co-
Nacional de Direitos Humanos. Poucos anos nhecimentos é intervenção social na medi-
antes da criação da Secretaria Nacional de da em que favorece, por meio da crítica, a
Direitos Humanos, em 1987, foi lançada capacidade de revisitar o passado trazendo
a primeira versão do Código de Ética do à tona lembranças silenciadas.
Profissional da Psicologia. Passados dez
anos dessa resolução, a questão dos direi- O comportamento equivocadamente
tos humanos no campo da Psicologia se po- esperado de profissionais da Psicologia
tencializa por meio da criação – no âmbito acaba sendo estereotipado, aquele que não
nacional no Conselho Federal de Psicologia fala muito, com “cara de paisagem” e um
(CFP) em 1997, e nos Conselhos Regionais ar misterioso. Mas, sabemos, hoje em dia,
(CRPs) em 1998 – das Comissões de Direitos que isso não nos representa como um todo.
Humanos (CDHs). Independente de técnicas ou abordagens
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de atendimento e manejo, cada profissio- dos e prática. Entender isso possibilita nos
nal vai encontrar sua forma de trabalhar. colocar a ouvir, sentir, refletir e questionar
O importante é entendermos nosso papel sobre o que está à nossa volta, para além
como críticos de uma sociedade, críticos de das quatro paredes do consultório.
nossa própria teoria. A partir do exame do
“zeitgeist” (termo alemão para expressar o “Existem momentos na vida onde a
espírito da época), refletimos nossa práti- questão de saber se se pode pensar
ca a partir de onde estamos inseridos. Até diferentemente do que se pensa, e
mesmo Freud, pai da Psicanálise, mudou perceber diferentemente do que se
sua prática após o pedido de uma pacien- vê, é indispensável para continuar a
te para ouvi-la sem uso da hipnose, entre olhar ou refletir.” (Foucault, 1984).
outras mudanças em sua teoria após estu-
Foucault, M. (1984). História da Sexualidade II.O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal.
bit.ly/3ODbFmv
bit.ly/3W5BEpg
bit.ly/3hBKjAP
bit.ly/3iJAEIO
bit.ly/3VhHN1q
Um diálogo entre Fabiane Kravutschke Bogdanovicz (CRP-08/19219) e João Victor
da Silva (CRP-08/25123), conselheire e conselheiro do XV Plenário
Pra mim, o afeto foi e é uma força motriz, ele me puxa, me coloca em movimento,
conhecendo coisas, e lugares, e pessoas, nesse percurso. E, nesse me deslocar, eu
experimento coisas outras, outras possibilidades da existência, que permitem
outras construções, diferentes das que antes pareciam possíveis.
ESPAÇO PSI Ψ
Foi este afeto que me permitiu estar em um lugar em que posso atuar em prol
dos meus ideais, em prol de uma categoria e profissão sobre a qual tenho certeza
que escolhi para a vida. Ocupar estes espaços hoje me permite chegar ainda mais
longe, não apenas como indivíduo, mas como causa, como coletivo, defendendo
posicionamentos e existências tanto meus quanto de outres.
Depois de tudo isso não pude deixar de viver uma não monogamia dos afetos,
das minhas relações pessoais, dos locais que ocupo, sendo transpassado por
este constante fluir dos relacionamentos. Isto se tornou um posicionamento
ético, uma conduta de vida, na busca de um mundo em que diversos mundos
possam existir.