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O MÍNIMO EXISTENCIAL E A TRIBUTAÇÃO INDIRETA:


Possibilidades hermenêuticas na proteção de vulneráveis
The Minimum Core In Taxation:
Hermeneutic possibilities in the protection of vulnerable

SUMÁRIO: 1 Neoconstitucionalismo e normatividade da Constituição; 1.1 Supremacia e


filtragem constitucional; 1.2 A norma e suas espécies; 1.3 O Neoconstitucionalismo no direito
tributário; 2. O suporte fático da norma tributária no novo paradigma; 3 A intributabilidade do
mínimo existencial; 4 Possíveis horizontes para a proteção dos vulneráveis; Conslusão.
Resumo: O presente estudo tem por escopo analisar a teoria clássica da norma jurídica
tributária em cotejo com a Constituição da República de 1988, no intuito de verificar sua
compatibilidade com os fundamentos e objetivos definidos pelo constituinte originário. Nesse
sentido, o foco do trabalho se volta para a questão da tributação sobre o consumo, cuja
hipótese fática de incidência recai sobre o mínimo existencial daqueles que não ostentam
capacidade contributiva.
A metodologia a ser empregada será sistemático-dedutiva, partindo dos pressupostos lógicos
de incidência da norma tributária, funcionalizados pelos princípios e objetivos delineados pela
Constituição da República de 1988, pretende-se demonstrar a incompatibilidade da teoria
clássica, de cunho positivista, na resolução de questões ligadas à tributação sobre o consumo,
bem como propor novas possibilidades de atuação nessa sera.
Palavras Chave: norma jurídica tributária, capacidade contributiva, mínimo existencial,
tributação sobre o consumo.
Abstract: The present study aim to analyze the classical theory of legal tax rule in comparison
with the Constitution of 1988 in order to verify its compatibility with the reasons and
objectives defined by the original constituents. In this sense, the focus of the work turns to the
issue of taxation on consumption, whose factual hypothesis incidence falls on the minimum
existential those which do not have ability to pay.
Key words: tax rule of law, fiscal capacity, existential minimum, tax on consumption.

Introdução
É cediço que o novo regime democrático institucionalizado pela Constituição da
República de 1988 implicou significativas mudanças estruturais em todo os sistema jurídico
positivo. No afã de construir uma sociedade livre, justa e solidária, a República surge para
erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem
como para promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Destarte, para concretizar seus objetivos, a República Federativa do Brasil não optou
por um modelo econômico liberal nos moldes do “laissez faire, laissez passer” e, tampouco
por estatizar os meios de produção e extinguir a propriedade privada no estilo marxista.
O artigo 170, CRFB, determina os parâmetros para o desenvolvimento da atividade
econômica, que tem por fim assegurar a todos existência digna. Nessa cadeia produtiva situa-
se o direito tributário, exercendo suas exações com a finalidade de arrecadar recursos para
financiar os custos da realização dos direitos fundamentais garantidos pelo artigo 5º, CRFB.
Entretanto, verifica-se que o Brasil é um país de extrema concentração de renda e
grandes desigualdades sociais e econômicas, razão pela qual o constituinte originário optou
por garantir ao cidadão limites à intervenção do estado sobre o seu patrimônio. Assim, o art.
150, CRFB, no seu inciso II, determina a incidência do princípio da igualdade na relação
2

jurídica tributária, já em seu inciso IV, determina a proibição de utilização do tributo com
efeito de confisco.
Essas determinações constitucionais passam despercebidas na teoria clássica do
direito tributário, que se funda num modelo positivista excludente, o qual se constrói sob a
falsa percepção de que as imposições constitucionais se dirigem apenas ao legislador. Sob a
falácia da “tripartição dos poderes” e da “segurança jurídica” se constroem verdades lógicas,
as quais, sob aparente neutralidade científica, escondem uma rede de poder e troca de favores,
maquiados por lobbys e concretizados no sistema de isenções fiscais.
Na primeira parte do trabalho apresenta-se o novo paradigma do direito, centrado na
Constituição e na promoção dos direitos fundamentais, considerados em sua normatividade,
para então construir o conceito de norma jurídica tributária e suporte fático.
Já na segunda parte, faz-se o cotejo com a doutrina clássica do direito tributário e seu
conceito de norma jurídica tributária, buscando-se demonstrar sua insuficiência, para construir
um suporte fático com elementos normativos do tipo que centralize a proteção dos valores
constitucionais no conceito de efeito confiscatório.
Ao final, pretende-se oferecer novas perspectivas operacionais para a proteção de
vulneráveis que não ostentam capacidade contributiva para financiar os gastos do Estado, bem
como propor uma atuação mais incisiva do Ministério Público de das Defensorias Públicas
nesse setor, vislumbrando-se a possibilidade do manejo de Inquéritos Civis Públicos, Ações
Constitucionais e Ação Civil Pública.

1 Neoconstitucionalismo e normatividade da Constituição

Os efeitos do segundo pós-guerra transformaram a concepção do constitucionalismo


contemporâneo de tal sorte que parte da doutrina nacional e estrangeira tem denominado o
fenômeno de “neoconstitucionalismo”, ou “neoconstitucionalismo(s)”. O reconhecimento da
força normativa e vinculante da constituição, a opção por um sistema de regras e princípios, a
filtragem constitucional, a aplicação horizontal dos direitos fundamentais e sua eficácia
irradiante, bem como a superação do positivismo e do método exclusivamente silogístico, são
exemplos deste novo cenário.1
Na acepção de Daniel Sarmento:
O Direito brasileiro vem sofrendo mudanças profundas nos últimos
tempos, relacionadas à emergência de um novo paradigma tanto na
teoria jurídica quanto na prática dos tribunais, que tem sido
designado como "neoconstitucionalismo". Estas mudanças, que se
desenvolvem sob a égide da Constituição de 88, envolvem vários
fenômenos diferentes, mas reciprocamente implicados, que podem
ser assim sintetizados: (a) reconhecimento da força normativa dos

1
Cf.CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid:Trotta, 2003.SARMENTO, Daniel. E
SOUZA NETO, Claudio Pereira de. (org.) A constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e
Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2007. BARROSO,Luis Roberto. Interpretação e Aplicação
da Constituição. 7ª Ed. São Paulo:Saraiva, 2009.__. “Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito
constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crpitica e pós-positivismo)”. In:BARROSO, Luis Roberto.
“Temas de Direito Constitucional - Tomo II. 2ª Ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2009. CANOTILHO, José
Joaquim. Gomes. “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”. 7ª Ed. Portugal, Coimbra, Almedina,
2003.SARLET, Ingo Wolfgang.“ A Eficácia dos Direitos Fundamentais”. 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009.ALEXY, Robert. “Teoria dos Direitos Fundamentais”. São Paulo: Malheiros, 2008.
3

princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de


aplicação do Direito; (b) rejeição ao formalismo e recurso mais
freqüente a métodos ou "estilos" mais abertos de raciocínio jurídico:
ponderação, tópica, teorias da argumentação etc.; (c)
constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e
valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos
fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; (d)
reaproximação entre o Direito e a Moral, com a penetração cada vez
maior da Filosofia nos debates jurídicos; e (e) judicialização da
política e das relações sociais, com um significativo deslocamento de
poder da esfera do Legislativo e do Executivo para o Poder
Judiciário.2
O modelo teórico neoconstitucionalista, constrói-se a partir da compreensão de três
marcos fundamentais que refletem a mudança de paradigma e a evolução do direito
constitucional, são eles o histórico, teórico e o filosófico3.O marco histórico do novo direito
constitucional, na Europa continental, foi o constitucionalismo do 2º pós-guerra,
especialmente na Alemanha e na Itália. Já no Brasil, o processo de redemocratização
impulsionado pela promulgação da Constituição da República de 1988.
Conforme Luís Roberto Barroso:
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2ª Grande
Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar
da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as
instituições contemporâneas. A aproximação das idéias de
constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de
organização política, que atende por nomes diversos: Estado
democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado
constitucional democrático.4

O marco filosófico é caracterizado pela síntese de duas correntes: (1) A do


jusnaturalismo e da filosofia do direito natural, cujo fundamento compreendia a crença em
princípios jurídicos universalmente válidos que traduziriam direitos inerentes a própria
natureza humana, fundamentando-se como ordem supra legal; (2) e sua antítese o positivismo,
cujo fundamento era a norma hipotética fundamental, derivada do poder mais eficaz, que
determinava a validade do direito por meio de um sistema escalonado de regras sem a
preocupação com o conteúdo da norma.
No pós-positivismo há uma reformulação da teoria da norma e os princípios passam
a ter outra função no sistema jurídico. Assim, o constitucionalismo contemporâneo atribuiu
força normativa à Constituição, a qual deixou de ser considerada apenas um documento
essencialmente político, destinado a orientar a produção legislativa.

1.1 Supremacia e filtragem constitucional

2
.SARMENTO, Daniel. E SOUZA NETO, Claudio Pereira de. (org.) A constitucionalização do Direito:
Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2007, p.10.
3
Cf.BARROSO,Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª Ed. São Paulo:Saraiva, 2009.
4
Cf.BARROSO,Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 7ª Ed. São Paulo:Saraiva, 2009, p.
203.
4

Atualmente, não há como se aplicar o direito de forma válida sem que se faça alusão
à Constituição da República, além das grandes questões, ela também influência a resolução de
pequenos conflitos; é invocada em quase todas as disputas judiciais, no Congresso Nacional,
na doutrina especializada dos diversos ramos do direito e, até mesmo, para encampar
bandeiras ideológicas.
A ideia de supremacia da Constituição atravessa o seu próprio conceito polissêmico,
analisada sob seus aspectos formais verifica-se que é a lei fundamental do Estado brasileiro,
situada no ápice do ordenamento jurídico, conferindo validade a todas as outras espécies
normativas. “Na qualidade de norma primária sobre a produção jurídica a Constituição tem
importantes funções: (1) identifica as fontes do direito; (2) estabelece os critérios de validade
e eficácia de cada uma das fontes; (3) determina a competência das entidades que revelam
normas de direito positivo”5
Portanto, trata-se de um conjunto de normas, que regula a organização, o
funcionamento e as competências de um Estado, assim como também garante os direitos
fundamentais de seus cidadãos.
Sob o aspecto material deve ser compreendida como uma aquisição histórica da
sociedade que pretende regular, pois “positiva” importantes conquistas sociais, opções
políticas fundamentais e estabelece fins a serem atingidos. Nesse sentido, diz-se que a
Constituição traz em seu conteúdo as diretrizes mais importantes de uma comunidade,
protegidas por um procedimento mais rigoroso de alteração.
Nessa esteira José Afonso da Silva pontifica:
Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o princípio da
supremacia da constituição que, no dizer de Pinto Ferreira, é reputado
como pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito
político. Significa que a constituição se coloca no vértice do sistema
jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes
estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na
proporção por ela distribuídos. É em fim a lei suprema do Estado, pois
é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização
de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de
Estado.6

Nessa perspectiva, ao voltar-se para produção normativa, a Constituição também


adquire força normativa, isto é, capacidade de vincular e de conformar condutas, dando
segurança às expectativas de comportamento. Assim, é compreendida como “ordem-quadro
da República”, pois o caráter indeterminado de muitas de suas normas obriga o legislativo, o
executivo, o judiciário, bem como toda a sociedade civil a preencher e concretizar o seu
conteúdo de acordo com conjectura que se apresente.
Nas Lições do ilustre J.J. Gomes Canotilho:
A força normativa da constituição visa exprimir, muito simplesmente,
que a constituição sendo uma lei como lei deve ser aplicada. Afasta-se
a tese generalizadamente aceita nos fins do século XIX e nas
primeiras décadas do século XX que atribuía à constituição um “valor
declaratório”, “ uma natureza de simples direção política”, um caráter

5
CANOTILHO, José Joaquim. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed. Portugal,
Coimbra, Almedina, 2003, p. 693.

6
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 46.
5

programático despido de força jurídica actual caracterizadora das


verdadeiras leis. (...)
Se a constituição é uma lei como as outras, em alguma coisa se
distingue delas. O caráter aberto e a estrutura de muitas normas da
constituição obrigam à mediação criativa e concretizadorados
“intérpretes da constituição”, começando pelo legislador (primado da
competência concretizadora do legislador) e pelos juízes, sem
esquecermos hoje o primordial papel concretizador desempenhado
pelo governo quer na sua qualidade de órgão que dirige, superintende
e/ou tutela a administração pública.7

Atualmente é prática comum utilizar argumentos de ordem constitucional em


praticamente todos os processos judiciais, seja na área civil, penal, trabalhista, previdenciária
etc. O fenômeno não se restringe apenas aos processos judiciais, pois fomentam os debates
parlamentares, reivindicações da sociedade civil, ideologias de grupos minoritários e até
mesmo omissões estatais.
Para Daniel Sarmento “a constituição tornou-se ubíqua”. Ao referir-se a ubiqüidade
constitucional o autor conduz a ideia de onipresença da Constituição Federal, ou seja:
[...] a constitucionalização do Direito vai desafiar antigas fronteiras
como Direito Público/Direito Privado e Estado/sociedade civil. Isto
porque, numa ordem jurídica constitucionalizada, a Constituição não é
apenas a lei fundamental do Estado. Ela é a lei fundamental do Estado
e da sociedade. Nenhum ramo do Direito escapa completamente às
suas malhas. Se, por um lado, a pluralidade e complexidade dos
interesses presentes numa sociedade cada vez mais heterogênea
continuam justificando e demandando uma crescente especialização
no âmbito jurídico, por outro, há agora um centro de gravidade, capaz
de recolher e juridicizar os valores mais importantes da comunidade
política, no afã de conferir alguma unidade axiológica e teleológica ao
ordenamento.8

Assim, outro efeito fundamental da constitucionalização corresponde à “filtragem


constitucional”, que impõe a releitura de antigos institutos a luz da Constituição, resultando
muitas vezes em mudanças de paradigmas nos mais diversos ramos do direito.

1.2 A norma e suas espécies


Inicialmente, é necessário fixar o conceito de norma, para então analisarmos a suas
espécies, já que este novo conceito implica num dos principais efeitos do direito
constitucionalizado. Normas, portanto, são produtos da interpretação dos textos. Exemplo: as
normas gramaticais que podem ser extraídas a partir da leitura de um livro. A norma contém
um “dever-ser”. Como tal, estabelece como deveria ser uma situação. Contrapõe-se às
descrições, que se destinam a analisar a realidade como ela é. O direito destina-se a estabilizar
expectativas de comportamento que não se adéquam às frustrações, devendo ser estabilizadas
de modo normativo. Isto é, seleciona comportamentos a partir dos dados da experiência e

7
CANOTILHO, José Joaquim. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed. Portugal,
Coimbra, Almedina, 2003, p.1150.
8
.SARMENTO, Daniel. E SOUZA NETO, Claudio Pereira de. (org.) A constitucionalização do Direito:
Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2007, p.113.
6

atribui caráter deontológico a esses tipos de comportamento, os quais deverão ser observados
por todos, sob pena de uma consequência jurídica.
Nesse sentido, Friederich Müller ao discorrer sobre normatividade, norma e texto da
norma, afirma que a normatividade pertence à norma segundo o entendimento veiculado pela
tradição, isto é, não é produzida pelo seu texto, antes resulta de dados extralingüísticos de tipo
estatal-social, do funcionamento efetivo e da atualidade concreta do ordenamento
constitucional, perante motivações empíricas em sua área de atuação.Assim, não há como
fixar todo o sentido da norma apenas em seu texto.

Inocêncio Mártires Coelho sintetiza:

Além disso, conclui Müller, mesmo no âmbito do direito vigente a


normatividade que se manifesta em decisões práticas não está
orientada, linguisticamente, apenas pelo texto da norma jurídica
concretizada; muito pelo contrário, todas as decisões são elaboradas
com a ajuda de materiais legais, de manuais didáticos, de comentários
e estudos monográficos, de precedentes e subsídios do direito
comparado, quer dizer, com a ajuda de numerosos textos que não são
nem poderiam ser idênticos ao teor literal da norma e,até mesmo, o
transcendem9

Da interpretação surge um dever-ser, ou seja, uma norma. Há três modalidades


básicas de “dever-ser”, conhecidos como modais deônticos: obrigatório, permitido ou
proibido. Em geral, a maior parte das normas está ligada a um desses casos, embora existam
outras modalidades, inclusive no âmbito dos direitos fundamentais, que permitam algo a
alguém ou imponham dever a outros.
Essa distinção entre texto e norma é extremamente importante na metódica atual e se
coloca como verdadeiros topos na literatura jurídica. A “nova hermenêutica jurídica” tem
como dogma a não identificação entre texto e norma, logo não há no ordenamento jurídico,
soluções prontas e acabadas para cada problema.
A norma, portanto, é produzida pelos interpretes10. Interpretar o direito é uma relação
entre duas expressões: a primeira que porta uma significação que é o objeto da interpretação;
e a segunda, denominada interpretação. O texto é um signo e para ter significado carece da
ação de um sujeito cognoscente. Assim, o Professor e ex-ministro Eros Grau, costumava
utilizar um exemplo analógico muito elucidativo para este fenômeno, diz ele que as artes são
ou alográficas, ou autográficas, a proza e a pintura são tipos de arte autográfica, no sentido de
que para obter emoção estética não se necessita da intermediação de um intérprete. Lê-se um
poema e frui-se, olha-se um quadro e obtêm-se imediatamente emoção estética. A completude
da obra de arte se dá tão só pela ação do artista que escreveu ou pintou. Nas artes alográficas,
ao contrário, para obter emoção estética necessita-se da mediação de um intérprete, a música e
uma peça de teatro são apenas textos, ainda que se saiba ler uma partitura ou uma peça, a
completude da arte não se transmite apenas pelos escritos, é necessária a ação do artista, que
dá vida a este tipo de arte.
O eminente ex-ministro defende, nessa estrutura, que o direito é alográfico, porque o
texto normativo não se completa apenas no sentido expresso pelo legislador. Segundo ele, a

9
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009,pg129.

10
Que não são apenas os juízes, mas todos os atores processuais.
7

“completude” do texto somente é atingida quando o sentido por ele expressado é produzido
pelo intérprete, constituindo assim, a norma.
A definição é extremamente importante, uma vez que ao retirar do texto em si apenas
o início e o limite do seu caráter normativo, considerando-o completamente adquirido apenas
após o processo interpretativo, torna-se compreensível que um enunciado comporte uma ou
várias normas (fenômeno que ocorre na interpretação conforme a Constituição), bem como é
possível obter uma mesma norma mediante aglutinação de diferentes enunciados normativos
(diálogo das fontes), ou ainda, uma norma sem necessidade de recurso a um texto escrito. É o
que ocorre em sede de atribuição de sentido a preceitos fundamentais. Mediante um
procedimento interpretativo dialético constrói-se uma norma para tutelar um direito
fundamental, a exemplo do que ocorreu com o direito a união homoafetiva no Brasil, em
04/06/2011, por meio da ADI 4277 e ADPF 132 reconhecendo, por unanimidade, a união
estável para casais do mesmo sexo.
A distinção entre regras e princípios é particularmente importante para a
compreensão da aplicação dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico, pois não
obstante a intensa carga axiológica a que estão submetidas todas as normas que garantem
esses direitos, algumas assumem forma de regra, outras de princípio. Cabendo ao interprete
identificar se é o caso de imposição de algo definitivo, ou se é o caso de posições jurídicas a
serem realizadas na medida de suas possibilidades fáticas e jurídicas.
A perspectiva adotada no presente trabalho é a preconizada por Robert Alexy e
Virgilio Afonso da Silva, onde “o principal traço distintivo entre regras e princípios é a
estrutura dos direitos que essas normas garantem”11. No caso das regras, garantem-se direitos
ou se impõem deveres definitivos, ao passo que, no caso dos princípios, são garantidos
direitos ou são impostos deveres prima facie12.
Entende-se que princípios são “mandamentos de otimização” isso significa que são
realizados na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes, ao
contrário do que acontece com as regras, que operam de forma binária observando a lógica do
“tudo ou nada” (all or nothing), isto é, ou são subsumidas aos fatos ou não são aplicadas. Se
um direito é garantido por uma norma que tenha estrutura de uma regra, esse direito é
definitivo, devendo ser realizado totalmente caso a regra seja aplicável ao caso concreto, pois
tratando-se de regras é possível que haja uma exceção, ou ainda, que fatores externos a
tornem inaplicável. Por exemplo: a regra que proíbe a retroação da lei penal e sua exceção
(retroagir sempre para beneficiar o réu art. 5º, XL da CRFB). Já no caso da atipicidade da
conduta, pode-se falar em inaplicabilidade da regra, mesmo tendo ocorrido o fato por ela
prescrito.
Tratando-se de princípios, não se pode falar em realização sempre total daquilo que a
norma exige, pois, via de regra, essa realização é apenas parcial. Isso ocorre porque no caso
dos princípios há uma diferença entre aquilo que é garantido prima facie e aquilo que é

11
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: Conteúdo essencial, restrições e eficácia.
São Paulo: Malheiros, 2009, pg 45.
12
“Uma primeira característica importante que decorre do que foi dito até agora é o distinto caráterprima facie
das regras e dos princípios. Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um mandamentodefinitivo, mas
apenas prima facie. Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o resultado seja
aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões
antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e contra- razão não é algo
determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da extensão de seu conteúdo em face
de suas restrições e das possibilidades fáticas.”-ALEXY, Robert. Teoria dos DireitosFundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2008, p.103.
8

garantido definitivamente. Nessa linha é que se diz, que ao contrário do que ocorre no modelo
de regras jurídicas, os princípios podem ser realizados em diversos graus. O objetivo é sempre
chegar ao grau máximo de realização do direito, no entanto, esse patamar dificilmente é
alcançado seja em virtude das condições fáticas13, ou jurídicas ideais.14
No caso das regras, verifica-se que sua aplicação não depende das condições
jurídicas do caso concreto, sendo na maioria das vezes aplicada em abstrato por meio de
subsunção do fato à norma, enquanto que aos princípios aplica-se o sopesamento. Isso não
significa que regras não careçam de interpretação para serem aplicadas, pelo contrário, toda
norma é produto de uma interpretação, seja ela uma regra ou um princípio. A aplicação se dá
sobre o produto da interpretação dos textos, dispositivos e da realidade fática, portanto, não é
o texto que define a espécie normativa.

1.3 O Neoconstitucionalismo no direito tributário

No campo direito tributário percebe-se que a doutrina majoritária manteve-se alheia a


essas transformações e permanece aplicando um modelo de tributação típico da modernidade
inspirado nas noções de segurança, certeza e previsibilidade científica, O qual era
perfeitamente coerente com o momento histórico de transição que se vivia, onde a força do
soberano impunha-se sobre os súditos violando a sua propriedade e dilapidando o seu
patrimônio com a finalidade de manter uma estrutura de privilégios para classes que não
contribuíam para o processo produtivo.

Já no inicio da modernidade, houve um rompimento do modelo de sociedade


estamentária e a superação de uma estratificação que financiava a nobreza e o clero com os
recursos da burguesia. Entretanto, com a centralização do poder nas mãos do soberano emerge
a idéia de que também os governantes deveriam se submeter a ordenamentos jurídicos
estáveis, pré-definidos e dotados de racionalidade. O direito surge vinculado à órbita do
princípio da liberdade, uma vez que sua finalidade era limitar o poder estatal em favor de
determinados direitos invioláveis dos súditos. No entanto, com a quebra da unidade religiosa
também se perdeu a coerência da justificativa do poder político alicerçado na vontade divina.
Sob essa perspectiva, desenvolveram-se as teorias do contrato social que passaram a justificar
a existência do Estado em nome dos interesses dos indivíduos. John Locke (1632 – 1704)
sustentava a idéia de que ao celebrar o contrato social as pessoas alienam para o Estado
apenas uma parcela de sua liberdade, conservando determinados direitos naturais e
inalienáveis do homem: vida, liberdade, propriedade e resistência.

Cumpre salientar, neste contexto, que Loke, assim como já o havia


feito Hobbes, desenvolveu ainda mais a concepção contratualista de
que os homens têm o poder de organizar o Estado e a sociedade de
acordo com sua razão e vontade, demonstrando que a relação
autoridade-liberdade se funda na autovinculação dos governados,
lançando, assim, as bases do pensamento individualista e do
jusnaturalismo do século XVIII, que, por sua vez, desaguou no

13
por exemplo: ausência de recursos suficientes no fornecimento de certos medicamentos para a realização
máxima do direito à saúde)
14
Possível colisão com outros princípios, ausência de regulamentação
9

constitucionalismo e no reconhecimento de direitos de liberdade dos


indivíduos considerados como limites ao poder estatal.15

Destarte, a tributação também deveria obedecer aos mesmos pressupostos lógico-


filosóficos derivados do princípio estruturante da liberdade, assim o Estado só poderia intervir
no patrimônio do cidadão para garantir as condições mínimas de segurança para suas
transações comerciais, sendo certo que esta intervenção só era justificada na medida em que
fosse furto da vontade popular, expressa pela Lei.

Nesse sentido, a tributação no Estado de Direito era concebida como uma contribuição
à liberdade:
O Estado de Direito se caracteriza pela afirmação da liberdade
individual e a limitação do poder do Estado. Consagra-se a idéia de
liberdades públicas (crença, opinião, religião, entre outras). É
garantido ao indivíduo possuir crenças particulares independentes de
uma crença “oficial”. Esta afirmação é o resultado de lutas históricas
pela afirmação dos direitos humanos e do cidadão, no longo percurso
que nos traz da servidão à cidadania.
A tributação nessa fase não pode ser a “opressão” da liberdade, que o
Estado anteriormente promovia. A fiscalidade deve estar submetida a
limites claros ao poder do Estado em tributar. O patrimônio privado
nação pode estar à mercê dos interesses do soberano e de suas razões
secretas. A tributação deve estar limitada. Ser fruto da representação
popular e respeitar os direitos e garantias do contribuinte. O
pagamento do tributo, antes de ser um ato de servidão, é uma
contribuição do particular à manutenção da esfera pública de
liberdade, que garante a cidadania.16

Esse modelo de Estado corresponde ao modelo de constitucionalismo francês, que teve


como marco inicial a Revolução Francesa iniciada em 1789. Os revolucionários franceses não
pretendiam apenas modificações pontuais no Antigo Regime, eles visavam a construção de
um novo Estado e de uma nova sociedade, moldada pelos ideais iluministas da igualdade,
liberdade e fraternidade. Essa vontade de romper com o passado e instituir uma nova ordem,
conduziu a elaboração conceitual do poder constituinte, proposta por Emanuel Sieyès, que
exprimia a idéia de soberania da Nação, completamente desvencilhada de quaisquer limites
impostos pelo ordenamento jurídico do passado. O poder constituinte fundaria uma nova
ordem, criando novos órgãos e poderes (os poderes constituídos), os quais permaneceriam a
ele vinculados.
A Constituição deve corresponder a uma lei escrita e determinar quais os valores e
propósitos que a sociedade almeja para o futuro. Esses valores estavam bem sintetizados na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que definia inclusive o que era
uma Constituição em seu art.16: “Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos não é
assegurada nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”.

Nesse sentido, fica claro o protagonismo do Poder Legislativo no modelo de Estado de


Direito, uma vez que, teoricamente, é ele quem encarna a soberania popular.
15
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª Ed. Porto Alegre, 2009, p.40.
16
CALIENDO, Paulo. Direito tributário: Três modos de pensar a tributação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p.83.
10

Historicamente, esta concepção deveu-se tanto à desconfiança que os


franceses nutriam em relação ao Judiciário, visto como uma
instituição corrompida e associada ao Antigo Regime, como à
valorização da lei, concebida como a expressão da vontade geral do
povo. Isto levou, na prática, a que a Constituição acabasse
desempenhado o papel de proclamação política, que deveria inspirar a
atuação legislativa, mas não de autêntica norma jurídica, que pudesse
ser invocada pelos litigantes nos tribunais.17

A função dos juízes, ao longo do século XIX, estava orientada no sentido de


legitimar a atuação do legislador que possuía um lugar de destaque político no contexto da
distribuição dos poderes constitucionais. O afastamento do juiz do campo da política visava
assegurar a reprodução fiel do direito positivo legislado, considerado expressão máxima da
vontade geral popular na resolução dos conflitos individualizados, garantindo, desta forma, os
direitos e as liberdades individuais. Em síntese, esse tipo de configuração das funções dos
magistrados correspondia ao entendimento da tripartição dos poderes, assegurando
legitimidade e de distribuição do poder político num sistema orientado pelos imperativos do
liberalismo.
Na aplicação deste direito puro e idealizado, a interpretação jurídica é um processo
silogístico de subsunção dos fatos à norma. O Poder Judiciário era apenas “a boca da lei”.
Montesquieu afirmava: “Os Juízes da Nação, como dissemos, são apenas a boca que
pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem
o rigor”18Assim, vigorava o princípio da tripartição dos poderes, impedindo o juiz de exercer
qualquer papel criativo.
Destarte, a proposta dos juristas era construir um sistema jurídico cartesiano de forma
estritamente “racional”, ou seja, isento de qualquer “juízo de valor” que pudesse levar a
subjetivismos. A intenção dos positivistas era colocar a ciência do direito a salvo de eventuais
interferências da filosofia, da sociologia e da política.
O positivismo jurídico reduziu o direito a um sistema puramente lógico-dedutivo, um
conjunto de normas de comportamento hierarquicamente organizadas, editadas pelo Estado
soberano, segundo um procedimento previamente definido e dotadas de coercibilidade. Isso
significou que a racionalidade do direito era encontrada na medida em que se verificava se a
norma era validada por outra que lhe era superior, até culminar na norma hipotética
fundamental determinada pelo Poder Político mais eficaz. Não se questionava se o conteúdo
da norma era “racional”, uma vez que a razão não se manifestava na avaliação objetiva do
comando prescrito. Essa é matriz do direito tributário no Brasil.

2. O suporte fático da norma tributária no novo paradigma

A compreensão do fenômeno jurídico envolve, necessariamente, o manuseio de


conceitos específicos da ciência jurídica. Por mais que se faça uso corrente de significados
oriundos de outras áreas do conhecimento, como a filosofia, a sociologia e a economia, o
sistema jurídico sempre irá decodificá-los à luz dos seus princípios intrínsecos. Sendo assim,
a partir de conceitos mais gerais, os quais possuem maior número de conexões, se constroem

17
SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte:
Fórum, 2012. p.74.
18
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O espírito das Leis. 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2000.
11

outros mais específicos, até que se forme uma rede de determinações que permitem
compreender o fenômeno em sua completude e de forma coerente.
No campo do direito tributário, o conceito-chave é o de norma jurídica tributária, a
partir deste conceito é que se compreende uma série de outros institutos como a relação
jurídica tributária, a obrigação tributária, a responsabilidade tributária, o crédito tributário, as
isenções, imunidades e assim por diante. A doutrina clássica, capitaneada por Geraldo
Ataliba, Alfredo Augusto Becker e Paulo de Barros Carvalho, tinha por escopo construir um
sistema jurídico-tributário que fosse imune aos mandos e desmando do Poder Público, que
municiado do seu poder de império, alterava regulamentos aleatoriamente, tributava várias
vezes o mesmo fato e inflacionava a legislação de tal forma que se tornava humanamente
impossível compreender o fenômeno da tributação.
Destarte, para alcançar seu desiderato, estruturaram um sistema jurídico positivo, isto
é, imune a quaisquer ingerências políticas e valorativas, composto por um antecedente (fatos
do mundo que interessam ao direito) e um conseqüente (hipótese de incidência previamente
determinada), destarte, somente quando preenchidas essa qualidades se formaria uma relação
jurídica tributária e, automaticamente, se ativariam as conseqüências jurídicas (dever de pagar
o tributo e/ou cumprir obrigações acessórias).
Paulo de Barros Carvalho, no egocentrismo hermenêutico que lhe é peculiar, chega a
afirmar que o conceito de norma guarda “homogeneidade sintática”, alegando que “é difícil
admitir que o comando deôntico jurídico deixe de revestir aquela estrutura imputativa
trabalhada por Hans Kelsen19”. A estrutura jurídica, para a doutrina clássica, não contém
elementos valorativos, sendo certo que:
O legislador formula conceitos sobre os fatos do mundo real-social,
escolhendo aqueles que ostentem signos presuntivos de riqueza
econômica. Entretanto, dada a multiplicidade de aspectos que dizem
respeito a todo e qualquer acontecimento, o legislador vê-se
compelido a selecionar caracteres, eleger traços, indicar meios de
identificação do fato que quer juridicizar, que aparecerá, então, como
recorte daquilo que seria o fato bruto. Pontes de Miranda utilizou
suporte fático para designar o fato bruto e o fato jurídico para referi-se
àquela porção demarcada pelas notas da descrição hipotética.
Acrecentemos que o fato bruto, o suporte fático, é plurilateral; o fato
jurídico é que é, todo ele exclusivamente jurídico.20
Note-se que os “signos presuntivos de riqueza” estão fora do suporte fático da
norma, sendo uma presunção jures et de jure do legislador. Nas palavras do supracitado PBC:
Consoante ousamos supor, no Brasil, o sistema do direito positivo,
exibe em todas as figuras tributárias conhecidas, a observância do
princípio da capacidade contributiva absoluta, (sic!) uma vez que os
fatos escolhidos são aqueles que denotam signos de riqueza. Em
outras palavras, por capacidade contributiva deve entender-se apenas a
absoluta e, mesmo assim, como dado pré-jurídico. Realizar o princípio
da capacidade contributiva quer significar, portanto, a opção a que se
entrega o legislador, quando elege para antecedente das normas
tributárias fatos de conteúdo econômico que, por terem essa natureza,
fazem pressupor que as pessoas que deles participam apresentam

19
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 5ª Ed. São Paulo: Noeses, 2013, p.
129.
20
Idem. P. 148.
12

condições de colaborar com o Estado mediante parcelas de seu


patrimônio.21

O conceito de norma jurídica tributária é fundamental para os operadores do direito,


pois compreende diversos elementos que não se resumem apenas ao texto legal. Entretanto,
sua estrutura foi desenvolvida segundo o pensamento do direito penal clássico, sem
considerar os elementos normativos do tipo, desenvolvidos a partir da escola Neokantista, os
quais, atualmente, se encontram no conceito estratificado de crime22. Assim, para os
tributaristas que adotam o modelo lógico-formal, a hipótese de incidência se comporta como
um tipo penal, fattispecie, em italiano, ou tatbestand, para a doutrina germânica, mas no
modelo do século XIX.
Esse é um ponto crucial para o direito tributário e merece ser atualizado, assim como
a própria idéia de crime foi re-conceitualizada pela doutrina garantista. Os penalistas
ampliaram o instituto do fattispecie, e desenvolveram uma espécie de “tipicidade
conglobante23”, cujo conceito envolve os elementos formais do crime (conduta, nexo de
causalidade, dolo e culpa) aliados a elementos valorativos que demonstram a real ofensa ao
bem jurídico tutelado (lesividade, fragmentariedade, insignificância, inexigibilidade de
conduta diversa etc..). Sob essa ótica, não haveria crime se todos esses elementos não
estivessem presentes, isto é, o suporte fático não seria preenchido, impedindo a conseqüência
jurídica da imposição de sanção.
Alfredo Augusto Becker chega a desenvolver bem a idéia, mas opta por não inserir o
princípio da capacidade contributiva no suporte fático da norma tributária, talvez por não
compreendê-lo na sua normatividade constitucional.
A hipótese de incidência não é mônade. Para a composição de uma
única hipótese de incidência, entram múltiplos fatos (atos, fatos,
estados de fato), jurídicos e/ou não-jurídicos, que podem estar
reunidos na mais diversa combinação de número e espécie. Na
composição da hipótese de incidência, há um fato que desempenha a
função de núcleo e, por exclusão, todos os demais fatos exercem a
função de elementos adjetivos. Na hipótese de incidência tributária, o
núcleo é o fato escolhido para a base de cálculo. Toda e qualquer
hipótese de incidência, ao realizar-se, acontece num determinado
tempo e espaço. A regra jurídica ao preestabelecer os fatos que
integralizaram a hipótese de incidência, logicamente também
predeterminou as coordenadas de tempo e as de lugar para a
realização da hipótese de incidência.
Capacidade contributiva – A circunstância daquele fato lícito ser (ou
não) um fato signo presuntivo de capacidade contributiva, assume
relevância jurídica somente naqueles países cujo sistema jurídico
contiver regra jurídica constitucional, juridicizando o “princípio da
capacidade contributiva. Exclusivamente naqueles países, o legislador
tem o dever jurídico de escolher para a composição da hipótese de
incidência tributária fatos que sejam signos presuntivos de renda ou
capital acima do mínimo indispensável.

21
Idem. p. 336
22
Cf. DELMANTO JR., Celso. Do iluminismo ao “direito penal” do inimigo. In: FRANCO, Alberto Silva. E
NUCCI, Guilherme de Souza. Doutrinas Essenciais: Direito Penal. Vol.I. São Paulo: RT, 2010, p. 1117.
23
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro V.1. 6ª
edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
13

Porém, a regra jurídica que tiver sido estruturada desta maneira, tem
uma atuação dinâmica idêntica à da regra jurídica que estabelece
“juris et de jure”, isto é, para ocorrer sua incidência basta a realização
dos fatos signos presuntivos da capacidade contributiva, ainda que, no
caso concreto individual não exista a capacidade contributiva (sic!)
Nos países onde o “princípio da capacidade contributiva” não for
regra constitucional, qualquer fato lícito poderá integrar a composição
da hipótese de incidência tributária. A justiça ou injustiça do tributo
não invalida a regra jurídica tributária, pois é problema pré-jurídico de
Política Fiscal (sic!)24.

O método jurídico-formal foi de grande valia para o contexto em que se apresentava,


entretanto, atualmente mostra-se insuficiente. Tal conclusão se depreende da simples leitura
do preâmbulo da Constituição da República de 1988, que mesmo não dotado de eficácia
jurídica, apresenta as diretrizes de uma hermenêutica que se volta para a proteção e promoção
da dignidade da pessoa humana em suas múltiplas dimensões.
Ademais, diante da força normativa da Constituição e considerando o regime geral
dos direitos fundamentais, caracterizado pela proteção diferenciada do art. 60, § 4º, IV em
cotejo com a cláusula de aplicabilidade imediata do art. 5º, § 1º, da CRFB e a respectiva
extensão do catálogo conferida pelo § 2º deste mesmo artigo, verifica-se que existem outros
elementos no sistema, de conteúdo valorativo, que devem integrar o suporte fático da norma
jurídico-tributária, por expressa determinação Constitucional.
Essa é a proposta do pensamento sistemático no direito tributário, que passa a
compreender a Constituição como um sistema de regras e princípios orientados à promoção
da dignidade da pessoa humana e aos objetivos da República.

Na visão de Pulo Caliendo:


O desafio está posto em entender a Constituição não apenas como
conceito original ou norma superior, mas como um sistema integrado,
de tal forma que o próprio Direito Tributário não possa ser entendido
sem sua referência princípios que perpassam a todo sistema tributário.
A Constituição não seria, assim, mera fonte formal ou elemento de
estruturação e unidade, mas constitutinte da estrutura semântica das
normas tributárias. O tema constitucional, ao perpassar todo o
discurso jurídico-tributário, garantindo-lhe coerência, consistência e
conformidade, determina tanto a estrutura sintática necessária (regra
matriz de incidência tributária), quanto a estrutura semântica
suficiente (argumento). E o elemento integrador de todo o sistema
tributário será a noção de direitos fundamentais do contribuinte, com
base na idéia de justiça fiscal25

Com efeito, verificamos que o art. 150 da Constituição trata das limitações ao poder
de tributar, isto é, condições que, caso implementadas, impedem o preenchimento do suporte
fático do dever fundamental de pagar tributos, inviabilizando a produção de sua conseqüência
jurídica, ou seja, o próprio nascimento da relação jurídica tributária. Sob uma perspectiva
sistemática, verifica-se que a maioria das imunidades e dos princípios tributários, são
24
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3ª Ed. São Paulo: Lejus, 1998, p. 263-264.
25
CALIENDO, Paulo. Direito tributário: Três modos de pensar a tributação. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p. 141.
14

autênticas especializações dos direitos e garantias fundamentais do art.5º, assim, a seção “das
limitações do poder de tributar” comporta fragmentos normativos que integram a hipótese de
incidência da norma tributária.
Ademais, pela leitura do art. 150, CRFB, observa-se a abertura do sistema de
garantias, significando que as limitações decorrem de vários dispositivos da Constituição, fora
do Sistema Tributário, as quais encontram-se principalmente no título II (dos direitos e
garantias fundamentais) e no título VII (Da ordem econômica e financeira).
O princípio da capacidade contributiva ganha densidade a partir do princípio
estruturante do Estado Democrático de Direito que é “destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna”, ganha mais
concretude nos termos do art. 3º da CRFB: Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Complementa-se com o art. 170: “A ordem econômica, fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função
social da propriedade; VII - redução das desigualdades regionais e sociais.”

Todas essas diretrizes (fragmentos normativos – Preâmbulo cc Art.1º, III cc art.3º, I,


III, IV cc art.170, III e VII) podem ser agrupadas num único conceito: tributo com efeito de
confisco, que é elemento integrante do suporte fático da norma tributária, sem o qual não há
formação da relação jurídica tributária.

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao


contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
IV - utilizar tributo com efeito de confisco;

Podemos sintetizar o suporte fático da norma tributária em lógica formal da seguinte


maneira:
Njt = Hft ^ Hi ^ ¬(EC) ↔ OCJ

Isso significa que a norma jurídica tributária (Njt) é composta pela hipótese de fato
antecedente (Hft), mais a hipótese de incidência, composta pelas imposições do Estado,
utilizando-se o símbolo da conjunção lógica (^), mais a ausência de efeito confiscatório (EC),
representado pelo símbolo lógico de conjunção (^) aliado ao conectivo lógico da negação da
proposição (¬). Portanto, a ocorrência jurídica (OCJ) só poderá ocorrer, se e somente se (↔)
estiverem presentes todos estes elementos.

3 A intributabilidade do mínimo existencial

Sem a pretensão de exaurir o tema que comporta inúmeras relações, é possível


afirmar que existe um direito fundamental, de estrutura complexa, que garante ao indivíduo
que não tenha condições de, por si só, ou com o auxílio de sua família, prover a sua
subsistência, um conjunto de prestações estatais que lhe assegure uma vida condigna. Este
direito envolve toda a teoria geral dos direitos fundamentais, em suas múltiplas dimensões, o
que implica em funções de defesa contra a atuação invasiva e desproporcional do Poder
15

Público ou de outros particulares em seu âmbito de proteção, como também em funções de


prestação social; prestações jurídicas (direito à legislação), bem como funções de participação
na tomada de decisões coletivamente vinculantes.
Nesse sentido, são esclarecedoras as lições de Ingo Sarlet:
Com base em tudo o que foi exposto e afastando-nos de formulação
anterior sobre esse tema, entendemos que uma classificação dos
direitos fundamentais constitucionalmente adequada e que, por sua
vez, tenha como ponto de partida as funções por eles exercidas,
poderia partir, na esteira da proposta de Alexy, da distinção dois
grandes grupos: os direitos fundamentais na condição de direitos de
defesa e os direitos fundamentais como direitos a prestações (de
natureza fática e jurídica). O segundo grupo (dos direitos
prestacionais), dividir-se-ia igualmente em dois subgrupos, quais
sejam, o dos direitos a prestações em sentido amplo (englobando, por
sua vez os direitos de proteção e os direitos à participação na
organização e no procedimento) e o dos direitos a prestações em
sentido estrito (direitos a prestações materiais sociais), salientando que
a ambos se aplica a distinção entre os assim denominados direitos
derivados e os direitos originários a prestações(...)Para facilitar a
visualização, oferece-se o esquema que segue (...)
- Direitos fundamentais como direitos de defesa
- Direitos fundamentais como direitos a prestações
 Direitos a prestações em sentido amplo
 Direitos à proteção
 Direitos à participação na organização e procedimento
 Direitos a prestações em sentido estrito26

As origens desse direito denotam a idéia de caridade e do combate à pobreza, que


passou a se firmar ao longo do século XIX, com a concepção de Estado de Bem Estar Social,
(Wellfare-State) encontrando sua primeira afirmação textual na Constituição da República de
Weimar, na Alemanha, em 1919, onde foi associada a noção do mínimo existencial à idéia de
dignidade da pessoa humana.
Na doutrina do segundo pós-guerra, se destaca a obra de Otto Bachof, que, em
meados da década de 50, afirmou que o princípio da dignidade da pessoa humana não reclama
apenas a garantia de liberdade, mas também um mínimo de segurança social, uma vez que
sem os recursos materiais mínimos para a subsistência, a própria idéia de dignidade perde o
sentido.
No acampo teórico, atualmente existem duas vertentes sobre o conteúdo do mínimo
existencial, a primeira delas capitaneada por Ricardo Lobo Torres27 afirma que o mínimo
existencial corresponde ao núcleo essencial dos direitos sociais, partindo de uma concepção

26
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009, p. 167.

_________. Mínimo Existencial e Direito Privado: Apontamentos sobre algumas dimensões da possível eficácia
dos direitos fundamentais sociais no âmbito das relações jurídico-privadas. In: SOUZA NETO, Claudio Pereira
de. & SARMENTO, Daniel. (org.). A constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações
Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
27
TRORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
16

de limites imanentes, o jurista sustenta que este direito é compreendido como o conjunto de
prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida digna, núcleo este
blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade.
A segunda posição é a de Ingo Sarlet 28, que conforme supra-exposto, parte de uma
teoria geral dos direitos fundamentais, nos moldes de Robert Alexy29, e compreende que cada
direito fundamental possui um núcleo essencial, de conteúdo variável, uma vez que todos eles
estão sujeitos a condições fáticas e jurídicas ideais, bem como a limites e restrições
decorrentes de eventuais colisões com outros direitos. Essa posição parece ser mais
vantajosa, pois abre o conceito para além de um mínimo vital, sem deixar de considerar como
norte interpretativo os direitos sociais como: moradia, alimentação, saúde, educação, proteção
à maternidade etc.
Na seara tributária, Ricardo Lobo Torres é a referência, pois trata-se de um autor que,
desde longa data, se preocupa com a questão da tributação sobre o mínimo existencial,
afirmando que a tributação no Estado Democrático de Direito se processa inteiramente sob a
ótica do direitos fundamentais, sendo assim ela:
[...] passa a se fazer com fundamento no princípio da capacidade
contributiva e no seu subprincípio da progressividade, que ingressam
nas Constituições da França e do Brasil, entre outras, o que implica a
proibição da incidência sobre a parcela mínima necessária à
existência humana digna, que, estando além da capacidade
econômica e constituindo reserva da liberdade, limita o poder fiscal do
Estado. (grifo nosso)30
Destarte, compreende-se que o mínimo existencial desempenha, precipuamente, no
direito tributário uma função defensiva, que objetiva excluir do campo de incidência tributária
signos presuntivos de riqueza que, na realidade, denotam justamente o contrário. Por ter
acento constitucional ele representar uma garantia fundamental do cidadão que assume a
forma de imunidade, na medida em que o poder de imposição fiscal do Estado não pode
invadir a esfera de liberdade mínima daquele desprovido de capacidade para prover o seu
próprio sustento.
Marciano Buffon nos dá precisamente a dimensão do conceito:
Em qualquer modelo estatal – e no Estado Social principalmente – é
inadmissível que o cidadão desprovido de capacidade para prover o
seu próprio sustento seja compelido a contribuir para o Estado,
especialmente quando este lhe sonega aquilo de mais básico que
prometeu prover (saúde, educação, segurança, habitação, salário
digno, etc.)31.

4 Possíveis horizontes para a proteção dos vulneráveis

Apesar das premissas levantadas e da conclusão mais do que óbvia, verifica-se que o
paradigma neoconstitucionalista se mostra muito ineficaz na proteção dos vulneráveis quando

28
SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Dimensões da dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito
Constitucional, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 88-89.
29
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
30
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Os direitos humanos e
a tributação: Imunidades e Isonomia. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. V.III, p. 169-170.
31
BUFFON, Marciano. Tributação e dignidade humana: entre os direitos e deveres fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 181.
17

se trata do tema da tributação sobre o consumo, uma vez que esse tipo de exação se processa
de forma invisível e sorrateira, reduzindo significativamente a economia de famílias inteiras
que destinam quase que integralidade de seus vencimentos em despesas com alimentação,
saúde, moradia e educação.
Nos tributos indiretos, mormente no ICMS, IPI e ISS o sujeito passivo da obrigação
tributária repassa ao preço dos produtos e serviços o custo respectivo, sendo certo que o ônus
tributário é sempre suportado pelo consumidor final.
Uma hipótese para se amenizar esse efeito se encontra na aplicação do princípio da
seletividade, mediante aplicação de alíquotas menores, ou até mesmo da alíquota 0%, a bens
indispensáveis a subsistência, ao passo que bens considerados supérfluos seriam tributados
com alíquotas maiores. Entretanto, na prática, observa-se que tal princípio não é observado
pelo Legislador e que as isenções funcionam como “moeda de troca” para os interesses
políticos mais escusos.
O ideal seria uma ampla reforma tributária, que ao modelo dos verdadeiros
Wellfare- State escandinavos32, como Suécia, Dinamarca, Suíça, Finlândia e Noruega, optasse
por tributar mais a renda e o patrimônio ao invés do consumo. Uma vez que, nestes países se
constata o menor índice de concentração de riquezas e desigualdades sociais. Falar em
cidadania e objetivos da República com um sistema tributário como o brasileiro é
definitivamente uma utopia.
Marciano Buffon, citando a doutrina de Herrera Molina traz à lume outra alternativa:
Por isso, impõe-se a busca de alternativas eficazes para, pelo menos,
preservar o mínimo existencial da imposição tributária indireta.
Conforme sustenta Herrera Molina, a solução para garantir-se o
mínimo vital à existência humana nos tributos indiretos consistiria em
duas alternativas: a) a exoneração dos bens de primeira necessidade;
b) o pagamento de uma compensação equivalente à imposição indireta
suportada por um consumo mínimo, sendo que a compensação poderia
ser efetivada através de um crédito a ser deduzido do imposto sobre a
renda ou, nos casos de renda abaixo de determinados níveis mínimos,
através de um sistema de transferência estatal que beneficiasse esses
indigentes.33

De nossa parte, entendemos que não cabe ao jurista quedar-se inerte. Um verdadeiro
neoconstitucionalismo, critique-se ou não, pressupõe uma postura mais ativa do Poder
Judiciário frente às omissões e descalabros do Poder Legislativo.
Essa nova visão da Constituição, compreendida na sua força normativa e vinculante,
operou uma verdadeira reengenharia institucional no Poder judiciário, que ocorreu em grande
medida, em decorrência do processo de redemocratização do país, proporcionado pela
promulgação da Constituição da República de 1988, responsável pela implementação de um
abrangente sistema de controle de constitucionalidade, não restrito apenas as tradicionais
Ações Direitas de Inconstitucionalidade.
Entendido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos do sistema americano e
europeu. Assim, desde o início da República, adota-se a fórmula americana de controle
incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um
caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado,
também se faz uso do modelo europeu pela via do controle direto da constitucionalidade,

32
Cf. ESPING-ANDERSEN, Gosta. The Three Worlds of Welfare Capitalism. Oxford: Polity Press, 1990.
33
Idem. p. 216.
18

permitindo que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo


Tribunal Federal. Além disso, verifica-se a ampliação do rol de legitimados à propositura do
controle, conforme previsto no art. 103/CF, atribuindo a inúmeros órgãos, bem como
entidades públicas e privadas (como as sociedades de classe de âmbito nacional e as
confederações sindicais) a faculdade de ajuizar ações diretas.
Fora o controle pela de via Ação Direta de Inconstitucionalidade, também surgiram:
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (art. 102, §1º/CF); Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103, §2º/CF); Mandado de Injunção (Art. 5º
LXXI/CF); Representação Interventiva (art. 34, VII, c/c art. 36, III/CF); além da edição de
súmulas vinculantes (Art. 103-A/CF); e a Reclamação Constitucional (art. 102, l/CF).
Ademais, verifica-se o uso de novos instrumentos voltados à tutela dos interesses
transindividuais, cuja própria denominação foi trazida por uma das principais leis que regem
tais interesses, (Lei 8.078/90), ou seja, o denominado Código de Defesa do Consumidor
(CDC).
O surgimento da tutela dos interesses difusos e coletivos se efetivou com a Lei
7.347/85, conhecida como a Lei da Ação Civil Pública (LACP), reconhecida como
instrumento revolucionário no direito processual brasileiro34. Isso porque não se pode falar
em Direito Processual Coletivo antes da entrada em vigor da referida lei. Desta forma, pode-
se considerar que a LACP, o CDC e a própria Constituição da República de 1988,
representam hoje um subsistema de tutela jurisdicional coletiva, imprescindível à defesa dos
“novos” direitos difusos e coletivos, uma vez que a natureza individualista do Código
Processual Civil não é mais adequada para essa finalidade.
É verdade que o arguto legislador retirou do cidadão a possibilidade do manejo de
ACP em matéria tributária, por expressa determinação legal:
Lei 7.347/85 - Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem
prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos
morais e patrimoniais causados:
Parágrafo único. Não será cabível ação civil pública para veicular
pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o
Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de
natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente
determinados. (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

A jurisprudência também está sedimentada no sentido da ilegitimidade do Ministério


Público para ajuizar ações relativas à matéria tributária:
“TRIBUTÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERMO DE
ACORDO DE REGIME ESPECIAL. TARE. ILEGITIMIDADE
ATIVA DO MINITÉRIO PÚBLICO. PRECEDENTES DO
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Reconhece-se a
ilegitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública
em matéria tributária, ante a vedação expressa do artigo 1º,
parágrafo único, da Lei 7.347/85. Precedentes do Superior
Tribunal de Justiça. (fls. 478/479, Relator Desembargador
Natanael Caetano, julgado em 2/5/2007, DJ de 31/5/2007)” (grifos
nossos). Na origem, o Ministério Público ajuizou ação civil pública
contra ** e o Distrito Federal com o objetivo de: (i) anular Termo de
34
MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 22ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
19

Acordo de Regime Especial – TARE, firmado entre ambos, nos


termos da Lei Distrital 1.254/96, alterada pela Lei Distrital 2.381/99,
que estabeleceu o regime especial de apuração do Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS devido pela empresa
ou, alternativamente, anular apenas a primeira cláusula do referido
ajuste; e (ii) obter a condenação desta ao pagamento do imposto não
recolhido, acrescido de juros e correção monetária, desde a citação.
Na inicial, o Parquet alegou, em resumo, que o DF, invadindo matéria
reservada à lei complementar federal, editou o Decreto Distrital
20.322/99, à guisa de regulamentar a citada Lei Distrital 2.381/99,
autorizando o comércio atacadista ou distribuidor a abater,
indevidamente, o montante do imposto cobrado nas operações
anteriores, na forma de alíquotas variáveis. Acrescentou, ainda, que a
Secretaria de Fazenda do Distrito Federal, deixando de observar os
parâmetros estabelecidos no próprio Decreto, editou a Portaria 292/99,
que estabeleceu percentuais de crédito fixos para os produtos que
enumera, tanto para as saídas internas quanto para as interestaduais,
diminuindo, assim, o valor que deveria ser recolhido a título de ICMS.
Disse, mais, que, ao cabo de doze meses de vigência do acordo, o
Subsecretário da Receita do DF descumpriu o disposto no art. 36, § 1º,
da Lei Complementar Federal 87/96 e nos arts. 37 e 38 da Lei Distrital
1.254/96, porque não teria procedido à apuração do imposto devido,
com base na escrituração regular do contribuinte, apurando eventuais
diferenças positivas ou negativas, para o efeito de pagamento ou
compensação RE - 576155 (AC 20050111015942, Min. Rel Ricardo
LEWANDOWSKI, 15/05/2014)

Entretanto, quando a questão envolve direitos que não exclusivamente tributários, a


jurisprudência é flexível, mormente quando se trata de questões envolvendo serviços públicos
essenciais e direitos do consumidor.

O Ministério Público possui legitimidade para propor ação civil


pública com o fim de reduzir reajuste na tarifa de transporte
coletivo. Com base nesse entendimento, a Turma negou provimento a
recurso extraordinário interposto pelo Município de Santos/SP em que
se sustentava ofensa aos arts. 1º; 2º; 30; 34, VII, c e 129, todos da CF,
sob alegação de ilegitimidade do parquet e afronta ao princípio
federativo e à autonomia municipal. Considerou-se presente o
interesse difuso, porquanto caracterizada a sua natureza indivisível,
bem como envolvidos segmentos indeterminados da sociedade.
Asseverando tratar-se de relação de prestação de serviços, submetida
ao Código de Defesa do Consumidor, e não de questão tributária,
entendeu-se adequada a competência do Ministério Público (CF, art.
129, III). Ressaltou-se, ainda, que a autonomia municipal não obsta a
preservação de direitos difusos. Precedentes citados: RE 195056/PR
(DJU de 14.11.2003); RE 213631/MG (DJU de 7.4.2000); AI 491195
AgR/SC (DJU de 7.5.2004); RE 163231/SP (DJU de 29.6.2001). RE
379495/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 11.10.2005. (RE-379495)
20

Associação e Legitimidade Ativa (Transcrições) (v. Informativo 346)


AI 382298 AgR/RS* RELATOR P/ ACÓRDÃO: MIN. GILMAR
MENDES Voto-vista: Cuida-se de hipótese de ação rescisória com o
objetivo de desconstituir acórdão proferido em ação civil pública
apresentada por associação na defesa de direitos individuais
homogêneos. Para tanto, a agravante, entre outros argumentos de sua
ação rescisória, alegou a falta de legitimidade ativa da associação, nos
seguintes termos (fl. 14): "c.1 - não reconheceu a ilegitimidade da
APADECO, como já havia acontecido com o já citado Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor no E. STJ, onde, considerando os
interesses dos associados deste último como individuais homogêneos,
deu-se pela ilegitimidade ativa da autoria e pela impropriedade da
tutela face, também, à diferença entre contribuinte e consumidor. De
tal forma, a ação civil pública deveria ter sido extinta, ex-vi" do art.
267, VI, do CPC; c.2 - violou o art. 5, XXI, da Constituição Federal de
1988 e, novamente, pela presença da ilegitimidade ativa, o art. 267,
VI, do CPC - porque entendeu desnecessária a expressa autorização
dos interessados individuais para a representação em juízo, só
dispensável, à luz do Código de Defesa do Consumidor (arts. 81 e 82)
e Lei nº 7.347/85 (arts. 1º e 5º, II), quando se trate de ação onde se
hajam de preservar interesses difusos, inclusive de consumidores, o
que não era o caso; c.3 - não fez a devida diferenciação das relações
obrigacionais entre "contribuintes" e "consumidores", de tal forma
que, aceitando umas pelas outras, violou os arts. 2º, 3º, 81 e 82, IV, do
Código do Consumidor e arts. 3º e 121, do CTN, além dos arts. 5º,
XXXII, e 150, II e 170, V, da CF/88 definidores de quem é
consumidor e de quem é contribuinte (sujeito passivo de obrigação
tributária);" (...). O acórdão recorrido extraordinariamente
definiu os limites da discussão da seguinte forma (fl. 73): "Todos
os argumentos apresentados pela União, como ressaltou o ilustre
membro do Ministério Público Federal, constituem decorrências
lógicas de uma única questão jurídica: a saber se é possível a
proteção de contribuintes em sede de ação civil pública (fls. 118)".
Verifica-se, que o cerne da questão está na qualificação dada aos
assim chamados substituídos pela associação na defesa de seus
interesses individuais homogêneos: se consumidores ou
contribuintes, tendo a agravante suscitado tal questionamento
inclusive sob argumento constitucional, conforme se depreende do
trecho de sua ação rescisória acima transcrito. O acórdão
recorrido extraordinariamente entendeu que (fl. 73): "... se a lei
autoriza a propositura de ação civil pública por associações que
incluam entre suas finalidades institucionais, entre outras, a
proteção ao consumidor ou a qualquer interesse difuso ou coletivo
e a APADECO, expressamente, tem por finalidade essencial
promover a defesa do consumidor, de acordo com as normas do
Código de Defesa do Consumidor (CODECOM) e legislação
correlata, como também dos contribuintes e quaisquer outras
pessoas, relativamente aos danos causados ao meio ambiente e a
qualquer outro interesse difuso ou coletivo, na forma da Lei de
21

Ação Civil Pública e legislação vigente, não há falar em


ilegitimidade ativa. Creio que seria quase desnecessário ressaltar,
porquanto a doutrina posterior à edição do Código de Defesa do
Consumidor é unânime nesse aspecto, que a ação civil pública não
se presta somente para a tutela de interesses difusos e coletivos,
serve também para a proteção dos interesses individuais
homogêneos, como o dos consumidores de gasolina e álcool no
período de vigência do Decreto-Lei nº 2.288, de 1986, que foram
compulsoriamente contribuintes da exação lá prevista e
posteriormente considerada inconstitucional" (...). Percebe-se,
portanto, que o Tribunal de origem legitimamente decidiu as
argüições trazidas pela agravante, principalmente quando
explicitou, conforme a passagem acima transcrita, que a agravada
agiu na defesa dos interesses individuais homogêneos dos
contribuintes da exação prevista pelo Decreto-lei nº 2.288, de 23
de julho de 1986. Dúvida não subsiste de que a legitimidade da
autora para propor ação civil pública na matéria foi
apreciada*(acórdão pendente de publicação RE 387990, Rel. MIN.
CARLOS VELLOSO)

Conclusão

Destarte, a guisa de conclusões, visualiza-se a possibilidade do uso da Ação Civil


Pública em questões que envolvam a tributação no consumo, por representar interesse de toda
uma coletividade de pessoas carentes que não dispõem de meios idôneos para fazer valer o
seu direito a uma existência digna.
Nesse sentido, também é de grande valia o Inquérito Civil Público, que pode abrir as
portas para um levantamento de quais bens de consumo representam maior gravame para a
subsistência deste grupo de vulneráveis, bem como possibilitar a participação dos mesmos em
audiências públicas no intuito de apurar quais as necessidades básicas que envolvem a
tributação sobre o mínimo existencial.
Feitas as devidas apurações e pesquisas no âmbito do inquérito, nada obsta que o
parquet busque a exoneração destes bens de primeira necessidade, determinando que o Poder
Público elabore medidas de compensação no âmbito da Lei de Responsabilidade Fiscal,
principalmente via convênio35 com a União, que registrará o aumento na renda das Pessoas
Jurídicas beneficiadas com a isenção sobre a circulação de mercadorias no âmbito dos Estados
Federados.
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35
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